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Inesquecível!

Há momentos que perduram na memória, indiferentes à passagem dos anos. Estávamos na primavera de 1987 quando, adolescente a entrar na idade adulta, senti algo único. Uma paixão à primeira vista! Daquelas que nunca mais se esquecem.

Era uma das casas de referência no panorama portuense das duas rodas. O ‘Santos’ estava para a Kawasaki como a Motodouro para a Yamaha ou a Garagem Batalha para Suzuki. Locais de culto onde o coração sofria. Um dia, à entrada do stand e na companhia do meu pai, lá estava ela, do lado esquerdo, preta e cinzenta. A traseira bem esculpida, em primeiro plano, tornava-a mais atraente. Ele olhou para ela durante alguns segundos, e ficou imóvel. Depois olhou para mim, senti-lhe o enorme nó na garganta e não tive coragem de lha pedir.

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Eram tempos extraordinários. A proibição da importação de motos tinha terminado dois anos antes e éramos massacrados permanentemente com novas propostas de modelos desportivos, de todas as marcas e cilindradas. Não bastava o suplício de sonharmos com determinada companhia, que seguíamos com a precaução de não nos denunciarmos, juntava-se agora ao rol um infindável monte de opções com rodas, igualmente inatingíveis.

O mundo das superdesportivas tinha entrado em ebulição dois anos antes, com o lançamento da GSX-750 R e, a cada ano que passava, as marcas excediam-se nas propostas desportivas, com cilindradas entre os 600 cc e os 1100 cc! A Kawasaki, de certa forma pioneira no universo deste tipo de alucinações com a Ninja 900R, apresentada em ‘84, não dava tréguas à concorrência japonesa. Assim, no ano de 1987, respondeu à Honda CBR 1000F, Yamaha FZR 1000 e Suzuki GSX-1100R, surpreende-nos com um monstro de imponente elegância, a GPZ 1000 RX.

Era difícil categorizá-la esteticamente. Era menos ‘race spirit’ que a Suzuki, mais agressiva que a Honda e mais elegante que a Yamaha. Era também mais imponente que a Ninja 900R, e inspirava respeito. O quadro de secção retangular, o assento escavado, as reentrâncias nas carenagens laterais, as barbatanas na frente e na traseira, com os piscas a rematar, e os silenciadores esticados e elevados, como que extrudidos pelos gases de escape, não deixavam o olhar respirar. A cor preta adensava o mistério, ficando entregue o dinamismo das formas à zona em cinza-escuro debruada a vermelho. Um escândalo! Ficávamos atordoados, sem uma explicação imediata para o olhar embasbacado com que a rodeávamos estacionada, ou seguíamos quando passava.

Rodas de 16 polegadas garantiam enorme agilidade, mas rapidamente ficaram desatualizadas, dificultando a montagem de pneus desportivos atuais.

O painel de instrumentos e as funções disponíveis nos periféricos eram uma referência incontornável nos anos ‘80.

O contraste do alumínio dos suportes para os pousa-pés, o excêntrico para afinação da corrente, o disco de travão e o formato do escape eram detalhes impressionantes.

Relativamente ao patamar tecnológico da época, a RX não era a mais exuberante. Julgo que a intenção também não era essa, mas é inevitável a comparação. O desenho do quadro derivava da GPZ 600R, e a construção em tubo de aço de secção retangular, apesar de interessante, não se podia comparar aos de alumínio da GSX-1100 R e FZR 1000. No capítulo da travagem era a que tinha os discos de menor diâmetro na frente, apenas com 280 mm – a FZR 1000 brindava-nos com 320 mm – e era a única da classe com pinças de apenas um pistão. Menos feliz ainda a opção por jantes de 16 polegadas em ambas as rodas, dimensão que cairia em desuso rapidamente e que acabaria por limitá-la pouco tempo depois em termos de opção de pneus desportivos. O motor era também o que apresentava dimensões internas menos desportivas, privilegiando o binário. Quanto ao peso, acusava mais 40 quilos que a Suzuki e 34 do que a Yamaha. Olhando apenas para a ficha técnica até parece que estamos perante uma turística, mas as sensações apontavam noutra direção!

Nem todos pensamos assim, mas, para mim, é fundamental que uma moto deste segmento me impressione ao olhá-la. É-me indiferente que, em estrada, seja mais rápida umas décimas em aceleração, ou que me permita travar dois metros mais tarde, ou que faça cinco quilómetros/ hora mais em sexta a fundo. A estrada não é uma pista e não há pódio no final! Preciso sentir tudo isso com ela parada, ou em sexta, a metade da velocidade possível de atingir em primeira, e esta RX 1000 consegue fazê-lo. Manuseá-la ao estacionar obriga a bastante cuidado, são mais de duzentos e cinquenta os quilos em ordem de marcha e qualquer descuido paga-se caro, mas é num instante que se adoça em andamento.

O formato desportivo do assento para o condutor, prolongado pelo destinado ao passageiro, contribuía decisivamente para a sua imagem desportiva.

A posição de condução é envolvente, o assento escavado obriga a uma determinada colocação, mas não nos sentimos constrangidos. É desportiva sem ser forçada, e gostamos de nos ver refletidos quando circulamos em cidade. A caixa de velocidades tem um engrenar inicial rugoso e metálico, como se os carretos estivessem à procura da sua posição, mas tornase suave em seguida, desde que se cumpra todo o movimento do seletor. A embraiagem é progressiva e há binário suficiente para arrancar com suavidade com um ligeiro acréscimo de rotação. Chegados às 3.000 rpm entramos em modo conforto, não há vibrações, e podemos ir trocando de caixa quase sem ouvir o motor. Em sexta velocidade o painel indica nesse momento 90 km/h, quando vamos na realidade a pouco mais de

70 km/h, mas a dimensão do exagero mantém-se constante em seguida, funcionando até como precaução. Em estrada aberta consegue mesmo ser confortável, com proteção aerodinâmica razoável no tronco. Sente-se o vento um pouco mais nas mangas, mas o capacete não abana, nem nos obriga a procurar refúgio. Os retrovisores são estilizados, compensando a sua dimensão através de um nível reduzido de vibrações. Em percurso sinuoso a roda dianteira de 16” ajuda a tornar rápida a mudança de direção e o funcionamento do ‘anti-dive’, uma das proezas técnicas da época, faz-se sentir, dando estabilidade à entrada em curva, mas a travagem mostra-se limitada, sendo evidente a falta de potência. Quando o espaço o permite podemos saborear a aceleração envolvente, acompanhada por uma transformação da sonoridade no mínimo apelativa, mas a perceção das suas dimensões e da inércia que a acompanha tornam este exercício delicado. O bom senso, felizmente, sobrepõe-se à adrenalina, e somos aconselhados a mudar de registo.

O sucesso comercial da RX 1000 permite-nos, ainda hoje, encontrar sem grande dificuldade uma unidade em muito bom estado em redor dos 5.000€. Para quem pretenda uma moto distinta, envolvente e sem caprichos mecânicos, é uma excelente opção, para mais porque se encontra ainda na fase inicial de valorização. Enjoy!

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