A Rota da Seda Digital - O plano da China de conectar o mundo e dominar o futuro

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A ROTA DA SEDA DIGITAL

O plano da China de conectar o mundo e dominar o futuro

Copyright © 2022 Jonathan E. Hillman

Título original: The Digital Silk Road: China’s Quest to Wire the World and Win the Future

Todos os direitos reservados pela Editora Vestígio. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

direção editorial Arnaud Vin editor responsável Eduardo Soares preparação de texto Eduardo Soares

revisão Alex Gruba diagramação Christiane Morais de Oliveira capa Diogo Droschi (sobre imagem KC2525/Shutterstock)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Hillman, Jonathan E.

A Rota da Seda Digital : o plano da China de conectar o mundo e dominar o futuro / Jonathan E. Hillman ; [tradução Luis Reyes Gil]. -- São Paulo, SP : Vestígio, 2022.

Título original: The digital Silk Road : China's quest to wire the world and win the future. ISBN 978-65-86551-84-6

1. China - Relações econômicas exteriores 2. Indústria de serviços de informação - Aspectos econômicos - China 3. Integração econômica internacional - Aspectos estratégicos I. Título. 22-116455 CDD-337.51

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1. Rota da Seda Digital : China : Relações econômicas exteriores : Economia 337.51 Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380 www.editoravestigio.com.br SAC: atendimentoleitor@grupoautentica.com.br

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Para Liz

Introdução 9

CAPÍTULO UM – Guerras de redes 13

CAPÍTULO DOIS – Ctrl + C 33

CAPÍTULO TRÊS – “Onde quer que haja gente” 69

CAPÍTULO QUATRO – Quinhentos bilhões de olhos 103

CAPÍTULO CINCO – Uma dobra na internet 143

CAPÍTULO SEIS – As commanding heights 181

CAPÍTULO SETE – Vencer as guerras de redes 221 Agradecimentos 263 Notas 265

INTRODUÇÃO

ESTE LIVRO NASCEU num edifício de vinte e nove andares, envolto em colunas romanas, na Broadway, nº 195, no agitado distrito financeiro de Nova York. Bem antes que a minha editora americana, a HarperCollins, se mudasse para cá, o prédio abrigou a sede da American Telephone and Telegraph, mais conhecida como AT&T, e foi palco de várias transmissões históricas, como a primeira comunicação transatlântica por rádio sustentada, em 1923, a primeira chamada telefônica transatlântica, em 1927 e a primeira ligação por videofone, em 1930. Durante a Guerra Fria, a AT&T adotou o slogan “As comunicações são o alicerce da democracia”, e pela maior parte do século XX esse arranha-céu do nº 195 da Broadway continuou no cerne de um império de comunicações em expansão.

À medida que o presente século avança, as comunicações vão ficando mais rápidas, com maior alcance e capacidade de transmissão –e, cada vez mais, são provenientes da China. Em 2017, engenheiros chineses usaram um satélite especial para realizar a primeira videoconferência intercontinental por criptografia quântica, um grande passo para a construção de uma rede invulnerável a ataques cibernéticos. Em 2018, a Huawei e a Vodafone fizeram uma demonstração de uma das primeiras ligações sem fio por 5G. No mesmo ano, o Grupo Hengtong comemorou a venda de 10 mil quilômetros de cabo submarino de fibra óptica para sistemas que transportam a maior parte dos dados internacionais. A comunicação, como o Partido Comunista da China (PCCh) vem provando, não tem cor política. É uma ferramenta poderosa, tanto para a libertação quanto para a repressão, dependendo de quem a controla.

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Há apenas três décadas, a China era totalmente dependente de companhias estrangeiras em todas essas capacitações. A Huawei era uma revendedora de médio porte. Os satélites de comunicações mais avançados da China eram feitos nos Estados Unidos. Os fornecedores mundiais de cabos submarinos de fibra óptica provinham exclusivamente dos Estados Unidos, Europa e Japão. Como a China não dispunha desses sistemas, e menos ainda da capacidade de produzi-los, a primeira conexão do país com a internet global foi por meio de uma rede de satélites Sprint, em 1994.

Desde então, a China passou de cliente a fornecedora, de copiadora a inovadora, de ramificação da rede a operadora.

A rápida ascensão da China só tem seu brilho ofuscado por suas ambições globais referentes às próximas três décadas. O líder chinês Xi Jinping proclama que até 2025 o país dominará a tecnologia avançada de manufatura, liderará o estabelecimento de padrões por volta de 2035 e se tornará uma superpotência global até 2050. Xi mobiliza companhias chinesas para que despejem recursos no desenvolvimento de uma infraestrutura digital no âmbito doméstico e vendam mais seus produtos no exterior por meio de sua Iniciativa Cinturão e Rota. A Rota da Seda Digital, que faz parte dessa iniciativa e constitui o foco deste livro, é que faz a conexão dessa aposta da China para alcançar a independência tecnológica em casa e buscar o domínio dos mercados futuros.

A história adverte que há nisso bem mais em jogo do que cifras de vendas. A AT&T aplicou sua expertise para ajudar a desenvolver armas nucleares, um sistema de alerta de mísseis e uma rede secreta de comunicações para o Air Force One, entre outros projetos de segurança nacional. “A bênção do Estado, implícita ou explícita, tem sido crucial para todo império de informação do século XX”, observa Tim Wu, autor de The Master Switch [A chave geral], professor da Escola de Direito da Universidade Columbia e integrante do Conselho Nacional de Economia do presidente Biden. Um novo império de informação com amplo apoio do Estado chinês emerge agora. Estas páginas descrevem seu perfil e analisam suas consequências. Enquanto eu escrevia o livro, as perspectivas tornavam-se cada vez mais áridas, à medida que a pandemia da Covid-19 paralisava o

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mundo físico. As ruas de Nova York e de muitas outras cidades ficaram silenciosas, e nos dias mais sombrios tudo parecia perigosamente frágil, quando não já rompido: sistemas de saúde, cadeias de suprimentos e mercados financeiros. A infraestrutura digital, normalmente fora de nosso campo visual e mental, de repente parecia ser o único sistema que não havia falhado. Fornecia uma linha vital para família, amigos, trabalho, escola, comida, entretenimento, entre outras coisas. O mundo digital seguiu bravamente em frente.

Por necessidade, minha jornada para compreender a infraestrutura digital tornou-se ainda mais virtual. Em vez de voar até Los Angeles e visitar um dos pontos de tráfego de internet mais movimentados do mundo – portal de fluxos massivos de dados para a Ásia e dela até nós –, fiz um passeio online pelo local e segui até a Cidade do Cabo, onde visitei um dos maiores centros de dados africanos – tudo a partir da minha mesa, enquanto almoçava. Matriculei-me em cursos online sobre sistemas de vigilância, oferecidos pelo maior fabricante de câmeras da China, o que me permitiu um acesso que teria sido difícil, se não impossível, presencialmente. Tornei-me usuário beta do Starlink, a megaconstelação de satélites de Elon Musk que pretende levar banda larga aos pontos mais remotos da Terra.

Essas excursões virtuais tinham suas limitações. Eu não podia perambular, como costumava fazer ao visitar projetos chineses de infraestrutura ao redor do mundo antes da pandemia. Não podia encontrar colegas de classe entre uma aula e outra e conhecê-los melhor, saber por que estavam fazendo o curso. Nenhum vídeo, nem os de mais alta definição, consegue captar o cheiro de um lugar ou a sensação da chuva, do sol e do vento. No entanto, as oportunidades ainda assim eram impressionantes – as informações que acessei, os lugares que vi, as pessoas que conheci, e tudo com segurança, no meio de uma pandemia global.

Mas a vida não migrou online para todos, nem da mesma maneira para aqueles que têm o privilégio do acesso. Cerca de metade da humanidade não tem acesso à internet. Na China, perto de um bilhão de pessoas dispõem de acesso, mas as conexões com o exterior são tão restringidas que a maioria usa essencialmente uma internet à parte. A pandemia também abriu as comportas para formas mais difusas e

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sofisticadas de vigilância. As câmeras chinesas de supervisão desembarcaram por toda parte, do Parlamento Europeu às escolas públicas do Alabama, equipadas com imagens termais para detectar febres. Com seu alcance em rápida expansão, a China pode parecer destinada a ser a sede do próximo império da informação. O extenso campus estilo europeu da Huawei em Dongguan, a uma hora de Shenzhen, já faz os detalhes de arquitetura romana da AT&T parecerem modestos. Mas os Estados Unidos ainda detêm uma posição de força. Entre suas muitas vantagens estão universidades de pesquisa líderes mundiais, companhias inovadoras, fortes conglomerados de capital privado, abertura a imigrantes e uma rede global de parceiros e aliados. A questão é se os Estados Unidos conseguirão ficar à altura do desafio, reconstruindo em casa e ao mesmo tempo liderando uma coalizão de países que ofereça reais benefícios ao mundo desenvolvido. Depois de um ano de trabalho remoto, a própria ideia de uma sede física parece desatualizada. Mas essa jornada me ensinou que o mundo digital está se tornando ainda mais dependente de sistemas físicos. Quase todo dispositivo, e cada nó de uma rede, ainda se insere nos limites físicos ou legais de um Estado soberano. Como partes cada vez maiores da vida cotidiana dependem de infraestrutura digital, e mais objetos físicos estão conectados, o que emerge não são apenas meras versões diferentes da internet, mas mundos diferentes. As comunicações têm um alicerce físico, e a concorrência para controlá-lo está em curso.

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CAPÍTULO UM GUERRAS DE REDES

SE A HISTÓRIA é escrita pelos vencedores, então as fantasias sobre o futuro também são. Uma das mais sedutoras e perigosas dessas histórias, nascida sob o ofuscante brilho da vitória na Guerra Fria, trazia a ideia de que a tecnologia das comunicações inevitavelmente promoveria a liberdade. Como o ex-presidente americano Ronald Reagan declarou a um público londrino em 1989: “Mais que os exércitos, mais que a diplomacia, mais que as melhores intenções das nações democráticas, a revolução das comunicações será a maior força para o avanço da liberdade humana que o mundo já viu”.1

Recém-saído do cargo, Reagan sentia-se triunfante. Os Estados Unidos estavam em ascensão, e seu arquirrival ofegava. A União Soviética liderara o mundo em aço, petróleo e na produção de armas nucleares, mas os computadores soviéticos estavam duas décadas atrás de seus equivalentes americanos. A indústria pesada, os líderes soviéticos descobriam agora, tinha menor importância na era da informação. “O maior dos Big Brothers está cada vez mais indefeso contra a tecnologia das comunicações”, vangloriava-se Reagan.

A democracia avançava na Hungria e na Polônia, e Reagan via seu florescimento até na China, onde as autoridades, algumas semanas antes, haviam tido que sufocar brutalmente manifestações em Pequim e em outras cidades chinesas. Nicholas Kristof, então chefe da filial de Pequim do New York Times, testemunhou a violência na Praça Tiananmen e depois escreveu: “O Partido Comunista assinou seu atestado de óbito esta noite”.2 Diplomatas e correspondentes estrangeiros debatiam se o Partido duraria semanas, meses ou um ano.3

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Apesar de o PCCh ter desafiado essas expectativas, as previsões de que a tecnologia provocaria o fim do partido difundiram-se ainda mais. Em 1993, parabólicas ilegais de satélite pipocavam mais rápido do que o governo era capaz de derrubá-las. “A revolução da informação está chegando à China, e a longo prazo ameaça suplantar a revolução comunista”, Kristof escreveu.4 Os satélites falharam em promover essa mudança, mas então veio a internet, e os blogueiros foram alistados como os novos combatentes da liberdade.

Poucos foram tão corajosos e inspiradores quanto Li Xinde, autor da Rede de Vigilância da Opinião Pública Chinesa. Li investigava relatos de corrupção governamental, postava seus achados online e então desaparecia, antes que as autoridades locais conseguissem prendê-lo. “É a própria liderança chinesa que está cavando o túmulo do Partido Comunista, ao dar banda larga ao povo chinês”, escreveu Kristof em 2005, num perfil de Li intitulado “Morte por mil blogs”.5

Mas a fantasia de que a conectividade favorece a liberdade já se dissipou há muito tempo. Em seu lugar, uma realidade bem mais sombria se apresenta. A democracia está em retirada, e o autoritarismo digital está em marcha.

O PCCh vem se armando de tecnologia de comunicações para cimentar seu controle internamente e expandir sua influência no exterior. Como um castelo medieval, a internet doméstica da China tem apenas um punhado de pontos de acesso, o que dá a Pequim uma capacidade sem igual de monitorar, censurar e bloquear tráfego na rede. Câmeras de vigilância equipadas com inteligência artificial (IA) recobrem os espaços públicos, fazendo log-in de rostos, automatizando perfis étnicos e contribuindo para o aprisionamento de mais de um milhão de membros de minorias muçulmanas.

A China se tornou não só o maior dos Big Brothers, mas também o maior provedor mundial de tecnologia de comunicações. A Huawei tem fábricas em mais de 170 países, e está longe de ser a única gigante digital da China. Duas companhias chinesas, Hikvision e Dahua, produzem cerca de 40 por cento das câmeras de vigilância do mundo. O Grupo Hengtong fabrica 15 por cento da fibra óptica do planeta e é um dos quatro maiores fornecedores de cabos submarinos, pelos quais são transmitidos 95 por cento dos dados internacionais. O sistema global

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de navegação por satélite da China, o Beidou, provê uma cobertura mais extensiva que o GPS dos Estados Unidos em 165 das maiores capitais mundiais.6

Do espaço sideral ao fundo do oceano, todas essas conexões fazem parte da Rota da Seda Digital da China, ou RSD. Amorfa quanto ao design, a RSD assenta-se nos interstícios dos esforços políticos característicos do líder chinês Xi Jinping. Ela foi mencionada pela primeira vez em 2015 como componente da Iniciativa Cinturão e Rota da China, que é a concepção de Xi para aproximar a China do centro de tudo, por meio de projetos de infraestrutura, acordos comerciais, laços entre pessoas e coordenação de políticas. Acenando com promessas de investimento e falando às aspirações do mundo em desenvolvimento, a China convenceu 140 países a aderirem ao Cinturão e Rota.7

Assim como o Cinturão e Rota, a RSD é um conceito centrado na China, acondicionado numa retórica entusiástica e nebulosa a respeito de cooperação e benefícios mútuos. Não há critérios formais para o que se qualifica como um projeto, mas como as companhias de tecnologia chinesas enfrentam maior escrutínio no exterior, o conceito tem se revelado uma sagaz ferramenta de marketing. As imagens que a expressão “Rota da Seda” evoca são uma versão romantizada dos tempos antigos: caravanas de camelos em trânsito, intercâmbio de influências culturais, fluxo de ideias. Na realidade, ela propõe o “Made in China 2025”, outra das iniciativas características de Xi, que objetiva captar fatias de mercado em setores high-tech que se revertam em domínio global.

Antes que a RSD fosse formalmente revelada, o alcance digital da China já havia se difundido silenciosamente pelas comunidades americanas. Estações retransmissoras da zona rural em uma dúzia de estados americanos adquiriram equipamento Huawei.8 A China Telecom e a China Unicom, as duas maiores companhias de telecomunicações estatais do país, obtiveram licenças para efetuar chamadas telefônicas internacionais nos Estados Unidos. Junto com a China Mobile, elas conectam-se a outras redes em cerca de vinte cidades dos EUA. Câmeras Hikvision vigiam prédios de apartamentos na cidade de Nova York, uma escola pública de Minnesota, vários hotéis de Los Angeles e inúmeros lares.

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Depois de acordar para os perigos de permitir a entrada da tecnologia de seu principal concorrente nas redes dos Estados Unidos, Washington começou a cortar essas conexões. O Congresso dos EUA proibiu estações retransmissoras de receberem verba federal para comprar equipamento Huawei, e o Departamento do Comércio proibiu companhias dos EUA de venderem componentes à Huawei. A Bolsa de Nova York excluiu China Telecom, China Unicom e China Mobile de sua lista. A Comissão Federal de Comunicações [Federal Communications Commission, FCC] está revogando as licenças da China Telecom e da China Unicom.9 Depois de labutar para conseguir identificar as câmeras Hikvision, o governo dos EUA removeu-as de suas instalações. Todas as cinco companhias, e centenas de outras entidades chinesas, foram sancionadas pelos Estados Unidos por delitos que vão desde apoiar o exército chinês a cometer abusos contra direitos humanos.10 Os Estados Unidos também têm se defendido no exterior. O alcance global das sanções dos EUA impede qualquer companhia, seja americana ou estrangeira, de vender à Huawei componentes que tenham propriedade intelectual registrada nos EUA. Publicamente e em privado, autoridades dos EUA têm feito lobby junto a líderes e companhias estrangeiras para que evitem recorrer a fornecedores chineses. A Iniciativa “Clean Network” [“Rede Limpa”] do Departamento de Estado, lançada no último ano da administração Trump, visava estabelecer limites aos fornecedores chineses de equipamento 5G, retransmissores chineses, provedores de nuvem chineses, apps chineses e ao envolvimento chinês em cabos submarinos.11

A China, convencida de que não pode mais contar com acesso à tecnologia dos EUA, segue adiante com grandes investimentos em casa. Xi projetou 1,4 trilhão de dólares de investimento em “nova infraestrutura” até 2025, abrangendo sistemas 5G, cidades inteligentes, computação de nuvem e outros projetos digitais.12 Em março de 2021, a China aprovou seu 14º Plano Quinquenal, um guia para o desenvolvimento do país, que pela primeira vez citou a autonomia tecnológica como um “pilar estratégico”.13 Xi também conclamou a China a seguir um modelo econômico de “circulação dual”, conceito que visa dar continuidade às exportações da China a mercados estrangeiros e ao mesmo tempo reduzir domesticamente sua dependência de tecnologia

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estrangeira.14 À medida que a China apoia suas capacitações internas, passa a ter mais a oferecer externamente.

A RSD já está sendo acelerada na esteira da pandemia da Covid-19. Ao mesmo tempo que expôs os riscos da conectividade física, a pandemia também elevou os custos de se estar no lado perdedor da desigualdade digital. Economias mais bem conectadas foram capazes de lidar com as massivas transições para o mundo virtual. Aquela metade, aproximadamente, da humanidade que continua desconectada da internet teve menos opções. O abalo financeiro da pandemia deixou países em desenvolvimento quebrados, com menos espaço ainda para obter empréstimos. Em comparação com os grandes projetos de transportes e energia que caracterizaram os primeiros anos do Cinturão e Rota, os projetos digitais costumam ser mais baratos e mais rápidos de implantar.

Com essas linhas traçadas, o cenário está posto para que a concorrência entre Estados Unidos e China se intensifique nos mercados de terceiros. As advertências de autoridades dos EUA quanto aos riscos da tecnologia chinesa de comunicações estão agora repercutindo na Austrália, Japão, Coreia do Sul, e em grande parte da Europa Ocidental. Mas os Estados Unidos têm sido menos eficazes em oferecer alternativas de preço acessível. A China aproveita essa brecha para pressionar mais os mercados em desenvolvimento e emergentes, onde a questão da acessibilidade prevalece sobre a da segurança. Está sendo conformado um mundo de ecossistemas digitais concorrentes, cada um com seus equipamentos e padrões. Quase todos foram pegos no meio disso.

Apesar de exaltarem há anos a importância das redes, pensadores importantes falharam muitas vezes em considerar a possibilidade de um mundo em que os Estados Unidos não fossem o eixo dominante. A ascensão da China e o fato de ela estender seu alcance além de suas fronteiras estão agora esvaziando suposições há muito tempo sustentadas a respeito de tecnologia e liberdade, da primazia do Ocidente e da própria natureza do poder. Jornalistas e acadêmicos continuam procurando as palavras certas para descrever essa disputa. Trata-se de uma guerra comercial? De uma nova Guerra Fria? A realidade é mais complexa, e as apostas são fundamentalmente maiores. Os Estados Unidos e a China estão brigando pelo controle das redes do futuro.15

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As Guerras de Redes começaram. Este livro mostra como chegamos a esse ponto, oferece um passeio pelo campo de batalha, e explica o que os Estados Unidos terão de fazer para vencer.

O RECONHECIMENTO

A história que narra como chegamos até aqui é desconfortável, e por isso temos tido poucos relatos honestos a respeito. Em vez de sondar como os Estados Unidos contribuíram para a ascensão tecnológica da China, Washington e o Vale do Silício preferem contar histórias que minimizem suas falhas. Há variações, mas um tema comum é que a China trapaceou em seu caminho rumo ao topo. Essa sensação de injustiça é comum na psique americana, e procura poupar todo mundo, só que aumenta o risco de se repetir os erros passados. Ficar se queixando não oferece vislumbres estratégicos para competir.

Sem dúvida, não faltaram mentiras, trapaças e roubos. Mas como o próximo capítulo relata, o que é mais chocante ainda é constatar a miríade de oportunidades legais que a China aproveitou. As autoridades chinesas souberam muito bem oferecer a perspectiva de acesso ao mercado da China, maximizando concessões ao mesmo tempo que companhias estrangeiras se dispunham de bom grado a minar umas às outras, baixando o preço, cedendo sua propriedade intelectual e fazendo parcerias com empresas chinesas. Com generoso apoio estatal, essas “parceiras” acabaram se tornando suas concorrentes. Tudo ficou à venda, inclusive as práticas de gestão que transformaram a Huawei de imitadora desorganizada em colosso global.

O que possibilitou esses erros não foi apenas a mera ambição voltada ao exterior ou a sagacidade chinesa, mas uma crença poderosa e genuinamente sustentada de que a tecnologia de comunicações teria efeitos liberalizantes. O colapso da União Soviética parecia provar que a tecnologia de comunicações deslocava o poder dos governos para os indivíduos, permitindo que falassem livremente, se organizassem e responsabilizassem as autoridades. Cada novo tipo de conexão, da máquina de fax à internet e ao telefone celular, foi exaltada como se oferecesse uma via expressa para levar a liberdade ao mundo inteiro.

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Poucas ideias foram tão poderosas, persistentes e equivocadas na história recente. E ela foi de fato poderosa porque alinhou uma ampla gama de filosofias políticas aos interesses comerciais das companhias americanas, líderes do desenvolvimento de tecnologias de comunicações. Apesar de algumas poucas e veementes advertências, como as feitas pelos acadêmicos Rebecca MacKinnon e Evgeny Morozov, essa visão persistiu em razão desse alinhamento de interesses e da sedução de acreditar que os Estados Unidos poderiam ter uma atuação benéfica ao serem bem-sucedidos ao redor do mundo, independentemente do contexto local.16 E foi uma ideia equivocada porque confundiu meios e fins, ignorando que essas ferramentas poderiam ser usadas de outro modo.

Entre os que acreditaram estavam não apenas Reagan e Kristof, um conservador e liberal, mas também John Perry Barlow, um libertário que captou bem o sentimento dos pioneiros da internet dos Estados Unidos no que ele chamou, numa expressão que ficou famosa, de “Declaração de Independência do Ciberespaço”. “Governos do Mundo Industrial, vocês, gigantes exaustos de carne e aço, venho do Ciberespaço, o novo lar da Mente”, começava ele. “Em nome do futuro, peço a vocês, que são do passado, que nos deixem em paz. Não são bem-vindos entre nós. Não têm soberania onde nos juntamos.”17

Barlow não estava apenas dizendo que os governos careciam de legitimidade na era da informação, mas ao escrever sua ode à liberdade da internet em 1996 apontava que eles tampouco tinham capacitação para comandar o ciberespaço. “Vocês não têm o direito moral de nos governar, nem possuem métodos impositivos que tenhamos boas razões para temer”, explicou ele. “O ciberespaço não está dentro das suas fronteiras. Não pensem que são capazes de construí-lo, como se fosse um projeto de obra pública. Não são. Trata-se de um ato da natureza e ele cresce por meio de nossas ações coletivas.”

Mas os estrategistas chineses foram mais espertos. Onde Reagan, Kristof e Barlow viam a marcha inexorável da liberdade, as autoridades chinesas enxergavam uma disputa de poder. Shen Weiguang, um dos pais fundadores da guerra informática chinesa, explicou em palestra na Universidade Nacional de Defesa da China em 1988, “Os países com tecnologia de rede avançada dependem de redes para expandir

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