Só sei que foi assim - A trama do preconceito contra o povo do Nordeste

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SÓ SEI QUE FOI ASSIM

OCTÁVIO SANTIAGO

SÓ SEI QUE FOI ASSIM

A TRAMA DO PRECONCEITO CONTRA O POVO DO NORDESTE

Copyright © 2025 Octávio Santiago

Copyright desta edição © 2025 Autêntica Editora

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editores responsáveis

Rejane Dias

Schneider Carpeggiani

revisão

Lívia Martins

capa

Diogo Droschi

(sobre imagem de Bozó Bacamarte)

diagramação

Guilherme Fagundes

Waldênia Alvarenga

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Santiago, Octávio

Só sei que foi assim : a trama do preconceito contra o povo do Nordeste / Octávio Santiago. -- 1. ed. ; 1.reimp. -- Belo Horizonte, MG : Autêntica Editora, 2025.

Bibliografia.

ISBN 978-65-5928-573-0

1. Brasil, Nordeste - Condições sociais 2. Desigualdade social 3. Preconceitos - Brasil, Nordeste I. Título.

25-265858

CDD-305.809813

Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Nordeste : Preconceito : Sociologia 305.809813

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Com apreço pelas entrelinhas, dedico a elas linhas de gratidão:

Rosa Cabecinhas

Rejane Dias

Julie Fank

Sonia Junqueira

Dia Nobre

Ao Nordeste endossado, que me deu casa com rede estendida, comida bem-feita e roupa lavada secada ao vento.

A Larissa, Vicente e Olívia, meu sempre verde sertão.

“JÁ QUE

23 O Complexo de Macabéa 28 A nordestinidad e outros discursos

33 A revisitação necessária

39 Apontamentos e autoafirmação

47 O POVO DO NORDESTE EM 5 ATOS

49 Ato 1 | Mão de obra e desigualdades

49 O Brasil que prosperava

53 A “conquista” do “Sul”

57 Balança em desequilíbrio

59 Grande Seca, grandes contrastes

63 Trabalhadores deslocados

69 A suposta indolência

73 Cotas e divisões

76 Estrada afora

81 Ato 2 | Racialização

81 O esforço para embranquecer o país

86 Legitimação pela arte

88 O “sertanejo de raça inferior”

91 Raça e regionalismo

97 “Injeção de sangue europeu”

99 O reconhecimento do STJ

105 Ato 3 | Monotematização: seca, fanatismo e violência

105 A nacionalização da seca

112 Os “fanáticos” de Euclides

119 A “Meca dos Sertões”

122 O “pavoroso sertão”

124 A violência do cangaço

129 Livro do Nordeste: o contraponto

136 Um discurso conveniente

142 Validação literária

151 A parcela do audiovisual

159 Ato 4 | Oposição e interesses

159 A criação do espaço Nordeste

164 As primeiras expedições e suas motivações

166 “Obras de Santa Engrácia”

170 O espólio das secas

177 Ataques eleitorais

185 Ato 5 | Estereótipos

185 O “nordestino de folhetim”

192 Uma “espécie” diferente

197 Aspectos comportamentais

200 Os “bípedes” e a “Babel de sangue”

203 Ausência de neutralidade

211 VIVÊNCIAS E DISCRIMINAÇÃO

213 O passado se faz presente

214 Padrão físico: “a cara de nordestino” e o mito do rosto comum

218 Inferiorização: a comparação equivocada e o mito da subalternidade

224 Exotização: a linguagem e o mito do sotaque único

229 Apagamento: a negação intelectual e o mito da narrativa pronta

234 Reducionismo: a ideia de vizinhança e o mito de um só lugar

239 Notas finais

245 Referências

Apresentação

Dar-se conta da construção social do povo do Nordeste não é tarefa fácil de empreender intuitivamente, sobretudo quando se quer tomar consciência de um olhar torto que persiste contra essa população. Ser ou não ser nordestino? Sem o intento de querer provocar um dilema shakespeariano, a reflexão não se concentra, aqui, no aspecto existencial, mas em tudo o que parece estar atrelado quando se tem o Nordeste como lugar de origem. Tanto para o bem como para o mal.

De falas sutis a gestos escancarados, o olhar enviesado, quando se atrela para o mal, permeia estereótipos que são reproduzidos consciente ou inconscientemente, afetando a noção de identidade e o sentimento de pertença. Resultado da tese de doutorado que aprovei na Universidade do Minho, em Portugal, este livro oferece uma investigação bastante específica da história do Brasil, de quando o Nordeste passou a existir no papel, no início do século XX, e dos discursos que determinaram essa definição e repulsa.

Esse recorte temporal não delimita a primeira vez que se reparou no que, discursivamente, foi elaborado a respeito do Nordeste em mais de cem anos. Antes disso, Euclides da Cunha já tinha destilado depreciações que passaram incólumes, tamanho o sucesso de Os sertões, mas já desembocavam em impressões reducionistas, primeiro nos artigos que ele havia publicado em 1897 na imprensa e que mais tarde se tornaram o livro.

Mas pode-se dizer que há algo de inaugural em escavar as raízes desse discurso nos jornais da década de 1920, mais

especificamente em páginas que serviram de palco a séries de artigos matutados após expedições realizadas àquela “nova” porção do Brasil. E não só. Outras publicações e produtos culturais vieram na sequência e também engrossaram o coro – ainda que algumas delas sejam assinadas por conterrâneos, com intenções de se defender, denunciar ou mesmo obter vantagem. O Nordeste passava a existir para além do “Norte” – assim, entre aspas, por ser uma configuração que já não existe mais, correspondente ao Norte e ao Nordeste de hoje –, mas sua acontecência1 não agradava a todos. E foi desenhada uma imagem, sem muito espaço para contestação.

A origem da construção estereotipada que conhecemos hoje remonta a um movimento perverso de arrasamento social que não apenas definiu um padrão equivocado, mas também o perpetuou como inferior e carente de superação. O nordestino foi moldado quando o Nordeste foi definido, quando uma parte do país passou a ser chamada assim pelo governo federal e foram anunciados investimentos substanciais para obras de convivência com a seca.

A opinião pública, centrada no “Sul” – também entre aspas, pois correspondia ao Sul e ao Sudeste atuais, onde se localizava São Paulo, então centro do poder econômico –, tratou de definir o que era apresentado como uma novidade. Mais de cem anos depois, muito do que se ouve sobre o povo do Nordeste ainda está ligado àquele momento, quando o nordestino chegou à vitrine nacional como um indivíduo indigno, fruto de uma

1 A pesquisadora Sônia Maria de Meneses Silva define o termo “acontecência” como a designação para o ato de acontecer, referindose à ocorrência de eventos ou situações. Segundo ela, trata-se do estado ou da condição de algo que está ocorrendo ou se desenvolvendo em determinado momento (Silva, Sônia Maria de Meneses. A operação midiográfica: a produção de acontecimentos históricos através dos meios de comunicação. 2011. 319 f. Tese [Doutorado em História Social] – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011).

“excessiva miscigenação”. Desde então, discursos e artes têm constantemente oxigenado essa ideia.

Como o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre2 bem observou, a palavra “Nordeste” passou a ser entendida como sinônimo de “obras contra as secas”, logo que foi adotada pela burocracia estatal. Alimentando no imaginário do país a imagem dos “sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés”, habitados por “figuras de homens e de bichos se alongando quase em figuras de El Greco”,3 o pintor espanhol muito conhecido pelas suas formas distorcidas. O que mudou desde que Freyre trouxe essa visão para o papel?

Dali, desses enxovalhos lançados do lugar que se via, à época, como novo polo intelectual do Brasil, foi inevitável passear no tempo e chegar ao que se leu e ouviu à exaustão nas recentes eleições presidenciais, quando as redes sociais foram tomadas, numa dimensão espantosa, pelas mais indelicadas discriminações ecoantes desses preconceitos. É quando este livro se propõe a ser o palco-réplica. A hostilidade, aqui, torna-se didática, e os mitos, espera-se que sirvam a um outro propósito: à reconfiguração de um discurso que já deveria ter ficado no século passado.

“Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve!”, escreveu Belchior em “Conheço o meu lugar”. Se o próprio conceito de região, frequentemente vinculado à terra, à coisa concreta e imutável, é carregado de subjetividade, o que dizer daqueles que a habitam? A partir da provocação do cantor e compositor cearense, podemos imaginar que o nordestino também é fruto da imaginação.

De fato, a ideia do que é ser nordestino parece bem definida no imaginário de grande parte do Brasil. Como se fosse

2 Freyre, Gilberto. Nordeste. 7. ed. Recife: Global, 2004 [1937]. p. 45.

3 El Greco (1541-1614) foi um renomado pintor do período maneirista e um dos artistas mais importantes da Espanha no século XVI, sendo conhecido por suas obras marcadas por cores vibrantes e formas alongadas, oferecendo uma retratação muito peculiar da realidade.

possível representar os milhões de pessoas que habitam os nove estados da região Nordeste (Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe) com um único rosto e interesses semelhantes. Um retrato falado genérico, baseado em estereótipos acumulados ao longo do tempo. “Mas você não tem cara de nordestino”, “nem parece que é do Nordeste”. Uma descrição sustentada por um repertório limitado e, em grande medida, falacioso, de características físicas e comportamentais supostamente comuns e que muitos de nós já ouvimos.

É importante entender que essa construção faz parte da própria história do país. Sua origem está na disputa por poder político e econômico, especialmente no século XX, e na depreciação da mão de obra migrante, com caráter classista, permanecendo presente pela insistência daqueles que a reproduzem. De tempos em tempos, por causa de declarações recalcadas, o tema ganha manchetes, e reedições do discurso chegam a flertar com o separatismo, sugerindo um Brasil sem o Nordeste e seu povo.

Toda boa apuração exige o uso de lupas, ainda que de forma figurada. A lente de aumento, que a literatura associou ao ato de investigar, permite observar detalhes na superfície e enxergar o que está oculto. A lupa, porém, sugere que as elucidações vêm sempre de fontes externas, o que pode ser um engano. O espelho, na investigação sobre preconceito e construção social, é de igual ou maior valor, pois revela análises possíveis apenas interrogando a própria história, iluminando fatos ignorados e recuperando o que o tempo e as narrativas parciais tentaram apagar. A percepção nítida da imagem refletida no espelho pode revelar definições que, mesmo de forma inconsciente e involuntária, populações oprimidas acabam por preservar. E, por falar em espelho, entra em cena Macabéa, personagem principal criada por Clarice Lispector em seu último romance A hora da estrela. Em uma entrevista, ainda antes da publicação, a autora a descreve como “de uma inocência pisada, de uma miséria anônima”, com o “ar perdido” que ela

emprestou de uma visita que fez à Feira do Nordestino, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Tendo vivido no Recife até os 14 anos, Clarice constrói Macabéa não só na ficção, mas de memória e com um vínculo com um Brasil que a acolheu, sendo ela ucraniana aqui radicada. Esse deslocamento é transferido para uma personagem narrada por Rodrigo S. M., um observador que não tem em alta conta a observada, uma personagem tão pobre que só come cachorro-quente, numa homogeneização dessa figura que não tem um chão, mas que morre nele. É o sentimento de inadequação ingênua, que chamaremos aqui de Complexo de Macabéa.

Portanto, a percepção proposta nestas páginas opõe-se à tentativa de homogeneizar a região e nega a ideia de Nordeste como uma unidade sem nuances, sobretudo do nordestino como um só. Ao oferecer uma resposta ao reducionismo que predomina em todo o país, essa abordagem busca desfazer a criação deliberada que apaga processos históricos distintos e realidades variadas, e que reduz o Nordeste e seu povo a estereótipos e a quadros ligados à miséria, à seca e a outras vulnerabilidades. Nosso trajeto inclui paradas nos cinco atos importantes para entender essa construção: a mão de obra e as desigualdades; a tentativa de racialização;4 a monotematização, que leva a um único enredo possível; a oposição e interesses contrários à região; e, claro, os estereótipos. A divisão em atos, fundamental na dramaturgia ocidental, permite uma estrutura narrativa sólida. Essa sequência, que ajuda a desenvolver o texto dramático, também

4 Os professores Malcolm Brown e Robert Miles apresentam o conceito de racialização como sinônimo de categorização racial. Segundo Brown, trata-se de “um processo de delimitação de fronteiras e alocação de grupos de pessoas fora desses limites, com base em características (supostamente) inerentes e/ou biológicas (geralmente fenotípicas)”, ou seja, relacionadas a traços físicos visíveis, como cor da pele, formato do rosto ou tipo de cabelo. (Miles, Robert; Brown, Malcolm. Racism. 2. ed. London: Routledge, 2003, p. 100, tradução nossa).

serve para apresentar os personagens, aprofundar conflitos e, quem sabe, levar a uma resolução.

Entender como os múltiplos Nordestes foram condensados em um só permite uma consciência mais profunda sobre o que aconteceu com os nordestinos. E pela mão de quem. Permite trocar o “não sei” por um “foi assim”. Reduzir o Nordeste e sua gente é estratégia para diminuí-los. A trama dos nordestinos que somos, mas cuja cara nem mesmo possuímos, finalmente se desfaz. Se é de narrativa que falamos, é de um herói que é preciso – mas nenhuma narrativa se compõe com um personagem só. Um Belchior que conhecia bem seu lugar chegou a cantar o que nos encarregamos de fazer aqui: “Era uma vez um homem e o seu tempo”. Pois vejamos.

O autor

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