ADILSON JOSÉ MOREIRA

Por que os seres humanos sofrem?
Uma teoria psicológica dos direitos fundamentais
ADILSON JOSÉ MOREIRA
Por que os seres humanos sofrem?
Uma teoria psicológica dos direitos fundamentais
ADILSON JOSÉ MOREIRA
Uma teoria psicológica dos direitos fundamentais
Copyright © 2025 Adilson José Moreira
Copyright desta edição © 2025 Autêntica Editora
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.
editoras responsáveis
Rejane Dias
Cecília Martins
leitura técnica
Bianca Tavolari
revisão
Aline Sobreira
Déborah Dietrich
capa
Diogo Droschi (sobre imagem de Djomas/Adobe Stock)
diagramação Guilherme Fagundes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Moreira, Adilson José
Por que os seres humanos sofrem? / Adilson José Moreira. -- 1. ed. -- Belo Horizonte, MG : Autêntica Editora, 2025.
Bibliografia.
ISBN 978-65-5928-514-3
1. Dignidade da pessoa 2. Direitos fundamentais 3. Discriminação - Aspectos sociais I. Título.
24-240162
CDU-347.121
Índices para catálogo sistemático: 1. Direitos fundamentais sociais 347.121
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380
Belo Horizonte
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Belo Horizonte . MG
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Este livro é dedicado a Leandro Márcio Braga, in memoriam.
O sofrimento social não é apenas “um sofrimento”, mas um sofrimento que se instala/esconde nas zonas de precariedade, nas zonas sociais de fragilidade e cuja ação implica na perda ou possibilidade de perda dos objetos sociais: saúde, trabalho, desejos, sonhos, vínculos sociais, ou seja, o todo da vida composto pelo concreto e pelo subjetivo que permite viver a cada dia, a vida psíquica, a vida interior composta pela subjetividade. Neste sentido, os espaços de vida vêm se tornando espaços da precariedade, onde há perda concreta da saúde, do trabalho, do status social, da importância no núcleo familiar, perdas financeiras, perda dos vínculos familiares e sociais, perda dos vínculos afetivos. Há também a possibilidade de perda ou o medo: medo de ficar sem trabalho, medo de não ser reconhecido, de se tornar inválido socialmente. Esta perda vai, aos poucos, dando sinais das dificuldades de viver, sinais de impedimento de viver. O amanhã não é mais visto como projeto: não há mais visão de futuro. Rosangela Werlang; Jussara Maria Rosa Mendes
Como é a sensação de ser um problema?
W. E. B. Du Bois
Cada coisa, à medida que existe em si, esforça-se para perseverar em seu ser. Baruch Espinosa
Vários fatores motivaram a elaboração deste livro: experiências pessoais de sofrimento psíquico decorrentes da exposição constante a diferentes formas de discriminação, um profundo sentimento de tristeza por ver pessoas negras sendo desrespeitadas quase todos os dias de minha vida, um desânimo imenso por testemunhar muitos negros e negras desistindo dos seus sonhos e das suas vidas em função do desprezo racial. Esta longa obra também foi inspirada por várias histórias de resistência que me encorajam a seguir adiante e a contribuir para que a realidade de desespero possa se tornar, um dia, momentos de compartilhamento de afeto e de alegria. Assim, este livro foi também escrito para celebrar a história de figuras como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Bayard Rustin, James Baldwin e Abdias do Nascimento. As centenas de páginas que se seguem são resultado do meu interesse em pensar o Direito como algo que existe em ação, como um possível instrumento de transformação social. Mais do que tudo, este livro encontrou inspiração no afeto, na dedicação, no comprometimento, na honestidade e na camaradagem de minha mãe Efigênia Clara de Souza Moreira e de meu pai Alcides Cipriano Moreira. Este trabalho é oresultado do esforço dessas duas pessoas que conseguiram mover montanhas para garantir uma existência digna para seus filhos e filhas. Este trabalho foi em grande parte realizado durante a minha residência pós-doutoral na Faculdade de Direito da Universidade de Berkeley. Sou extremamente grato ao professor Ian Haney López por ter me recebido naquela prestigiada instituição de ensino jurídico. Estar em uma comunidade intelectual como a de Berkeley permitiu que eu tivesse diversas oportunidades de discutir os argumentos centrais desta obra; trabalhar em uma instituição com recursos de pesquisa tão extensos possibilitou que eu encontrasse todo o material necessário para a elaboração deste trabalho. Meus agradecimentos também se estendem ao professor David Nathan Plank, da Universidade de Stanford, pelo convite para desenvolver pesquisas naquela prestigiada instituição, período no qual tive oportunidade de expandir e aprofundar os horizontes e propósitos deste
trabalho. Sou extremamente grato aos profissionais do sistema de bibliotecas dessas duas universidades por facilitarem o acesso a fontes de pesquisa.
Este livro é produto de longas discussões sobre o sofrimento humano com diversas pessoas ao longo da última década, conversas conduzidas a partir de um ponto de vista filosófico, de um ponto de vista psicológico e de um ponto de vista jurídico. Apresentei os temas centrais deste trabalho em seminários nas universidades de Berkeley e Stanford e na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas; sou grato pelos comentários e pelas oportunidades. Também discuti vários tópicos desta obra com professores, professoras, alunos e alunas da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie ao longo dos últimos sete anos, diálogos que sempre foram proveitosos. Essas discussões pavimentaram o caminho para a elaboração deste longo ensaio, que, acredito, preenche uma grande lacuna na literatura jurídica brasileira. Sou grato a várias pessoas que conduziram minha atenção para temas relacionados com o problema do sofrimento humano nas mais diversas situações: Djamila Ribeiro, Mara Marçal Sales e Philippe Almeida de Oliveira.
Muitas pessoas acompanharam toda a elaboração deste projeto, desde as primeiras ideias até sua finalização. Agradeço a escuta, os comentários e as sugestões. Fortes abraços para Adrielly Marciel Silva Nunes, Ana Fátima de Brito, Beatriz Porto, Brenno Tardelli, Camila Brito Ioca, Danilo Tavares, David L. Gomes, Diana Oliveira dos Santos, Diogo José Conceição, Eduardo Ariente, Fábio Sampaio Mascarenhas, Flavio Leão Bastos, Leonardo Mariz, Letícia Chagas, Lucia Helena Bettini, Maíra Rocha Machado, Mara Marçal Sales, Matheus Alexandre da Silva, Paloma Vidal Araújo, Paulo Henrique Maldanis Ferreira, Rafael Domiciano Santana e Taiane Duarte.
Envio agradecimentos muito especiais para Bianca Tavolari e Luciana Gross Cunha por terem lido toda a obra e dado contribuições relevantes para sua finalização.
Alguns dos argumentos aqui elaborados tiveram como inspiração direta o conceito de conatus formulado pelo filosófico Baruch Espinosa. Muitos abraços para a professora Theresa Calvet de Magalhães por ter me introduzido ao pensamento desse gigante da filosofia. Meu afeto também vai para a professora Maria Auxiliadora Bahia, por ter aberto espaço para o aprofundamento da minha compreensão da teoria freudiana sobre o psiquismo humano. Mil abraços!
Trabalhos intelectuais são também produto de relações afetivas que criam os meios para que nosso processo criativo possa se desenvolver sem obstáculos. Conheci, em Berkeley e em Stanford, pessoas maravilhosas que tornaram minha estadia naquelas cidades muito prazerosa. Expresso minha gratidão a Ana Luisa
Coelho, Annalise Kalmanoff, Andy Chen, Candice Wong, Catarina Correa, Elizabeth Álvaro da Graça, Fernanda Yamamoto, Karla Esquerre, Leeya Kekona, Luis Otávio Barroso da Graça, Michael França, Missy Tay, Peter Tirler, Rogério Luiz, Silvia Regina Fregoni e Triana Kalmanoff.
Finalizo este livro com tristeza por não poder comemorar sua publicação com meu amigo Mário André Machado Cabral, uma pessoa luminosa que nos deixou cedo demais. Tive a oportunidade de discutir o argumento central deste trabalho em muitas de nossas conversas. Sua vida seguirá me inspirando!
Como sempre, agradeço aos meus familiares pelo suporte permanente!
Sou muito grato ao apoio institucional fornecido pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pelo Pinheiro Neto Advogados. Muitos abraços para Júlio César Bueno e Maurício Costa Ngozi, por contribuírem para a realização das minhas ambições intelectuais!
Obrigado, UFMG!
Thanks, Harvard!
15 Prólogo
Capítulo 1
47 Direitos fundamentais: definição, fundamentação, funções e propósitos
Capítulo 2
115 Violações de direitos fundamentais e dano existencial
Capítulo 3
167 O direito ao livre desenvolvimento da personalidade e plano de vida: análises e pressupostos
Capítulo 4
201 Desenvolvimento humano, personalidade e agência
Capítulo 5
241 Da subjetividade metafísica à subjetividade psicológica
Capítulo 6
291 A construção da subjetividade nas interações sociais: identidade, agência e estruturas sociais
Capítulo 7
323 Sofrimento social como dano existencial
Capítulo 8
359 Identidade, discriminação e saúde mental
Capítulo 9
403 Direitos fundamentais como repertório identificatório
455 Conclusão
459 Referências
Algumas considerações iniciais sobre o sofrimento humano
Não sei exatamente quando comecei a refletir sobre o fato de que um sentimento generalizado de tristeza me acompanhava o tempo inteiro. Passei grande parte da minha vida sem poder identificar de forma precisa quais eram os fatores responsáveis por essa realidade; eu simplesmente tinha uma sensação permanente de cansaço. Não apenas um cansaço físico, mas também um desânimo constante por sempre ser surpreendido por situações inesperadas, situações sobre as quais eu não tinha qualquer controle. Como vivi minha adolescência em um momento histórico no qual certos fenômenos sociais não eram adequadamente nomeados, não conseguia perceber que muitos desses problemas estavam relacionados com o tratamento dispensado a pessoas negras na sociedade brasileira. A insegurança financeira também tornava as coisas ainda mais difíceis, uma vez que sempre enfrentei a possibilidade de não poder continuar estudando, o que me impediria de atingir muitos dos meus objetivos. A incerteza do futuro tornava o presente intolerável. Tive a expectativa de ter um diagnóstico adequado quando fui estimulado a procurar ajuda profissional. Talvez isso tenha ocorrido em um momento um pouco avançado de minha vida, especialmente se eu considerar o quanto essa tristeza profunda me impediu de realizar projetos e de buscar experiências que outros adolescentes estavam sempre procurando e efetivamente realizando. Minhas primeiras sessões de psicoterapia foram bastante constrangedoras, porque eu não sabia exatamente o que falar, não sabia indicar os motivos do meu sofrimento. Mas a procura de um profissional de saúde mental ocorreu ao mesmo tempo que passei a ter contato com pessoas do movimento negro, momento a partir do qual eu pude começar a nomear adequadamente as experiências responsáveis pelo meu constante estado de desânimo. Tinha agora algumas categorias para poder
explicar muitos aspectos da minha experiência cotidiana como um homem negro periférico neste país.
Minha busca por ajuda profissional não me ajudou muito naquele período da minha vida; não foi fácil encontrar um profissional familiarizado com os temas que me angustiavam. Tenho péssimas lembranças da primeira tentativa. Achava que não deveria falar sobre minhas experiências constantes de discriminação com aquele profissional, porque ele não teria condições de entender os problemas que pessoas negras enfrentam na nossa sociedade. Posso dizer que minha intuição estava certa em relação àquele psicólogo. Aquele homem branco, após eu ter narrado uma experiência de discriminação racial, uma recusa de ser aceito como estagiário em um banco privado, indagou se a minha interpretação dos fatos estaria certa, uma vez que eu poderia ter sido preterido porque não era a pessoa mais qualificada. Aquela pergunta me despertou um sentimento de desespero. A sensação de vulnerabilidade total pareceu ter atingido seu limite máximo. Meu corpo inteiro começou a tremer. Não sabia o que fazer. Apenas olhava para o chão, porque não conseguia levantar a cabeça; ela pesava uma tonelada. Saí andando daquele consultório sem um destino em mente; eu tremia tanto que minhas pernas não respondiam minha cabeça. Consegui me recompor e voltei para casa caminhando, depois de ter sentado em uma lanchonete por cerca de uma hora. Era impossível fixar meu pensamento em alguma coisa. Não conseguia entender a completa falta de empatia daquela pessoa com o que eu tinha dito. Falei sobre a insistência da secretária branca em me perguntar se eu estava qualificado para participar daquele processo destinado a universitários, narrei o meu desconforto ao ver que os candidatos brancos chegavam, cumprimentavam-se e ignoravam a minha presença. Mencionei a surpresa e os comentários irônicos do entrevistador branco sobre o meu cabelo e sua desconfiança da veracidade dos documentos fornecidos. Mesmo assim, aquele profissional acreditava que os comentários irônicos feitos por aquele funcionário branco talvez não tenham tido um cunho racial. Anos depois consegui entender que eu estava diante de um exemplo de um aspecto bastante comum do racismo: a tentativa de pessoas brancas de minimizar a dimensão discriminatória dos eventos como uma estratégia coletiva de proteção da identidade de membros do próprio grupo, problema com o qual me deparei várias outras vezes ao longo da vida.
Recordações de episódios similares vieram à minha mente durante aquela longa caminhada de volta para casa. Eu me lembrava dos comentários raivosos dos meus colegas brancos quando tomavam conhecimento de que minhas notas eram superiores às deles; da insistência dos alunos que faziam parte do mesmo
time de handball que eu em procurar algum apelido derrogatório para se referirem a mim; das inúmeras vezes que ia para a escola sem qualquer motivação diante da expectativa constante de enfrentar comportamentos racistas dentro de um ambiente cujos profissionais deveriam estar comprometidos com a realização das minhas aspirações. Meus pensamentos variavam constantemente entre o sonho de um futuro brilhante e o medo de enfrentar as mesmas dificuldades estruturais que meus pais tiveram de passar ao longo da vida e que os deixaram em uma situação de vulnerabilidade. Era um ambiente no qual minha dignidade estava sempre sendo ameaçada. Eu desejava nunca mais voltar à escola para não ter de encarar a hostilidade permanente de pessoas brancas. Meus planos para o futuro não pareciam realizáveis diante da observação de que tinha pouco controle sobre minha vida, de que sempre seria impedido de realizar meus objetivos, de que dificilmente teria uma carreira de minha escolha em função do desprezo generalizado de grande parte de pessoas que circulavam naquela instituição de ensino. A sensação bastante concreta de completa ausência de controle sobre minha existência se tornava ainda mais acentuada quando via o destino de muitos dos meus vizinhos negros que passavam por experiências semelhantes ou ainda mais degradantes do que a minha por terem a pele ainda mais escura ou por também serem homossexuais. O nível de hostilidade que eles sofriam causava uma sensação de desesperança, de frustração e de muita, muita raiva. A sensação de não ter valor algum é um sentimento devastador, algo que compromete a estabilidade emocional de muitas pessoas negras desde a infância. Nossas vidas são marcadas pela alternância entre raiva e medo, especialmente quando não temos um ambiente social que garanta apoio moral e oportunidades materiais. Ao lado de um sentimento de alienação identitária, está também a negação das condições para que membros desse grupo possam desenvolver suas capacidades para se afirmar como sujeitos.
O tratamento que recebi naquela entrevista de estágio me despertou um sentimento de indignação, mas também de vergonha. A vergonha sempre fez parte da minha infância e da minha adolescência; ela comprometeu minha saúde mental de diferentes maneiras, quase sempre por causa de fatores que não eram produto de minhas ações, mas sim de problemas presentes nas condições de vida de grupos oprimidos. Sou um homem negro de origem periférica; durante muito tempo, vivíamos apenas com a aposentadoria do meu pai, um homem que deixou de ter inúmeras oportunidades por viver em uma sociedade que sistematicamente viola direitos fundamentais de grupos raciais subalternizados. Filho de lavradores, situação que não lhe permitiu herdar qualquer tipo de patrimônio, ele frequentou a escola por apenas três anos, fato que também o impediu de ter
horizontes profissionais maiores. Embora já estivesse aposentado, ele trabalhava como pedreiro para poder complementar a renda; era impossível alimentar 12 pessoas com sua aposentadoria. Sua atitude patriarcal tornava a situação ainda pior, porque ele não admitia que minha mãe trabalhasse. Ela também frequentou a escola por apenas três anos, mas conseguia fazer algum dinheiro como lavadeira e vendendo doces. Viver com uma renda de três salários mínimos para alimentar 12 pessoas significava restrições de gastos com várias coisas, inclusive com sapatos. Eu estava na sexta série quando meu pai ficou muito doente com um problema estomacal e não podia trabalhar. Eu ia para a escola com um tênis bastante velho, que em determinado momento furou na parte de cima. Além de ter de andar cerca de três quilômetros para chegar até o colégio e depois percorrer a mesma distância para voltar para casa, eu tinha de ir estudar com o calçado naquele estado. Meus colegas chegavam à escola arrumados e perfumados, eu chegava cansado e suado. Estar naquela escola frequentada majoritariamente por pessoas brancas de classe média naquela situação ocupava minha mente completamente. Não prestava atenção nas aulas, não conseguia conversar com as pessoas, não queria me aproximar delas, porque sabia que elas tinham visto que meu tênis estava furado. Ter de enfrentar os olhares de desprezo e de constrangimento dos colegas que se recusavam a se aproximar de mim ou que se afastavam quando olhavam para os meus calçados foi algo degradante. Foram semanas de completa paralização, que prejudicaram meu rendimento escolar e minha estabilidade emocional. O sentimento de vergonha em função de uma situação que era consequência de ausência de melhores condições de vida de pessoas negras fez com que eu não quisesse estar naquele lugar. A vergonha motivava o isolamento social, o que comprometia minha vida acadêmica; ela impedia a construção de um senso positivo de identidade, motivo pelo qual eu vivia uma sensação permanente de fragmentação. Tudo isso ocorria na adolescência, no momento no qual as pessoas procuram se afirmar como sujeitos sexuais. Bem, isso era algo que não passava pela minha cabeça. Estava certo de que ninguém se interessaria por um negro pobre que não tinha dinheiro para comprar boas roupas. A solidão só aumentava a minha vergonha, criando um ciclo de eventos que contribuía para aumentar ainda mais minha tristeza, minha percepção de que tinha pouco valor pessoal.
Como essas situações não eram isoladas, elas causavam um comprometimento da minha autoestima. O racismo e a pobreza criam uma série de situações que nos afetam de maneira permanente, o que a vasta maioria das pessoas brancas parece ignorar, pois isso não faz parte da experiência delas. Minhas escolhas profissionais foram sempre mediadas pela possibilidade permanente de
rejeição social; deixei de seguir algumas delas por achar que não conseguiria ter acesso a oportunidades, porque elas não foram desenhadas para pessoas negras. Contudo, reconheço que essa situação poderia ter sido ainda pior se eu não tivesse encontrado o devido apoio emocional entre meus familiares e outras pessoas da comunidade negra. Entretanto, nem todos os membros de grupos subalternizados têm a possibilidade de estar em um ambiente que lhes permita desenvolver um senso de resiliência emocional. Mesmo os que se beneficiam de apoio familiar ainda enfrentam as consequências desse problema nas diferentes esferas da vida. Objetivos podem ser conseguidos, mas a circulação cotidiana de estereótipos que legitimam práticas discriminatórias representa uma constante ameaça ao senso de dignidade das pessoas. Se as representações de homens brancos contribuem para que eles se afirmem como atores sociais competentes, o que os encoraja a buscar uma pluralidade de interesses, os vários incidentes cotidianos enfrentados por homens negros, decorrentes da operação concorrente de sistemas de opressão racial como o racismo e a homofobia, contribuem tanto para violações de direitos fundamentais quanto para sua desestabilização emocional. Esses indivíduos encontram dificuldades significativas para construir um senso de integridade, uma vez que o racismo está sempre criando obstáculos para que pessoas negras se afirmem como sujeitos da própria vida.
Por ser uma pessoa posicionada de forma subordinada em diferentes sistemas de opressão, eu enfrento com frequência uma situação de fadiga emocional de forma persistente, produto de uma variedade de experiências estressantes na minha vida cotidiana. Elas não são esporádicas, elas não são acidentais, elas não são inconscientes. Elas são experiências nas quais o racismo estrutura as interações no dia a dia, muitas vezes definindo os lugares que eu posso ocupar na sociedade. Outras vezes o racismo molda a percepção das pessoas sobre mim, frequentemente de forma negativa. Embora compreenda os mecanismos responsáveis por esses acontecimentos, não posso ignorar o quanto eles produzem estresse emocional. É especialmente difícil manter uma postura positiva na minha vida cotidiana, porque minha raça sempre opera como um fator definidor de minhas interações pessoais; sou sempre forçado a me comportar de forma a não suscitar animosidade ou a referendar as expectativas que grande parte das pessoas brancas têm de pessoas negras. Ter de pensar nisso todo o tempo exige um investimento tremendo de energia emocional, porque eu, como pessoa negra, estou sempre sofrendo a ameaça de ter minha identidade pessoal solapada em função de estereótipos negativos. Esse estado de estresse emocional permanente não decorre apenas das minhas experiências negativas. Ver negros e negras sendo vítimas sistemáticas de discriminação racial nos
mostra que estamos sempre expostos à possibilidade de diferentes formas de violência em função da ausência de respeitabilidade em relação a pessoas negras na nossa sociedade. Nosso destino pessoal está ligado ao nosso destino coletivo, motivo pelo qual a experiência de discriminação do outro também nos afeta de forma significativa ao longo da vida.
É lamentável observar que essa não é a experiência de uma pessoa específica atravessada por diferentes sistemas de desvantagens. A vida de grande parte de membros de grupos subalternizados guarda imensa semelhança com a minha, embora eu esteja hoje em uma situação bastante privilegiada. Pessoas negras enfrentam formas sistemáticas de discriminação, o que as afeta de diferentes maneiras. Essas práticas arbitrárias podem impedir que elas tenham acesso a oportunidades acadêmicas e profissionais, podem restringir o exercício de várias liberdades. Mas, além de todos esses fatores, a exposição a desvantagens permanentes traz custos psicológicos significativos, e eles desestimulam muitos indivíduos a instituírem e buscarem a realização de seus objetivos, o que os confina a uma situação de desvantagem permanente. Esse processo reforça os estereótipos criados pelos grupos dominantes, segundo os quais negros e negras não são atores sociais competentes. A experiência cotidiana de discriminação pode ser incapacitante, e os vários dias que eu não tinha motivação para fazer qualquer coisa são uma lembrança disso. É um processo permanente de exclusão cujos mecanismos reforçam uns aos outros, ocultando aspectos relevantes da forma como sociedades liberais funcionam. A exclusão produz sofrimento, porque limita a motivação para estabelecer objetivos e nega o direito das pessoas a realizarem suas aspirações. O sofrimento cria uma série de mecanismos que podem incapacitar as pessoas de várias maneiras, comprometendo sua vida social. O sofrimento gera sempre mais sofrimento.
É então importante entender um dos sentidos da palavra “sofrimento”, um problema ao qual pessoas negras são especialmente vulneráveis. Sofrer significa, entre outras coisas, estar diante de uma situação de vulnerabilidade, circunstância decorrente do fato de que uma pessoa vivencia uma sensação de ausência de controle sobre diversos aspectos de sua vida. O sofrimento psíquico ocorre quando fatores externos demonstram que as ações individuais não terão os efeitos esperados na realidade. É então uma situação que altera nosso cotidiano, que frustra as expectativas de como nossas vidas deveriam ou poderiam ser organizadas. Elas são desestabilizadas em função de algo que está fora de nosso controle. Esse problema ocorre quando o sujeito tem pouco ou nenhum controle sobre suas ações, motivo pelo qual ele não tem como planejar sua vida de acordo com seus objetivos. Não estamos falando apenas de expectativas individuais,
mas especialmente da presunção de que seremos tratados de acordo com nosso status de detentores de direitos, um esquema de autocompreensão que tem uma importante função psicológica. O sofrimento não pode ser definido apenas como produto de problemas que afetam os indivíduos fisicamente; ele também é sistematicamente produzido por ações ou situações que os impactam psicologicamente. O sofrimento psíquico pode ser causado pelo sofrimento físico, o caso de pessoas negras torturadas por policiais; ele pode ser produto de dor física extrema, consequência de negligência médica sofrida por mulheres negras; ele pode decorrer de uma sensação profunda de ansiedade, de angústia e de depressão, problemas que afetam negros e negras de forma especial, em função de sua experiência de discriminação em diferentes esferas da vida. O sofrimento psíquico pode ocorrer em função de influências externas que impactam indivíduos de forma negativa, fatores que os impedem de realizar ou alcançar objetivos que a maioria das pessoas tomam como certos. Esse problema decorre da dificuldade de minorias operarem de acordo com uma ambição básica de todos os seres humanos: poder dar sentidos e propósitos às suas ações. O sofrimento surge quando os indivíduos têm pouco ou nenhum controle sobre a motivação de suas ações ou sobre as condições de ação. A vida não se desenvolve a partir de ações por elas planejadas, mas sim por fatores que estão além de seu controle. O sofrimento decorre da vulnerabilidade social, da ausência da possibilidade de escolha entre diferentes planos de ação, o que deveria ser garantido pelo pleno gozo de direitos fundamentais a todos os membros de uma comunidade política organizada de forma democrática.1
Todas essas situações demonstram que o sofrimento pode ser produto de violações de direitos fundamentais, normas constitucionais que cumprem uma função psicológica especialmente importante. Eles integram o processo de socialização dos indivíduos, porque criam a expectativa de que o acesso a eles permitirá oplanejamento de diferentes aspectos da vida. Eles são um horizonte de sentidos a partir dos quais as pessoas planejam suas ações; direitos fundamentais como igualdade e liberdade são expectativas que as pessoas têm em função do seu status como membros de sociedades democraticamente organizadas. Isso significa que elas planejam sua existência a partir da expectativa de que serão tratadas de maneira justa; elas apreendem a realidade social a partir da convicção de que
1 Cf. CARRETEIRO, Teresa Cristina. Sofrimentos sociais em debate. Psicologia USP, v. 14, n. 3, p. 57-72, 2003; KATSCHNIG-FASCH, Elisabeth. The Hardships of Life. Cultural Dimensions of Social Suffering. Anthropological Journal of European Cultures, v.11, p. 51-72, 2002.
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