Mário de Andrade - Exílio no Rio

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Até então costumava dizer, descuidado: “Eu sou feliz!”. Mas de repente acontecera aquele grande dissabor, que o punha desarvorado diante das armadilhas do destino. Tinha ideia formada: considerava o destino uma conquista, realização perfeitamente controlada de “tendências pessoais”, e não trama inelutável dos fatos. Agora, desmoronada essa certeza, tudo ficava muito confuso. O jeito foi a fuga, o exílio no Rio.

Moacir Werneck de Castro

Moacir Werneck de Castro (1915-2010)

9 788582 178560

Mário de Andrade ISBN 978-85-8217-856-0

sobressaiu-se desde cedo no jornalismo, dedicando-se em particular a temas políticos, culturais e literários. Durante o Estado Novo, foi redator das publicações antifascistas Revista Acadêmica e Diretrizes. Foi filiado ao Partido Comunista e, em 1955, fundou, com Jorge Amado e Oscar Niemeyer, a revista Paratodos – Quinzenário da Cultura Brasileira, que circulou até 1957. Foi também enciclopedista e traduziu para o português autores como Gabriel García Márquez, Dostoiévski, entre outros. Sua convivência com Mário de Andrade, nos anos da juventude, motivou esta biografia.

Mário de Andrade Exílio no Rio

da Glória e da Praça Paris, buscar no primeiro horizonte, os arranha-céus do Castelo. A superfície da folhagem é feia, de um verde econômico, desenganadamente amarelado. Mas embaixo, dentro dessa crosta ensolarada, o verde se adensa, negro, donde escorre uma sombra candente, toda medalhada de raios de sol. Passam vultos, passam bondes, ônibus, mas tudo é pouco nítido, com a mesma incerteza linear dos arranha-céus no longe, ou, mais longe ainda, no último horizonte, a Serra dos Órgãos.

Moacir Werneck de Castro

janela, os meus olhos vão roçando “Desta a folhagem vertiginosamente densa

Mário de Andrade Exílio no Rio

N

aquele brando inverno carioca de 1938, Mário de Andrade dava os primeiros passos de uma vida nova. Tinha anunciado à família que saía de férias, mas era mudança mesmo. Precisava fugir de São Paulo custasse o que custasse, embora com o sacrifício de arrostar pela primeira vez, já quase aos 45 anos, o afastamento do convívio materno que o aconchegava. Ir ao Rio de Janeiro ia sempre, com alvoroço de menino. Achava maravilhosa a natureza; a gente o surpreendia e encantava. Cidade enfeada pela miséria, mas rica de humanidade, amava-a à distância, de amor platônico, feito de furtivos contatos. Numa de suas breves temporadas, assistiu ao carnaval carioca. A festa popular inspirou um poema em que botava pra fora sua “frieza de paulista”, seus “policiamentos interiores”. No Rio, convivia alegre com amigos escritores e artistas, entrava pela noite em discussões, lia e ouvia poemas nascidos de uma nova estética da qual ele, já conhecido como o “papa do Modernismo”, era pioneiro. Quem sabe, pensava, não poderia morar lá? Desta vez trazia uma mágoa muito funda, causada pelo naufrágio de um projeto a que se dedicara todo durante três anos, à frente do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo. E essa amargura foi o elemento aglutinador de dores esparsas do corpo e da alma, sorrateiramente acumuladas.


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