João Maria Matilde

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Marcela Dantés

João Maria Matilde

Copyright © 2022 Marcela Dantés

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editora responsável Ana Elisa Ribeiro editora assistente Rafaela Lamas preparação de texto Sonia Junqueira revisão André Figueiredo Freitas

capa Diogo Droschi

imagem de capa Manuela Pimentel (Ao som da música de José Mário Branco, 2021, Prato I, cerâmica, 36 x 36 cm) diagramação Guilherme Fagundes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dantés, Marcela

João Maria Matilde / Marcela Dantés. – Belo Horizonte : Autêntica Contemporânea, 2022. ISBN 978-65-5928-151-0

1. Ficção brasileira I. Título. 21-95075 CDD-B869.3 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura brasileira B869.3 Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964

Belo Horizonte

Rua Carlos Turner, 420 Silveira . 31140-520 Belo Horizonte . MG Tel.: (55 31) 3465 4500

São Paulo

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A AUTÊNTICA CONTEMPORÂNEA É UMA EDITORA DO GRUPO AUTÊNTICA

– Não tem nada que queira dizer? (Hanya Yanagihara, Uma vida pequena)

Para quem me fez, Juliana e Paulo, a minha história. Para quem me tem, Leo e Antônio, a vida inteira.

– Procuro Matilde, a filha do João Maria. Sim, Matilde sou eu, mas filha de quem? Eu não entendo o que esse homem está me dizendo, ele fala rápido, e é estranho, a minha língua que não é a mesma. Ele fala de um pai, fala de mim, e o meu coração bate rápido e alto e, por isso, é ainda mais difícil de ouvir, que bobagem. Se falasse mais devagar, se não misturasse tanto as palavras, se eu soubesse responder qualquer coisa. Ele me pede um endereço de e-mail, e essa agora sou eu: alerta, estática, quase catatônica, sentada à frente do computador, atualizando a tela inicial a cada cinco ou seis segundos. Quando a mensagem chega, ela diz a mesma coisa, que procuravam a filha do João Maria e eu ainda não sabia que era eu.

Eu sempre pensei que o nosso encontro seria cara a cara, um olhando o outro, sem saber o que dizer. Faz anos que espero esse dia, quando, sem entender como ou por que, eu teria a certeza de que era ele. Faz anos que carrego esse buraco em mim. Eu só queria um encontro, não se pode dizer que isso é querer demais. Mas ele já estava morto. Não teve olhos nos olhos e muito menos certezas. Não foi um encontro, no fim das contas. Foi só alguém me dizendo, com poucas palavras e um sotaque estranho, que ele existe ou que existiu e me deixou mais uma vez.

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Não é como se eu não soubesse que havia um pai, nem na minha infância fui tão ingênua assim. Mas não saber quem ele era, em certa medida, me fazia sentir como se eu fosse filha só de uma mulher que também não sabia muito do homem que a engravidou. Eu soube, depois de muita insistência e do tipo de chantagem emocional que só uma adolescente complicada é capaz de fazer, que ele era português, que se chamava João, que era muito bonito. Nós somos todos descendentes de portugueses, um povo essencialmente bonito, aos olhos de alguém que nos veja pelo ângulo certo. Era ainda muito pouco para mim, e eu sentia como se ele não fosse uma pessoa de verdade, mas só uma história para calar a menina que não queria ser tão diferente, que só queria um pai e que dizia, a quem perguntasse, que ele morava fora ou que os pais eram divorciados, ou qualquer outra resposta que coubesse, mas sem muita convicção. Eu dramatizava o quanto podia. Não que gostasse da atenção, mas o banal, no caso, parecia pouco para mim ou para a nossa história. Às vezes era um pai violento, em outras, um pai viajante, um executivo importante sempre ocupado, ou até um pai morto. Soava bem e evitava mais perguntas, desde que eu me lembrasse sempre qual história foi contada para cada um. Cheguei a tomar notas numa ca derneta secreta, evitando o constrangimento de reviver um pai tragicamente morto na infância, ou de sentir saudades de quem me batia. Funcionou bem, só precisava contar a história certa para as pessoas. Em dado momento, o interesse delas desaparece, é como se adultos não precisassem de pais, a nossa existência sendo independente e bastante. O meu interesse também foi se acabando, e, ainda que o buraco continuasse ali, fazendo um barulho que eu já nem notava, fazia muito, muito tempo que eu não pensava nele.

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Até hoje, o dia em que o telefone tocou, um número internacional, isso me acontece às vezes. Nessas ocasiões, é como se uma pequena chave virasse no meu cérebro e eu já estivesse automaticamente preparada para falar e pensar em inglês ou espanhol, ou arranhar o alemão e o francês que me cobravam de vez em quando. Acho que, por isso, demorei tanto a entender que falavam comigo em português.

– Procuro Matilde, a filha do João Maria.

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