Esta escrita é um vulcão
Mónica Ojeda
Texto e ilustrações
Tradução
1.
O que é que realmente amamos quando dizemos: “eu amo um pedaço de terra”?
[“I love the ground on where he stands”, canta Nina Simone.]
Amamos a terra em que pisam os que amamos; a terra em que dançam os que amamos.
Um lugar nutrício onde viver e morrer.
Uma pele onde imaginar a vida e fazê-la.
Um território sensível.
Uma geografia emocional.
2.
Desejamos o amparo:
uma proteção que nos deixe correr, pular, caminhar, sonhar.
Um refúgio onde desenhar o corpo.
3.
Se nos sentimos desamparados na terra que amamos, fugimos.
Salvamos a pele levando-a para outra terra.
Eu acreditei que meu caminho era o desenraizamento, mas levo um vulcão no espinhaço como a tartaruga leva seu casco.
4.
A palavra é um corpo sutil, diz Lacan.
A função da linguagem é evocar: fazer aparecer, trazer à imaginação.
Uma montanha desponta por entre a névoa da mente.
Uma montanha que arde.
5.
Quando tocamos a terra que amamos, ela também toca todas nós.
A terra-útero abraça sementes que germinam como resultado do seu tato.
A terra gera o doce.
A origem é um animal vivo.


6. Às vezes o manto terrestre se sacode e treme como um corpo.
As placas tectônicas se deslocam.
O terremoto é a força da vida interior.
7.
O corpo está aberto às vibrações.
Profana-se.
É ritmo, velocidade e tom.
A escrita bem sabe:
nenhum refúgio está a salvo do tremor.


8.
Tremor vulcânico:
sismo causado pela dança do magma.

9.
Agitar-se implica um movimento secreto.
Uma emoção.
Um logos perturbado pelo mistério.
Escrever é ser amante do sismo.

10.
“A vida não é biografia”, diz Pascal Quignard.
É geografia.
11. Geoescrita.
De acordo com Humboldt, alguns vulcões do Equador vomitavam peixes. Geoescrita.

“Em meu vulcão cresce a grama”, escreveu Emily Dickinson. Geoescrita.
Eu escrevo:
em meu vulcão nadam crocodilos provenientes dos manguezais de Guayaquil.

12.
O corpo dança porque é trágico.
Um corpo vibrátil, diz Suely Rolnik.
Um corpo terremoto.
Sempre entre o gozo e o colapso.
13.
O que põe meu corpo em perigo?
O movimento secreto? A emoção?
Estar a salvo não é viver.


14.
Um vulcão é uma manifestação do subterrâneo.
Uma abertura.
Uma rachadura.
Quanta força existe no profundo?
Os vulcões são os olhos-d’água da terra.
15.
Geoescrita.
Do rio Guayas, ao amanhecer, pode-se ver o Chimborazo.
Às suas águas chegam as cinzas da mama Tungurahua e do Sangay. Geoescrita.
Escrevo:

pensei que meu caminho era o desenraizamento, mas a imaginação tem a forma do território onde aprendi a dançar pela primeira vez.
16.
A imaginação é afetada pela presença da montanha.
Interior e exterior se dissolvem, se tocam, se contaminam.
Não há isolamento possível:
isolar-se é deixar que uma ilha entre no sangue.
17.
“Talvez a paisagem também possa entender o que eu digo.”
Ron Padgett

18. Geografia emocional:
Qual é a forma oculta do território onde aprendi a desejar?
19.
O radicalmente outro, diz Derrida, é o animal.
O radicalmente outro, diz Ailton Krenak, é a selva, o rio, o vulcão.
Uma escrita-animal.
Uma escrita-vulcão.
Uma razão poética.

20.
“[…] quando a razão estéril se retira, ressequida de lutar sem resultado, e a sensibilidade alquebrada pega apenas o fragmento, o detalhe, nos resta uma via de esperança: o sentimento, o amor, que, repetindo o milagre, volta a criar o mundo”, diz María Zambrano.
A razão poética é uma razão de amor.
Um logos das entranhas.
Uma linguagem submersa.
“[…] a palavra que não é conceito porque é ela a que faz conceber, a fonte do conceber que está além do que se chama pensar.”

21.
O que faz um vulcão encarnado no corpo da minha escrita?
22.
Escrever é refazer o tempo para torná-lo habitável.
Um vulcão ressoa até que conjura o impensável: uma revelação na escrita como um raio ferindo a noite.
23.
Há quanto tempo nos fascinam os vulcões?
37.000 anos atrás, na caverna de Chauvet, alguém desenhou a explosão de uma montanha.
Em cima disso, pintou um megaloceros.
[A montanha Yulong parece um réptil. O vulcão Iztaccíhuatl, uma mulher adormecida].

24.
O que é a fascinação?
A pele se fascina, as unhas o cabelo.
Os dentes se molham.
A sede aparece.
A fascinação é um estado expansivo da mente.
25.
Sabemos que a terra é finita, mas a tratamos como se fosse invulnerável.
Amamos as montanhas porque parecem deuses antigos inventando a eternidade.
26.
O corpo é o lugar da vertigem.
A perda de controle.
Uma emoção óssea. Um orgasmo.
Domestica-se o corpo para domá-lo, mas ali não há cavalos.

27.
Um vulcão refunda o olhar e a escuta sobre esta terra.
“Toda poesia realmente válida”, escreve Thomas Merton, “poesia que está viva e que afirma sua realidade […] é uma espécie de recuperação do paraíso.”
O paraíso é olhar e escutar
a terra nova que vai nascer.
28.
“Por acaso sabemos mirar neste mundo palpitante?”
Claudia Peña Claros


29.
Geoescrita.
“Apenas o homem, entre os animais, possui a palavra”, diz Aristóteles.
“A voz é uma indicação da dor e do prazer; é por isso que outros animais a têm.”
Geoescrita.
“Estamos aprisionados pela lógica do alfabeto”, diz Pedro Lemebel, “contudo, mais além há um abismo iletrado. Uma selva cheia de ruídos […]. Palavras que se pigmentam apenas no coração de quem as recebe.
Sons que se camuflam no vinco do lábio para não serem detectados pela escrita vigilante.”
Geoescrita.
“Não é a palavra”, diz María Auxiliadora Álvarez, “é a voz.”
Geoescrita.
Quando um vulcão erupciona, seu canto é o trovão.
30.
Ali onde o pensamento teme ir, o vulcão canta.
31.
Escrever é escutar. Prestar atenção.
Um vulcão faz a letra tremer. Escapa da instrumentalização produtiva.
Através dele, a terra resiste. Declara-se viva. Levanta-se e explode.
Eu escuto o vulcão, presto atenção nele, e o vulcão me faz um novo ouvido.
Escrevo:
Escrevo:
Escutar é voltar a nascer.
Crescer até no deserto.

32.
Escutar: um corpo textual um corpo de carne um corpo de terra.
33.
Escrever é tocar e ser tocado, mas para tocar é preciso pedir permissão: aproximar-se com respeito inventar uma nova escuta.
34.
“No vulcão nos reconhecemos. Somos o coração reprimido, mas rebelde. Pensar vulcanicamente é tomar essa rebelião como ponto de partida e tentar entender nossa força.”

John Holloway
“A revolta é o corpo-paisagem, expandido, desdobrado, intenso…”
Daniela Alcívar Bellolio
36.
Todas as vozes que o vulcão invoca, humanas e não humanas, soam em espaços imprevistos.
37. Um vulcão na escrita.
Que pensamentos criamos em momentos de perigo?
38. Um vulcão:
Olho. Útero. Vulva. Origem. Entranhas. Tumba. Nascimento.
O incontível. A beleza. A violência. O inconsciente. O grito. A poesia.
Só renasce aquilo que se lança à morte.
A destruição é criação.

39.
Amar um vulcão é fazer espeleologia sensível (o ouvido é uma caverna): perseguir as reverberações.
40.
“O furacão não ruge em pentâmetros”, escreveu Kamau Brathwaite.
O vulcão ruge com uma voz vociferina.
Não diz nada, mas faz algo com a linguagem.
41.
O que é a voz vulcânica, senão a vida em nós que, com a escrita, tateamos como se estivéssemos cegos?
Quando o corpo escreve,

42. “O sentimento do sublime se funda no instinto de preservação e no medo”, diz Edmund Burke, “[…] uma espécie de tremor satisfatório, certa paz que está mesclada com o terror.”
Um medo delicioso.
Por que desejamos o que nos ameaça?
Por que desejamos o vulcão?
43.
“Aquele que reescreve geologicamente deixa o passado inacabado […]. Uma citação, afinal, é uma coisa de muitos. Uma citação é uma mutação que já contém, em si mesma, outro futuro.”
Cristina Rivera Garza
44.
“Nada seria possível se as pessoas não desejassem o impossível.”
Silvia Rivera Cusicanqui
45.
Um vulcão entra em erupção e destrói o que está próximo.
Anos depois, sua terra floresce e se torna fértil.
As montanhas contam histórias de amor: elas têm vozes ardentes
46. Escrevo:
Tememos porque amamos. Tememos porque vulneráveis somos. Tememos porque vamos morrer.
Mas o vulcão canta:
“Apenas o frágil é o terno. Apenas o frágil se rebela.”
Canta:

47.
Escrever é uma dança arriscada.
É assentar uma casa nas encostas de uma montanha em chamas
para não renunciar ao esplendor do fogo.
48.
Geografia = a escrita da terra.
Não descrever o vulcão, mas que ele escreva em nós.

Geoescrita.
“[…] 80% da superfície dos territórios de vida são afetados por concessões de mineração e petróleo.”
Paola Maldonado, Jaime Robles, Verónica Potes Ecuador: un análisis nacional sobre la situación de los territorios de vida
Geoescrita.
“Há indícios de que grupos criminosos estão diversificando seus investimentos na mineração ilegal e no tráfico de madeira.”
Carolina Andrade, assessora regional do Instituto Igarapé
Geoescrita.
“Nas Ilhas Galápagos e seus arredores, convergem as atividades do tráfico de drogas e do tráfico de animais e combustível.”
Pablo Ramírez, diretor de antinarcóticos
Geoescrita.
“Há acampamentos de mineração ilegal em 17 das 24 províncias da Costa, da Serra e na Amazônia do Equador.”
Evelyn Tapia, jornalista
Geoescrita.
“Temos que proteger nosso território, porque sem o território não se pode viver, morre a língua e morre o waorani.”
Nemonte Nenquimo, liderança feminina waorani
Geoescrita. 449 pessoas defensoras dos direitos humanos e da natureza foram ameaçadas nos últimos 10 anos no Equador.
Na última década, 1.733 defensores do meio ambiente foram assassinados em todo o mundo.
Entre 2016 e 2021, 58 líderes e membros de comunidades indígenas foram assassinados no Brasil, na Colômbia, no Equador e no Peru.
Geoescrita.
2023. Eduardo Mendúa, líder cofán antipetroleiro. Assassinado. 2022. Alba Bermeo Puin, defensora antimineira. Assassinado. 2022. Víctor Guaillas, defensor antimineiro. Assassinado. 2021. Nange Yeti, sábio waorani e líder antipetroleiro. Assassinado. 2021. María Taant, líder shuar antipetroleira. Assassinado. 2021. Andrés Durazno, líder antimineiro. Assassinado. 2014. José Tendetza, líder shuar antimineiro. Assassinado. 2013. Freddy Taish, líder shuar antimineiro. Assassinado. 2009. Bosco Wisuma, líder shuar antimineiro. Assassinado.
Geoescrita.
Dos 1.733 defensores da natureza assassinados entre 2012 e 2021, mais de 60% estavam na América Latina.
Geoescrita.
Em 2023, o Equador registrou mais de 7 mil mortes violentas.
Geoescrita.
“Os feminicídios aumentam nas zonas extrativistas; os grupos paramilitares e narcotraficantes operam com a mesma lógica que o capital transnacional, controlando populações e limpando o território para tornar possível a espoliação.”
Raúl Zibechi, escritor e ativista
Geoescrita.
“O desabamento nos deu uma nova montanha”
María Auxiliadora Álvarez
51.
“Quando escreverem, respirem fundo. É um artesanato, é um gesto de trabalhadora. E, quando lerem o que escreveram, voltem a respirar até sentir que há um ritmo. Os textos têm que aprender a dançar.”
Silvia Rivera Cusicanqui
52.
A escritura-vulcão é orgânica.
É puro desejo de viver.
Sua palavra guarda a temperatura elevada da terra.
Tenha um ritmo e você terá espaço-tempo.
Tenha um ritmo e você terá escrita.

53. Eu amo a terra que inventa o novo tato da palavra.
54.

A escrita quer tocar o mundo em reciprocidade de seu abraço.
Escrever = um amor geológico.
55. O horizonte da escrita é o desvio.
O poder não quer a dança do pensamento, nem seu gozo, nem seu erotismo: quer um vulcão morto.
Mas lembre-se: em meio ao perigo, um vulcão refunda o olhar e a escuta sobre esta terra.
56. Escrita: um tremendo lavor do corpo geográfico.
Nota:
Este fanzine é uma pequena amostra de um ensaio poético sobre escrita e vulcões que está em processo de elaboração.