O império dos ossos

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“Uma

das melhores SÉRIES DE fantasia que li nos últimos tempos.”

Sarah J. Maas , AUTORA DE CORTE DE ESPINHOS E ROSAS

o imperio dos ossos

Andrea Stewart

autora best-seller do new york times

O império dos ossos andrea stewart

TRILOGIA RUÍNAS DO IMPÉRIO – VOLUME 2

Copyright © 2021 Andrea Stewart

Copyright desta edição © 2025 Editora Gutenberg

Título original: The Bone Shard Emperor

Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editora responsável

Flavia Lago

editoras assistentes

Natália Chagas Máximo

Samira Vilela

preparação de texto

Samira Vilela

revisão

Claudia Vilas Gomes

capa

Lauren Panepinto

ilustração de capa

Sasha Vinogradova

adaptação de capa

Alberto Bittencourt

diagramação

Guilherme Fagundes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Stewart, Andrea

O império dos ossos / Andrea Stewart ; tradução Regiane Winarski. -1. ed. -- São Paulo : Gutenberg, 2025. -- (Ruínas do Império , v. 2)

Título original: The Bone Shard Emperor

ISBN 978-85-8235-785-9

1. Ficção de fantasia 2. Ficção norte-americana I. Título. II. Série. 25-267666

CDD-813

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana 813

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

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Para John, que sempre cuida para que eu tenha tempo para escrever.

Dizem que ninguém é perfeito, mas obviamente isso é mentira.

Ilha Imperial

Eu achava que poderia corrigir as coisas no Império se tivesse os meios. Mas corrigir as coisas significava tirar as ervas daninhas de um jardim tomado por mato, e, a cada erva daninha arrancada, duas novas brotavam no lugar. Era a cara do meu pai não deixar uma tarefa fácil para mim. Eu me agarrei às telhas de cerâmica do telhado e ignorei o choramingo baixinho de Thrana lá embaixo. Não havia muita privacidade no palácio de um Imperador. Servos e guardas andavam pelos corredores, e, mesmo à noite, sempre havia alguém acordado. Meu pai caminhara nos corredores do palácio a qualquer hora com impunidade. Ninguém ousara questioná-lo, nem mesmo eu. Devia ser porque ele tinha mais construtos do que servos, e os servos que tinha o viam com pavor. Eu queria ser um tipo diferente de Imperatriz. Ainda assim, não contava com ter que me esgueirar pelo meu próprio palácio. Eu sequei a umidade da telha molhada de chuva com a manga da roupa e subi no pico do telhado. Parecia ter se passado uma vida desde que eu subira ali pela última vez, e, apesar de fazer apenas alguns poucos meses, meus músculos sentiram falta da atividade. Eu havia precisado resolver questões administrativas primeiro: contratar criados, guardas e trabalhadores; consertar e limpar os prédios da área do palácio; restabelecer alguns dos compromissos do meu pai e abolir outros. E sempre havia gente me olhando, se perguntando o que eu faria, tentando me avaliar.

Em algum lugar abaixo de mim, Jovis, meu capitão da Guarda Imperial, andava pelo corredor em frente ao meu quarto com seu animal, Mephi, ao lado. Ele tinha insistido em assumir aquela função e, apesar de dormir em algum momento, só fazia isso depois que outro guarda chegava para tomar seu lugar. Ter alguém posicionado à minha porta o tempo todo me fazia trincar os dentes. Ele sempre queria saber onde eu estava, o que estava fazendo. E como podia culpá-lo se eu mesma o tinha encarregado da minha segurança?

Não podia mandar que ele e seus guardas me deixassem em paz sem ter motivo suficiente. Meu pai era conhecido por ser mal-humorado, excêntrico, recluso. Como eu poderia dar essa ordem sem parecer igual?

Uma Imperatriz tinha obrigações com seu povo.

Eu me sentei no pico do telhado por um momento, sentindo o ar úmido, o cheiro do mar. O suor grudava meu cabelo na nuca. Alguns dos aposentos que eu tinha descoberto depois da morte do meu pai estavam trancados sem motivo, uns cheios de quadros, outros de badulaques e presentes de outras ilhas. Mandei os criados limparem e organizarem esses itens para serem exibidos nos prédios reformados.

Havia outros aposentos em que eu não ousava deixar que ninguém entrasse. Eu ainda não sabia todos os segredos que se esgueiravam por trás daquelas portas, nem o que as coisas que eu tinha encontrado significavam. E olhos xeretas me deixavam cautelosa. Eu tinha meus segredos para guardar.

Eu não era filha do meu pai. Era uma coisa criada, desenvolvida nas cavernas embaixo do palácio. Se alguém me descobrisse, eu estaria morta. Havia insatisfação suficiente crescendo contra a dinastia Sukai, não era preciso insuflá-la ainda mais. O povo do Império Fênix não toleraria uma impostora.

No pátio abaixo de mim, dois guardas faziam a patrulha. Nenhum dos dois olhou para o telhado. Mesmo que tivessem olhado, eu seria só uma forma escura contra um céu nublado, a chuva enturvando sua visão. Desci pelo outro lado e fui até uma janela que eu sabia que ainda estava aberta. A noite estava quente apesar das nuvens e da chuva, e as janelas costumavam ficar abertas a menos que houvesse um vendaval. Só havia algumas lamparinas iluminadas quando deslizei da beirada das telhas e meus pés tocaram o parapeito.

Havia um conforto estranho em me esgueirar pelos corredores do palácio de novo, minha ferramenta de entalhe e várias chaves escondidas dentro da bolsinha do meu cinto. Era algo familiar, algo que eu conhecia.

Não pude deixar de espiar pelo cantinho para ver a porta do meu quarto. Jovis ainda estava lá, com Mephi ao lado. Ele mostrava um baralho de cartas laqueadas ao animal, que estendeu uma pata com membranas e tocou em uma com a garra.

– Essa.

Jovis suspirou.

– Não, não, não… Se você jogar um peixe numa serpente marinha, você perde a vez.

Mephi inclinou a cabeça e se sentou.

– Dá o peixe pra serpente marinha comer. Faz a serpente marinha virar amiga.

– Não é assim que funciona.

– Funcionou comigo.

– Você é uma serpente marinha?

Mephi bateu os dentes.

– Seu jogo não faz sentido.

– Você disse que estava entediado e queria aprender – disse Jovis, começando a guardar as cartas no bolso.

Mephi apertou as orelhas junto ao crânio.

– Espera. Espeeeera.

Eu então cheguei para trás, ouvindo o som de passos. Jogar cartas enquanto protegia o quarto da Imperatriz não era uma atitude muito profissional, apesar da insistência de Jovis em me proteger. Achei que eu mesma tivesse provocado aquilo ao contratar um antigo membro do Ioph Carn e contrabandista notório como capitão da Guarda Imperial. Mas ele tinha salvado hordas de crianças do Festival do Dízimo e conquistado muito a confiança das pessoas. E confiança era algo escasso para mim.

Segui para o depósito de fragmentos, me esgueirando por passagens laterais ou atrás de pilares sempre que via um guarda ou um criado. Rapidamente, destranquei a porta e entrei. Através da memória muscular, me guiei no escuro, peguei o lampião acima da lareira, acendi e voltei para o fundo da sala. Havia outra porta lá, com um entalhe de zimbro nuvioso.

Outra fechadura, outra chave.

Desci para a escuridão dos antigos túneis de mineração abaixo do palácio, meu lampião deixando os ângulos das paredes mais suaves. Os construtos que meu pai tinha colocado para proteger o caminho estavam mortos, desmontados por mim quando tive forças. Os construtos ainda espalhados pelo Império eram outra questão. Todos tinham ordem de obedecer ao Shiyen, e, agora que ele não existia mais, a estrutura de comando tinha desmoronado. Alguns construtos tinham enlouquecido, outros se escondido. Só havia dois que eu considerava meus: Hao, um pequeno construto espião que eu tinha reescrito para me obedecer, e Bing Tai. Hao tinha morrido me defendendo do meu pai. Só restava Bing Tai.

Na bifurcação dos túneis, fui para a esquerda e destranquei a porta que bloqueava a passagem. Um lago ocupava parte da caverna. Havia uma estação de trabalho ao lado, com estantes, uma mesa de metal, algumas cestas de ferramentas que eu não reconhecia. E o baú que guardava a máquina da memória do meu pai. Eu havia encontrado Thrana ali, submersa no lago, conectada àquela máquina.

Como fazia toda vez que entrava naquela caverna, verifiquei a água. Meu lampião se refletiu na superfície escura; precisei apertar os olhos para ver lá embaixo, dentro da água. A réplica do meu pai ainda estava no lago, de olhos fechados. Depois da primeira onda de alívio, vinha a dor familiar. Ele era tão parecido com Bayan… ou, pensava eu, Bayan era tão parecido com ele.

Mas Bayan morrera me ajudando a derrotar meu pai, e, quando finalmente tive tempo para sofrer, percebi que não dava para trazê-lo de volta. Eu era prova disso. Enquanto meu pai tinha criado aquela réplica submergindo o próprio dedo cortado no lago, ele me criara a partir das partes de pessoas que coletara pelo Império. Ele tentou me infundir com lembranças de Nisong, sua esposa morta. Deu certo só parcialmente. Eu possuía algumas das lembranças dela, mas não era ela.

Eu era Lin. E era a Imperatriz.

Mesmo que eu pudesse usar a máquina da memória para restaurar um pouco de Bayan naquela réplica, não seria ele.

Eu me virei de repente, certa de que tinha ouvido alguma coisa. Um passo? O barulho de um sapato na pedra? Os lampiões que eu tinha acendido atrás de mim iluminavam só pedra e água. O único som que eu ouvia eram meus batimentos trovejando nos meus ouvidos. Naquele instante de pânico cego, senti tudo sendo tirado de mim: os meus anos de trabalho árduo, as noites passadas lendo sobre magia do fragmento de ossos, a coragem que eu tinha reunido para desafiar meu pai, tudo dissolvido num momento de descoberta. Eu estava ficando paranoica, ouvindo coisas quando não havia nada. Como alguém poderia ter me seguido até ali embaixo sem chaves? Todas as portas se trancavam ao se fechar.

Vários dos livros e das páginas de anotações que meu pai tinha reunido ocupavam a mesa de metal. Eu relutava em levá-los para os meus aposentos, onde criados poderiam ver. Eram as ervas daninhas que eu estava tentando arrancar: os Raros Desfragmentados, a Ilha da Cabeça de Cervo que afundava, os construtos sem líder e os Alangas. Havia respostas ali, eu só precisava encontrá-las. E encontrá-las é que era difícil. As anotações do meu predecessor estavam espalhadas, a caligrafia, um garrancho. Apesar das três portas trancadas, meu pai escrevia como se tivesse medo de que outra pessoa pudesse encontrar os livros. Nada era objetivo. Muitas vezes, ele fazia referências a anotações que tinha escrito previamente, ou a outros livros, mas sem citar onde essas anotações poderiam ser encontradas, nem os títulos dos livros. Eu estava tentando montar um quebra-cabeça que não tinha imagem.

Puxei a cadeira e virei cada uma das páginas, uma dor de cabeça crescendo rapidamente atrás dos meus olhos. Parte de mim achou que, se eu lesse o bastante, se lesse vezes suficientes, descobriria os segredos do meu pai.

Até ali, eu só tinha conseguido entender que ilhas já haviam afundado muito tempo antes. Saber que mais de uma havia afundado no passado e que até o momento só havíamos visto a Ilha da Cabeça de Cervo cair fez as palmas das minhas mãos suarem. Eu ainda não sabia o que fizera a Cabeça de Cervo afundar, nem quando ou como outra ilha poderia submergir. E havia os Alangas, outra coisa que meu pai teria contado ao herdeiro. Quem eram e, se voltassem, o que eu podia fazer para lutar contra eles?

Meu olhar se desviou para a máquina da memória. Ainda havia líquido nos tubos que eu havia desconectado de Thrana. Alguns continham sangue dela e outros, um fluido leitoso. Eu havia reunido o sangue restante dela num frasco que trouxera da cozinha e o fluido em outro. Nas anotações, meu pai mencionara alimentar as memórias para seus construtos e para mim. Ele pareceu insatisfeito com as primeiras tentativas, relutante em desmontar os construtos que podiam carregar as lembranças da esposa morta, mas infeliz com o pouco que eles pareciam entender de Nisong.

Eu não sabia o que ele tinha feito com aqueles construtos, mas o assunto mais urgente era onde as lembranças estavam armazenadas.

Eu havia fechado ambos os frascos e os colocado na mesa com os livros. Havia chegado a abrir o que tinha o fluido leitoso e cheirado o conteúdo. Mas eu sempre colocava a rolha de volta e procurava nas anotações de Shiyen por provas mais concretas de que as lembranças estavam naquele fluido. Eu estava ficando tão desesperada assim, a ponto de considerar beber sem ter certeza? Até onde eu sabia, podia ser lubrificação para a máquina, algo venenoso, e não feito para ser ingerido.

Mas parte daquilo viera de Thrana. Eu não sabia qual era a conexão: onde ele a tinha encontrado, que tipo de criatura ela era. Ela era como Mephi, e Jovis o encontrara nadando no mar depois do afundamento da Cabeça de Cervo. Não havia nada de tóxico em Thrana.

Ah, eu estava dando desculpas porque parte de mim só queria beber. Eu queria saber. Não havia como ter certeza de quem eram as lembranças que podiam estar naquele fluido, mas eu tinha uma noção. Shiyen era velho e estava doente. Ele estaria tentando reunir suas lembranças para colocá-las na réplica dele antes de morrer.

Eu estava procurando respostas, e algumas dessas respostas podiam estar no frasco. O Império Fênix estava no fio de uma faca. O que eu estava disposta

a fazer para salvar meu povo? Numeen tinha me dito que eles precisavam de um Imperador ou Imperatriz que se importasse. E eu me importava. Eu me importava muito.

Agarrei o frasco, abri-o e o levei aos lábios antes que pudesse mudar de ideia de novo. O líquido estava frio, embora isso não tenha mascarado o gosto. Cobre, uma doçura e um retrogosto estranho e prolongado encheram minha boca e grudaram no fundo da garganta. Passei a língua pelos dentes, me perguntando se devia ter experimentado antes de engolir. Talvez fosse veneno. E, aí, a lembrança tomou conta de mim.

Eu estava ali, ainda naquela câmara, mas estava diferente. Havia mais três lampiões acesos na área de trabalho, e Thrana ainda estava na água. Minhas mãos ajustaram o tubo que levava à máquina da memória. Manchas senis cobriam as costas das minhas mãos e tendões apertavam a pele. Eu empurrei com força demais; minha mão escorregou e bateu na lateral do baú. Algo se soltou.

– Pelas bolas de Dione! – A frustração cresceu dentro de mim. Sempre uma coisa atrás da outra. Coloque algo no lugar, outra coisa sairá do lugar. A única coisa que eu tinha pela qual viver eram aqueles experimentos. Meu peito doeu quando pensei em Nisong, em seus olhos escuros, a mão dela na minha. Morta. Tateei pelo fundo do baú e coloquei o compartimento secreto no lugar.

Meu olhar se desviou involuntariamente para o outro lado da caverna.

E, aí, eu estava no meu corpo de novo, me perguntando se era aquela a sensação de ser meu pai. Estranhamente atônita de ele ter tanta força de sentimento. Eu sempre o vi como frio e distante.

Ele realmente amara Nisong. Eu não sabia por que isso me surpreendia. Talvez fosse porque, por mais que eu tentasse, não conseguia fazer com que ele me amasse.

Na lembrança, um compartimento secreto tinha se aberto dentro do baú. Bati na lateral de madeira com a palma da mão para experimentar. Nada se soltou, mas coloquei a mão onde me lembrava de ter visto a mão do meu pai pressionar.

Havia algo ali. Um pequeno retângulo onde a madeira parecia meio erguida. Bati no baú de novo. Desta vez, algo se soltou. Uma gaveta se abriu parcialmente. Puxei para abri-la completamente. Dentro havia uma chavezinha prateada.

Eu não sabia se queria rir ou chorar. Meu pai sempre guardou tantos segredos; segredos dentro de segredos dentro de segredos. A mente dele era

um labirinto do qual nem ele conseguia encontrar a saída. E se ele tivesse me criado de verdade como filha? E se tivesse deixado de lado a missão tola de viver em outro corpo para trazer a esposa morta de volta à vida?

A chave estava fria quando a peguei, os dentinhos na ponta afiados. Eu tinha destrancado todas as portas que encontrara no palácio. Aquela era de outro lugar.

Meu olhar se desviou para o outro lado da caverna. Ele tinha olhado naquela direção quando colocou a gaveta no lugar. Não pensei que houvesse algo lá, mas talvez não tivesse olhado direito.

Ergui o lampião. Estalagmites bloqueavam o caminho até o outro lado. Precisei passar entre elas como um cervo em meio a bambus.

Finalmente, cheguei a uma área vazia perto da parede, o local para onde eu tinha visto meu pai olhar. Quando olhei em volta, meu coração despencou.

Não havia nada ali, só pedra e o brilho de cristal das paredes. Eu tinha andado até ali antes. Não sabia por que esperava que estivesse diferente.

Segredos dentro de segredos.

Não, havia algo ali. Ele tinha olhado naquela direção, e eu estava vivenciando a lembrança dele. Tinha havido um motivo para aquilo, eu sentia.

Caí de joelhos, coloquei o lampião no chão e tateei.

Meus dedos encontraram uma rachadura mínima cheia de terra.

Coloquei a chave de lado, peguei a ferramenta de entalhe na bolsa do cinto e a usei para tirar a terra da rachadura na pedra. Alguém tinha raspado um pedaço da pedra e o substituído. Havia algo ali. Eu não estava enganada. A ferramenta de entalhe se curvou quando a usei para soltar a pedra. Minhas unhas doeram quando as enfiei embaixo da placa e puxei até que se soltasse. A terra caiu e bateu no lampião. Olhei dentro da cavidade e encontrei um alçapão com uma fechadura.

O que meu pai teria guardado que precisava de uma série de quatro portas trancadas? A chave entrou na fechadura com facilidade e girou com um clique suave. As dobradiças do alçapão estavam lubrificadas. Ele se abriu sem ruído. Quando balancei o lampião por cima do buraco, só vi uma escada descendo na escuridão.

Podia haver qualquer coisa lá embaixo. Eu me agachei, me deitei de barriga e enfiei o lampião e a cabeça no alçapão.

Era difícil de enxergar muito fundo numa caverna subterrânea só com um lampião, ainda mais de cabeça para baixo. A escada era longa, o fundo mais distante do que eu tinha imaginado. Mas consegui ver prateleiras numa parede escura.

Bom, eu tinha ido até ali, não tinha? E eu que não ia voltar e pedir ao Jovis para me acompanhar na toca do meu pai. Eu tinha derrotado meu pai. Podia descer num buraco escuro sozinha. Eu me levantei, guardei a ferramenta na bolsinha, peguei o cabo do lampião entre os dentes e coloquei o pé na escada. O ar estava ainda mais frio naquela caverna subterrânea. Havia um odor úmido de petricor no ar, apesar de eu não ter detectado excesso de umidade. Foi um alívio finalmente tocar no chão de novo e tirar o lampião da boca, que tinha começado a doer.

Movi os ombros para aliviar a tensão. Havia talvez mais livros ali embaixo, mais anotações, mais peças de quebra-cabeça do que eu conseguia assimilar. Eu me virei e ergui o lampião.

E vi a luz dele refletida em dois olhos monstruosos.

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