Dança do mar ardente

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TRILOGIA MOUSAI VOL. 2

DANÇA DO MAR ARDENTE

TRILOGIA MOUSAI

DANÇA DO MAR ARDENTE

E.J. MELLOW

TRADUÇÃO: Fernanda Castro

Copyright © 2021 E. J. Mellow

Copyright desta edição © 2025 Editora Gutenberg

Título original: Dance of a Burning Sea

Todos os direitos reservados pela Editora Gutenberg. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

editora responsável

Flavia Lago

editoras assistentes

Natália Chagas Máximo

Samira Vilela

preparação de texto

Natália Chagas Máximo

revisão

Bruna Brezolini Lordello

adaptação de capa

Alberto Bittencourt

ilustração e projeto de capa

Micaela Alcaino

diagramação

Waldênia Alvarenga

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Mellow, E. J.

Dança do mar ardente / E. J. Mellow ; tradução Fernanda Castro. -1. ed. -- São Paulo : Gutenberg, 2025. -- (Trilogia Mousai ; v. 2)

Título original: Dance of a Burning Sea

ISBN 978-5-8235-804-7

1. Ficção de fantasia 2. Ficção norte-americana I. Título. II. Série. 25-266127

CDD-813.5

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção de fantasia : Literatura norte-americana 813.5

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

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Para Phoenix, minha irmã nascida do fogo, cujas chamas dançam em seu próprio ritmo.

Nascida em segundo, erguida do fogo, Dotada de passos, giros e muitos gracejos, Mas cuidado, querido, ao chegar perto demais, Pois será amaldiçoado com mais do que um desejo

Se dançar com a filha da chama

Se dançar com a filha da chama

Ela pode cintilar como o mel e o sol, Pode ser tão leve quanto o dia, Mas tome cuidado, querido, pois há uma ponta afiada Escondida em seu bailar de alegria

Se dançar com a filha da chama

Se dançar com a filha da chama

Então, melhore essa cara, meu amor, meu bichinho inocente, Caso seja pego em um de seus rodopios, girando; Seu toque começa suave, sedoso e calmante, Mas sempre vai terminar queimando

Quando dançar com a filha da chama

Quando dançar com a filha da chama

Versos da Canção das Mousai, dos Achak

Ilha
Sacrossanta
Bruma Zombeteira

Baía do Escambo

Reino do Ladrão
Yamanu
Jabari
Lachlan

PRÓLOGO

Um pirata assistia a um homem morrer. Não era uma ocorrência incomum, dada sua profissão, mas, daquela vez, ele não tinha nada a ver com o assunto.

Alguém podia se perguntar que tipo de corte macabra convidava pessoas para testemunhar alguém sendo torturado. A resposta era bem simples: o Reino do Ladrão. A multidão que rodeava o pirata se espremia, os disfarces ornamentados roçando no seu gasto casaco de couro, faminta por um vislumbre melhor da loucura que acontecia no centro do salão. O cheiro de corpos perfumados em excesso, suor e desespero infiltrando-se sob sua máscara, invadindo as narinas. E, não pela primeira vez naquela noite, ele se lembrou de onde estava: no reino mais implacável e degradante de Aadilor, cujas leis lenientes atraíam grandes fortunas e tolos ainda maiores, trocando segredos e moedas por noites de insensatez e pecado.

O pirata havia comparecido naquela noite não só por curiosidade, mas também pela própria ambição. Tinha dado duro para construir uma vida nova após abandonar a antiga. Embora sua identidade atual refletisse pouco do que precisara deixar para trás, o objetivo tinha sido justamente esse. Agora suas decisões pertenciam apenas a ele, não mais sobrecarregadas pela história ou por expectativas.

Ao menos era o que dizia a si mesmo.

Ainda que não tivesse planejado se tornar um pirata, com certeza não via razão em lutar contra a imagem de delinquente que as pessoas em seu passado enxergavam nele.

Afinal, não nascera para ser um homem que agia pela metade.

E assim comandara um navio e recrutara uma tripulação para servi-lo. E agora isto, pensou: a chance de ser o primeiro lorde-pirata na corte do Rei Ladrão.

Aquela ambição faminta e constante arranhava seu peito como uma fera gananciosa, pois ele sabia que faria tudo o que estivesse ao seu alcance para garantir um assento na corte. Mesmo que uma pequena parte de si parecesse arrependida de entrar no palácio preto e opulento.

Sua atenção se desviou das figuras encapuzadas e mascaradas ao redor, retornando ao espetáculo.

O pirata já vira muita gente morrer, mas nunca de um jeito tão bonito quanto aquele.

No centro do salão de ônix, três mulheres se apresentavam: uma cantora, uma dançarina e uma violinista.

Uma canção fluida e quente, e um ritmo inebriante se expandiam a partir delas em um arco-íris de cores, seus fios de poder batendo sem cessar contra um prisioneiro acorrentado no meio delas, um chicote de notas punindo a pele, mas, em vez de gritos de dor, o homem gemia de prazer.

Ali estavam deusas encarnadas, trazidas do Ocaso a fim de atrair os vivos para os mortos, pois seus poderes falavam sobre a magia antiga. Sobre uma época em que os deuses não tinham sido perdidos, quando Aadilor possuía uma abundância de suas dádivas.

Os trajes das mulheres eram luxuosos, tecidos em cores ricas, contas presas a sedas enfeitadas com plumas e rendas bordadas. Máscaras artísticas com chifres cobriam a identidade do trio. E embora a performance não fosse direcionada para ele, o pirata ainda se sentia mergulhado em um orvalho frio de desespero, sentindo a atração forte da magia.

Agarrando.

Provocando.

Tentando.

Devorando.

Um emaranhado de poderes, destinado a encantar a mente e aprisionar o corpo. Era um feitiço de loucura, isso sim, e o prisioneiro no centro era a marionete.

O homem uivou em um êxtase agonizante, uma mão tentando alcançar a dançarina enquanto ela deslizava para perto de forma provocante. As correntes tilintaram contra os grilhões, mantendo-o afastado, e ele desabou no piso de mármore preto em um rompante de angústia, se contorcendo e arranhando o próprio rosto. As unhas percorreram as trilhas de sangue que pingavam de seu nariz e das orelhas, misturando-se à poça de urina abaixo dele.

E o pirata continuou assistindo.

Jamais testemunhara uma beleza tão perversa, mas estava aprendendo rápido que, naquele mundo, as coisas mais deslumbrantes eram fatais.

E aquelas três realmente se destacavam.

Qualquer um com Vidência podia enxergar seu poder avassalador, pois apenas aqueles com magia eram capazes de detectá-la nos outros.

Se o pirata usasse seus dons, seus olhos brilhariam esverdeados.

As carrascas nadavam em uma mistura inebriante de cores, um fluxo que sempre se expandia do centro do salão onde elas se apresentavam.

– As Mousai – tinha sussurrado uma mulher quando ele pisara pela primeira vez naquela corte.

As musas letais do Rei.

Letais, de fato, pensou o pirata.

Por trás da máscara prateada, sua pele estava coberta de suor, a mente girando sob a melodia que ecoava no espaço. A dançarina balançava os quadris no ritmo, lançando pelo ar rajadas de magia tingida de fogo, batendo palmas para comandar um sonho. O corpo dele estremeceu de desejo.

A voz da cantora se dividiu em três, quatro, cinco – um soprano crescente de fios dourados saindo de seus lábios e seguindo os acordes violeta que deslizavam do violino.

O pirata nunca quisera tanto uma coisa. Mas o que era essa coisa, ele não sabia dizer. Apenas sentia que precisava dela. Com desejo. Com desespero. E com uma tristeza profunda camuflada. Um vazio dolorido, pois nunca poderia obter aquilo pelo qual sua alma ansiava.

O poder daquelas mulheres.

Nooooosso, arrulhou sua magia, estendendo as mãos. Queremos que seja nosso.

Comporte-se, ordenou o pirata em silêncio, forçando a magia a retroceder. Sou seu mestre, não elas.

Cerrando as mãos em punho, ele tentou manter o juízo no lugar. Podia ouvir os gemidos dos membros da corte desprovidos de dons ao lado dele, contidos por correntes como se também fossem prisioneiros. Com o sangue sendo tão facilmente manipulado, eles com certeza sabiam o que estava por vir? Mas, supôs o pirata, aquele era o fascínio da corte do Reino do Ladrão. Estar perto de tamanho poder, testemunhar aquela euforia fatal e sobreviver à experiência. Era uma história da qual poderia se gabar mais tarde. Olha como fui esperto ao sair inteiro dessa.

Ele olhou ao redor da multidão, observando cada rosto mascarado, imaginando quem mais poderia ser um potencial candidato à corte. Quem ali ganharia acesso ao palácio, quem seria convidado para a mais decadente devassidão e para conhecer todos os segredos e conexões que vinham no

pacote? O pirata sabia que ter sido convidado para aquela noite, dentre todas as outras, para testemunhar o que sem dúvida era um mero fragmento do poder do rei, não passava de um teste. Tudo naquele mundo era um teste.

E já havia perdido uma vez.

Agora, sairia vencedor.

Uma labareda quente percorreu o corpo dele, atraindo sua atenção para a dançarina conforme ela passava se balançando, o aroma provocante de madressilva flutuando em seu rastro.

Não havia sequer um centímetro exposto de pele ou cabelo. O rosto estava oculto por trás de bordados e sedas, e até mesmo as pernas estavam cobertas até os dedos dos pés, mas a dançarina se movia como se estivesse nua, como se olhar para suas curvas voluptuosas fosse uma experiência obscena.

Ainda assim, a identidade da mulher permanecia um mistério.

Assim como a de suas companheiras.

Muito cuidado para permanecer nas sombras, mesmo estando à vista.

É o que todos praticam aqui, pensou o pirata. Bem, com exceção do prisioneiro.

A máscara dele fora arrancada quando o arrastaram para o centro da sala.

A degradação final de sua sentença. Ele havia gritado na hora, cobrindo as rugas com as mãos, tentando ocultar seus cabelos grisalhos. Mesmo com a sentença de morte iminente, parecia que ninguém desejava ter seus pecados no Reino do Ladrão seguindo seu rastro, nem mesmo rumo ao Ocaso.

O ritmo acelerou, a violinista passando o arco pelas cordas a uma velocidade vertiginosa. A voz da cantora subiu cada vez mais aguda, sacudindo os candelabros enquanto a dançarina se contorcia de novo e de novo e de novo ao redor do prisioneiro.

Seus poderes rodopiaram, enviando rajadas de vento pelo salão.

Ajoelhado, o prisioneiro jogou a cabeça para trás, forçando as correntes na direção do teto. A magia delas fervilhou ainda mais. Ele soltou um último grito, um apelo às Mousai, conforme o feitiço das mulheres, tecido em roxo, dourado e carmesim, bombeava por seu corpo, fluindo sem parar até que, enfim, esfarrapado, cedeu por inteiro. Ele brilhou como uma estrela enquanto o crec, crec, crec dos ossos se quebrando ecoava pelo salão.

A luz pulsante sob sua pele se extinguiu junto com o último estalo de sua coluna.

O prisioneiro caiu no chão.

Sem vida.

Sua alma enviada ao Ocaso.

Um momento aterrorizante de silêncio se instalou no lugar, a perda ecoante da magia das Mousai, agora desfeita.

Um choramingo de um dos desprovidos de dons.

E então…

A câmara explodiu em aplausos.

As Mousai fizeram uma reverência com uma graciosidade régia, como se não tivessem acabado de derreter um homem de dentro para fora. Na verdade, o pirata sentia um brilho residual tingido de luxúria na energia do salão. Mesmo ele estava sem fôlego.

Ao perceber aquilo, sua determinação se aguçou, a névoa que confundia sua mente se dissipando.

Ele não era um homem propenso a selvagerias. Ter quase perdido o bom senso fez com que sentisse uma onda de inquietação.

As portas no outro extremo do recinto se abriram, e as pessoas avançaram rumo à festa pós-espetáculo. Mas o pirata permaneceu imóvel, encarando o corpo esquecido do prisioneiro. Estudou as feições, que continham indícios de alguém que nascera em berço nobre, antes que os guardas viessem levar o cadáver embora.

Sabia-se que o prisioneiro tinha sido um membro da corte. Sua posição, no final, pouco fez para salvá-lo. Ao que parecia, o Rei Ladrão só gostava daqueles que roubassem para ele, e não dele.

Era uma boa coisa, no fim das contas, pois significava que haveria um assento vago naquela noite.

Mas seria aquele um mundo do qual o pirata realmente queria fazer parte?

Sim, ronronou sua magia.

Sim, concordou ele.

A questão era como conseguir o poder necessário para andar livremente por aquele lugar.

O pirata vagou entre as várias máscaras que o cercavam, admirando as superfícies pintadas e os véus adornados. O fardo de manter a identidade sempre escondida era também uma brecha na armadura das pessoas. Havia muitos segredos bem trancados naquele palácio e naquele reino, vícios inadequados para ouvidos sensíveis e para uma sociedade respeitável. Mas, junto com os segredos, vinham as oportunidades de obter vantagem. E isso era algo que o pirata estava determinado a conseguir, pois o caminho para um tesouro inestimável se apresentava de muitas formas.

Um reflexo capturou seu olhar, o balanço dos quadris da dançarina cintilando sob as contas de ônix enquanto serpenteava entre os convidados.

Ele observou a silhueta ampla da mulher, sua névoa ardente de magia irradiando a cada movimento. Como uma cobra armando o bote, um plano começou a tomar forma.

Talvez sentindo a presença de um predador, a dançarina se virou, os chifres da máscara se destacando acima da multidão. E, embora suas feições estivessem cobertas, o pirata soube o exato momento em que os olhos dela encontraram os dele, pois um fluxo quente o atingiu.

Mas depois a dançarina começou a se afastar, desaparecendo entre as sombras da corte.

Ele a seguiu, e, enquanto avançava, seus nervos zumbiam em antecipação ao que precisaria fazer em seguida.

Simmm, arrulhou a magia, alegre diante de pensamentos tão ousados, não somos covardes como os outros.

Não, concordou ele. Não somos.

Com uma mão firme, o pirata removeu sua máscara.

O calor da sala envolveu sua pele já aquecida. Ele respirou fundo, o aroma de liberdade correndo doce por suas papilas gustativas. As pessoas por quem ele passava o olhavam sob sussurros chocados enquanto examinavam suas feições, o primeiro candidato daquela espécie a se revelar.

Ele as ignorou com presteza.

Sua identidade não seria sua fraqueza ali. Não como todos os outros, apegados a disfarces e falsas garantias.

Deixe que me conheçam, pensou.

Deixe que meus pecados me sigam.

Ele já havia sido chamado de monstro. Por que não viver de acordo com a alcunha?

Afinal de contas, monstros eram necessários para criar heróis.

E Alōs Ezra se tornaria o tipo de monstro capaz de criar grandes heróis.

Um bom tempo depois – anos, na verdade, quando as feridas se tornaram velhas cicatrizes.

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