Esta também é a história do meu irmão

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Sophia Nogueira

Esta também é a história do meu irmão

Copyright © 2021 Sophia Nogueira

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editora responsável Flavia Lago

editoras assistentes Carol Christo Natália Chagas Máximo preparação de texto Aline Silva de Araújo

revisão final Claudia Barros Vilas Gomes

projeto gráfico de capa Diogo Droschi

ilustração de capa Isabela Santos diagramação Christiane Morais de Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Nogueira, Sophia

Esta também é a história do meu irmão / Sophia Nogueira. -- 1. ed. -- São Paulo : Gutenberg, 2021.

ISBN 978-85-8235-629-6

1. Ficção brasileira I. Título. 21-36581 CDD-B869.3

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura brasileira B869.3

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

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A este livro eu dedico tudo de mim. Crescemos juntos, fomos remexidos, revisados, acolhidos. Dedico ao meu pai, que me ensinou a imaginar e ter milhões de ideias. Dedico à minha mãe, que me ensinou a colocar minhas ideias no mundo, sem seu apoio esse livro não seria realidade. A toda minha trajetória e crescimento.

E é claro, ao meu irmão, meu melhor amigo e parceiro, esta também é a sua história.

Capítulo 1

Anecessidade de fazer amigos é sufocante.

Não conseguia parar de pensar nisso: quanto mais encarava as crianças correndo e brincando ao meu redor, mais essa sensação se ex pandia em meu peito.

Isso não deveria estar passando na cabeça de uma garota de 8 anos, fazer amigos não deveria ser tão difícil.

Essa sensação de estar profundamente inadequada me perseguia constantemente, eu gostaria de ter amigos, mas a verdade é que todas as pessoas da minha idade pareciam profundamente desinteressantes.

“Favor não bater no vidro”, dizia o aviso.

Enfiei as mãos fundo nos bolsos da calça enquanto virava a cabeça para observar os peixes no aquário da sala de aula do italiano.

– Favor não bater no vidro – balbuciei e fechei as mãos um pouco mais, desviei os olhos e me concentrei em prestar atenção em qualquer outra coisa. Era engraçado o quanto me sentia como aqueles peixes, tão perto e tão longe de tudo. Como se pudesse ver, mas não fazer parte.

Acabei encontrando o olhar de outras crianças, que pareciam ter a minha idade. Elas estavam sentadas no chão brincando e gritando como se fossem as únicas no lugar. Franzi o nariz e andei em direção à saída, mas não sem antes ler o aviso mais uma vez.

– Você ainda está esperando a sua mãe? – a moça da recepção perguntou.

Balancei a cabeça positivamente.

– Ela sempre atrasa, né? – Ela sorriu, mas não pareceu simpática.

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– Ela é ocupada. – Dei de ombros. – Acontece.

– Por que você não vai brincar um pouco com os meninos da sua idade?

– Eles não são da minha sala.

– É mesmo. – Ela deu um tapinha na própria cabeça. – Os pais geral mente colocam as crianças mais novas para fazer inglês. Você faz italiano com os mais velhos, não é?

Confirmei com a cabeça e vi minha mãe se aproximar do estacionamento. Respirei aliviada e corri em sua direção.

Minha mãe abriu os braços e deu um grande sorriso quando me viu. Parecia cansada, seus olhos estavam mais fechados do que o normal e sua respiração um pouco pesada.

– Oi! – ela disse enquanto me abraçava bem forte.

– Ciao – respondi, com a voz abafada pelo abraço.

– Desculpa por fazer você esperar muito tempo, hoje o dia foi corrido.

– Enquanto ela falava, era possível notar algumas ruguinhas se mexendo pelo rosto. Olhei para elas com carinho, sabia que eram fruto de muitos sorrisos.

– Tudo bem, não foi tanto tempo assim.

Entramos no carro e eu olhei para o lado de fora.

– Que bom que você tinha um livro pra ler – ela comentou.

Eu sorri, já tinha terminado o livro havia três dias, mas não queria que ela soubesse que eu tinha ficado duas horas entediada pensando em perturbar peixes inocentes.

Ficamos em silêncio durante um tempo. Eu observava a paisagem, e minha mãe estava focada no trânsito. Vez ou outra eu fechava os olhos para prestar mais atenção nos sons do ambiente. Era um pouco difícil, já que a música do rádio estava alta.

– Posso diminuir o volume? – perguntei.

– Agora não, princesa, estou cansada e a música me ajuda a ficar acordada.

– O dia foi muito cansativo?

Ela balançou a cabeça em afirmação.

– Apesar de cansativo foi um dia bom, tive muitos pacientes e nenhum caso muito sério.

– Que bom. – Sorri.

– Como foi a aula de italiano?

– Foi boa, pena que dura pouco, acho que se tivesse mais aulas eu aprenderia mais rápido – expliquei. Minha mãe riu. – O que foi?

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– Nada. – Ela balançou a cabeça para os lados. – É que nunca vi uma criança tão ansiosa.

– Como assim? – Franzi a testa e olhei para ela.

– Que outra criança de 8 anos gostaria de ter mais aulas? – Eu cruzei os braços e desviei o olhar, bufando. – Tenho certeza de que a maioria delas está lá obrigada pelos pais e que ficam muito mais felizes quando a aula acaba.

– Eu tenho quase 9 – murmurei.

– Isso explica tudo. – Ela riu ainda mais e parecia estar totalmente desperta.

Voltamos a ficar em silêncio.

– Quase me esqueci! – ela falou bem alto. – Seu pai e eu temos no vidades pra você – ela anunciou.

Pensei que tinha dito isso apenas para me animar, já que eu estava meio para baixo, mas seu olhar estava tão empolgado que não podia ser mentira.

– O que é? – Dei um grande sorriso.

Não posso contar, só quando nós estivermos juntos. – Ela balançou a cabeça.

Pensei em perguntar novamente, mas notei um olhar um tanto travesso e que dizia claramente “nem adianta insistir”

Eu teria que esperar. Estávamos perto de casa, mas sabia que os próximos minutos iam parecer muito mais longos do que eram, e minhas pernas começaram a tremer com a ansiedade.

Chegamos em casa por volta das 6 horas da tarde e tinha começado a chover um pouco.

– Adoro quando isso acontece. – Minha mãe inspirou profundamente.

– O quê?

– Quando chove dessa maneira, bem pouquinho. As plantas ficam felizes e deixam um cheiro gostoso no ar.

Eu inspirei bem fundo e pude sentir o cheiro de terra molhada vindo do jardim do prédio.

– Nunca tinha reparado nisso. – Sorri também e pela primeira vez no dia me senti tranquila.

– Você tem mais tempo para reparar nessas coisas do que pensa, mocinha. – Ela bateu o dedo na ponta do meu nariz.

Fiquei confusa com aquela fala e não disse nada. Resolvi correr em direção ao elevador para não pensar muito sobre ela. Quando a porta dele se abriu, dei de cara com Cláudia e Luíza, sua filha.

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– Cuidado! – Ela empurrou a menina para trás como se eu fosse atropelá-la, quando na verdade Luíza era bem maior que eu.

Cláudia estava no celular, provavelmente com o ex-marido. Eu nunca tinha visto o pai de Luíza, mas já tinha escutado a mãe dela gritando vá rias vezes com ele no telefone quando ia até o apartamento delas para ver televisão. Meus pais assinavam apenas um canal infantil, que raramente tinha algo a que eu queria assistir, e Luíza tinha todos que eu conhecia.

– Oi – Luíza sussurrou tão baixinho que quase não ouvi. Ainda assim, eu fiquei feliz por ela se esforçar para ser simpática, não parecia fácil ser filha da mãe dela.

– Você dá algum tipo de energético para a Amanda? – Cláudia per guntou e deu um sorriso forçado para minha mãe, segundos depois de desligar o celular.

– Ela é muito saudável, a energia vem daí – minha mãe respondeu, ignorando a provocação.

– Talvez pudesse dar algo para acalmá-la, não acha? Deve ser difícil para sua filha se concentrar, não seria bom se isso atrapalhasse os estudos dela. Minha mãe sorriu e olhou para mim como se dissesse “eu bem queria que algo te atrapalhasse nos estudos”. Eu revirei os olhos para provocá-la. – Eu falo sério. – Cláudia começou a revirar a própria bolsa. – Sei que você é médica, mas às vezes não queremos ver os problemas dos nossos próprios filhos. – Ela puxou um cartão da bolsa e o entregou à minha mãe. – Aqui, esse é o psiquiatra da Luíza, acho que vai ser bom para a Amanda ver um profissional.

Minha mãe abriu a boca para responder. Fiquei tão apreensiva com o que ela ia dizer que nem ouvi seu celular tocar, mas meu coração bateu aliviado quando ela atendeu.

Graças a Deus, pensei, já prevendo a confusão que poderia vir.

– Alô. Oi, amor, tudo bem?

Imediatamente, eu me lembrei da novidade secreta e arregalei os olhos.

Cláudia desistiu de falar com minha mãe, saiu do elevador e foi em direção à garagem puxando Luíza pelo braço.

– O que o papai queria, mãe? – perguntei enquanto as portas do elevador se fechavam.

– Nada, não tinha ninguém no telefone. – Ela guardou o celular. – Às vezes, a Cláudia consegue ser um tanto quanto irritante. – Ela bufou. –Você não precisa de um psiquiatra. – Ela parecia querer voltar à garagem e brigar com Cláudia.

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Eu comecei a rir.

– Fingir que alguém está te ligando não conta como mentira? – per guntei.

Minha mãe arregalou os olhos.

– Sim, sugiro que não faça isso.

– Mas você fez! – falei alto e olhei a porta do elevador que estava se abrindo. Saímos em direção ao apartamento.

– Você tem a chance de ser melhor do que eu. – Ela piscou e abriu a porta.

Antes que eu pudesse responder, meu cachorro pulou em mim e esqueci completamente o que estávamos conversando.

Mike e eu éramos melhores amigos. Ele era tão pequeno que poderia facilmente ser confundido com um hamster. Costumava lamentar por não podermos ter um cachorro grande, era o tipo de sonho que um apartamento não podia comportar, mas isso não diminuía meu amor pelo meu cãozinho. Meu pai havia chegado mais cedo e estava sorridente. Esperava que fosse por causa da novidade, mas não perguntei de imediato, segurei a ansiedade e sorri para ele, que deu um beijo em minha mãe e me abraçou tão forte que todo o ar saiu dos meus pulmões.

– Como foi o seu dia? – perguntei depois de recuperar o fôlego.

– Foi ótimo, fiz sete procedimentos particulares hoje – ele disse.

Estava difícil segurar a ansiedade de saber sobre a tal surpresa.

– Isso é muito? – Tentei parecer interessada.

– Menos do que poderia ser, mas não é um número ruim. – Ele também parecia mais feliz do que de costume.

– Hum... – Passei as mãos pela calça e percebi que elas estavam co meçando a suar. Talvez minha mãe esteja certa sobre a ansiedade.

Suspirei, sabia que eles iriam me contar o que estava acontecendo, só esperava que fosse mais rápido. Quando estava indo para o quarto, os dois me chamaram para jantar. Joguei a mochila no chão e voltei correndo para a cozinha o mais rápido que pude.

Enquanto mastigava, eu limpava o suor das mãos na calça e apertava bastante os lábios tentando conter um sorriso. Sabia que seria algo bom.

– Você não vai comer, Amanda? – minha mãe perguntou parecendo se preocupar mais com a falta de salada em meu prato do que com o fato de eu não estar comendo.

– Estou um pouco sem fome hoje – eu disse puxando duas folhas de alface para meu prato.

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Na verdade, a expectativa é que me tirava a fome. Se vocês me falassem qual é a novidade, eu conseguiria comer. Pensei em dizer isso em voz alta, mas me segurei, não queria parecer desesperada, tinha certeza de que era exatamente o que eles queriam com todo aquele suspense.

Não precisa comer muito, só não se esqueça da salada – minha mãe disse.

Eu sabia, pensei.

Ainda sem fome, comecei a brincar com o caldo de abóbora, jogando os pedaços de frango de um lado para o outro do prato.

– Filha?

Apesar do tom de voz preocupado, meu pai estava sorrindo. Notei que o sorriso dele não vinha em minha direção, estava voltado para minha mãe, que retribuía com um olhar alegre. Tive uma vontade quase insuportável de gritar: “Por que não falam logo?”.

– Sim? – Levantei a cabeça, um tanto quanto frustrada.

– Não gostou da comida?

Não é isso. – Dei uma garfada, esperando que ele parasse de se preocupar.

Talvez estivessem esperando o jantar acabar. Mal tive tempo de pro cessar esse pensamento e já comecei a jogar a comida para dentro da boca.

– Calma, também não precisa comer o garfo junto. – Minha mãe quase tomou os talheres de mim, mas desviei a tempo.

– Agormmmmf eoin estm com fome – tentei falar enquanto engolia os últimos pedaços de frango.

– O quê?

Minha mãe parecia horrorizada, e meu pai mal podia conter as gar galhadas. Não me importava com ele rindo, eu tinha alcançado meu objetivo e estava orgulhosa.

– Ela disse “agora estou com fome” – meu pai explicou enquanto recuperava o fôlego.

Eu mal podia me mexer, então apenas assenti com a cabeça.

Terminei de comer e me levantei bruscamente. Meus pais me enca raram, parecendo surpresos, e eu apenas devolvi o olhar na esperança de que entendessem a mensagem.

– Amanda, você está esquisita, aconteceu algo? – minha mãe pergun tou enquanto recolhia os pratos e levava para a pia.

Eu quase ri. Um calafrio de ansiedade percorreu meu corpo e, subi tamente, eu não ligava mais se iria parecer desesperada ou não.

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– Estou esperando você contar a novidade – eu disse, finalmente.

– Você já falou com ela? – Meu pai olhou para minha mãe parecendo traído. – Nós íamos falar juntos.

– Eu só falei que tinha uma boa notícia. – Ela voltou para a mesa. – Amanda, por que você não vai tomar banho enquanto eu e seu pai ter minamos de arrumar a cozinha?

– Hoje não é dia da Raquel arrumar? – meu pai perguntou e se levantou para chamá-la.

Raquel era minha prima, ela era bem mais velha e estava morando com a gente durante o ano de cursinho. Nós duas não nos dávamos muito bem, e eu torci o nariz ao ouvir seu nome. Saí da cozinha e fui em direção ao banheiro na esperança de evitá-la.

Tomei banho o mais rápido que pude e corri para a cama para esperar meus pais. Tentei me distrair lendo enquanto os escutava discutirem com Raquel sobre a importância de ajudar nas tarefas de casa.

– Você precisa fazer a sua parte. – Meu pai estava falando com a voz firme.

– A minha parte é estudar – ela respondeu bem alto.

– E nem isso você está fazendo direito, acha que não percebemos que você passa a noite inteira no computador?

Será que os vizinhos conseguem ouvir essa discussão também?, pensei enquanto tentava me concentrar na leitura. Meu quarto ficava bem longe da cozinha, não seria muito difícil aqueles gritos serem ouvidos em outros andares. Quase saltei da cama quando vi meus pais entrarem.

– Filha... – Escutei a voz da minha mãe, ela parecia se esforçar para retirar todo resquício de irritação de sua voz, e não parecia ser fácil. Ela parou de falar e suspirou.

– Oi! – Não consegui esperar ela se recompor. – Você quer me dizer algo? – Tentei sem sucesso parecer despretensiosa, mas ela notou e riu, pelo menos parecia mais calma.

– Quero, sim – ela disse em meio a uma risada fraca e abriu espaço para que meu pai sentasse na cama com ela. – Lembra quando você disse que queria ter mais companhia?

– Lembro... – murmurei.

– Nós notamos o quão tristinha você tem ficado ultimamente e con cordamos que, apesar da vida cheia, ainda temos espaço para mais algum compromisso. – Minhas mãos voltaram a suar, eu sabia exatamente do que ela estava falando. – Eu e seu pai sabemos que talvez essa notícia

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te deixe um pouco sobrecarregada, mas acreditamos que vai ser muito positiva também.

Os dois estavam sorridentes.

Apertei as mãos, atenta a cada pequeno movimento que os dois fa ziam. Fui tomada por uma ansiedade diferente, aquele tipo de ansiedade que vem quando já se sabe o que está acontecendo, mas só é possível se acalmar depois que a informação é totalmente confirmada.

– Isso quer dizer... – comecei a falar, olhando para baixo e dando pequenos tapinhas em minhas pernas.

Mal pude conter um sorriso, estava tão feliz e ansiosa pela notícia que me esqueci de respirar por alguns segundos.

Nós contratamos uma professora de música pra você! – ela revelou. Minhas expectativas foram cruelmente destruídas. Não me preocupei em manter um sorriso no rosto, mal consegui dizer alguma coisa.

– Era isso?

O sorriso dos dois vacilou, e os olhos deles ficaram um pouco nublados. Tanto suspense para isso?, pensei, mas não tive coragem de dizer em voz alta.

– Sim – meu pai começou a falar, e minha mãe parecia chocada por eu não ter ficado empolgada, mas não podia evitar. – Você estava espe rando algo diferente?

Não... – falei baixinho.

Olhei para o chão e, em seguida, para minha mãe, que me observava.

– A professora é muito bacana, você vai adorar ela – minha mãe falou.

– A mãe dela é minha paciente.

– Ah, legal, quando começam as aulas? – eu disse, mudando minha expressão e fingindo estar empolgada. Eles estavam tão felizes que fiquei com pena de decepcioná-los.

– Você vai ter aula de segunda a sexta, às 3 horas da tarde.

Eu não queria mais uma aula, mas dei meu melhor sorriso falso enquanto me convencia de que era uma boa ideia. Talvez realmente seja legal, eu sempre gostei de música.

– Sei que você já faz muita coisa, mas precisa aproveitar enquanto tem tempo e disposição – disse meu pai, pouco antes de sair do quarto, provavelmente percebendo que minha empolgação era forçada.

Não respondi, mas alarguei meu sorriso para que parecesse que con cordava com ele. Foi o suficiente para que se virasse e fosse para seu quarto.

Se serve de consolo, não me sinto com tempo nem com disposição, pensei antes de me virar para dormir.

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Deitada na cama, pela primeira vez me senti triste por ser tão só. Não ficava sozinha o tempo todo, mesmo assim me sentia solitária. Decidi, naquele momento, que tentaria ser mais compreensiva com as pessoas da minha idade e me esforçaria para fazer mais amigos.

Mas, por ora, eu tinha Mike. Puxei-o para a cama e dormimos abraçados. ***

Na manhã seguinte, acordei atrasada, e meu pai começou a brigar comigo, dizendo para eu me arrumar depressa. Por sorte, Mike havia descido da cama enquanto eu dormia, então não precisei tomar banho para tirar o cheiro de cachorro, e conseguimos sair dentro do horário.

Eu gostava da escola, era grande, cheia de jardins, e os professores eram legais comigo. Sempre me vi como a aluna favorita, e isso me enchia de orgulho. Mas aquele dia seria diferente, eu conversaria mais e chamaria alguns colegas para irem à minha casa, custasse o que custasse.

Por medidas de segurança, eu criei também uma lista de quem eu não convidaria de maneira nenhuma: a Vanessa cuspia em quem a incomodava, e, apesar de achá-la bastante proativa, tinha certeza de que seria necessário mais tempo para me relacionar com ela. Com a Nádia era diferente. Por alguma razão, eu não ia com a cara dela. Sempre que sentávamos lado a lado, eu me esforçava para não respirar o mesmo ar que ela e inspirava o mínimo possível por horas. O Gustavo estava na lista simplesmente porque tinha o terrível hábito de guardar insetos mortos na mochila.

Com a exclusão desses três, restavam-me dezoito possíveis amigos. Decidi começar pelos já conhecidos João Paulo e Pedro, que eram as crianças mais legais da sala. Eu não tinha muita afinidade com as meninas, elas sempre me pareceram mais irritantes e chatas, sempre quietas em um canto, nunca podiam brincar, se sujar, fazer barulho, nem ir no parquinho elas iam, como se pudessem quebrar a qualquer momento. Preferia mil vezes pular na lama e correr na chuva descalça a ser obrigada a conversar com alguma delas.

– Ei! – chamei. Os dois se viraram e sorriram para mim. O sorriso do Pedro foi bem rápido, porque ele tinha perdido um dente e estava com vergonha. – Querem ir lá em casa hoje? – perguntei.

Sei que o pedido pareceu meio súbito, mas havia motivo para que eu os achasse menos chatos do que os outros. A gente era quase amigo, nunca tínhamos ido a lugar nenhum juntos, mas brincávamos bastante no colégio.

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– Minha mãe não me deixa visitar ninguém, sempre peço pra ir na casa do Pedro e nada – João Paulo disse enquanto olhava para o quadro. – Além do mais, ele vai lá em casa hoje.

Já estava pensando em quem, então, eu chamaria, mas ele me inter rompeu.

– Por que você não vai também?

Não era bem o que eu esperava para meu dia, mas sabia que seria muito divertido e não me sentiria sozinha.

– Quero muito ir, preciso perguntar para os meus pais primeiro, mas acho que eles vão deixar – falei um pouco alto demais, e a professora olhou torto em nossa direção.

– Tudo bem por aí? Vocês estão copiando, Amanda e Pedro? – a professora perguntou.

Não, professora – comecei a falar, e toda a sala olhou para mim. –Estou passando muito mal, e o Pedro estava tentando me ajudar – menti. Precisava sair da sala para ligar para meus pais.

– Se é assim, deveria ter me dito. Quer que eu a acompanhe até a enfermaria? – ela perguntou.

Não precisa, posso ir sozinha – falei, já me levantando e saindo da sala.

O colégio ainda tinha um orelhão antigo, mas que funcionava muito bem, eu corri até ele assim que saí da sala. Respirando fundo, digitei os números e esperei chamar.

– Pai? – falei assim que ele atendeu, segurando forte o telefone.

– Está tudo bem? Você não devia estar na aula? – ele perguntou.

Eu devia ter pensado em alguma desculpa, não lembrei que não deveria estar ligando àquela hora.

– É recreio – falei, um pouco nervosa.

Realmente não pensei que ele iria notar o horário.

– O que foi então? – ele respondeu, claramente desconfiado.

– Posso ir na casa do João Paulo hoje? – falei, logo de uma vez, cru zando os dedos.

– Pergunte pra sua mãe, mas não está meio em cima da hora? – ele comentou.

Não queria ligar para minha mãe. Pais parecem ter essa técnica de passar a responsabilidade um para o outro quando não querem dizer sim.

– A vida acontece em cima da hora – falei.

Meu pai sempre gostou de frases de efeito.

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– Fale com ela e depois me ligue, tá bom? Um beijo! – Meu pai desligou rindo.

– Beijo! – disse de volta e desliguei.

Respirei fundo, aliviada, e torci para que minha mãe me deixasse ir.

– Alô? – eu disse enquanto ensaiava minha fala mentalmente.

– Filha? Está tudo bem? – ela disparou, soando nervosa.

– Sim – murmurei, impaciente.

– O que houve? Você não deveria estar na aula?

Desta vez eu já estava preparada, mas ainda assim minhas mãos começaram a suar.

– É recreio – falei.

Se tinha funcionado com meu pai, provavelmente funcionaria com ela.

– Ah, está tudo bem? – ela perguntou novamente.

Ainda parecia preocupada, mas aquele era seu estado normal, então não dei muita atenção.

– Está, sim, só queria saber se posso ir na casa do João Paulo hoje – disse.

– Filha, você tem aula de música, lembra?

Eu havia esquecido completamente. Em um impulso, quase pedi para faltar, mas sabia que minha mãe ficaria decepcionada, além disso a professora já devia ter organizado o dia dela em função da minha aula.

– Será que depois da aula você poderia me levar na casa dele? – per guntei, tentando esconder o desânimo.

– Tenho quase certeza que tenho o número da mãe dele, assim que tiver um tempo eu converso com ela, pode ser? – ela falou.

– O.k. Obrigada, mãe.

– De nada. Tchau, princesa.

– Tchau! – Desliguei. Em seguida, cruzei os dedos mais uma vez e torci para que tudo desse certo.

De volta à sala, disse para a professora que estava melhor. Ela, des confiada, olhou torto para mim, mas não fez nada além disso.

– Você vai? – João Paulo e Pedro perguntaram ao mesmo tempo, e eu respondi que sim, mesmo não tendo certeza.

– Tenho aula de música, então só vou no fim da tarde, pode ser?

– Pode, vai ser legal! O Pedro vai dormir lá. – João parou de falar por alguns segundos antes de retomar seu raciocínio. – Sabe a casa na árvore que te falei?

– Sei! – respondi, empolgada.

– Pois é, se você puder dormir lá, nós vamos pular dela quando faltar um segundo pra meia-noite, então chegue antes disso – João falou, dando

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ênfase para cada uma das vogais. Não fazia ideia do motivo de ele querer pular à meia-noite, mas pareceu sério, então não questionei.

– Beleza! – falei, já me animando.

– Ainda passando mal, Amanda? – a professora falou bem alto para que toda a sala pudesse escutar.

Em meu colégio, os professores eram quase todos assim, faziam questão de expor os alunos que agiam de forma inadequada. Nunca tinha me incomodado com aquilo, mas, sendo sincera, nunca tinha acontecido comigo antes. Fiquei um pouco chateada, gostava de ser a melhor aluna da sala. Não, professora, só estou pegando a anotação do que você já apagou.

– Tudo bem, tenho certeza de que algum colega pode te emprestar o caderno, já que não teremos dever de casa hoje.

– Sim, também tenho certeza – falei.

Havia uma tensão visível entre mim e a professora naquele momento. Eu não costumava responder daquela maneira, mas estava impaciente.

A aula acabou, e eu mal podia esperar pela noite que viria.

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