Flush - Uma biografia

Page 1

Um cão – um cocker spaniel, para ser mais preciso – e uma poeta se encontram. E depois de uns mal-entendidos acabam se entendendo. Mas tem uma tragédia no meio: um dia, o cão é... bem, não vamos estragar a história. E a poeta se apaixona. Por quem mais? Por um poeta. E depois? De novo: não vamos entregar o jogo. O fato é que acabam na Itália. Os três: Elizabeth, Robert (os poetas) e Flush, que este era o nome do nosso herói. Ali, os poetas poetavam e se amavam. Flush, este, flanava pelas ruas de Florença, que era onde moravam, sorvendo-lhe os doces aromas e correndo atrás das cadelas florentinas. E mais não contamos, que para isso servem os romancistas. Mas uma coisa é certa: Flush era um amor de cão. E Flush é um amor de livro. Você vai amar os dois.

Virginia Woolf Flush · Uma biografia

de escrever As ondas, talvez o mais experimental de seus livros. Estava exausta. Para espairecer, lia os dois volumes da correspondência de Elizabeth Barrett Browning, a importante poeta da era vitoriana, mais conhecida no Brasil pelo livro Sonetos da portuguesa (trad. Leonardo Fróes, Rocco). Foi instigada por essa leitura que Virginia resolveu escrever Flush: uma biografia. O relato de Virginia inicia na época em que Elizabeth conheceu o poeta Robert Browning, com quem, pouco tempo depois, ela se casaria às escondidas, “fugindo” com ele para a Itália. Foi um pouco antes disso que ela recebeu de presente, da também poeta Mary Russell Mitford, um filhote de cocker spaniel chamado Flush, que teria um importante papel em sua vida. Para surpresa da própria Virginia, o livro foi um sucesso de público. Em compensação, foi praticamente ignorado pela crítica. Ou, pior, quando mereceu alguma atenção, foi apenas para ser classificado como uma peça que representava o fim da carreira literária de uma grande escritora. O livro continuou relegado ao porão das curiosidades literárias pelas décadas seguintes até ser redimido, no final dos anos 1990, pelo florescente campo acadêmico dos “Estudos animais”. Mas não sem algum reparo: embora alguns lhe atribuam o mérito de certo pioneirismo ao assumir uma visão menos antropocêntrica do mundo, outros criticam-no por perpetuar a tendência antropomorfizante que caracterizaria a literatura em geral. De qualquer maneira, a renovada importância dada ao livro no contexto da chamada “virada animal” significou uma espécie de vingança da divertida paródia biográfica de Virginia. Diversão ou objeto digno de estudo, pouco importa: o livro é bom de ler. E, graças às ilustrações da jovem artista britânica Katyuli Lloyd, é também bom de ver.

M imo

Na primavera de 1935, Virginia Woolf terminara

Virginia Woolf Flush Uma biografia

Flush flanava pelas ruas de Florença para “fruirMaso enlevo do cheiro. Ele se guiava na cidade, cruzando as ruas principais e suas transversais, suas praças e vielas, pelo cheiro. Ele se guiava pelo nariz, indo de um cheiro a outro; o áspero, o suave, o negro, o dourado. Ele entrava e saía, subia e descia, indo até onde malham bronze, onde assam pão, onde as mulheres, sentadas, penteiam o cabelo, onde as gaiolas empilham-se nas passagens, onde o vinho se derrama em manchas rubro-negras no meio da rua, onde cheira a couro e a arreios e a alho, onde a roupa é torcida, onde as folhas de videira balançam, onde os homens se sentam e bebem e cospem e jogam dados – ele corria, entrando e saindo, sempre com o nariz no chão, sorvendo-lhe a essência; ou com o nariz no ar, vibrando com o aroma. Ele devorava cachos inteiros de uvas maduras, sobretudo por causa do cheiro púrpura; ele mastigava e cuspia qualquer resto duro de cabrito ou macarrão que a dona de casa italiana jogara do balcão – cabrito e macarrão eram cheiros roucos, carmins. O sentido do tato não era nele menos agudo. Ele conhecia Florença pela suavidade de seu mármore e pela aspereza de seus pedregulhos e paralelepípedos. As descoradas dobras das roupagens, os macios dedos e pés de pedra recebiam a lambida de sua língua, o frêmito de seu vibrante focinho.

Leia também, de Virginia Woolf, pela Autêntica: • Mrs Dalloway • O tempo passa • Ao Farol • O sol e o peixe • Orlando

ISBN: 978-85-513-0031-2

9 788551 300312

Tomaz Tadeu Ilustrações Katyuli Lloyd Posfácio Maria Esther Maciel Tradução e notas


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.