conte em detalhes o que eu já não sou mais
l embre-se do que um dia eu desejei e me
TRILOGIA DA NAO-IMAGEM
3 ANTES DE TUDO
Já não estava mais atrás da não-imagem, e então foi quando a encontrei. O termo mais correto seria (próximo de) “entendi”, mas entender também pressupõe muito. Melhor seria dizer que ela se “revelou” para mim, para usar termos mais fotográficos.
Ou então dizer que ela se despiu para mim, e por baixo das roupas eu consigo agora perceber como os ângulos que antes não faziam muito sentido, erguem com uma fluência natural o corpo misterioso. Mas é melhor que eu não use esses termos para a fotografia. Prefiro que ela se mantenha afastada da condição de ser humano. Deixe-me explicar um pouco melhor.
Vale dizer que mudei meus planos, mas que, sim, no início eu estava atrás da não-imagem, o que quer que ela fosse.
Eu estava disposto a concentrar o meu pensamento em um outro tema, depois que dias de reflexão não me levaram a lugar algum. Pensei no tempo como alternativa. Mas uma força maior me impediu. Uma série de eventos infortúnios soavam como sinais de que o filme 35mm que eu havia batido, pensando no futuro, não deveria ser revelado. O que eu vi primeiro como maldição, logo cresceu em mim como poesia, eu estava diante do que eu queria desde o princípio.
O conselho tão traiçoeiro do universo vinha em formas diversas: informações confusas, ônibus quebrados, chuvas torrenciais. Dentro da bobina meu filme frágil que viu o mundo por breves espiadas esperava. Existiam imagens ali dentro, ao mesmo tempo que tais imagens não eram visíveis a ninguém. Poderia se dizer que o que estava ali já eram imagens?
Afinal de contas, as imagens fotográficas são exatamente o que? Aquelas grudadas no rolo de filme, invertidas no negativo? São suas inversões? São suas ampliações e digitalizações? São suas versões retocadas? Não são nada disso, mas apenas a intenção da imagem?
Grande parte dos meus questionamentos poderiam receber uma simples resposta: Todas são imagem, só são imagens diferentes.
Exceto por aquele estado antes da revelação. Ali habita o paradoxo. Não se pode fazer a imagem, ela já está feita, mas também não se pode vê-la.
Está presa entre seu passado e seu futuro, presa em seu estado de nãoimagem: a negação de um termo mas que precisa de sua existência para existir (ou não existir).
Esse lugar entre passado e futuro, a impossibilidade de pausar o tempo como na memória, e a impossibilidade de imaginar as próximas gerações, como nas previsões, e nas linhas das màos e nas borras de café e nos horóscopos, e nas estatísticas e nos sonhos; esse período impossível é o que os seres humanos chamam de presente.
Verdade seja dita: quando fotografo sob a escuridão do analógico, tendo a perder o rumo por volta da décima pose. Se no início penso que tenho de adotar uma metodologia calculada, no meio relembro que o fascinante de se fotografar como se fotografafa antigamente, é o modo como a câmera distorce, corta, relê as ideias e pontos de vista que compartilhamos com ela.
Se nas primeiras poses fiz os registros escritos do que eu imaginava estar fotografando, logo abandonei o hábito. Só resta então a minha memória e o resultado por vir.
Não há mais a intenção, só a deturpação.
Pensei então que seria um exercício um tanto quanto interessante combinar minha memória com aquilo que viria à luz. Notar a discrepância entre ambos, enquanto ainda não pude revelar minhas fotografias.
A não-imagem é o estado de dúvida que a fotografia nos coloca. É a não correspôndencia entre olho, mente, máquina e luz. É o abismo entre o passado e o futuro - e é isso que eu gostaria de lhe mostrar.