Não o ato... [trilogia da não-imagem, vol. 2]

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Não o ato exato que desencadeou os eventos, mas o abismo entre os corpos e a realidade fixou na carne uma imagem

Não o ato exato que desencadeou os eventos, mas o abismo entre

T rilogia da ii
entre os corpos e a realidade fixou na carne uma imagem N ão - i magem ii

um livro de Guilherme etc.

P
rimeira C arta

Sr. Vitor Nado, não sei se devo lhe chamar mesmo de senhor. Não sei sua idade e pouco sei da sua vida, mas sei que nos parecemos. Como sei disso? Bom, não sei bem, mas depois de ler seu romance eu me senti tão feliz em saber que outra pessoa de carne e osso tem uma mente como a minha. Somos tão parecidos que posso até arriscar apontar o seu grande defeito: o senhor se acha um misantropo. Não digo que se orgulha disso, reconhece que é um defeito, mas é bem dizer inevitável. Estou certo? Só alguém misantropo é capaz de se apaixonar por algo tão abstrato quanto um borrão. E antes de mais, sei que o senhor, autor, não é Andrei, o seu personagem. Sei que existe o eu-lírico e tal, mas o senhor escreve com tanta realidade o sentimento, com certeza tem um pouco de Andrei. Porque lhe escrevo? Se já não estava clara a minha admiração até agora, deixe-me dizer que o senhor salvou minha vida. Por meses eu me vi em um estado de angústia, de espera e solidão. Com todos com quem eu compartilhava minha história, até aqueles poucos de quem sou próximo, sempre era desacreditado, sempre riam da minha dor. Mas ler seu livro Sr. Vitor, foi como encontrar um amigo. Com o senhor minha misantropia desaparece.

Desculpe se isso soa ridículo ou afobado. O senhor não me conhece e eu também nunca o encontrei pessoalmente, mas com certeza o senhor acredita no poder da conexão que as palavras permitem. A minha vontade é só a de começar uma conversa, quem sabe uma amizade. Vou lhe contar um caso, depois que você ler ou vamos estar mais próximos, ou o senhor vai ter vergonha de mim. Reconheço que tem o direito de ambos.

No início de janeiro, passei por uma experiência única. Acredito ter sido abduzido. Não me lembro de nada concreto, nenhuma imagem me vêm a mente, mas acredito na abdução pela condição em que acordei numa manhã: nu em meu quintal. Isso aconteceu mais outras duas vezes em fevereiro. E não era só isso. Eu acordava com uma tristeza, uma saudade sem explicação. Meu corpo formigava e era tão leve, como se eu não pesasse uma grama sequer. Nos dias seguintes às abduções, eu vivia os melhores dias da minha vida, num êxtase que imagino que certas drogas devem provocar, apesar de eu mesmo nunca ter usado nenhuma, e o que também descarta uma possível alucinação por entorpecentes. Eu tinha lembranças, mas era um tipo de memória que não usava imagens nem gestos, era uma memória invisível.

Nesses dias, parecia que algo estava prestes a acontecer, que algo estava escondido atrás de uma parede ou que em breve o mundo viraria do avesso. Eu esperava por algo que eu não sabia. Depois vinham os dias de enjoo. Eu não chegava a vomitar, mas a comida não parecia apetitosa e meu estômago ficava se revirando. E daí vinham os dias de saudade. Nas duas primeiras vezes, não duraram muito, logo acontecia as outras abduções. Mas depois da terceira, foi quase uma tortura. Passou um mês e eu já não achava graça nas coisas. Dois meses e eu não me importava em lavar minhas roupas ou sair de casa. Três meses e eu já não tinha dinheiro, depois de ficar dois meses sem trabalhar. Meu corpo só se mantinha pela expectativa do que poderia acontecer, porque só nele estava a memória. Eu não podia definhar, já que não tinha palavras para descrever o que eu sentia. Tentei até pintar e compôr músicas, não adiantava. A fotografia era mais inútil ainda, mas mesmo assim eu tentei. Busquei os sinais na natureza morta e na natureza da minha cidade quase abandonada. Sabe, nunca me incomodou a cidade ser quase abandonada até que ela foi abandonada por aquilo pelo que eu me apaixonei. E é assim o mais próximo que consigo descrever: paixão.

Não sei se o senhor está agora rindo como todos os outros que me ouviram, ou se está assustado. Meu grande desejo é que o senhor pudesse entender, ou pelo menos simpatizar. E quem eu quero enganar? Eu precisava desabafar.

Mesmo que o senhor não responda, já me sinto um pouco menos aflito. O senhor é o mais próximo dos meus abdutores, pelo menos enquanto continua com a distância entre nós. Dito isso, se o senhor quiser responder, será um prazer. Imagino que se nesse ponto o senhor me despreza, o máximo que vai fazer é rasgar essa carta e seguir com sua vida. Não lhe escreverei mais, minha intenção não é lhe importunar. Espero que o senhor passe bem, e que possa viver seu grande amor, se esse já tiver

Envio-lhe também algumas fotos, quem sabe nelas o senhor não sinta o que eu mesmo senti quando li seu romance, o indescrítivel escondido atrás das

Ahistória começa assim: volto de viagem e encontro minha caixa de correio lotada. Eu estava evitando o contato com o mundo real por algumas semanas. Joguei o bolo de papel na mesa e fui tomar um banho, comer, ler meu horóscopo, e só mais tarde fui passar pelos papéis outra vez. Espalhei os envelopes como uma cartomante abrindo suas cartas de tarô. Entre as contas e panfletos, um envelope com dois endereços de destinatário: o primeiro, que havia recebido um risco de caneta era da editora de minha amiga Anna Gramma; o segundo era o meu endereço. Anna tinha me redirecionado uma correspôndencia que chegara na editora, uma correspôndencia para (li ali no próprio destinatário) Vitor Nado. Ali dentro uma carta datilografada e algumas fotografias.

Querido

fico lisongeado com suas palavras e com o quanto aprecia o meu trabalho. Sua história só me trouxe curiosidade, como eu poderia rir de experiência tão enebriante?

Suas fotos são belíssimas. Há mesmo algo muito belo nesse abandono que você citou. Conte-me mais sobre sua vida, sua procura, e considere-se sim meu amigo.

E você estava certo, sou um pouco misantropo.

Agradeço pelo carinho e por favor não me chame de senhor, me chame de você.

Seu confidente, Vitor Nado

S egunda C arta

Caro Vitor,

você não sabe o quão feliz sua resposta me deixou, é a primeira que recebo há um bom tempo. Sabe, minha cidade foi se tornando insuportável a certo ponto para a juventude, tudo aqui não avança muito bem. Em parte, eu gosto. Eu gosto dos campos onde a gente grita e escuta nosso eco, tem vários deles bem perto da minha casa. Eu também gosto do silêncio da noite, um silêncio puro, uma ausência inteira de barulho, quase dá para se ouvir ainda o eco do grito de mais cedo. Sabe, dia desses eu coloquei a cama bem embaixo da janela, ainda com a esperança de ser levado. Dormir vendo as estrelas naquele céu preto e ouvir o nada, olha, me fez chorar tanto. Faz a gente pensar, porque é que alguém vem e faz coisas tão bonitas com a gente pra depois ir e não dar um aviso nem um adeus. Será que posso chamar de alguém? de algo? O que você acha, meu amigo?

Sabe, eu procurei tanto, fiquei tão atento, tentei capturar qualquer momento que me parecesse com um sinal. Você comentou das fotografias, bem, eu sou um fotógrafo. Ou era. Fotografafa alguns casamentos, há meses tenho fotografado só festas de aniversário, a maioria fora da minha cidade, aqui as pessoas não acreditam que há muito que se fotografar. Talvez agora eu esteja te entediando, mas o ponto é, usei uma câmera

antiga que pertencia ao meu já falecido pai. Achei que qualquer sutileza que eu pudesse capturar só aconteceria com um método como na fotografia analógica, com o trabalho da luz. O antigo deve saber falar melhor da memória, não é?

Uma vez, por exemplo, parou uma luz em minha mão, uma luz que parecia não vir de lugar nenhum em um cômodo fechado. Foi tão assustador, eu jurava que aconteceria outra abdução, mas que dessa vez eu estaria consciente. Mas eu não conseguiria tirar a foto com as mãos, a luz era tão suave que eu precisava segurar com as duas. Ao mesmo tempo, eu precisava apertar o botão. Tive que apoiar a câmera na clavícula e disparar com o queixo, e por causa disso, a câmera cortou metade do enquadramento que eu queria, justo onde a luz estava.

Mas é tudo tão complexo, porque não está no feixe de luz em si, eu entendi isso depois. Está no modo como a luz paira no vácuo, como ela se movimenta no vazio, como ela é quando está sozinha. Está nas minhas mãos, nos meus pés, no meu corpo inteiro, mas não é físico, só que não é tambem psicológico.

Eu fico pensando se tem alguma coisa em mim que não quer que aconteça, que não quer que existam provas, que isso seja algo só meu. Mas Deus, como eu quero, eu quero tanto... Que pelo menos me disesse onde eu posso encontrá-lo, eu seguiria o caminho por mais longo e difícil que fosse. Se for só uma teima minha, que pelo menos eu tenha

Cordialmente, seu fã e amigo,

Ahistória, na verdade, talvez comece assim: quando escrevi meu primeiro romance, entitulado de Não o Ato Exato que Desencadeou os Eventos, Mas o Abismo Entre os Corpos e a Realidade Fixou na Carne Uma Imagem, adotei o pseudônimo Vitor Nado, e mais tarde os poemas que atribuí à Vitor começaram a destoar do romance. Foi meio que um experimento, algo do qual não me orgulho muito de ter escrito e estou certo de que só foi publicado porque Anna Gramma é minha grande amiga. A carta do fã de Vitor (ou devo dizer meu fã?) me deixou perdido. Se eu pudesse, negaria a obra, mas confesso que fiquei com pena e ao mesmo tempo muito curioso. Por isso respondi às cartas. Respondi com interesse próprio, mas também esperando que eu pudesse fazer a diferença na vida de uma pessoa, assim como Vitor Nado havia feito. Mas mesmo que eu tenha assinado, Vitor Nado não sou eu.

Querido

perdõe a demora para te responder. Esta última foi uma carta e tanto. Na minha opinião, você deve continuar sua busca. Sendo sincero, eu não sei se você vai chegar em algum resultado, eu espero que sim, mas o que me parece mais bonito é a sua investigação. Se eu estivesse em seu lugar, eu não desistiria, mas eu sou suspeito para falar, admito que tenho muito do Andrei. Seu confidente e amigo, Vitor Nado

t er C eira C arta

Caro Vitor, estou exaustado. Agora sou eu quem peço desculpas pela demora em te escrever. Aconteceram algumas coisas que me deixaram animado, mas que depois fizeram minha desesperança voltar. Minhas fotografias vêm sofrendo alterações que não consigo compreender. Achei que pudesse ser problema com os químicos, mas aconteceu com mais de um rolo em diferentes revelações. Algum problema de conservação? Eu não sei, mas para mim parece muito com algum tipo de sinal. Além disso, finalmente consegui! Finalmente fotografei a luz misteriosa, dessa vez ela tinha parado bem em cima do seu livro, aberto na minha cama (já estou lendo pela quinta vez). Eu tinha levantado para conferir uma roupa no meu armário, e quando olhei, lá estava ela! Acredita? Tinha pousado como uma borboleta. Isso ainda antes das fotos manchadas. Isso com certeza era um sinal, não acha?

Eu tenho buscado alguns rituais, mas nada parece estar funcionando. A maioria deles envolvem bolhas de sabão e tigelas com água e aveia, não sei se você já ouviu falar. No começo eu achava que estava sendo idiota, e depois pensei que podia ser isso que estava fazendo não funcionar, mas mesmo quando eu comecei a acreditar, acho que no fim das contas não foi eficaz. Achei que algo estava chegando, mas não chegou, ou será que devo esperar mais? E até quando?

Desculpe se estou te incomodando com minha aflição, essa é minha única conversa regular.

E porque ainda te envio minhas imagens? Talvez para dar a elas algum fim, sabe? Essas fotografias não dizem nada que ninguém queira ouvir. Não servem para ufólogos, curiosos, apreciadores de arte, ninguém. É tudo muito sem nexo, sustentado só com minha história, que por si só não tem muito nexo. Só você e eu teremos visto, o que já me parece o suficiente. É mais do que eu posso dizer sobre minhas experiências. Sabe Vitor, talvez seja hora de queimar as imagens e olhar para o futuro. Me

Mas sem dúvidas a história termina assim: o fã de Vitor parou de me escrever depois da terceira carta. Junto do envelope veio a sua cópia do meu romance, com seus grifos e as fotos de costume. Enquanto escrevia a resposta, me questionava se deveria manter a fé daquele homem viva ou se deveria apoiar sua ideia de seguir em frente. Eu estava dividido entre Vitor e eu. Vitor sem dúvidas encorajaria que ele continuasse, mas Vitor vive num mundo imaginário. Vitor é um ser imaginário! Decidi me ater ao personagem no fim das contas. De qualquer maneira, havia uma beleza em tudo o que aquele fotógrafo fazia, e no fundo eu também queria que ele chegasse próximo daqueles alienígenas, que desvendasse o mistério, que soubesse pôr em palavras o que eram aquelas memórias de não-imagem.

Querido

não quero eu ser um incomodo e dizer o que você deve fazer, mas minhas sugestões permanecem as mesmas, não pare sua busca. Algumas vezes nós temos que esperar uma vida inteira.

Seu confidente e amigo, Vitor Nado

Oque quer que tenha acontecido, eu nunca fiquei sabendo, ou pelo menos não sei até hoje. Já faz dois anos que não recebo resposta, e duvído que ela virá. Terá o fotógrafo sido abduzido e agora vive ao lado do seu grande amor? Terá desistido, queimado suas fotografias, se livrado do meu livro e de nossa conexão e seguido em frente? Esses são os melhores cenários que pude pensar, os piores deixo para minha cabeça. Juntei as fotos e cartas nesse volume para dar o fim que meu amigo epistolar cita na terceira carta - um fim possível. Tais fotos e sua história agora habitam em um lugar, se ainda não com nexo, pelo menos com alguma estrutura.

Agradecimentos a Eduardo, a ele, à Fernanda, a Juca, à Patrícia e etc.

Talvez a história não termine assim. Esta é a segunda parte da trilogia da não-imagem, da autoria de Guilherme etc., publicada pela Galeria Fantasma, em Belo Horizonte, 2022.

© Galeira Fantasma

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