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Memórias de um ex-travesti

Fé, religião e amor em Jesus: de acordo com Helder, foram esses pontos que o tornaram um homem cisgênero e heterosexual e o tiraram do mundo da homossexualidade

DUDA CUBAS

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Helder Carlos Soares de Oliveira, 27, de Porto Velho (RO), passou quase dez anos de sua vida como Tarsilla Soares Fernandes Albuquerque, uma época que, segundo ele, ficou para trás.

Hoje, porém, Helder diz ter virado a página de sua homossexualidade e transexualidade, se transformou num heterossexual e, diz ele, ter voltado a ser um homem cisgênero, casado há cinco anos e pai de uma criança. Atualmente, ele e sua mulher possuem um canal no Youtube, onde falam sobre a história de Helder, seus anos como travesti e prostituta e, pregam a ideia de “cura gay”, segundo a qual a pessoa pode “renunciar” ao comportamento homossexual através de Deus. No canal também trazem depoimentos de outras pessoas que dizem ter se “libertado” do mundo homossexual e pedem doações via Pix para ajudar no ministério deles.

A história de Helder é, no mínimo, atípica. Cheia de reviravoltas, acontecimentos marcantes e hoje o que ele considera ser um final feliz para uma vida que não teve um começo tão feliz assim. Ele passou oito anos como travesti. Teve sua primeira relação sexual com um homem aos dez anos de idade e, naquela época, diz ele, já tinha sentimentos e atração por pessoas do mesmo sexo. Por muito tempo, a única pessoa da família dele que soube sobre o ocorrido foi sua mãe, que guardou o segredo com ela por quatro anos.

“Eu tinha acabado de ter a minha primeira relação sexual e estava conturbado, queria morrer, sumir, pois naquela época eu já sabia que não era normal e ninguém quer ter um familiar gay.”

Passados quatro anos desde sua primeira relação sexual, Helder começou sua transição para se tornar uma mulher e, segundo ele, quem o incentivou a tomar hormônios foi uma pessoa travesti com quem morou por um tempo. Quando questionado se acreditava que algo ou alguém poderia ter influenciado no seu comportamento e desejos, Helder explicou que existem três causas principais que fazem uma pessoa seguir por esses caminhos. O primeiro é o abuso sexual e estupro. Muitas pessoas passam por isso ainda na infância e isso pode despertar esse tipo de desejo sexual nela. O segundo são as decepções que uma pessoa tem na vida. Por exemplo, se uma mulher sofreu com um companheiro, foi agredida, machucada, ela passa a ter nojo de homens e não quer mais manter nenhum tipo de relação sexual ou amorosa com eles e escolhe se relacionar com outras mulheres. O mesmo pode acontecer com homens: se ele é traído ou sofre alguma decepção com uma companheira, isso pode acarretar em traumas, e ele passa a se relacionar com homens com medo de sofrer nas mãos de uma mulher novamente. O terceiro e último seria uma suposta maldição hereditária, que Helder diz ser nessa categoria em que se encaixa.

Tarsilla Soares Fernandes Albuquerque foi o nome que Helder escolheu quando se identificava como transexual

Segundo ele, em algumas religiões as crianças são oferecidas a entidades ainda no ventre da mãe e foi isso que ocorreu com ele. Helder diz que seu pai o apadrinhou a quatro entidades da umbanda.

O pai de Helder morreu quando ele tinha cinco anos e, de acordo com ele, foi aí que sua vida começou a ficar conturbada. “Minha mãe tinha que trabalhar para me dar de comer, então eu ficava jogado na rua, andando e tive várias experiências com esse mundo.”

PROSTITUIÇÃO E A VIDA COMO TRAVESTI

Depois de já ter dado início ao processo de transição com 14 anos, Helder começou a se prostituir para ganhar dinheiro. Ele diz que sua vida mudou completamente com isso.

Na escola, as pessoas não queriam ficar perto dele, principalmente seus antigos amigos homens, pois ninguém queria proximidade com alguém parecido com ele. Por causa da discriminação, Helder escolhe sair da escola. Entre seus 14 e 15 anos, decidiu sair de casa em direção a outros estados, como São Paulo, Goiânia e Brasília, acreditando que sua vida iria melhorar e que não sofreria mais preconceito e discriminação.

Então ele se assume como uma mulher transexual para sua família. “Cheguei com um vestido branco para revelar que eu estava prestes a ir embora. Eu tinha acabado de sair da rua, de me prostituir, e passei na casa da minha avó para conversar com minha mãe e pedir autorização para ir para Brasília e, como era menor de idade, precisava dessa autorização.”

Com essa permissão Helder sai de Porto Velho em direção a Brasília e começa um novo capítulo na sua vida, como Tarsilla Soares Fernandes Albuquerque.

Fora da sua cidade natal, Helder relata que conseguiu viver como mulher mesmo e, diz ele, que não sofria preconceitos por isso.

Nas novas cidades ele continuou fazendo programa para ganhar dinheiro por um tempo, mas a situação mudou quando ele começou a assaltar as pessoas nas ruas de prostituição e, vendo que o negócio era mais lucrativo que o programa em si, parou de se prostituir e passou a viver desses assaltos.

“Eu tinha luxo, eu tinha dinheiro, eu morava nos melhores prédios desses lugares pelos quais eu passei. Então a minha vida como travesti, depois que eu saí de Porto Velho, só teve do bom e do melhor. A vida era maravilhosa, tinha tudo que eu queria. Eu não sofria preconceito, frequentava todo e qualquer lugar e era tratado como mulher.” N o dia 12 de outubro de 2013, com 19 anos, Helder foi preso por sequestro seguido de roubo, porte ilegal de arma, formação de quadrilha, corrupção de menores e extorsão. Foi indiciado na delegacia e ficou lá por uns três dias. De lá, foi para a penitenciária, que tinha 500 detentos.

“Fiquei em isolamento, que é um compartimento de três celas, com uma cama de pedra de solteiro em cada cela e um banheiro que se chama “boi”. Era ocupado por mais ou menos 40 pessoas.”

Helder ficou um ano e oito meses nesse isolamento, até a corregedoria, em uma vistoria, achar um celular e o colocou em uma espécie de castigo para cumprir, em um bloco diferente do que estava. “Nesse bloco eles não gostavam de homossexuais, tinha muito preconceito e ali eu fiquei numa cela isolado, sozinho, num período de dois meses”, diz Helder.

Nesse bloco, segundo Helder, ele sofreu agressões, onde os outros presos o agrediram, com chutes no joelho, tornozelo e cotovelo. Helder conta que o objetivo deles era matá-lo. “Eles queriam me matar para chamar a atenção do diretor para exigir algo e eu fui a vítima escolhida.”

Foi então que, segundo ele, fez uma “proposta” a Deus: se ele o ajudasse e o tirasse dali, passaria a seguir e viver a vida devotado à religião.

Helder diz ter achado na Bíblia a ‘salvação’

Hoje, Helder vive dos seus serviços para a igreja e sonha em ter um ministério, no futuro, para contar sua história

No dia seguinte a esse acontecimento, afirma, um advogado foi até a prisão e analisou os processos de Helder. Viu que seu tempo no castigo já tinha passado, mas que ele ainda estava ali, o que não era certo.

De acordo com Helder, esse advogado tinha ido visitar um outro preso, mas viu as suas documentações e o procurou para tentar ajudá-lo. Porém Helder já tinha gastado todo seu dinheiro com drogas e não tinha como bancar o advogado particular. O advogado ofereceu então uma contraproposta. Dentro da prisão tinha um projeto, com 80 vagas, no qual os presos trabalhavam e recebiam uma remuneração por esse serviço. O acordo foi que o advogado conseguiria um lugar para Helder nesse projeto e que o dinheiro que ele recebesse seria usado para pagá-lo.

O projeto ficava em um bloco diferente, onde, de acordo com Helder, os presos tinham sua própria cama, não circulavam drogas, armas, não tinha agressão e nem violência. “Nesse projeto eu tive a possibilidade de ser a travesti que eu era. Até então eu escondia meus cabelos com uma touca de crochê que eu tinha feito. O coordenador falou que eu poderia ser quem eu era, que as pessoas iriam me respeitar pela minha opção sexual.”

TRANSFORMAÇÃO RELIGIOSA

Nesse projeto, Helder começou a frequentar cultos que aconteciam na prisão e ganhou uma bíblia de um pastor. Às 3h, acorda com o que acredita ter sido um chamado de Deus. Resolveu então abrir aleatoriamente a bíblia e se deparou com um trecho que dizia que nem os efeminados nem os sodomitas herdarão o reino de Deus. Aquilo, acredita ele, foi uma confirmação sobre o que precisava fazer e agir.

No outro dia ele chamou um pastor, disse que queria cortar o cabelo e “aceitar Jesus” e ser batizado. “A partir daí minha vida mudou e não foi mais a mesma, mudou para melhor. Renunciei à minha carne e passei a carregar a minha cruz.”

Com o dinheiro que Helder ganhava, pagou dois advogados e conseguiu progredir para o regime aberto, saiu da cadeia e, depois de três meses, sua mãe morre, quando ele decide voltar para Porto Velho, lugar onde, de acordo com ele, se encontrou verdadeiramente com Deus.

VIDA DENTRO DA IGREJA E NA RELIGIÃO

De volta a Porto Velho, Helder diz que sua família não o recebeu bem e que não queriam que ele ficasse na casa deles. Helder afirma que orou a Deus e pediu ajuda para acabar com essa situação, que, segundo ele, chegou em pouco tempo.

Missionários de Guajará-Mirim, município de Rondônia, foram até Porto Velho e se encontraram com Helder, que acreditou ter sido uma resposta pelas suas orações. Ele decide então ir para a cidade dessas pessoas e começar uma vida diferente lá.

Em poucos meses, assume um ministério na igreja e começa a pregar e ministrar o evangelho. Morou por algum tempo no fundo da igreja, ajudando na limpeza do local todos os dias.

Depois de quase um ano na cidade, Helder conheceu sua atual esposa, Lucineide Santos, 37. Ele diz que se sentiu atraído por ela no momento que a conheceu.

Hoje, Helder prega sua história como um depoimento de superação e acredita que outras pessoas podem seguir o mesmo caminho que o dele, deixando seus desejos não heterossexuais. Ele conta que conhece pessoas que viviam no mundo da homossexualidade e que a partir do testemunho dele decidiram mudar de vida.

Helder narra uma história na qual ele estava pregando em uma igreja, contando sua “história de superação” e, ao final de sua fala, uma mulher se levanta agitada e chorando e relata que sentiu um pouco mais de fé e esperança pelo filho dela, que é travesti, com silicones e próteses.

Helder ainda possui no corpo os silicones que colocou ainda adolescente e, de acordo com ele, anseia para retirá-los, mas que não possui a quantia necessária. Ele diz já ter tentado fazer o procedimento pelo SUS, mas que julgou todo o processo muito burocrático e que prefere tentar pela medicina particular, porém não tem os recursos. Ele usa o canal dele no YouTube para pedir colaborações financeiras para a cirurgia.

Helder hoje é casado, é pai de uma criança e diz ter deixado a homossexualidade e transexualidade no passado

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