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Histórias da escuridão

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Moda sustentável

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Três portadores de deficiência visual narram as dificuldades pelas quais passaram e os desafios que precisam vencer para viver num mundo melhor

DUDA CUBAS

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Ensaio sobre a cegueira”, obra ficcional do escritor português José Saramago conta a história de uma sociedade que foi consumida por uma epidemia, não muito diferente do que a humanidade vive hoje. O autor descreve como uma cegueira branca atinge a população e suas consequências. Na narrativa, as pessoas precisam aprender a lidar umas com as outras e com os desafios que a nova condição lhes causa.

Ficção à parte, a realidade não é muito diferente. Quem é deficiente visual precisa aprender a lidar com várias situações que surgem no caminho, de uma forma diferente de outras pessoas. A falta de infraestrutura nos ambientes gerais da sociedade pode ser uma pedra no caminho, mas nada que os deficientes visuais não saibam contornar e resolver.

De acordo com o último Censo do IBGE, existem cerca de 6,5 milhões

de pessoas com deficiência visual no “ Brasil. Lucas, Marinete e Vitor fazem parte desse grupo. Lucas da Silva Aureliano, 28, formado em direito há dois anos é cego desde que nasceu. Ele diz que consegue enxergar pontos de luz, algumas cores, vultos, mas nada com precisão total. Ele é de uma cidade do interior de Mato Grosso e, pela falta de recursos para fazer tratamentos e exames na cidade, precisou se mudar para Ribeirão Preto.

Movido pela sua maior paixão, a música, Vitor utiliza as redes sociais para mostrar seu talento como DJ

Segundo ele, a mudança só foi possível pela ajuda de um homem que hoje é seu padrinho de batismo. Quando tinha dois anos de idade, a mãe de Lucas conheceu esse homem através da irmã. Ele ajudou financeiramente na mudança de cidade e no tratamento privado que Lucas fez durante, em média, quatro anos, antes de conseguir vaga em um hospital público.

A vaga era em um hospital público em São Paulo, e ele ia para a cidade quando precisava fazer algum exame ou tratamento. Depois disso conseguiu uma vaga no Hospital das Clínicas em Ribeirão Preto, onde faz tratamento até hoje.

Lucas conta que passou por, em média, dez cirurgias, incluindo a de transplante de córnea, que foi uma tentativa de ajudá-lo a enxergar com mais precisão. Além disso, fez também uma cirurgia na qual um tubo foi implantado no seu olho para controlar a pressão.

Vitor Luiz Brito do Nascimento, 22, é de Ribeirão Preto e sua história é um pouco diferente da de Lucas. Segundo ele, a causa da sua deficiência foi a gestação sua mãe. Ele diz que nasceu prematuro de cinco meses. “Minha mãe fala que eu cabia na palma da mão do meu pai.”

Pelo nascimento prematuro, Vitor passou grande parte dos seus dois primeiros anos de vida em uma incubadora, o que, de acordo com ele, pode ter afetado sua visão também. Ele conta ainda que teve várias complicações de saúde logo nas primeiras horas de vida, como pulmonar e renal, e que os médicos deram pouco tempo de vida para ele.

Vitor não nasceu cego, mas foi perdendo a visão de forma gradativa ainda quando criança e hoje tem cegueira total. Ele e sua família tentaram recorrer a vários métodos para impedir que ele ficasse cego, como uso de óculos e terapia a lazer, mas nada foi eficaz.

Marineti Souza de Freitas, 49, assim como o Lucas, também nasceu cega e é do interior do Rio Grande do Sul, mas é aqui que suas semelhanças acabam. Marinete hoje mora em São Jerônimo.

Hoje é concursada e trabalha como telefonista na Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência, em Porto Alegre. Além disso, Marineti tem duas filhas, Cristiane, de 20 anos, e Daiane.

EDUCAÇÃO

Oprimeiro contato de Marineti com a escola foi aos 8 anos de idade, antes disso ela nunca tinha estudado antes. Aos oito anos entrou em um internato católico específico para crianças e jovens com deficiência visual e ficou lá até os 15.

Ela conta que nesse internato ela aprendeu a fazer diversas atividades que são importantes para viver, como conversar e socializar com outras pessoas, se arrumar, fazer a higiene pessoal de forma correta, cozinhar, limpar, fazer artesanato e outras atividades, além das aulas acadêmicas que o local também oferecia.

“Como qualquer outra coisa, o internato tinhas suas coisas boas e ruins. Algumas colegas mais “espertas” e

Lucas é formado em direito há dois anos

com uma situação financeira mais favorável faziam bullying com as outras. Além disso, as irmãs no internato também tinham suas favoritas e aquelas que não eram sofriam. ”

Ela saiu do internato e ficou sem estudar por um tempo, mas retornou quando era mais velha. Fez um supletivo de um ano e conclui os estudos do ensino médio. Lucas estudou até a primeira série em uma escola comum e fazia uso do material ampliado, no qual as letras das apostilas eram maiores. Porém, a escola percebeu que aquilo era insuficiente e que podia prejudicar os estudos dele e fez o encaminhamento para a Adevirp (Associação de Deficientes Visuais de Ribeirão Preto). Lá, Lucas aprendeu o braile e retornou à escola, mas agora com o apoio da instituição.

Vitor também frequentou a escola comum por um período antes de ser encaminhado para a Adevirp e também aprender o braile. Na escola, Vitor conta que sofria muito bullying, era isolado pelos colegas de sala e que isso foi uma experiência um pouco traumática para ele. Conta que já tentou se matar duas vezes por causa da deficiência, pois não se aceitava, e as pessoas não o tratavam com respeito e dignidade.

Na questão de aprendizado, ele conta que a professora colocava uma pessoa para acompanhá-lo e ler as coisas que estavam na lousa e livro, mas que não era o bastante e que isso o estava deixando ele “para trás” em relação ao restante da classe. Pensando em resolver a situação, a diretora da escola falou sobre a Adevirp, onde ele frequentou por seis meses e aprendeu o braile. Depois de passar pela instituição, voltou para a escola onde concluiu o ensino.

Entre os 15 e 17 anos, Vitor trabalhou como assistente administrativo em duas empresas diferentes pelo programa de Jovem Aprendiz. Depois disso, procurou outras vagas de emprego, mas não obteve sucesso. Pela necessidade financeira, deu entrada no seu Benefício de Prestação Continuada, BPC, oferecido pelo governo para pessoas com deficiência, que recebe até hoje.

Porém, ele conta que sempre foi apaixonado por música e que buscou formas de ingressar nesse mundo. Em 2019 fez um curso de DJ pelo Senac, profissão que sonha seguir, com sucesso e prestígio. Hoje possui seu equipamento para tocar músicas e faz lives no seu Instagram e Facebook, que usa como plataforma para ganhar reconhecimento. Como ainda não consegue viver exclusivamente da música, começou a vender doces recheados na rua para ter uma renda extra.

“Minha mãe que faz os doces, mas o investimento inicial foi meu. Para fazer as vendas levo ou meu irmão mais novo ou sobrinho para me ajudar. ”

Marineti também vendeu doce por algum tempo antes de conseguir empregos fixos e com carteira assinada. Ela diz que já foi “passada para trás” muitas vezes por pessoas com más intenções.

“As pessoas davam uma nota de dois reais dizendo que era de cinquenta e ainda pediam troco. Como não conseguia diferenciar a nota pela textura e não tinha ninguém me ajudando, saí várias vezes no prejuízo.”

Já trabalhou como telefonista na Secretária da Educação, onde, conta ela, sofria discriminações por parte dos colegas de trabalho. Depois conseguiu seu emprego atual, através de um concurso, onde também atua como telefonista.

Lucas, por outro lado, é formado em direito há dois anos, mas hoje trabalha concursado na prefeitura de Serrana, no setor das ambulâncias, no atendimento.

Ele diz que pretende mudar de área e já está se preparando para futuros concursos na área do direito, buscando uma melhoria salarial e, consequentemente, uma independência financeira maior e para exercer a profissão que ele escolheu e ama.

Marineti superou obstáculos e hoje trabalha na Faders, em Porto Alegre

Não somos menos capazes por conta da deficiência. Isso é uma característica nossa, não um definidor de capacidades.”

DESAFIOS

Os três entrevistados dizem que o ambiente social e a infraestrutura oferecida no ambiente de trabalho, espaço público e de oportunidades precisa melhorar, e muito. Marineti, por ser mais velha, acompanhou diversas mudanças e conquistas que as pessoas com deficiência conseguiram. Uma delas, que ela julga ser importante, é a reserva de vagas para pessoa com deficiência que hoje as empresas precisam ter.

“Antes disso as pessoas com deficiência só conseguiam emprego por indicação ou por concurso, que eram poucos e limitados, mas hoje a situação é um pouco melhor. Conseguimos entrar no mercado de trabalho de ter a oportunidade de mostrar nossas habilidades, conhecimento e técnicas, e de se qualificar profissionalmente.”

Vitor tocou no ponto da falta de preparo de empresas para receber um deficiente visual. “Os computadores precisam ter leitor de tela para a gente conseguir trabalhar, mas é um software caro que as empresas não pensam em investir e por isso ficamos muitas vezes sem achar trabalho. ”

Lucas diz que o ponto principal é que as pessoas vejam o deficiente visual da mesma maneira que olham para quem não tem deficiência.

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