Suplemento ao relatório de atividades e gestão da Fundação Marques da Silva
Foi em 2014 que surgiu a ideia de assinalarmos a data de nascimento de arquitetos intimamente ligados à Fundação Marques da Silva. Começaram por ser três: José Marques da Silva, Maria José Marques da Silva, em ano de centenário, e Fernando Távora. Em 2024, contam-se já quarenta e um! Ano após ano, em dia de aniversário e de forma democrática, foi sendo contada uma história, destacado um facto importante, apresentado um projeto, sugeridos temas para futuras investigações, mostrada a relevância presente da vida e o alcance da obra destes arquitetos que, através dos seus acervos, gradualmente passaram a habitar um território comum: o Centro de Documentação da Fundação Marques da Silva. A linha do tempo destas publicações acompanha o sentido de expansão desta comunidade e deixa entender as circunstâncias que os formata ou sobre eles sustenta e amplifica um certo olhar. Nelas se revela, sobretudo, o trabalho que sobre a sua documentação, biblioteca e outros bens doados e/ou comodatados se desenvolve, a sua diversidade e importância, individual e transversal. E por isso a sua leitura dá muitas vezes conta da sua “contaminação”, das ressonâncias que gera essa condição de aqui se tornarem “vasos comunicantes” de um mesmo corpo – vivo. Dez anos passados, o ritual dos aniversários tornou-se tradição. Em 2025, serão mais!
PAULA ABRUNHOSA
ANIVERSÁRIOS 2024 ARQUITETOS
ACERVOS FUNDAÇÃO
MARQUES DA SILVA
JANEIRO
HOTEL NO FUNCHAL
Há projetos assim, que sobrevivem em ideia, nas linhas que traçaram uma perspetiva do que poderia vir a ser uma possível forma construída. Assim foi com este desenho de José Adriano Anselmo Vaz, de meados da década de 70, feito a pedido do proprietário de um terreno no Funchal e a pensar na implantação de um hotel que acabaria por não se tornar realidade. A década de 70 marca, contudo, para este arquiteto, o início de um percurso profissional que viria a estar marcado, em paralelo com a atividade liberal, pela colaboração, primeiro com a Câmara de Sintra, e depois com a Câmara de Lisboa, onde virá a assumir a coordenação do planeamento urbanístico da zona oriental e do plano de urbanização da área envolvente da Expo 98.
MANUEL MARQUES DE AGUIAR | 08.01
A “CASA REDONDA” DE MANUEL MARQUES DE AGUIAR OU A PROCURA DE UM SENTIDO DE PERTENÇA
A Quinta das Carvalhas, comprada por Manuel da Silva Reis em 1953, oferece um cenário idílico e imponente. Situada no concelho de São João da Pesqueira, em plena região demarcada do vinho do Porto, num monte que se estende pela margem esquerda do rio Douro e de onde é igualmente possível avistar a confluência deste com o rio Torto, tem origens que remontam a 1759. E é para esta paisagem dominada pelas vinhas e pelo xisto, para este “excesso de natureza de uma beleza absoluta”, como diria Miguel Torga, que o arquiteto Manuel Marques de Aguiar, já na década de 60, foi convidado por Manuel da Silva Reis a pensar uma habitação. Projetar para um lugar assim pressupunha como ideia primeira procurar a medida justa entre construído e paisagem natural, procurar um sentido de presença sem perda de um sentido de pertença. E pensou uma casa redonda que permitisse uma ligação una ao seu entorno. Responderia às necessidades de um espaço doméstico, integraria um espaço de adega e de prova de vinhos, e nem faltaria um implúvio. A casa seria assente e levantada a partir da matéria dominante, o xisto. Manuel Marques de Aguiar ainda assistiu ao assentamento das fundações, contudo, as bases do acordo estabelecido com o cliente viriam a ser quebradas. Optou então por afastar-se da obra, assumindo a responsabilidade moral e ética de manter incólume a verdade que defendera. Nesse mesmo lugar ergue-se hoje uma outra casa redonda. A de Manuel Marques de Aguiar resiste nos poucos desenhos que hoje se guardam no Arquivo da Fundação Marques da Silva e é substância do projeto.
DOMINGOS PINTO DE FARIA | 12.01
A QUESTÃO DO HABITAR COLETIVO
Num olhar transversal ao percurso do arquiteto Domingos Pinto de Faria, seja enquanto colaborador do Gabinete de Urbanização da Câmara Municipal do Porto, da Direcção de Habitação do Norte ou mesmo enquanto profissional liberal, percebe-se como o tema da habitação, em particular o da habitação coletiva, se assume como um domínio constante e predominante, ainda que não exclusivo, do exercício da arquitetura. A participação no grupo de trabalho de Auzelle e na equipa que visava extinguir as “ilhas”, durante a década de 60, com o projeto das moradias populares do Bom Pastor, do Lagarteiro, de Lordelo e de Contumil, por exemplo, serão experiências modeladoras de um sentido futuro. Houve uma inevitável reflexão sobre as variantes tipológicas da habitação plurifamiliar, sobre a racionalização dos espaços da vida doméstica num momento em que a transformação de modos de vida seguia a par com a requalificação da periferia da cidade, com a construção de uma nova malha urbana. Não é assim surpreendente a sua passagem para a secção Norte do Fundo de Fomento da Habitação, durante a qual e até à década de 80, projeta 18 conjuntos habitacionais para Vila Nova de Cerveira, Viana do Castelo, Ponte da Barca, Paredes de Coura, Monção, Amarante, Guimarães, Penafiel, Gondomar, Valongo, S. Pedro da Cova ou Santo Tirso. Os projetos respondiam a carências habitacionais, a novos requisitos de bem-estar e conforto, à vontade de crescimento e expansão de novas zonas de urbanidade. Já como arquiteto liberal continuará a projetar edifícios e conjuntos habitacionais para grandes investidores, caso de Joaquim da Silva Pereira, com terrenos no Porto e Paredes, ou dos Granitos do Castro, com projeto a construir em Braga, datado de 1982 e ao qual pertence o perfil do conjunto aqui publicado.
CARLOS CARVALHO DIAS | 14.01
AS FUNÇÕES DE ARQUITETO-URBANISTA CONSULTOR NO MUNICÍPIO DE MONÇÃO
O percurso profissional de Carlos Carvalho Dias desenvolve-se a partir de três interesses maiores: a arquitetura, o urbanismo e a defesa do património. Interesses que se mantém ao longo de toda uma vida e que se foram desdobrando em múltiplas direções, da prática projetual à definição e orientação de estratégias de planeamento urbano ou de defesa do património junto de vários municípios, da prática do ensino e da escrita a uma intensa e profícua atividade associativa.
Ainda que a sua ação se estenda por um largo território, Espanha e Macau incluídos, enquanto arquiteto e urbanista, Carlos Carvalho Dias elegeu como campo privilegiado de intervenção a zona norte do país e, em particular, o Minho e Douro Litoral. Monção é um desses exemplos, com registos de uma primeira colaboração que remontam a 1966, ano em que Manuel de Carvalho, então Presidente da Câmara, o convida a assumir o cargo de Arquiteto-Urbanista Consultor, funções que manterá, pelo menos, até ao final da década de 80. Numa breve consulta da documentação doada por Carvalho Dias à Fundação Marques da Silva, ficamos a saber que desde o primeiro momento lhe é pedido um conjunto de trabalhos desenhados no contexto do Plano de Melhoramentos de Monção, entre outros: revisão do anteplano de urbanização, através da realização de estudos parciais e pareceres técnicos; reparação, beneficiação e reintegração de edifícios existentes na Vila; localização do busto do poeta João Verde; escolha do terreno para a Escola Primária, possibilidade de um edifício para a Escola Técnica; organização do Parque de Campismo da Vila; o projeto do novo mercado; o arranjo do espaço livre junto à Muralha da Matriz; a aquisição da Casa de Souto del Rey (imóvel do séc. XVII para o qual Carlos Carvalho Dias vai assinar um anteprojeto de adaptação a Museu e Biblioteca, em 1970, e que apenas mais recentemente, em setembro de 2021, veio a abrir as suas portas ao público enquanto Museu Monção & Memória). Por sua vez, a leitura dos Relatórios apresentados anualmente enquanto Arquiteto-Urbanista Consultor da C.M. de Monção deixa bem percetível o progressivo alargamento do horizonte das atividades desempenhadas, com Carvalho Dias a assinar, em 1983, já com Pedro Guimarães, a autoria do Plano Diretor Municipal, bem como uma sua posterior revisão em 1989.
DAVID MOREIRA DA SILVA | 28.01
A PROPÓSITO DE UM DESENHO ACADÉMICO
Num Arquivo que tem vindo a ampliar de forma continuada o seu património documental e com milhares de desenhos a requerer atenção, a gestão dos recursos e consequente calendarização de trabalhos vai obedecendo a múltiplos fatores e circunstâncias. Significa isto que chegou o momento de se iniciar, de forma sistemática, uma revisão do modelo de acondicionamento e de proceder ao levantamento de necessidades de tratamento de conservação e restauro dos desenhos de grande dimensão produzidos por David Moreira da Silva, durante o seu período de formação em Paris.
Este regresso aos documentos não se restringe, contudo, a um olhar mais apurado sobre a sua materialidade, mas é também uma oportunidade de os questionar e de reunir nova informação sobre o âmbito e contexto da sua produção. Foi o caso deste grande desenho com o projeto de uma aerogare, que tinha apenas associada a seguinte informação: o número 44 (provavelmente o número de submissão a concurso); a identificação do autor, “Moreira”; e do atelier onde foi desenvolvido, “Laloux-Lemaresquier”.
Sabemos, portanto, que terá sido executado entre 1931, data em que David Moreira da Silva partiu para a capital francesa, e 1939, data em que concluiu os cursos de arquitetura e urbanismo, na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts (ENSBA) e no Institut d´Urbanisme de l´Université de Paris. Porém, uma pesquisa a publicações da época permite-nos apurar o foi o ano exato da sua execução, pois ficamos a saber que este tema foi lançado pela ENSBA a 15 de julho de 1937, pelo Professor de Teoria do Curso de Arquitetura, Louis Madeline. Tratava-se de um “projet de vacances”, a concluir até ao mês de outubro. A razão da sua proposição estava à cabeça do programa publicado: “Assistimos hoje em dia a um prodigioso desenvolvimento da aviação comercial”. E na publicação da École, do mês de novembro, onde se anunciam os resultados do concurso, reforça-se a pertinência desta opção temática, uma novidade justificada pelo facto de ser necessário encontrar respostas, “com um carácter verdadeiramente plástico”, na construção de edifícios destinados à aviação, uma atividade em plena evolução e cujas exigências logísticas, de implantação e de circulação ainda estavam a ser determinadas. Refira-se, por outro lado, que este é também o ano da Exposição Universal dedicada às Artes e Técnicas Aplicadas à Vida Moderna, que vai ditar a construção da aerogare do aeroporto Le Bourget, sob projeto de Georges Sabro, arquiteto que passara pelo mesmo atelier frequentado por David Moreira da Silva, Laloux-Lemaresquier. Inaugurada em novembro de 1937, aí se acolhe, desde 1975, o Musée de l´air et de l´espace
E, em matéria de aviação, que ressonâncias se faziam sentir no Porto? Ainda em anos recentes, em 2007, o Aeroporto Francisco Sá Carneiro recebeu o galardão do melhor do mundo na categoria de aeroportos até 5 milhões de passageiros, mas qual era a situação entre finais da década de 30 e os primeiros anos da década de 40 do século XX? Trata-se de uma perspetiva complementar ao enquadramento do “nosso” documento, pelo que não a aprofundaremos, mas não deixa de ser curioso referir que aquele que começou por ser o Aeroporto de Pedras Rubras, também
conhecido como o Aeroporto do Porto, assinalou a chegada do 1.º voo, proveniente de Lisboa, por esses anos, mais exatamente a 12 de dezembro de 1945. O novo complexo, ponto de chegada de um processo negocial a envolver o Estado e vários municípios, decorrido em pleno cenário de Guerra Mundial, era constituído por 2 pistas, uma aerogare de madeira, os serviços técnicos e uma torre de controlo também de madeira. Foi assim inaugurado com a chegada de um monoplano “Proctor” e dos 3 biplanos modelo “Dragon Rapid” que traziam os convidados da Companhia de Transportes Aéreos (CTA, antecessora da TAP). O voo de ligação entre as duas cidades motivou uma celebração presidida pelo chefe de estado, Óscar Carmona, onde participaram o Tenente Coronel Humberto Delgado, então diretor do Secretariado da Aeronáutica Civil, e outras altas individualidades civis e militares, entre elas, o Capitão Piloto Aviador gaiense Luís Gomes de Oliva Telles que, transitando do Aeródromo de Espinho, tinha sido nomeado Diretor do Aeroporto do Porto. Quanto à aerogare propriamente dita, o edifício mais importante, com projeto de Alberto de Sousa, viria a ser construído posteriormente, entre 1945-48, tendo sido a obra adjudicada ao eng.º Fernando Moreira de Sá. Muito haveria para contar sobre a progressiva necessidade de expansão deste aeroporto que, em 1990, inaugurou a aerogare projetada pelo atelier GPA (cujo arquivo também foi doado a esta Fundação), ano da mudança para o nome atual de Aeroporto Francisco Sá Carneiro. Mas regressemos a David Moreira da Silva e a este exercício académico de 1937.
O desenho, feito a tinta-da-china, lápis, guache e aguada, contempla o alçado principal, planta, corte e arranjo urbanístico do projeto de arquitetura. Nele domina a fachada Art Déco, que tem associada a representação de um avião, e a planta. Está sinalizado um amplo hall, em sintonia com o programa, assim como zonas distintas de partida e chegada de passageiros, um armazém para bagagem, a alfândega e zonas destinadas a restaurante, cozinha e quartos de banho. Num concurso onde não foi atribuído o primeiro prémio, mas sim 12 segundas medalhas, o trabalho de David Moreira da Silva recebeu uma “Mention”.
Como já referido, com dois diplomas obtidos em França, de arquiteto, com um projeto final para uma Cidade Universitária, e de urbanista, com um projeto sobre Les villes qui meurente sans se dépeupler, depois de viagens por vários países europeus, David Moreira da Silva regressou ao Porto em 1939. Se a sua carreira, enquanto arquiteto liberal, já se tinha iniciado em 1934, com um primeiro projeto para a Sede da Cooperativa dos Pedreiros, é claro o impulso recebido após a estadia em Paris, assinalando-se a partir desta data uma intensa atividade como urbanista, seja como consultor dos municípios de Aveiro, Barcelos, Guimarães, Matosinhos, Paredes e Valongo, seja como autor de quase duas dezenas de anteplanos de urbanização que se estendem por todo o território nacional, só durante a década de 40 (projetos que a partir de 1943 passam a ser desenvolvidos em parceria com Maria José Marques da Silva, arquiteta com quem se casa e funda atelier conjunto). Iniciou também a carreira de professor ao ser convidado, em 1946, a reger, na Escola de Belas Artes do Porto, a cadeira de Urbanismo do Curso Superior de Arquitectura, mantendo-se em funções até ao ano académico de 1960-61.
FEVEREIRO
ALEXANDRE ALVES COSTA | 02.02
A ARQUITETURA TORNADA PRESENTE
Alexandre Alves Costa, Professor Jubilado da Universidade do Porto, admirado por tantas gerações de alunos, completa hoje 85 anos de idade. A sua atividade, porém, como arquiteto, como autor de obras de arquitetura (que continua a assinar, juntamente com Sergio Fernandez, pelo Atelier 15) e de obra escrita, como conferencista, como curador, como divulgador de arquitetura, como voz crítica e interventiva, permanece intensa e sem dar sinais de cedência a um qualquer tipo de esmorecimento.
Em 18 de julho de 2023 foi homenageado pela Ordem dos Arquitectos, prepara-se para lançar mais um novo livro, Argumentos 2, e assumiu a coordenação das ações programadas por iniciativa da Fundação Marques da Silva para comemoração do centenário de Fernando Távora, entre elas a curadoria, à frente de um coletivo de mais 5 arquitetos, da exposição Fernando Távora. Pensamento Livre. A remodelação do Cinema Batalha ou do antigo Liceu Alexandre Herculano, ambos na cidade do Porto, são exemplos recentes de uma trajetória onde a intervenção em lugares com valor patrimonial assume uma expressão própria, onde a requalificação e os processos de transformação se ancoram num olhar perspicaz e dialogante – com a história, com o lugar, com o presente -, onde se procura interpretar e iluminar a poesia existente na “ruína”. E ainda na passada sexta-feira, 27 de janeiro, em Paião (Figueira da Foz), mais um importante projeto foi concluído: o restauro e refuncionalização do Mosteiro de Santa Maria de Seiça, imóvel de importante valor patrimonial e cultural, cujas origens remontam ao século XII, entretanto classificado como Monumento Nacional. O programa desenhado para Santa Maria de Seiça seguiu duas linhas distintas: a consolidação da fachada monumental da igreja, em ruínas, por um lado; e a reabilitação do edifício monástico adjacente, por outro. O tratamento da ruína, assumindo o seu valor de metáfora e de símbolo, de memória si mesma; as instalações conventuais, numa resposta a um pensamento sobre o presente, sobre a cidade contemporânea.
Em 2022, Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez doaram os respetivos arquivos profissionais à Fundação Marques da Silva. Mas de que melhor forma, para alguém que sempre teve por objetivo ser arquiteto, do que celebrar o seu aniversário a partir da arquitetura que continua a projetar e a reinventar, da obra que continua a produzir e a propor?
ANTÓNIO TEIXEIRA GUERRA | 07.02
O INVULGAR PERCURSO DE ANTÓNIO TEIXEIRA GUERRA, UM ARQUITETO QUE PERSEGUIU O SONHO DE TER UM CASTELO
O percurso formativo de António Teixeira Guerra não passou pelas escolas nacionais. A carreira diplomática do seu pai, o embaixador Ruy da Fonseca e Sousa Camões Teixeira Guerra, assim o ditou. Depois da frequência de escolas no Canadá e na Alemanha, acabou por iniciar os seus estudos em Arquitetura na Universidade de Yale, em 1946. Seguiu depois para Lausanne, na Suíça, onde veio a obter o seu diploma, com nota máxima, dez anos mais tarde, sendo aí convidado a exercer as funções de assistente do Professor Jean André Tschumi, então Diretor da Escola Politécnica e Presidente da UIA. No ano seguinte, após exame realizado na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, obtém a equiparação académica que lhe permite começar a exercer a atividade de arquiteto e urbanista em Portugal.
Teixeira Guerra regressou ao seu país de origem para, a partir da década de 60, se afirmar profissionalmente enquanto consultor em matéria de planeamento turístico – caber-lhe-á, por exemplo, elaborar, com José da Silva Lopes, as bases para o primeiro Plano de Desenvolvimento Turístico de âmbito nacional – e enquanto arquiteto liberal – data desse período, o primeiro desenho aqui publicado, uma perspetiva da moradia para o Eng.º João Serra ou, juntamente com Carlos Manuel Ramos, a autoria do edifício da Avenida Marechal Gomes da Costa para a DIALAP – Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes, onde se encontra atualmente instalada a sede da RTP. Em 1977, já depois de lhe ter sido reconhecido, pela OCDE, o estatuto de “perito turístico”, vai fundar a A.D.R. – Agência de Desenvolvimento Regional, Lda, um gesto de consolidação do seu interesse pelo planeamento. Mas foi também assombrado por um projeto tornado matéria quase obsessiva de trabalho a partir de finais da década de 80, na terra de onde se inscrevem as raízes da família Teixeira Guerra. A perda do sonho de vir a ser o proprietário do Castelo do Crato, em Portalegre, pertencente ao seu pai e por este doado ao Município em 1989, levá-lo-ia a lutar pela adjudicação do projeto de conservação e revitalização das ruínas, que consegue em 1991, e a criar, em 1996, a Fundação do Castelo do Crato, da qual se assumirá como Presidente, Arquiteto e Administrador. Seria esta a forma de materializar os projetos, arquitetónicos e programáticos, que ao longo de várias décadas tinha vindo a realizar para este lugar em cujo interior tinha chegado mesmo a pensar instalar o seu próprio mausoléu. E lutou por essa Fundação, tentando obter financiamento junto das mais variadas entidades, na Europa e nos EUA. Em 2009, através desta Fundação ainda chega a publicar a sua tradução de Eupalinos, de Paul Valéry, numa edição conjunta com a Cavalo de Ferro. Algumas obras de conservação foram realizadas. Teixeira Guerra acaba por falecer em 2012 e este não foi o seu destino final. A Fundação do Crato é a última obra que deixa inscrita no CV que acompanha a documentação existente em Arquivo. O castelo encontra-se agora abandonado.
Em 2021, os seus herdeiros doaram o acervo do arquiteto Teixeira Guerra, constituído por 4.500 peças desenhadas, cerca de 5 metros lineares de documentação escrita e 103 fotografias, à Fundação Marques da Silva. A descrição sumária deste acervo, uma breve nota biográfica e uma primeira lista de obras acaba de ser publicamente disponibilizada para consulta no Arquivo Digital da instituição, sendo igualmente possível efetuar já consultas presenciais desta documentação.
BARTOLOMEU COSTA CABRAL | 08.02
A PROCURA DA HUMANIZAÇÃO DA ARQUITETURA
O Bairro do Pego Longo, situado em Queluz, na freguesia de Belas, começou a ser projetado por Bartolomeu Costa Cabral em 1976, no contexto do Processo SAAL. Tinha por fim resolver os problemas de habitação de um território degradado, em contacto próximo com as populações que de modo tão precário o ocupavam, criando simultaneamente condições para a sua recuperação paisagística.
O processo de reconversão urbanística consistiu em fazer um plano evolutivo que englobava áreas limítrofes para ampliação, de forma a poder ser feita a substituição das barracas existentes em habitações. Foram criadas casas tipo com um ou dois pisos conforme as condições topográficas, mas todas de moradia em banda. A cozinha era o elemento central da casa. E foi atendido, com a integração de logradouros (para flores na frente e para horta e animais atrás) e a possibilidade de as moradias seguirem um regime de autoconstrução, o facto de grande parte da população dessas barracas ter uma origem rural ou dedicar-se à construção civil. O sistema construtivo procurava, assim, ser muito simples e adaptado aos meios disponíveis. O plano, de construção lenta e onde se incluía também a elaboração de projetos de infraestruturas e arranjos dos espaços exteriores, arrastou-se no tempo, transitando, após cessação do SAAL para a Câmara Municipal de Sintra. Veio a prever a construção de blocos de habitação coletiva, de uma igreja e de uma escola, entre outras valências. Ainda não se encontra finalizado, mas isso não obsta a que tenha adquirido uma unidade e identidade urbanas.
Bartolomeu Costa Cabral sempre se orgulhou de ter conseguido manter uma boa relação com as pessoas do Bairro, tendo, ao longo destas décadas, conhecido mais do que uma geração dos seus habitantes. Como fez questão de afirmar: “A arquitetura tem de falar às pessoas, tem de ser uma companhia, tem de dar um sentido aos espaços criados e só assim podemos falar da sua humanização. Julgo que nas obras que fui fazendo ao longo da minha vida profissional existe este traço comum de relação com as pessoas independentemente do valor e grandeza do edifício e da sua função específica (...).” (“A Ética das Coisa”, 2019)
Foi o movimento moderno que fez Bartolomeu Costa Cabral apaixonar-se pela Arquitetura e lhe deu “a compreensão, o gosto e o prazer de toda a arquitetura dos tempos idos, e que continuam tão frescos e atuais.” A atualidade e relevância da sua arquitetura está bem presente nos muitos projetos que desenvolveu no curso da sua longa carreira de arquiteto e que o vasto acervo doado à Fundação Marques da Silva documenta. Está também em evidência na exposição Todos os Tempos se Cruzarão, patente ao público na Sala da Cidade (Coimbra) até 2 de março, onde se encontram expostos outros dois projetos seus, a Biblioteca Central da Universidade da Beira Interior, na Covilhã, e a Casa de Taipa, em Beja, testemunhos de que “a arquitetura e a arte têm sabido encontrar estratégias que estruturam o território, o recriam e reavivam o seu tecido mais profundo, retomando as suas possibilidades esquecidas, consolidando-o.”
MARÇO
ALFREDO MATOS FERREIRA | 01.03
ARQUITETO E PROFESSOR
Uma condição comum à maior parte dos arquitetos documentados na Fundação Marques da Silva é o facto de, em paralelo com a prática projetual, terem sido professores, terem exercido uma prática pedagógica. Esse foi o caso de Alfredo Matos Ferreira que, tendo concluído o Curso Superior de Arquitectura em 1959, na Escola Superior de Belas Artes do Porto, e já com obra de relevo, projetada e construída, num tempo politicamente conturbado, em 1976, é convidado, por proposta da Reunião Geral de Professores dessa mesma Escola, a entrar como assistente para a Secção de Arquitetura, para lecionar, com Cristiano Moreira, a cadeira de Arquitectura III. Foi o início de uma experiência de ensino que se prolongaria até 1998, na presente Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (Matos Ferreira participou, aliás, nas sessões de trabalho para definição dos princípios orientadores do ano letivo 1984/85, o primeiro do Curso de Arquitetura a marcar a passagem da Escola para o ensino universitário).
Ao longo destes 22 anos de atividade docente, Alfredo Matos Ferreira manter-se-ia sempre ligado à área de Projeto. Ensinou, participou em exposições e encontros vários, representou a Escola, orientou e apoiou os designados Seminários de Pré-Profissionalização que o levaram a contactar municípios dos mais diversos pontos do país, na procura de territórios de intervenção para alunos finalistas. Foi ainda membro da Assembleia de Representantes e integrou, por diversas vezes, o Conselho Científico. Para construção da sua carreira académica, em 1986, fez provas de agregação com a dissertação Aspectos da Organização do Espaço Português, domínio de investigação que sempre o interessou e que continuaria a cultivar (no ano letivo de 1995/96, obteve mesmo uma licença sabática com o propósito de o continuar a desenvolver). A partir de 1990 e até à reforma, assumirá ainda a orientação da cadeira de Introdução ao Projeto, para os alunos do 1.º ano, tendo como assistentes Henrique Carvalho, Maria José Casanova, José Bernardo Távora e Nuno Lacerda Lopes. Mas, mesmo depois de 1998, continuou a apoiar dissertações de mestrado e teses de doutoramento. E será o próprio a reconhecer, anos mais tarde, a importância de toda esta experiência na execução dos seus projetos (Memória, p. 33).
Do cuidado colocado nesta sua atividade de professor, do compromisso assumido com a Escola, “fala” uma parte do acervo de Alfredo Matos Ferreira, doado à Fundação Marques da Silva. Onze pastas com uma extensa documentação, complementada por um vasto número de diapositivos meticulosamente organizados e acondicionados, mostram-nos guiões de apoio às aulas, listas bibliográficas e de diapositivos, fotocópias e apontamentos de livros de referência ou registos da mais variada ordem, como dados sobre seminários, trocas de correspondência (missivas internas ou com municípios), programas, trabalhos de alunos e outros materiais que marcam o tom daquele tempo de vida estudantil. Trata-se de informação que não só revela o empenho na preparação dos temas a tratar e a metodologia seguida por um professor, mas também um modo próprio de olhar o território e de como nele construir. A sua consulta deixa entender também algumas das temáticas a que Matos Ferreira dedicou particular atenção (as Operações SAAL Miragaia e Lapa, os Planos de Urbanização
de Guimarães, onde participou, mas também sobre Viana ou Évora, a organização do Seminário em Carrazeda, em colaboração com José Manuel Soares, etc. ) e afirma-se, para além da figura que lhe dá sentido, importante para quem se interesse pelo estudo do que foi o ensino da Arquitetura no Porto entre estes tempos de transição: o da ESBAP pós 25 de Abril e a primeira década de afirmação da FAUP.
LUIZ BOTELHO DIAS | 11.03
AS “MARGENS SUBVERSIVAS”
O percurso de Luiz Botelho Dias, ainda mal conhecido, cruza-se com o de muitos arquitetos que frequentaram a Escola Portuense de Belas Artes na sua transição para Escola Superior, entre finais dos anos 40-50. De facto, Botelho Dias inicia a sua formação como arquiteto em 1948 e obtém a sua carta de curso a 25 de julho de 1972. O processo de estudante, arquivado na FBAUP, permite-nos saber que entre 1960 e 1965 estagiou com o arquiteto Francisco Figueiredo e que, no Relatório Curricular por si entregue, está também identificada a sua colaboração na equipa que desenvolvera a Casa de Chá da Boa Nova, um conjunto habitacional para Leça da Palmeira e um trabalho para a CEPSA. A sua atividade liberal, em nome próprio e em parceria, tem, assim, início antes de 72.
Botelho Dias será um dos arquitetos a habitar a velha casa da rua Duque da Terceira, onde se encontravam já Fernando Távora, Alfredo Matos Ferreira e António Menéres (com quem partilha o gosto pela vela), Álvaro Siza (que tal como ele praticara hóquei no Clube de Leça), Joaquim Sampaio e Vasco Macieira Mendes. Assinará ainda aí projetos com Alfredo Matos Ferreira e, mais tarde e a partir de outros espaços na cidade, manterá colaborações com Manuel Marques de Aguiar, Fernando Barbosa ou Pedro Aroso. Da sua prática profissional sobressaem projetos habitacionais das mais variadas escalas, porém, no arquivo doado à Fundação Marques da Silva, podemos encontrar também referências a outras tipologias, de escolas primárias a hotéis e até centros comerciais. Manter-se-á sempre atento às questões que se prendem com o ordenamento da região norte do país, o seu território de ação enquanto arquiteto, envolvendo-se muito em particular no desenvolvimento e valorização da faixa marítima de Nevogilde, juntamente com Manuel Marques de Aguiar e Diogo Alpendurada.
Ainda na década de 80, Luiz Botelho Dias vai projetar edifícios para a Cooperativa “o Lar Familiar”. É a um desses projetos que pertence o desenho que aqui se publica, referente a um prédio vizinho da Fundação Marques da Silva, situado na rua Latino Coelho, n.º 292. Só que o convite é para que o olhar se detenha não apenas no centro do desenho, prolongando-se para as margens que o enquadram e que poderíamos apelidar, numa muito livre apropriação do conceito barthiano, de “margens subversivas”. É que aí, nessas margens, dos traços que denunciam o gesto aparentemente comum e banal de limpeza de um aparo vão nascendo formas e palavras que criam outras imagens e sentidos, que nos indicam um pensamento ou estado de espírito. Sentidos que continuarão por decifrar quanto à intenção de quem os registou, mas que transportam uma outra dimensão para o desenho. Terá sido verdadeiramente desfeito esse “nó górdio” pelo “Luiz Maria” que tão cuidadosamente desenha a fachada e sublinha os materiais a utilizar na construção do prédio?
RELATÓRIO DE ATIVIDADES E GESTÃO
ADALBERTO DIAS | 26.03
A RECUPERAÇÃO DA IGREJA E CONVENTO DE SÃO FRANCISCO, EM ÉVORA, E A “DESCOBERTA DO PRINCÍPIO DA EVIDÊNCIA E DE SÍNTESE”
“Tudo começa com uma linha/traço, vício que nunca perdi desde os primeiros anos da faculdade. A linha/risco que se multiplica e mistura com outras para conhecer a necessidade, o sinal e o sentido da transformação.” E seguem-se outras linhas, “a construção do discurso da descoberta [...] do lugar, das suas circunstâncias, da visita à história.” Com a utilização das “ferramentas de trabalho” vem “a noção da proporção, o pormenor, a verificação das decisões do projecto, a relação entre a parte e o todo, a relação entre o sítio e o projecto, entre o projecto e o espaço, entre o espaço e a construção.” Vem o “criar arquitetura”. (Adalberto Dias, “Razões do Construir”, in Adalberto Dias: espaços construídos, FAUP, 2021).
Entre 2012 e 2016, Adalberto Dias desenhou e coordenou a construção do projeto de recuperação e consolidação estrutural da Igreja de São Francisco, em Évora. Uma obra total que incluiu a ampliação para um espaço expositivo do espólio religioso da Igreja e do Convento, então reduzido a parte da ala oriental e a alguns fragmentos do claustro original, bem como a conservação e restauro de todo o património móvel e integrado existente. Foi a concretização de um programa funcional e expressivo, de respeito pela continuidade estrutural de um lugar com uma longa e atribulada história, a permitir a reposição da Sala Régia, bem como a antiga ala das celas dos monges do convento, destinada agora a espaço museológico do espólio da Igreja. Foi, contudo, uma reinterpretação de um passado dominada pela pertença a um tempo presente, um exercício de “descoberta do princípio da evidência e de síntese”, onde os recursos técnicos da contemporaneidade foram acompanhados de gestos que conferem novos planos, novas dimensões, novos significados a este conjunto, também monumento. A recuperação, reposição e transformação dos espaços, o renovado sentido urbano do conjunto, articula-se hoje com um novo sistema de acessos, que separa circuitos de visita e percursos de culto e liturgia, e com um painel de azulejos, com desenho de Álvaro Siza, colocado à saída da famosa Capela dos Ossos. Aí, perante a encenação deste memento mori, se afirma uma serena apologia à vida.
MAURÍCIO DE VASCONCELLOS | 27.03
O DESAFIO DE, COM O GPA, PROJETAR AEROPORTOS
A propósito de um desenho académico de David Moreira da Silva, de 1937, o projeto de uma aerogare, publicado em 28 de janeiro passado, foram abordados alguns momentos da afirmação da aviação comercial e recordados alguns dados relativos à história da implantação do aeroporto do Porto, em particular na perspetiva da construção das grandes estruturas de suporte ao seu funcionamento.
Uma das várias etapas de crescimento do então ainda Aeroporto de Pedras Rubras, aconteceu na década de 80, quando o GPA (Grupo de Planeamento e Arquitectura, dos arquitetos Maurício de Vasconcellos e Luiz Alçada Baptista, com sede em Lisboa) ganha o 1.º lugar do Concurso lançado pela Empresa Pública Aeroportos e Navegação Aérea, ANA – EP, para construção de um novo Terminal de Passageiros. Vale a pena voltar o olhar para estes arquitetos e em particular para Maurício de Vasconcellos, que a partir de 1980 assumira a coordenação do projeto que este gabinete tinha em mãos para construção da Aerogare 2 do Aeroporto da Portela, em Lisboa. O Gabinete, 1979, tinha sido convidado a participar no Concurso e tinha ficado classificado em primeiro lugar.
Este interesse pelos equipamentos ligados à aviação e o nível de competência adquirido pela equipa com o projeto para a capital veio, assim, a refletir-se na conquista do projeto para o Porto, onde se recuperaram, até, conceitos como o balcão de check-in (desenhado por Daciano Costa), que seria produzido e instalado nas diversas aerogares do país. Mas a experiência estender-se-á a outras regiões, já que, o GPA obterá posteriormente o 2.º prémio do concurso para o Terminal de Passageiros do Aeroporto de Faro e, no final dessa mesma década, ainda, o primeiro prémio do concurso para a construção da aerogare do aeroporto de Ponta Delgada. Projetos que, sobretudo em peças desenhadas, fotografias de maquetas e uma publicação – Aerogare 2: Lisboa, se encontram documentados no arquivo doado à Fundação Marques da Silva. Retomando a história do aeroporto do Porto, refira-se que o Terminal pensado pelo GPA será inaugurado em 1990, altura em que também se altera o nome para Aeroporto Francisco Sá Carneiro. Contudo, o crescimento exponencial do fluxo de passageiros e mercadorias neste aeroporto também acabou por ditar a reformulação do edifício construído. O projeto atual, distinguido com o Prémio Europeu para construção em aço, é da autoria do arquiteto João Carlos Ferreira Leal e data de 2006. Facto que não obsta o reconhecimento do trabalho desenvolvido pelo GPA durante a década de 80 e os primeiros anos da década seguinte, na resposta aos desafios de enfrentar projetos com esta escala e nível de complexidade programática, a envolver uma adequada interdisciplinaridade, sem perda da garantia de um fluir fácil nas circulações, conjugando eficazmente espaços interiores/exteriores, áreas técnicas, de passageiros e público, e sem esquecer a necessidade de libertar o “objeto arquitectónico duma definição e sujeição mecanicista”.
GERMANO DE CASTRO | 11.04
UM ARQUITECTO DO SEU TEMPO
Germano de Castro de Sousa Pinheiro (Figueira da Foz, 1913 – Vila do Conde, 1992) formou-se em arquitetura na Escola Superior de Belas Artes do Porto em 1943. Seguiu-se o tirocínio com o arquiteto Aucíndio dos Santos e, em 1945, a defesa do CODA com a “Construção de um Cineteatro numa Cidade do Norte do País”. Estabeleceu atelier na cidade do Porto e a partir daí consolidou um percurso que se estendeu por mais de seis décadas, traduzido em cerca de 200 projetos identificados e num conjunto assinalável de obra construída, sobretudo, na região litoral norte do país. Para além da arquitetura, desenvolveu um particular interesse pela marcenaria, pela fotografia, pela leitura e pela jardinagem. Ganhou também um especial afeto por Vila do Conde (terra de onde era originária Maria Adelaide Torres, com quem se casou em 1937), onde acabaria por se fixar e onde chegou a exercer funções de Presidente da Comissão de Turismo. O seu filho e neto são também arquitetos.
Em 2022, o acervo de Germano de Castro foi doado à Fundação Marques da Silva, um gesto que veio não só garantir a sua preservação futura, como permitirá viabilizar uma sua disponibilização pública e fomentar renovadas leituras críticas. E foi já com o apoio desta instituição que a Circo de Ideias publicou, no final de 2023, a monografia Germano de Castro: um arquitecto do seu tempo, da autoria de Germano de Castro Pinheiro. Aqui se apresenta uma seleção de vinte obras ilustrativas da prática disciplinar de Germano de Castro, datadas entre 1938 e 1987. Obras de diferentes escalas, com diferentes linguagens e programas, tanto públicas quanto privadas, obras que denunciam a competência do seu autor e o ecletismo característico dos arquitetos da sua geração, profusamente documentadas por desenhos, fotografias de Alexandre Rodrigues, Germano de Castro Pinheiro e Tiago Casanova, e textos. O livro, que resulta da transformação num projeto editorial do trabalho de investigação realizado por Germano de Castro Pinheiro, neto, durante a sua passagem pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, inclui ainda um prefácio de Ana Tostões, “Um Moderno Tranquilo”, um texto de enquadramento de Luís Soares Carneiro, “Eclectismo Moderno” e uma entrevista a Nuno Portas.
MANUEL GRAÇA DIAS | 11.04
BOCADOS/MORCEAUX
Há livros que são muito mais do que um mero suporte para a palavra escrita, há livros que são muito mais do que imagens para ver, há livros que graficamente se elevam à condição de objetos artísticos onde uma e outras se cruzam para que nesse encontro se desdobrem e proporcionem novos horizontes de leitura, de descoberta, de experiência estética. Assim acontece com este Bocados/Morceaux de Manuel Graça Dias, um pequeno livro que resulta de um gesto criativo em sintonia com as idiossincrasias do seu autor, “publicado por ocasião da exposição 3 Bocados [...] na Galeria Cómicos, em Lisboa, em janeiro de 1988”.
Tinham então decorrido poucos anos sobre a polémica exposição “Depois do Modernismo” (1983), que levaria Luís Serpa a fundar a Galeria Cómicos, um lugar singular de debate e exposição, um lugar de contaminação entre disciplinas. Pensada para dar voz a novas formas de pensamento, a linguagens e práticas mais experimentais, esta Galeria ganhou uma grande relevância no panorama artístico e arquitetónico nacional, em particular durante as décadas finais do século XX. E é neste conjunto de iniciativas, nesta procura de uma nova forma de “comunicar” arquitetura que foi programada a exposição 3 Bocados, de Manuel Graça Dias. Nela se apresentaram desenhos de 3 projetos que se fundiam com o tempo expositivo: Golfinho, edifício de Habitação e Comércio (Chaves, 1985, em construção), “esse edifício que se enrosca sobre os limites curvos da propriedade [...] uma grande muralha macia”; a Junta de Freguesia de S. João de Brito (Lisboa, 1987, concurso por convites), “um projecto desenhado à volta de uma ideia de alçado”; e o edifício para a Administração Florestal e Residência do Administrador (Chaves, 1987, projeto), onde “o edifício mostra à rua uma imagem pública e austera, em pedra [...para depois se abrir] numa leitura contemporânea de um pátio transmontano, ao Parque que sobe a colina em ziguezagueantes áleas ...”
Para além das breves “memórias descritivas” que apresentam os desenhos selecionados, o livro abre com textos de Júlio Teles Grilo, sobre os projetos, e de João Luís Carrilho da Graça, sobre “estes desenhos tortos” e ao qual pertence o fragmento aqui transcrito: “Todas as formas de arte são reflexivas, duplas, indirectas e construídas. A arquitectura é talvez a mais impura, construída, calculada e artificial: entre a interioridade do artista e a sua expressão, está interposta uma densa e complexa teia de acertos e desacertos com o real e em tantas direcções que poucas pedras resistem. Esta forma de arte é talvez a mais ambiciosa e menos realizada, fascinante como destino mas um pouco desajeitada como profissão. [...] Os desenhos têm para os arquitectos duas utilidades: procurar e encontrar. Os que procuram devem ir para o lixo; os que encontram são já arquitectura ou iniciam o processo da sua revelação.” E assim nos falam em jeito poético de arquitetura, assim nos vão guiando o olhar para essas zonas de invisibilidade, o desenvolvimento de uma ideia de projeto, para uma leitura mais compreensiva da plasticidade dos desenhos que se mostram.
MANUEL TELES | 16.04
A PONTE DE SANTIAGO CALATRAVA OU O SONHO DE CRIAR UM LUGAR MAIS DO QUE UMA LIGAÇÃO
Quando se percorre a lista de projetos desenvolvidos pelo arquiteto Manuel Teles torna-se percetível que, a partir do início da década de 90, entre projetos e planos urbanísticos, o Município de Barcelos assume uma particular preponderância e expressão. Será também nessa década que Manuel Teles irá assumir a liderança do Gabinete Técnico Local, bem como coordenar a representação da Câmara Municipal de Barcelos na Exposição sobre Centros Históricos, realizada em Santiago de Compostela, em 1999.
Do extenso conjunto de trabalhos em que Manuel Teles e a sua equipa se envolveram, um há que, não tendo sido ainda materializado, congregou um forte empenho pessoal deste arquiteto, bem como um esforço constante de articulação entre diferentes perspetivas no terreno: a construção de uma nova ponte-miradouro sobre o rio Cávado, desenhada pelo arquiteto e engenheiro Santiago Calatrava. Este projeto vinha contemplado no Plano de Pormenor, Salvaguarda e Reabilitação do Centro Histórico que a equipa coordenada por Manuel Teles começara a elaborar em 1995. E por isso também coube a Manuel Teles, não só desempenhar o papel de mediação entre os vários interlocutores, desde logo com o arquiteto valenciano, como ceder todo o apoio técnico necessário ao desenvolvimento do trabalho. A “nova ponte”, de acordo com o Plano, seria construída a jusante da ponte medieval, que se tornaria exclusivamente pedonal, e, ao ligar o Bairro da Misericórdia a Barcelinhos, conteria em si um fator potenciador de criação de uma nova centralidade. Para além de responder a estes dois objetivos, a ponte, com um forte pendor escultórico, traria ainda numa maior visibilidade para a autarquia, atraindo inevitavelmente visitantes.
A possibilidade de Calatrava voltar a ter obra projetada em Portugal, após a Gare do Oriente, ganhou projeção nacional e internacional, com a imprensa da época a noticiar, com grande destaque, a adjudicação de um projeto cujos honorários e assistência técnica seriam suportados pelo BCP. Santiago Calatrava foi entrevistado para o Diário de Nótícias (de onde se retira o esquisso aqui publicado) e saem referências ao trabalho desenvolvido pelo Gabinete Técnico Local, coordenado por Manuel Teles. Aliás, com a entrega de um primeiro projeto base, aprovado pela autarquia em 2000, chega a ser anunciado o início da construção para esse mesmo ano. Porém, dada a dimensão do investimento a fazer, entre custos de obra e honorários pedidos pelo arquiteto catalão para acompanhamento da fase de construção, criam-se divergências insanáveis com a câmara. Até ao momento, não obstante tentativas recentes de reativar este processo, a nova travessia continua a ser um sonho por cumprir.
No acervo do Arq.to Manuel Teles, doado à Fundação Marques da Silva, encontram-se duas pastas com elementos vários relativos a este projeto – Barcelos / Nova Ponte -, datados entre 1998 e 2000. Aí se torna evidente a importância do papel desempenhado por Manuel Teles a quem coube estabelecer o contacto com Santiago Calatrava, fixar os termos do contrato para elaboração do projeto de execução e, posteriormente, enviar o estudo prévio do Plano de requalificação das frentes fluviais da cidade de Barcelos que tinha dirigido (refira-se, a título de curiosidade que na memória descritiva deste Plano Manuel Teles incluiu referências a Carlos Alberto Ferreira de Almeida, Nuno Portas e Conceição Melo), com sugestões muito precisas sobre a relação da ponte a construir com o Centro Histórico, bem como o já referido Plano de Pormenor, Salvaguarda e Reabilitação do Centro Histórico, a contemplar 44 quarteirões. A documentação aqui reunida inclui ainda alguns recortes de jornais e cópias das peças desenhadas do projeto base de Santiago Calatrava, datadas de maio de 2000.
O arquiteto e professor Manuel Teles, que nos seus últimos anos de atividade continuará a projetar para Barcelos (Escola de Tecnologia e Gestão e Reordenamento dos espaços exteriores do Hospital Distrital), nasceu a 16 de abril de 1936, em Coimbra.
SERGIO FERNANDEZ | 25.04
O BAIRRO DO LEAL, UMA APRENDIZAGEM DA VIVÊNCIA COLETIVA
A fotografia do Che não deixa margem para dúvidas, aqueles eram os tempos e os caminhos que a Revolução abrira. O lugar? O Gabinete de Arquitetura que Sergio Fernandez tinha na rua 15 de Novembro, no Porto. Estava-se então em 1976 e o grande plano da foto foi inequivocamente reservado para uma maqueta feita de propósito para mostrar e explicar, aos representantes da associação e aos moradores do Bairro do Leal, a relação dos pátios e arruamentos exteriores das novas casas, então a ser projetadas ao abrigo do programa SAAL. Diga-se que a maqueta de conjunto – muito apreciada... enquanto objeto – tinha então literalmente percorrido todas as casas do antigo Bairro. Era, porém, uma linguagem de difícil leitura para quem aguardava a construção das novas habitações, por quem tinha dificuldade em compreender também o tempo que demorava a fazer acontecer, ainda que este fosse efetivamente um processo muito participado, a implicar os moradores em todas as determinações e soluções finais do projeto (a Brigada tinha reuniões semanais com a Associação de Moradores e, quinzenalmente, reuniões gerais). E foi essa constatação e esse diálogo coletivo que motivou a realização de uma segunda série de maquetas onde se inscreve a que esta fotografia documenta, assim como a decisão, após aprovação, de se arrancar com a construção de uma primeira série de fogos: 16, dos 172 inicialmente previstos.
Havia urgência, havia que intervir em tempo útil. Refira-se que a densidade populacional deste Bairro, situado entre as ruas Faria Guimarães e do Bonjardim, na proximidade da rua Gonçalo Cristovão, andava na ordem de 1100 habitantes por hectare e a decisão de construção desta parcela não só impediria a esperança dos moradores de esmorecer, ao provar que se avançava para o terreno, como serviria também de teste à eficácia das soluções que tinham vindo a ser pensadas e propostas. A coordenar este processo estava Sergio Fernandez, que na altura da formação das equipas ainda não pertencia ao quadro de docentes da Escola Superior de Belas Artes do Porto, no seio da qual se formaram as Brigadas do SAAL/Norte. Mas sobre ele recaíu a escolha dos estudantes finalistas do Curso de Arquitetura chamados a trabalhar sobre aquele Bairro – António Corte-Real, Emídio Fonseca, José Manuel Soares e Vítor Sinde -, e daí o convite a chefiar essa equipa. Passados este anos, apesar dessas 16 casas terem sido as únicas construídas, numa gradual perda de poder de reivindicação da Associação de Moradores (que, no entanto, permanece proprietária dessas casas) para a continuidade da construção, apesar do que ficou por fazer e da mágoa de ver que nem este diminuto número de casas foi devidamente cuidado, Sergio Fernandez continua a manter viva a memória de um tempo em que imperou um sentido de serviço à comunidade, em que se acreditou nessa vontade e na validade de uma ação e de um espaço onde todos tinham voz, onde as casas distribuídas seguiram critérios de um justo rigor, servindo quem mais delas necessitava. Foi, como refere, uma importante e inesquecível aprendizagem da vivência coletiva.
RELATÓRIO DE ATIVIDADES E GESTÃO
Este é um projeto documentado na Fundação Marques da Silva e não só continua a ser pesquisado como ainda recentemente vários elementos a ele pertencentes estiveram expostos em Barcelona.
ANTÓNIO MENÉRES | 26.04
O GLOSSÁRIO COM TERMOS DE CONSTRUÇÃO CAÍDOS EM DESUSO
Sabe o que significa “alegrar” ou “desarmar” para os antigos pedreiros? Pois pode encontrar a definição deste e de muitos outros termos ligados à construção, agora caídos em desuso, no Glossário que a Fundação Marques da Silva hoje publica, a partir de um trabalho de António Menéres. São termos usados pelos velhos obreiros e esta, uma forma de preservar esse modo próprio de falar e o seu sentido para o tempo presente.
E assim se celebra, com a publicação deste Glossário em formato digital, a passagem de mais um aniversário do arquiteto António Menéres.
MAIO
JOSÉ FORJAZ | 10.05
MEMORIAL A SAMORA MACHEL (MBUZINI,
1998),
“UMA
CUNHA DE RAIVA ESPETADA NO FLANCO DA MONTANHA”
Numa entrevista para o Diário de Notícias, conduzida por Ana Sousa Dias, em 2017, José Forjaz referia ter conhecido bem Samora Machel e admitia mesmo que, apesar de tudo quanto os dividia, se podiam considerar amigos. Ambos partilhavam essa condição de urgência perante a necessidade de reinvenção de Moçambique, enquanto país independente. Um, era o seu primeiro Presidente, o outro, um arquiteto formado na Escola de Belas Artes do Porto que, regressado a Moçambique, encontrou no continente africano, mas sobretudo neste país de adoção, o seu espaço privilegiado de expressão e de intervenção – disciplinar, pedagógica, política e de vida.
Samora Machel morreu inesperadamente a 19 de outubro de 1986, num acidente de avião, em Mbuzini (África do Sul). Coube a José Forjaz projetar o memorial que sinalizaria o fatídico acidente e pensou-o, por isso mesmo, não como uma celebração, mas como «uma cunha de raiva espetada no flanco da montanha”. E “porque nunca deveria ter existido”, associou-lhe uma dimensão sonora, para que se pudesse elevar à condição de “bramido universal quando a aragem ou a ventania o tangem e quando o mais leve ruido o faz vibrar como um colossal diapasão.” Desejava que assim permanecesse, no isolamento da paisagem, como uma presença brutal que apenas pudesse ser percebida “quando a montanha sarar à sua volta, quando o claro betão se avermelhar à cor do pó do ar e da chuva que o fixa.”
Essa verdade do monumento não foi respeitada, com o acrescento de um edifício que lhe retirou a força desse sentido primeiro, desse “grito” na paisagem. Mas o projeto continua a
JUNHO
LUIZ ALÇADA BAPTISTA | 09.06
A ARQUITETURA QUE SE ANCORA E FOI DANDO FORMA À INDÚSTRIA DOS LANIFÍCIOS
No acervo de Luiz Alçada Baptista, doado à Fundação Marques da Silva, encontra-se um extenso conjunto de peças desenhadas que registam momentos vários do desenvolvimento de um projeto de arquitetura para construção de uma Fábrica de Lanifícios na Covilhã. Apesar de poucos estarem assinados e de poucos terem uma data associada, cruzando esses desenhos com algumas peças escritas, ficamos a saber que se trata de um projeto para o industrial José Mesquita Nunes e que terá sido um trabalho iniciado nos primeiros anos da década de 60. Para quem passar pela Covilhã e se dirigir ao n.º 7 da Avenida Cidade do Rio de Janeiro, logo confirmará que o que foi pensado e desenhado ganhou vida, forma, matéria, ainda que agora, na dignidade da sua arquitetura invulgar e apesar do abandono a que o espaço foi votado, apenas deixe entrever a importância que em tempos idos deve ter tido. Aliás, conta quem ainda por lá passou que havia uma enorme profusão de luz no seu interior, que muito ajudava ao trabalho dos operários.
Foi na Covilhã, “cidade-fábrica”, que Luiz Alçada Baptista nasceu e passou a sua infância. Aí se encontram as suas raízes familiares, também elas em tempos ligadas à indústria dos lanifícios. Como diz o provérbio, “se os filhos de Adão pecaram, os da Covilhã sempre cardaram” e o seu avô António Alçada, já advogado de profissão, ainda manteve uma atividade industrial que o seu pai, Luiz Baptista, médico, acabaria por abandonar. Mas a zona da Covilhã continuava a ser o maior centro nacional desta indústria. Diga-se que, na década de 70, aqui se encontravam registadas 99 empresas de lanifícios e que será um grupo de covilhanenses, liderados por Manuel Mesquita Nunes, a lançar as bases para o que viria a ser a fundação do Instituto Politécnico da Covilhã, com a primeira licenciatura em Engenharia Têxtil, mais tarde, já na década de 80, convertido na UBI – Universidade da Beira Interior.
Será ainda na década de 60 que Luiz Alçada Baptista começará também a trabalhar em parceria com Maurício de Vasconcellos, até que, em 1968, decidem assumir conjuntamente a criação do Grupo de Planeamento e Arquitectura – GPA, que assinará, através da influência local do arquiteto Alçada Baptista, a autoria de várias e transformadoras obras para este território da Beira Baixa, desde fábricas e dos grandes equipamentos universitários, ao hospital distrital e a projetos para habitação. Atelier onde se integrou a colaboração de Bartolomeu Costa Cabral, a quem caberia também assinar diversas estruturas da UBI, como o Polo I, a Biblioteca e o Museu de Lanifícios.
O N.º 310 DA RUA 9 DE JULHO: DE JOÃO QUEIROZ
A CANNATÀ & FERNANDES, UMA CONTINUIDADE SERENA
A quem passa pela rua 9 de julho, na freguesia de Cedofeita, no Porto, é impossível não reparar no n.º 310. A moradia, digna sobrevivente da arquitetura de um outro século, mantém orgulhosamente não só os traços que a inscrevem num outro tempo, como os vários detalhes que lhe continuam a conferir uma singularidade própria. É uma casa que respira, que continua viva e cuidada.
O lugar onde se ergue conheceu outras casas, casas por muitos habitadas e que viriam a ser demolidas para que ela pudesse acontecer. E sabe-se que foi João Queiroz o arquiteto escolhido por José Custódio Rosa Pestana para o projeto que viria a obter aprovação de construção, pela Câmara Municipal do Porto, em 1922. Com o correr dos anos, foi passando por muitos outros proprietários, até que já na década de 90, mais propriamente em 1992, foram os arquitetos Fátima Fernandes e Michele Cannatà a adquiri-la, juntamente com um outro lote de terreno, voltado para a rua Freire de Andrade, onde existia uma antiga casa e Fábrica de Cordões de Sapatos, já desativada, mas que em tempos tivera acesso a uma passagem comum ao n. 310. Estavam assim reunidas as condições necessárias para esta equipa de arquitetos poder assumir a remodelação articulada dos dois espaços: a moradia projetada por João Queiroz, para espaço de habitação, e os outros dois volumes, para atelier de arquitetura. E não houve nem apagamento nem submissão, mas sim entendimento, aproximação a um discurso, superação. E, claro, uma evidente capacidade de adaptação no afirmar de novas possibilidades e de uma nova vida para a moradia e para todo o conjunto. Ou seja, deu-se uma continuidade serena.
ÁLVARO SIZA | 25.06
À CONQUISTA DE UM “ESTADO DE GRAÇA” NUMA ENCOSTA DO MONTE PARNASO
Quase impercetível, sentado na arquibancada do Teatro de Delfos, aqui nos surge Álvaro Siza, único e silencioso espectador das ruínas de um lugar onde se puderam acolher quase 5000. Coube a Alcino Soutinho captar o inusitado momento. Corria o ano de 1976. E nesse ônfalo, nesse “umbigo do mundo” onde as águias enviadas por Zeus se cruzaram, na encosta do Monte Parnaso, talvez depois de provar a água da Fonte de Castália ou de convocar a sacerdotisa do Oráculo e de celebrar Apolo, Álvaro Siza estendia seguramente o seu olhar sobre este vale onde o humano, o divino e a natureza se confundem numa existência para além do tempo e da paisagem real. Estaria à procura de “uma conquista do Estado de Graça”, nesse inevitável confronto com a Memória?
Mas em dia de aniversário, quando passam 91 anos sobre o nascimento de Siza, como não lembrar, para além do imaginário desta fotografia que faz parte do arquivo de Alcino Soutinho, a poesia de outras vozes, mesmo que vindas de um outro tempo e de outros territórios: o coração viajante não se enraíza / antes quer ser / braseira ambulante, um haiku de Bashô (in O Eremita Viajante, trad. Joaquim M. Palma).
JULHO
ANTÓNIO CARDOSO | 21.07
UM HISTORIADOR ENTRE ARQUITETOS
No contexto da Fundação Marques da Silva, o nome de António Cardoso imediatamente convoca duas ações muito concretas: o primeiro estudo e levantamento sistemático do percurso e obra de José Marques da Silva; e o papel preponderante que António Cardoso veio a exercer no processo que dará origem à criação da presente Fundação. Mas ao percorrer o seu vasto acervo, desde logo emergem outras facetas, cujo cruzamento também explica o modo e a razão de ser dessas ações: o seu interesse pelas Artes em geral, materializado num fazer de que nos fala a sua própria Pintura; a formação como historiador, matriz da continuada investigação que ao longo da vida realizou sobre arquitetura, arte e património; e a experiência pedagógica adquirida em vários tipos de ensino (da Televisão Escolar à FLUP), importante para moldar uma vontade e um seu jeito particular de comunicar. E, por isso, não é de estranhar o exaustivo mapeamento de fontes e de arquivos consultados (nacionais e internacionais) deste “cuidador da memória”, a incluir muitos outros arquitetos, traduzido em centenas de fichas e dossiers de trabalho que hoje se preservam na Fundação Marques da Silva, um material documental que hoje adquire grande relevância.
“É verdade que ainda estou a trabalhar com um motor a dois tempos: por um lado vendo a obra de Marques da Silva na sua diacronia (no que ela importa), por outro, privilegiando também o carácter centrípeto, do meu trabalho [...] quero recolher urgentemente testemunhos dos diversos “actores” sociais, nomeadamente dos arquitectos Arménio Losa, Viana de Lima, Januário Godinho e outros, já pelas obras, já pelas posições críticas em relação a Marques da Silva. Já perdi o Rogério de Azevedo, por dias! [...] Tento encontrar caminhos novos na condução do meu trabalho. Por isso tenho lido bastante.” (A. Cardoso, excerto de carta dirigida a J.-A. França, seu orientador, em 1985)
Mas para além de objeto de estudo e do que resulta da investigação realizada sobre Marques da Silva e o contexto em que decorre a sua obra, vão-se encontrando, entre livros, desdobráveis, catálogos... registos de outros gestos que revelam, em diferentes circunstâncias, a sua aproximação e convivência ao mundo dos arquitetos. Entre muitos outros, lá se encontram dedicatórias de Fernando Lanhas, Nadir Afonso ou de Fernando Távora, em apoio expresso, por exemplo, à exposição de homenagem a Marques da Silva que António Cardoso organiza em 1986, na Casa do Infante, juntamente com os arquitetos Maria José e David Moreira da Silva, e Nuno Tasso de Sousa, em resposta a uma iniciativa da Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitetos. Ou até esta simpática nota manuscrita de Álvaro Siza sobre o desdobrável da sua 1.ª Exposição, realizada na Galeria Dominguez Álvarez em 1959, num agradecimento a este historiador que também foi um entusiástico colecionador - “Reencontrei finalmente e em boas mãos o catálogo da minha 1.ª Exposição. Obrigada, António Cardoso. Siza. Amarante Maio 84” – e que chegou a fazer parte da exposição que a Fundação Marques da Silva lhe dedicou em 2022, “Isto não é só um quadro”.
AGOSTO
OCTÁVIO LIXA FILGUEIRAS | 16.08
UM PENSAMENTO E UMA VOZ PRÓPRIOS SOBRE O ENSINO E O PAPEL DA ARQUITETURA
No acervo de Octávio Lixa Filgueiras, doado à Fundação Marques da Silva, existe um conjunto assinalável de documentação escrita e, de menor expressão, fotográfica classificado como “Ensino ESBAP/FAUP”. Ora, refira-se que em 1954 é na Escola Superior de Belas Artes do Porto que Octávio Lixa Filgueiras defende aquela que veio a ser a primeira tese teórica permitida a um CODA: Urbanismo: um tema rural. Obteve não só classificação máxima como abriu a porta para outras que se seguiriam: Arnaldo Araújo, José Dias, Sergio Fernandez, Nuno Portas ou Pedro Vieira de Almeida. Logo no ano seguinte, foi ainda chamado a coordenar a equipa da Zona II do Inquérito à Arquitetura Popular, equipa essa que contou com Arnaldo Araújo e Carlos Carvalho Dias. Mas a sua carreira docente só terá início em 1958, primeiro como Assistente convidado e quatro anos depois, em 1962, como Professor do Curso de Arquitetura da ESBAP. Foi, aliás, na sequência deste processo concursal que veio a publicar Da Função Social do Arquitecto. Com algumas intermitências, já que a sua vida profissional abrangeu múltiplos campos de intervenção e de interesse, manteve-se ligado à Escola/Faculdade até 1991, ano da sua aposentação, seja enquanto Professor, seja como representante desta em iniciativas junto das entidades institucionais, académicas e civis para as quais foi chamado ou se propôs participar. O que esta documentação, reunida em 5 caixas, integra são exatamente registos desse período dilatado de tempo, onde a sua ação se fez sentir e se foi repercutindo em momentos refundadores da própria Escola e da sua projeção externa.
E lá encontramos notícia dos inovadores Inquéritos Urbanos, que Octávio Lixa Filgueiras propôs e implementou, entre 1961 e 1969, como forma de renovação das cadeiras de Arquitetura, bem como de momentos que ditaram o seu afastamento, entre 1971, por motivos pessoais e não sem antes se envolver ativamente na discussão sobre a reestruturação do curso, e 1974, ano em que regressa para de novo se afastar em discordância com a orientação pedagógica adotada. Assim como da reintegração que surgiu largos anos depois, em 1985, para orientação de um Seminário sobre Recuperação do Património Arquitetónico, destacando-se, neste período final, a sua participação na organização da exposição evocativa e retrospetiva de Carlos Ramos, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1986.
Aí podemos encontrar também a memória que permanece do processo não concretizado de abrir um Curso em Coimbra, na ARCA, com Arnaldo Araújo, António Quadros, José Forjaz e Souto de Moura; notas que ficaram da arguição de teses como a de Pedro Vieira de Almeida; apontamentos do que tudo indica ser o trabalho de preparação para a sua intervenção enquanto elemento do Júri do Concurso para a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, com o mapeamento de obras de Perret, Baur, Bauer, Rudolf Schwarz, Le Corbusier ou Tedeschi; ou as sínteses atentas da Reunião da UIA,
em 1965. Tudo isto entre muitos outros registos que deixam entrever um pensamento e uma voz próprios sobre o que deveria ser o ensino e o papel da Arquitetura, sustentados num olhar aberto ao país e ao mundo do seu tempo. E por isso não é surpreendente que nos deparemos com um rascunho de um questionário a submeter aos aspirantes ao Curso de Arquitetura constituído por 31 perguntas, entre as quais se apuravam gostos musicais, literários ou artísticos dos futuros estudantes, o seu gosto por viagens, sobre a prática do desporto, hábitos de cinema, televisão e fotografia, e ainda que na 20.ª posição, se desenhava por gosto, antes de chegar às expectáveis questões que o concluíam.
FERNANDO TÁVORA | 25.08
ESTE PAPEL, AQUELA MESA...
Este não é um mero canto de uma toalha de papel que sobreviveu a um bom almoço, talvez até a um dos muitos que tinham lugar na Adega Ribatejo ou na Minhota, lugares bem próximos do Atelier da Rua Duque de Loulé, frequentados por Fernando Távora. Coube-lhe a função de registar o instante em que ao olhar para a mesa, servido o café, Fernando Távora se apercebeu que ali se encontrava uma “natureza morta” em potência, capaz mesmo de se transformar num gesto de homenagem a Le Corbusier e Dominguez Alvarez. O desenho que, à falta de melhor suporte, então deixa sobre esse pedaço de papel, capta a ideia e confirma o detalhe desse olhar, nele fixando não só a composição, como as cores que a deveriam acompanhar. E porque o tempo era um dado a considerar, também a data ficou registada: 17 de março de 1986. O caso é que a cor amarelecida que os anos trouxeram, a par dos furos onde outrora deve ter sido perfurada por pioneses, confirmam do interesse que teve para o seu autor, que o manteve exposto no atelier por largo tempo, a aguardar um próximo passo que daria forma artística àquele esboço. Tal não veio a acontecer.
De facto, para si e em si ficou o que está para além deste desenho, o que poderia explicar a surpreendente associação entre arquiteto e pintor, mas dele podemos falar enquanto sinal do prazer de Fernando Távora pela boa mesa, aquela em que a par de boa comida se desenrolavam boas conversas, aquela em torno da qual se apuravam cumplicidades e se decantavam amizades.
E vêm à ideia “os trabalhos e os dias” de Jorge de Sena. Bastaria apenas substituir a palavra escrever por desenhar: “Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro e principio a desenhar como se desenhar fosse respirar...à medida que desenho, vou ficando espantado...Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem. E os convivas que chegam intencionalmente sorriem e só eu sei porque principiei a desenhar...e falo da verdade, essa iguaria rara: este papel, esta mesa, eu apreendendo o que desenho.”
SETEMBRO
MARIA JOSÉ MARQUES DA SILVA | 07.09
UM DESENHO NAS VOLTAS DO TEMPO: A QUINTA DE SERRALVES
Os desenhos viajam, claro. E quantas vezes, entrelaçados nas voltas do tempo, percorrem destinos aparentemente enigmáticos, deixando revelar muito mais do que a arquitetura que representam. Atente-se neste: um “decalque do projecto assinado pelo Arquitecto José Marques da Silva, em 9 de novembro de 1943”, portanto, 4 anos anterior à morte deste arquiteto, que iniciara os primeiros estudos para este lugar em 1927 e que em 1943 concluíra o projeto de licenciamento da obra. Ora, os autores deste “decalque”, realizado em fevereiro de 1955, são os arquitetos que o assinam: Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva, designadamente filha e genro de Marques da Silva. Não pertence, contudo, ao seu acervo, ainda que se encontre atualmente no Arquivo da Fundação Marques da Silva. É, sim, parte integrante do acervo de Fernando Távora. Surpreendente? Talvez não.
Este corte à escala 1/100 foi “recuperado” por esta dupla de arquitetos, Maria José e David Moreira da Silva para Delfim Ferreira, o recém-proprietário do “Casal de Santa Maria” – a nova designação atribuída ao “Casal de Serralves”, entretanto adquirido por este industrial ao Conde de Vizela, Carlos Alberto Cabral. E, sim, trata-se do espaço que hoje todos conhecemos como a Capela e Casa de Serralves. Porquê o interesse de Fernando Távora? É que este arquiteto, entre 1987 e 1988, cinco anos após a compra da Quinta de Serralves aos herdeiros de Delfim Ferreira pelo Estado, já com a Casa aberta como Museu à cidade, estava a intervir neste espaço, sendo de sua autoria o projeto do guarda-vento da entrada, os tapetes e o mobiliário do Gabinete do Diretor, assim como a mesa de telefone e os candeeiros. Este desenho deve ter sido consultado e arquivado durante o processo de trabalho, servindo como elemento de documentação do existente. Mas é agora, também, um exemplo paradigmático das muitas trajetórias que um desenho pode seguir.
Regressemos à dupla de arquitetos que está na interseção de um antes e de um depois. Acontece que Maria José e David Moreira da Silva, autores do muro e do portão da rua de Serralves para o Conde de Vizela, entre 1948-49, viriam a ser os intermediários do processo de compra e venda por Delfim Ferreira, concluído exatamente em janeiro de 1955. E note-se que, para este mesmo cliente, o atelier destes arquitetos portuenses estava já a projetar, desde a década de 40, o edifício-quarteirão do Palácio do Comércio, assumindo ainda a autoria de outros trabalhos, como o projeto do adro e portão da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na Pr. do Marquês de Pombal (patrocinado por Delfim Ferreira) ou o levantamento da fachada da Quinta do Cisne, em Gaia.
E, assim, este desenho adquire ainda um outro interesse, o de ser um insterstício no tempo para onde converge toda uma rede de ligações que vai unindo diferentes arquitetos e clientes em torno de um mesmo lugar, em cuja identidade e história se inscrevem e conciliam os contributos de cada um deles.
Maria José Marques da Silva, cujo tirocínio foi feito com o pai, José Marques da Silva, desenvolveu toda a sua vida de profissional liberal em sociedade com David Moreira da Silva.
JOSÉ DA CRUZ LIMA | 09.09
CONSTRUIR
SOBRE UMA ILHA
ARTIFICIAL:
O RESTAURANTE-BAR DO AREINHO, EM OVAR
A aquisição dos terrenos da Ria, no sítio do Areinho, por parte da Câmara Municipal de Ovar através da Comissão de Turismo, acontece no final da década de 50. Era já então evidente o interesse crescente por um lugar de inegável beleza, onde ao potencial enquanto estância balnear se associava a possibilidade da prática de desportos náuticos. Seguir-se-á, após a compra, o planeamento de um conjunto de ações para desenvolvimento e valorização do Areinho: a criação de duas ilhas artificiais para “domesticação” da paisagem natural, em particular para conter as margens lodosas da ria naquele canal; e a construção de uma importante infraestrutura destinada a acolher o desejado fluxo de futuros utilizadores, isto é, um equipamento de restauração e apoio às atividades náuticas a implantar na ilha que seria ligada à estrada por um pequeno pontão flutuante em madeira. Quanto à ilha mais pequena, poderia vir a a ser um heliporto, ideia que acabaria por nunca vir a ser concretizada.
Concluída a drenagem e estabilização das duas ilhas artificiais, ainda durante a década de sessenta, coube ao arquiteto José da Cruz Lima, na altura a exercer funções como arquiteto consultor do Município, projetar o pontão e esse novo equipamento com múltiplas valências: “restaurante e bar, diversões e esplanada”. Apesar da necessidade de implicar “fundações dispendiosas”, o projeto avançou e o Restaurante VELA AREINHO anunciou e celebrou a sua entrada em funcionamento a 18 de abril de 1970. Diz-nos a memória descritiva arquivada na Fundação Marques da Silva que os materiais predominantes na sua construção, para além da estrutura formada por pilares e asnas de ferro zincado, passaram, entre outros, pelo uso de pedra rusticada, azulejos decorativos, madeiras do ultramar e grandes panos envidraçados. Memória essa que se cinge ao essencial e não ocupa mais do que uma página A4, pois o “projecto apresentado mostra claramente aquilo que pretende realizar” tornando desnecessário prolongá-la.
De facto, com uma arquitetura adequada à natureza do terreno e bem enquadrada na paisagem, o Restaurante-Bar logo se tornou um destino de excelência e uma referência na região. Concessionado a privados, atravessou nestes últimos anos algumas adversidades. Porém, são muitas as vozes que continuam a vir a público defender a sua requalificação, enquanto património a preservar.
FERNANDO LANHAS | 16.09
QUANDO A ARQUITETURA SE CRUZA COM AS ARTES PLÁSTICAS:A SALA DE EXPOSIÇÕES CALOUSTE GULBENKIAN DO ATENEU COMERCIAL DO PORTO
A 13 de junho de 1958, o Ateneu Comercial do Porto inaugurou a exposição “artes plásticas”. Tratava-se de uma iniciativa promovida e organizada pelo próprio Ateneu, que pretendia assim reeditar a “Exposição de Artes Plásticas” apresentada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1957, em Lisboa, na Sociedade Nacional de Belas-Artes. A ação a realizar no Porto incluiria agora, num formato mais contido, não só obras premiadas no certame de 57 – dos artistas Eduardo Viana, Barata Feyo, Dordio Gomes, Abel Manta, Júlio Resende, Guilherme Camarinha, António Duarte, Joaquim Correia, Jorge Vieira, Bernardo Marques, António Santiago Areal e Teresa Sousa – como incidiria em trabalhos de artistas da região Norte.
Ainda que a proposta tenha sido avançada pelo Ateneu Comercial do Porto, seria a Fundação Calouste Gulbenkian, nestes seus primeiros gestos de afirmação no campo do apoio às artes (ainda anteriores à inauguração do seu edifício-sede), a patrocinar as remodelações necessárias à montagem da exposição, assim como a aquisição de materiais desmontáveis apropriados a este tipo de ações. Reunidas as condições necessárias, o projeto acabou por ser entregue aos arquitetos Fernando Lanhas e Eduardo Brito, e ao engenheiro Dias Lopes (segundo Leonor Silveira, nomes possivelmente recomendados por Carlos Ramos, então diretor da Escola Superior de Belas-Artes do Porto, e membro do júri de seleção).
A escolha do nome de Fernando Lanhas, em cujo acervo se encontra documentado não só o desenvolvimento do projeto de arquitetura para o Salão de Exposições, como a listagem dos artistas e obras admitidas, não é, contudo, uma surpresa quando equacionado em perspetiva. A Pintura, há muito constituía uma das suas áreas de interesse e de experimentação, sendo um dos líderes de várias das exposições do grupo “Os Independentes” realizadas na cidade do Porto, ao longo da década de 40. E também o espaço do Ateneu lhe era familiar. Aqui tinha decorrido, em 1944 a segunda exposição deste grupo de artistas; aqui coordenara, juntamente com Viana de Lima, Cassiano Barbosa e Arménio Losa, em 1951, a exposição da ODAM; e três anos mais tarde, com Miguel Barrias, Júlio Resende e Lagoa Henriques, aqui apresentara a exposição “Arte Infantil”, com conceção de Alice Gomes e M. Calvet de Magalhães.
Paralelamente, a arquitetura continuava a estar bem presente, estando documentados no acervo de Fernando Lanhas, durante a década de 50, só para moradias e prédios, por entre outras tipologias, cerca de três dezenas de projetos. Quanto aos desenhos para o Salão móvel do Ateneu, batizado “Salão de Exposições Calouste Gulbenkian” em homenagem ao seu patrocinador, neles se deteta a sensibilidade museológica de Fernando Lanhas, que sobretudo a partir dos anos 80 aprofundaria, assim como neles se pressente uma sintonia entre a linguagem artística e o traço próprio deste arquiteto.
NUNO PORTAS | 23.09
EM VIAGEM
No acervo de Nuno Portas encontra-se um conjunto de cartas que escapou à voragem do tempo e ao afastamento dos seus interlocutores. Escritas entre 1954 e 1955, por este arquiteto, então com vinte anos de idade, revelam os laços que o ligaram a uma outra jovem arquiteta, René Cadete de Oliveira, mas, respeitados os excertos que devem permanecer na esfera pessoal e íntima de quem as escreveu e a quem se destinam, as palavras que as preenchem adquirem um particular interesse para a historiografia da arquitetura portuguesa, pois são moldadas pela partilha dessa condição mútua de serem ambos arquitetos na ânsia de desbravar mundo e com muitos sonhos a perseguir. Nelas se percebe como a mundividência de Nuno Portas se vai formando, dos interesses que o vão motivando, do que então o vai impressionando.
Através deste testemunho, em discurso direto, vão sendo revelados os contextos dos seus primeiros projetos (como a casa da Fronteira, pertencente à sua tia), a experiência de atelier, a importante convivência com António Freitas Leal e as primeiras ideias para a Igreja de Moscavide, a amizade com Manuel Cargaleiro, visita obrigatória em Paris, ou a viagem que faz na companhia de João de Almeida, em 1954, tendo como pano de fundo a afirmação de um emergente MRAR (Movimento de Renovação da Arte Religiosa). E é fundamentalmente a narrativa desta viagem a René Cadete de Oliveira, desse périplo pela Suíça, Alemanha e França, que se torna particularmente interessante de acompanhar, seja pelos detalhes sobre as circunstâncias como a viagem vai acontecendo (a estadia com o arquiteto Hermann Baur, as visitas ao atelier e a obras de Rudolf Schwarzt, de Le Corbusier ou de Perret, o encontro com o escultor Schilling, os filmes a que assiste em Paris...), seja pelo momento em que esta acontece, ao passar por cidades ainda fortemente marcadas pelo pós-guerra e pela reconstrução em larga escala (são surpreendentesas descrições de Frankfurt e Colónia!), reflexo do olhar crítico e atento com que vai assimilando o que vê, em confronto com as suas referências e com a realidade nacional que o cerca. Aí ficamos a saber que será na companhia de M.me Baur e João de Almeida que visitará Ronchamp, poucos meses antes da sua inauguração. Aí descreve, sem esquissos, devido à trepidação do comboio, o mais pormenorizadamente possível o que viu e não esconde o fascínio que sentiu: “aquilo é de tal forma belo e forte que é sagrado [...] a classe e a lição de arquitectura que aquilo é”.
Transcreva-se, a título de exemplo, a forma como analisa e descreve a René, duas obras de Schwartz e que a imagem anexa, para dar a ver os esquissos, também documenta: “Uma pequenina capela [Kapelle Kalk, em Colónia] construída com pedra velha, que é formidável. É um túnel branco apenas interceptado por uma janela com o altar em frente dessa janela e que termina por um quarto de esfera ao fundo, sempre branco. Ao lado dos bancos corre uma série de candeeiros de pé, que marcam duas linhas violentas para o altar. É uma coisa linda. Mas foi hoje que ficámos não sei bem como hei-de dizer, mas qualquer coisa como quando fomos a Ronchamp. Esta é a planta aproximada [St. Maria Königin, em Frechen]. Mas são os volumes, marcados pelo tijolo vermelho e pelo tecto em tábuas de tons diferentes formando superfícies de tonalidades quentes que se cortam, modeladas pela iluminação, que nos dizem tudo. É uma obra como ainda não tínhamos visto nada de parecido –como a arquitectura dos grandes – de um Corbusier, ou antes de um Mies Van der Roe. É um espaço total, de dentro e de fora, que está, que tem um valor misterioso em si. Tivemos pena que ainda faltem os acabamentos, por dentro.”
Quanto a René, sabemos apenas que em 1954 residiu na Apúlia e depois se mudou para Moscavide, que a sua mãe vivia em Engarnais Cimeiros (Mouriscas) e que, em 1961, defende o seu CODA na ESBAP, com o projeto para o interior de uma Pousada em Vilar Formoso, ano em que também discursará, no Porto, num dos Encontros do MRAR. É, no entanto, a si que devemos o privilégio de poder retomar e entrar nessa viagem, nesse tempo, guiados pela mão de Nuno Portas.
OUTUBRO
JOSÉ PORTO | 10.10
O CRUZEIRO DE SANTA LUZIA, EM VILAR DE MOUROS
Num primeiro olhar pelo percurso do arquiteto José Luiz Porto, logo se torna percetível a existência de um considerável número de obras de forte impacto urbano, seja porque as circunstâncias assim o ditaram, seja pelo que pode ter sido uma apetência pessoal pela larga escala. E bastaria citar algumas, entre obras construídas ou tão simplesmente projetadas, para fundamentar esta afirmação: do estádio distrital ao hotel da Pr. D. João I, do projeto para o Coliseu ao edifício Emporium, todas no Porto, mas também as grandes obras para o Ultramar ou até mesmo o projeto para o Concurso para a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa. Seria, contudo, redutor e injusto afirmar que era apenas um arquiteto que pensava “em grande”. Tinha muitos outros interesses, que iam da decoração ao cinema e, quanto à capacidade para conceber ou resolver projetos mais contidos, aí estão as muitas moradias particulares que foi projetando, em particular no Minho, ao longo da década 50, sobretudo nas imediações daquele que será sempre o lugar de regresso, Vilar de Mouros, a sua terra natal, projetos esses documentados no arquivo doado à Fundação Marques da Silva pelo arquiteto Abílio Mourão.
E aí encontramos, por exemplo, este esquisso para o Cruzeiro de Santa Luzia, implantado a cerca de 80m da Capela homónima, junto à estrada de Marinhas. Este lugar rural de culto, construído em granito, na esteira das capelas românicas da região e com uma certa riqueza decorativa do altar, remonta à segunda metade do século XVI e chegou a ter como um dos seus últimos proprietários Manuel José de Aral Barrocas. Terá sido ele, provavelmente, a encomendar a José Porto a reconstrução dos muros do adro e o cruzeiro, trabalho esse que decorreria entre 1952 e 1954. No acervo deste arquiteto não foram identificados registos do trabalho para a Capela, mas aqui está um estudo para o Cruzeiro. Um desenho particularmente interessante por deixar entender, não obstante a singeleza do trabalho, as deambulações mentais que iam assaltando o seu autor.
FILIPE OLIVEIRA DIAS | 16.10
A RUA DE MIGUEL BOMBARDA, ONDE A ARTE SE ESTENDE AO PAVIMENTO
O percurso do arquiteto Filipe Oliveira Dias, breve mas intenso, foi pautado por grandes obras públicas, como o Teatro Helena Sá e Costa, no Porto, e os Teatros Municipais de Bragança e Vila Real, ou as várias Escolas de Ensino Superior para os Politécnicos do Porto, Castelo Branco e Leiria, ou mesmo grandes edifícios residenciais, caso do Conjunto Habitacional Monte de S. João, que projeta com Rui Almeida, no Porto, só para citar alguns dos muitos projetos por si realizados. Mas um há que adquire, pelas suas características, uma condição invulgar: a reabilitação da Rua Miguel Bombarda, no Porto, entre 1998 e 2001.
Tratava-se então de, com base na iniciativa e orientação dos comerciantes instalados nessa via urbana do Porto, vocacionar, com o apoio da autarquia, a Rua para a promoção e o comércio de arte. Uma vontade que deveria ser concretizada sem perda dos moradores residenciais e garantindo que a mesma se pudesse manter viva e segura, de dia ou de noite, à imagem do que acontece em áreas congéneres de outras cidades europeias. O projeto acabaria por abranger também a Rua da Boa Nova, sendo que, na Rua Miguel Bombarda, a prioridade era o peão, e, na Rua da Boa Nova, o automóvel não seria secundarizado. Com estes pressupostos, a opção do mobiliário urbano, pensada de forma a facilitar o trajeto dos visitantes das muitas galerias que aí se começaram a instalar, veio a ser reduzida à sua escala mais simples. E, num compromisso com a funcionalidade desejada e a necessidade de criar momentos de pausa ao longo do percurso para quem nela se passeia, o próprio pavimento incorporou intervenções do artista plástico portuense, Ângelo de Sousa. Passadas mais de duas décadas, Miguel Bombarda continua a cumprir este seu renovado desígnio, o de ser o Quarteirão
Cultural da cidade do Porto.
JOSÉ MARQUES DA SILVA | 18.10
A SEDE PARA “A NACIONAL”, NO PORTO
O postal que aqui se publica pertence ao acervo de José Marques da Silva. Poderia ter sido por si adquirido, já que o edifício em destaque é obra sua: a sede portuense da Companhia de Seguros “A Nacional”, construída sobre terreno adquirido em 1918 e cujos símbolos não só ecoam em vários pontos da arquitetura e elementos escultóricos que distinguem a sua fachada, como “A Nacional” é o nome que tem sobrevivido à passagem do tempo para o designar. Mas trata-se, afinal, de um postal que lhe é enviado para Londres, em 1925, onde se encontrava instalado no Imperial Hotel, em Russel Square, vindo de Paris, pela pessoa responsável por cuidar das suas filhas durante o curso desta viagem do casal Júlia e José Marques da Silva. E isso é relevante? Veremos que sim, não devido aos interlocutores, mas pelo que as entrelinhas desse postal nos mostram.
“A Nacional” é mais do que um mero projeto de arquitetura, já que o processo da sua ideação e construção se prende diretamente com o planeamento do centro cívico da cidade do Porto, tal como ainda hoje o conhecemos e percorremos, processo esse em que Marques da Silva foi um dos protagonistas. Eis o que o próprio refere num rascunho em preparação da memória descritiva: “O edifício collocado no angulo da Avenida das Nações Alliadas e Praça da Liberdade, occupa uma situação de destaque que se procurou valorizar. Além d´isso, destinado também à filiação d´uma Companhia de Seguros Portugueza os seus elementos deveriam conjugar-se com a feição architectonica mais preponderante no Porto. Em feição, a nosso ver, soffre a influencia da Renascença, principalmente da Renascença Flamenga. A essa característica procurâmos, pois, subordinar o aspecto architectonico das fachadas, e d´ahi resultou o desenvolvimento do remate da construcção [...] A massa do edifício não é pois resultante do lado especulativo da construcção, mas da situação especial que elle vai ocupar n´um espaço amplissimo e, empregando uma fraze technica, a servir de encontro às grandes edificações que se estendem ao longo da Avenida das Nações Alliadas.”
Assim aconteceu e este postal é, à sua medida, a prova do reconhecimento e orgulho geral com esse conseguimento arquitetónico e urbano, feito a justificar uma reprodução fotográfica, com honras de impressão a cor, datada do ano da sua inauguração oficial, 1925. E nem é problema a ausência do relógio, essa “máquina de primeira qualidade” que chegará de Paris para marcar o ritmo da cidade novecentista – “as horas da Nacional!”, ou dos dispositivos de sombreamento que animam muitas das suas fotografias posteriores, a presença de obras de terraplanagem no espaço central da Avenida dos Aliados ou o vazio do lugar onde virá a ser construída nova Câmara...
O n.º 1 da Avenida dos Aliados, no Porto, está quase a atingir a distinta marca dos 100 anos e acaba de ser requalificado pelo atelier de Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos, com um projeto que mereceu recentemente a atribuição do Prémio AICA aos seus autores. O processo deste “renascimento” da Nacional será, aliás, em breve documentado no “Livro de Obra” que a Dafne Editora, com o apoio da Fundação Marques da Silva, lançará até ao final deste ano.
FERNÃO SIMÕES DE CARVALHO | 27.10
O CODA: ENTRE PARIS, LISBOA E LUANDA
A obra de um arquiteto é, naturalmente, uma consequência da época em que vive, do que foi o seu percurso de aprendizagem, das referências que o foram modelando, dos princípios e metodologias que foi definindo e adotando ao longo da sua prática, e das circunstâncias que foram ditando os horizontes da sua ação projeto a projeto. O trabalho do arquiteto e urbanista Fernão Simões de Carvalho não é exceção, ainda que o seu trabalho se estenda da década de sessenta ao dealbar dos anos 2000 e tenha atravessado três continentes. Como dirá Michel Toussaint, manter-se-á “sempre fiel nos modelos urbanísticos/arquitetónicos, formais e construtivos, baseados numa racionalidade clara”, que o contexto do Movimento Moderno propusera, fortemente presentes durante a sua formação.
Simões de Carvalho começou por estudar Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e cumpriu o seu tirocínio, entre 1955 e 1956, no Gabinete de Urbanização do Ultramar, com os arquitetos João Aguiar e Lucínio Cruz. Mas logo partiu para Paris, onde, na senda de Vasco Vieira da Costa e Nadir Afonso, teve por destino o atelier de Le Corbusier, no ano em que o até então chefe de projeto, André Wogenscky, decidira fundar atelier próprio. Será aqui que Simões de Carvalho se manterá, até 1959, numa colaboração que lhe permitiu trabalhar e acompanhar projetos como o da Unité d´Habitation de Berlim, de Nantes-Rezé e de Briey-en-Forêt, do Convento de La Tourette ou do Pavilhão do Brasil na Cidade Universitária de Paris, de que será architecte de chantier. E será também durante estes anos, a partir da capital francesa, que conclui a preparação do seu CODA, que virá defender a Lisboa, ainda em 1957, tendo por tema um projeto para “Um Centro de Televisão”. Aliás, Simões de Carvalho faz questão de explicitar que, para a elaboração do programa proposto visitara o mais moderno centro de televisão francesa ainda em construção, em Paris, o de Buttes-Chaumont, assim como as instalações congéneres da BBC, em Londres, então a realizar um “novo e grande centro, White City Project, em Wood Lane”.
Todo este conhecimento adquirido, entre Lisboa e Paris, constituiu a pedra basilar do que Simões de Carvalho viria depois a aplicar e desenvolver em Angola, no Brasil e, após 75, de novo em Portugal. Já no que se refere especificamente ao trabalho de preparação do CODA, este tornar-se-ia determinante quando, nos primeiros anos da década de 70, lhe caberá desenvolver, juntamente com José Pinto da Cunha e Fernando Alfredo Pereira, o projeto do Centro de Radiodifusão de Angola, em Luanda.
ALCINO SOUTINHO | 06.11
A ARTE DE AMAR O BANAL OU COMO PASSAR DA IDEIA AO OBJETO
“Alguém tem de amar o banal”. Assim começa um poema de Barreto Guimarães, mas, ainda que tal fosse possível, não vai ser o caminho do poema aquele que vamos percorrer e sim o de um desenho, aquele que nos dá conta da inesperada transformação de um fascínio de infância pela arte de fazer sapatos numa concreta e real experiência de imaginar uma peça de calçado indispensável, pela nossa condição de bípedes, ao nosso quotidiano. E sabendo antecipadamente que, num gesto onde o banal se transcende, este par de sapatos, este objeto de uso comum, não só foi desenhado, como também acabou por ganhar forma capaz de se moldar e cobrir uns pés.
Tratemos de precisar o que acaba de ser escrito. A dado tempo, já entrado o século XXI, Alcino Soutinho terá confidenciado a quem então o entrevistava que, em criança, sonhara ter sido sapateiro, tendo um seu tio chegado a oferecer-lhe uma caixa com as ferramentas próprias do mester. Ora, ao tomar conhecimento dessa vontade, Carlos Magno tratou de providenciar o encontro entre arquiteto e fabricante, a quase centenária De Gier. O resto já sabemos. Estes improváveis sapatos foram desenhados, feitos e colocados em venda, com direito a um par de oferta ao seu criador. E por aí andará quem, até sem saber, tivesse tido a ritmar o passo do seu andar sapatos da autoria deste arquiteto, amante da arte de bem calçar. De tal experiência, guarda-se agora na Fundação Marques da Silva um belo conjunto de 18 desenhos de estudo que, nas suas variações, documentam como esse divertido reencontro com memórias distantes foi alvo de apurada atenção por parte do seu autor.
RUI GOES FERREIRA | 08.11
O SANTUÁRIO PARA O PICO DO GALO OU A IMPORTÂNCIA DE UM ARQUIVO
Quando se abrem muitos dos processos de projeto do arq.to Rui Goes Ferreira, é impossível não nos determos, para além do que revelam do seu traço arquitetónico e dos lugares de implantação, na sua evidente plasticidade: seja pelo cuidado recurso à cor e de sombreamento para evidenciar pormenores construtivos e diferenciar materiais; seja pela inserção de elementos, como figuras humanas, vegetação e carros, que, para além de uma imediata perceção da escala e de tantas vezes ajudarem a diferenciar quem os desenha, assim os afectam à função e ao tempo em são feitos. É o caso destes desenhos da Capela de Nossa Senhora de Fátima, a situar no Município de Câmara de Lobos, parte integrante do projeto desenvolvido por Rui Goes Ferreira para a Paróquia da Quinta Grande, tendo então como colaboradores os arquitetos José António Paradela e João Conceição.
Passemos ao contexto. Situado no topo de um promontório, com uma vista panorâmica privilegiada, este foi um projeto pensado e construído entre 1972 e 1974, mas com uma longa história a precedê-lo e a justificar a necessidade de se incorporar, na tangente da planta circular da igreja, uma diminuta capela preexistente, datada do início da década de 30 do século XX. Terá sido aí, nessa extensão improvável e geograficamente distante ainda que temporalmente próxima do milagre de Fátima, que cedo se constituiu um fervoroso culto mariano, com força para transformar o lugar num importante centro de peregrinações para onde afluíam não só parte das populações limítrofes, como também de outros pontos da ilha da Madeira. Foram muitas as peripécias a ditar o encerramento por largos anos da capela original, assim como a validar que na década de 70 se avançasse para a construção de um novo edifício. E se muitas são as versões e notícias a dar conta desta atribulada linha do tempo, em contrapartida, são muito escassas as informações que nos chegam sobre a encomenda feita a Rui Goes Ferreira, com a omissão recorrente do nome do arquiteto, e sobre a forma como a obra veio a ser construída, já que hoje apresenta significativas alterações. Em arquivo, porém, aqui estão os desenhos que permitem não esquecer a sua autoria, da mesma forma que oferecem a quem os observa, para além da justeza das linhas do projeto, a figuração detalhada de freiras e de potenciais fiéis, tal como o pormenor da viatura que permitiria vencer mais facilmente o íngreme caminho de acesso ao santuário. E para uma ligação ao construído, nada como percorrer o Mapa de Arquitectura deste Arquitecto e clicar na obra assinalada com a letra B.
FRANCISCO BARATA FERNANDES | 12.11
A RECUPERAÇÃO DO CASTELO DE SANTA MARIA DA FEIRA: O ENCONTRAR DO FIO DE CONTINUIDADE COM A TRADIÇÃO
“Não me interessa [...] congelar um edifício ou parte de uma cidade, mas gostaria, com o meu trabalho, de contribuir para a divulgação do nosso património, desejando que, concluída a obra, a comunidade a sentisse, usasse e vivesse com o respeito devido pelo que faz parte da história”
Francisco Barata Fernandes, em entrevista a Andrea Ugolini
Sobranceiro à cidade que lhe adotou o nome, em “terra de Santa Maria”, o Castelo da Feira tem a sua origem num tempo bem distante, anterior mesmo ao da conquista da própria nacionalidade, em cujas lutas desempenhou um papel preponderante. Sobreviveram, alíás, duas aras votivas que atestam o culto a divindades da mitologia lusitana e essa longínqua ocupação deste território onde, no século X, se ergueu o primitivo recinto fortificado moçárabe, a assumir posições defensivas contra tropas muçulmanas e normandas. Já em pleno séc. XV, foi concedido ao nobre Fernão Pereira, um acontecimento que viria a ditar a adaptação da Torre-alcáçova a espaço residencial e a implementação de um novo sistema defensivo marcado pela construção da barbacã da porta e da cerca-avançada. Ao longo do século XVII, na Praça de Armas é edificado o novo “Paço dos Condes” e celeiros, e na área extramuros erigida uma capela dedicada à Nossa Senhora da Encarnação, de estilo barroco. A partir de 1700, com a morte do último conde da Feira, a sua incorporação na Casa do Infantado e o incêndio ocorrido em 1722, o Castelo entra numa fase de abandono e degradação que apenas viria a ser revertida em finais do século XIX, com o início dos primeiros trabalhos de restauro e conservação, e a criação de uma Comissão de Proteção e de Conservação, após visita do rei D. Manuel II, em 1908. Apesar das muitas transformações e vicissitudes que sofreu, o Castelo da Feira conseguiu sobreviver. Mantendo o seu carácter medieval inicial é reconhecido como um exemplar único da arquitetura militar portuguesa, em particular dos recursos defensivos utilizados entre os séculos XI e XVI, tendo sido classificado e alvo de continuadas intervenções arquitetónicas e de estudos arqueológicos que se prolongam nos nossos dias. Uma há, contudo, que aqui se destaca, por determinar a sua utilização enquanto polo cultural.
Entre 1991 e 2006, com o Castelo ainda sob a tutela da Comissão de Vigilância e do IPPAR, coube a Francisco Barata Fernandes, tendo como colaboradores Helder Casal Ribeiro e Eurico Salgado, assumir a autoria de um ambicioso projeto de recuperação, ainda que por vezes interrompido e não cabalmente cumprido, de todo o complexo monumental. Foi um projeto sustentado pelo imperativo de manter a relação com a paisagem intacta, não interferindo com a sua imagem global e deixando que a linguagem contemporânea apenas se revelasse na visita ao Castelo, recuperado para usos culturais, incluindo receções, eventos da cidade e conferências. O projeto passou por uma obra de adaptação e continuidade referente à via de acesso, entrada, rampa e praça de armas; e por uma obra de recuperação e reutilização da Torre de Menagem. No fundo, uma proposta de intervenção no antigo alinhada com um dos princípios de Viollet-le-Duc “restaurar um edifício não é repará-lo nem mantê-lo ou reconstruí-lo, é devolvê-lo a um estado acabado que pode nunca ter existido anteriormente.”
Ostentando orgulhosamente o peso da história e alimentando o imaginário popular, o Castelo continua hoje a dominar o horizonte da cidade e é mesmo o protagonista de um dos pontos altos do programa cultural do Município, que recentemente herdou a sua gestão: a Viagem Medieval em Terra de Santa Maria.
FRANCISCO GRANJA | 23.11
O DESAFIO DE DECORAR O “PARAÍSO”
Francisco Granja, nascido em Souselo (Cinfães), em 1914, frequentou a Escola de Belas Artes do Porto entre 1931 e 1938, e no Porto se estabeleceu como arquiteto. Projetou cinemas (o Vale Formoso continua a ser a sua obra mais referenciada), garagens (como a da Peugeot, projeto exposto em 1953), edifícios de rendimento, moradias e “hotéis à beira-mar”, a pensar no Algarve. Mas entre a sua obra também se encontram, documentados no arquivo da Fundação Marques da Silva, dois projetos dos anos 40 para a cidade de Tomar, duas intervenções em edifícios que partilham como condição comum um mesmo nome: “Paraíso”. Falamos do antigo Teatro Paraíso, desenhado por Deolindo Vieira em 1920; e do Café Paraíso, inaugurado em 1911, no centro da cidade, local privilegiado de encontro dos tomarenses. Um e outro são, ainda hoje, personagens centrais da vida social e cultural de Tomar.
No caso do Teatro Paraíso, as intervenções que Francisco Granja, em parceria com o seu então sócio Carlos Henrique da Silva Neves, realizam, vinte anos após a sua inauguração, vão passar pela remodelação do balcão e da geral, assentes numa nova colunata, bem como pela construção da cabine de projeção. Nesse projeto chegou a estar prevista a construção de um novo salão de festas e de um bar que, por sua vez, apenas viriam a ganhar forma anos mais tarde com Camilo Korrodi. Contudo, foi pelas mãos desta dupla de arquitetos que o Teatro Paraíso se transformou num cineteatro.
Durante esses mesmo anos, mas a título individual – sendo que a presença na cidade pode ter ditado, num ou noutro sentido – nova encomenda, Francisco Granja recebe e aceita o desafio de “modernizar” o Café Paraíso, situado na Rua Serpa Pinto, nessa altura, já propriedade de Manuel Joaquim Mota Grego, em cuja família ainda hoje se mantém. Assim, em 1943, Francisco Granja começa a projetar aquela que seria uma “remodelação simples, dentro do espírito moderno, havendo por necessidade económica, aproveitar a sua estrutura geral, e dentro dela tirar o maior partido decorativo, conforto e bem-estar, tam desejados”. Mantiveram-se as mesmas colunas, que ainda hoje são marca distintiva do seu espaço interior, mas com um aspeto novo e diferente, resultante da “aplicação de um material moderno fingindo mármore”. Terá sido então que se procedeu à aquisição das cadeiras Bauhaus, vindas expressamente da Alemanha? Da consulta da documentação em arquivo, confirma-se sim a profunda intervenção ao nível das infraestruturas do espaço, o cuidado colocado na renovação do sistema de iluminação elétrica, a redistribuição do mobiliário (das mesas aos bilhares) bem como a construção de um balcão, em andiroba, que chegou aos nossos dias. E também a morosidade das obras, seja por contenção financeira, seja devido à dificuldade em obter materiais. Por exemplo, numa carta do construtor civil, de julho de 1946, ficamos a saber que a obra se encontrava paralisada devido à falta de ferragens, vidros das montras e espelhos. Os materiais chegaram e ainda nesse ano terá sido festejada a reabertura do Café, mesmo que só em 1948 o arquiteto tenha dado por encerrado este processo de obra.
Numa e noutra destas intervenções sobre preexistências, planos iniciais e realizações finais acabaram por não ter cabalmente coincidido. Ainda assim, considerando que por essa década a Europa foi palco de uma Guerra infernal, não deve ter deixado de ser inspirador pensar em como decorar um “paraíso”.
RAÚL HESTNES FERREIRA | 24.11
PARA ALÉM DA ARQUITETURA... OU TALVEZ NÃO
Comecemos por partilhar o que se sabe sobre esta fotografia, parte integrante do acervo de Raúl Hestnes Ferreira: está datada de 1963 e documenta o momento em que um grupo de jovens arquitetos ou aspirantes a arquitetos, entre os quais Hestnes Ferreira, chegados de Filadélfia, são recebidos por Edgar Kaufmann Jr.
Desconhecemos a identidade da quase totalidade dos participantes neste encontro, incluindo a de quem tirou a fotografia, mas facilmente nela se reconhece Hestnes Ferreira, o quarto a contar da esquerda, com a sua Canonflex RP à tiracolo, e o próprio Edgar Kaufmann Jr., descontraidamente sentado. E com este dado talvez se torne óbvia a identificação do lugar – a Casa da Cascata – e o porquê de ser este o anfitrião. Este arquiteto e professor de Arte e História da Arquitetura da Universidade de Columbia, que tinha também trabalhado no MoMA entre 1941 e 1955, era o filho de Edgar J. Kaufmann e Liliane S. Kaufmann, o casal para quem Frank Lloyd Wright projetara Fallingwater. Refira-se, aliás, que terá sido Edgar Junior, enquanto bolseiro da Taliesin Fellowship, a apresentar, em 1933, Wrigh ao seu pai. Mas o ano da visita que a fotografia regista, também acaba por ser simbólico, já que será aquele em que Edgar Kaufmann Jr., que desde 1955 se tornara proprietário da casa por morte dos pais, toma a decisão de a doar ao Western Pennsylvania Conservancy (WPC), como forma de garantir a sua proteção, conservação e acessibilidade ao público, assumindo pessoalmente a condução de muitas das visitas que desde então foram sendo organizadas.
É sabido da importância futura da passagem de Raúl Hestnes Ferreira pelos Estados Unidos e da influência de Louis Kahn, tendo sido este apenas um dos muitos momentos que o devem ter marcado por essa altura. Mas o que à época já existia e também se manteve foi o interesse pela fotografia. A máquina fotográfica que então transportou consigo será apenas uma das várias que foi adquirindo ao longo da vida e aquela com a qual muito provavelmente fotografou a construção da Casa de Albarraque, hoje imagens/documentos únicos, da Casa e da paisagem envolvente que o tempo foi moldando e preenchendo. E tanto a máquina como alguns desses registos fotográficos podem agora ser apreciados em visita à exposição Hestnes Ferreira: Forma | Matéria | Luz.
DEZEMBRO
JOSÉ CARLOS LOUREIRO | 02.12
A “INSUSTENTÁVEL LEVEZA” DA CENTRAL TERMOELÉTRICA DA TAPADA DO OUTEIRO
Foi no contexto do plano de eletrificação do País, legislado em 1944, que, a partir de 1955, se deu início ao processo de ideação e construção da Central Termoelétrica da Tapada do Outeiro, uma grande e moderna central destinada a viabilizar o escoamento dos carvões extraídos na bacia carbonífera do Douro – Pejão e São Pedro da Cova -, a implantar na margem direita do rio Douro, na localidade de Medas. Era um empreendimento invulgar e de enorme exigência, dada a dimensão (do investimento e da escala), a especificidade e complexidade do sítio e do programa a cumprir, e as altas expectativas do que viria a significar o seu impacto económico e social, a nível local, regional e mesmo nacional. Com apenas 33 anos, mas já com obras como o Pavilhão dos Desportos, a Pousada de S. Bartolomeu ou o Bloco residencial e comercial, com a inclusão da escola de Música “Parnaso”, no currículo, foi José Carlos Loureiro o arquiteto chamado para a projetar, contando para isso com o apoio técnico, na área da engenharia civil, de Campos e Matos e Joaquim Sarmento.
O projeto exigia a resposta a múltiplas valências: estação e sub-estação de tratamento de águas; oficinas; central; estação de bombagem; espaços administrativos e espaços para acolhimento de operários e equipas técnicas; uma “grande indústria com edifícios imensos”. Mas a evidência de que aquela seria inevitavelmente “uma presença insólita na paisagem rural” e de que sempre se colocaria a necessidade de cumprir um utilitarismo industrial “tout court”, não levou a que o arquiteto abandonasse a ideia de humanizar essa arquitetura nem de a relacionar com a envolvente. Houve o desejo expresso e depois a decisão de a tornar, pela estruturação formal e expressividade matérica, uma “fábrica mais humana”, “mais agradável e portanto mais eficaz. E aquilo que se desejou apenas e modestamente manter da vegetação existente alargou-se com novas plantações. A integração acentua-se e a fábrica deixa de ser um monstro”. José Carlos Loureiro assina os primeiros desenhos em 1955, num trabalho que se prolongaria até meados da década seguinte. Na monografia que publica em 2012, acompanha a entrada relativa a esta obra com a fotografia da maqueta onde está em primeiro plano uma Pala que nunca viria a ser construída, mas logo nos deparamos com excertos de uma sua memória descritiva (que aqui foi sendo citada) e com uma sucessão de imagens que não deixam dúvidas sobre a natureza deste macro empreendimento e da forma, dir-se-ia poética, como foi abordado e conseguido.
Este impressionante equipamento entrou em funcionamento em 1959. Evoluiu mais tarde para a queima mista (carvão e fuelóleo), acabando por vir a ser desativado em 1994. Novas fontes de energia e uma nova consciência ambiental tornaram esta Central dispensável. Permanece, porém, sobranceira ao Douro, a aguardar um novo destino. Na sua insustentável leveza e apesar do vazio que a habita, continua a ser uma digna representante de arquitetura modernista industrial, testemunho de um tempo e da capacidade de um então jovem, mas arrojado e qualificado arquiteto.
RELATÓRIO DE ATIVIDADES E GESTÃO
ALFREDO LEAL MACHADO | 07.12
ARGANIL: LUGAR DE PASSAGEM E DE OFÍCIO
Há ainda muito a descobrir sobre o que Alfredo Leal Machado projetou e construiu ao longo de um percurso de vida abruptamente interrompido em 1954, poucos meses antes de concluir 50 anos de idade. Natural de Paços de Ferreira, formou-se na Escola de Belas Artes do Porto, em 1932, mas, se a esta cidade de formação se manteve ligado, outros foram os destinos procurados para exercer o oficio de arquiteto, e entre estes, em particular, o distrito de Coimbra, sobretudo na sua condição de colaborador da Direção de Edifícios Nacionais do Norte (DENN). O acervo documental doado à Fundação não deixa de ser escasso: 3 desenhos académicos, desenhos relativos a alguns processos de obra, um conjunto de fotografias, ou seja, o que sobreviveu em foro familiar de uns já distantes anos cinquenta e que veio associar-se aos já existentes painéis de obras expostas em 1953, na homenagem a Marques da Silva.
Mas outros dados começam a preencher essa linha de tempo. Sabíamos, por exemplo, ter sido Alfredo Leal Machado o autor do projeto para os Paços do Concelho de Espinho e de Porto de Mós. Podemos agora acrescentar a autoria do projeto para os Paços do Concelho de Arganil, anterior mesmo ao projeto de Espinho (que data de 1939), já que os trabalhos de construção da sede do município se iniciaram em 1935, após a demolição dos edifícios existentes na área de implantação, a praça que lhe ficaria associada e ruas adjacentes. Uma informação obtida através da consulta cruzada do Site Arquitectura Aqui e do fundo documental do Arquivo Municipal de Arganil, recentemente disponibilizado online
Ficamos então a saber que o projeto integrava “duas soluções diferentes para a fachada principal, uma que prevê um frontão de feição neoclássica sobre o eixo principal da composição e outra, na qual a entrada principal é marcada por quatro elementos verticais em betão armado, de expressão mais próxima do art deco.” O edifício entra em funcionamento em 1939, mas apenas em setembro de 1941 terá honras de inauguração oficial, em cerimónia que conta com a presença de ilustres visitantes, como narra a imprensa da época, entre eles o Presidente da Junta Provincial da Beira Litoral, o Dr. Bissaya Barreto, com quem Leal Machado também virá a colaborar. Porém, nos anos 60, como se pode verificar através de fotografias de época gentilmente cedidas pelo Aquivo Municipal de Arganil, a fachada principal desse edifício inicial foi visivelmente alterada: desaparece a platibanda e os símbolos nacionalistas colocados lateralmente aos elementos verticais, é colocado um frontão e a escadaria é alargada.
A informação publicada em Arquitetura Aqui inclui a menção à existência de três dossiers, um datado entre 1936, relativo ao aformoseamento do Largo em frente ao novo edifício municipal; outro de 1937, com o “Anteprojeto dos Paços do Concelho de Arganil, realizado pelo arquiteto Alfredo Duarte Leal Machado, da Direção de Edifícios Nacionais do Norte, sediada no Porto”; e outro de 1941, referente ao projeto de Urbanização da área envolvente aos Paços do Concelho de Arganil, também por Alfredo Duarte Leal Machado. E também deixa antever que a passagem deste arquiteto por Arganil não se reduziria, contudo, ao projeto da sede municipal e áreas adjacentes, pois em 1938
submete ao Diretor da DENC um projeto para construção de um Asilo e Salão de festas anexo à Santa Casa da Misericórdia de Arganil, “depois de convenientemente remodelado”, que veio a dar origem à Casa do Povo de Arganil, assim como, em 1944, desenvolve a adaptação de tipos definidos no contexto do Plano dos Centenários para a paisagem da região da Beira Litoral em duas escolas primárias, uma no Piódão e outra em Sarzedo.
MANUEL BOTELHO | 29.12
A REMODELAÇÃO DA CAPELA DO PAÇO EPISCOPAL DE LAMEGO: MANUEL BOTELHO E “A QUADRATURA DO CÍRCULO”
“Caixa dentro de outra caixa”, assim foi pensada por Manuel Botelho a nova capela para o Paço Episcopal de Lamego, desmontada que fora a que a antecedera, após obras de remodelação da residência familiar apalaçada oferecida à diocese para habitação do bispo. Num gesto audaz de arquiteto experiente e determinado nas suas convicções, Manuel Botelho enfrentou o desafio de perseguir com o seu desenho, como diria Sophia, a forma justa para este lugar de celebração do divino que, sendo de pequenas dimensões, teria de se manter pleno de simbolismo e sentido. A capela, espaço unitário, renasceu no piso nobre do edifício, localizada que foi no interior duma sala de planta quadrada – o que permitiu criar um “deambulatório” – e com a simplicidade de formas e a nudez dos materiais a traduzir a resposta a essa procura de uma simplicidade essencial. Existe aqui, neste lugar onde a matéria se torna metáfora, uma relação clara entre o uso e o significado de um espaço necessariamente “diferente”, cabendo à arquitetura a tarefa de unificar todos os elementos que o definem. Neste contexto, a “quadratura do círculo” que remata a cúpula e molda a entrada de luz será sempre mais do que uma demonstração de um exercício de precisão, pois há muito se determinou ser possível encontrar um quadrado com a mesma área de um círculo. Aqui, a geometria adquire a força de uma expressão idiomática, de uma imagem simultaneamente sensível e simbólica do insondável caminho de comunhão entre Deus e a Humanidade.
A remodelação da Capela do Paço Episcopal de Lamego, em 2002, obra de maturidade, representou um regresso a um território que Manuel Botelho intimamente conhecia e compreendia. Afinal, o impulso para a Arquitetura surgira mesmo com a proposta de remodelação da Capela do Seminário Maior desta mesma cidade, Lamego, num já distante ano de 1961. Vocação, aliás, que se viria a impor e a levar ao abandono da carreira eclesiástica então iniciada, ainda que sempre se tivesse mantido próximo da sua matriz doutrinária. Partiu, aliás, para Roma, em 1971, para aprofundar os estudos em Teologia Sacra, e de lá regressou, em 1979, com a Laurea in Architettura, pela Università degli Studi di Roma – La Sapienza, obtida com a classificação máxima. Ao longo do seu percurso enquanto arquiteto, por diversas vezes voltou a projetar ou a reorganizar em termos arquitetónicos lugares de culto, experiências essenciais para conseguir o eloquente despojamento da Capela do Paço Episcopal de Lamego, cidade próxima da sua Moimenta da Beira natal.