Um cisco, um chuvisco

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UM CISCO, UM CHUVISCO
Felipe Demetri

Dentro da estética japonesa tradicional, a apreensão do meio externo do qual se retira o material poético deve se dar de modo a manter sua substância, sem a interferência do Eu (shi-i) sobre a composição. O engenho, tão caro à poesia ocidental, interfere na captação do objeto tal como ele é, e aquele que arranja as palavras em busca do efeito superficial (yô - aparência), acaba por contaminar a própria substância do objeto (tai - corpo), tornando a representação artificial.

O espírito embebido de haikai compõe expontâneamente, como que por impulsão do aqui-agora, resultado de uma harmonia que sintoniza o externo e o interno para traduzir a essência profunda das coisas do mundo – sua beleza transcendente e intuitiva (nãoracionalizável) pode ser fixada em palavras.

Essa presenticidade aponta para a impermanência das coisas e se opõe, de maneira complementar, ao tempo cíclico das estações, elemento essencial ao haikai que dita seu tom, por condicionar o estado de espírito daquele que as vive. Sua representação mais direta dentro do waka se dá pelo Kigo, a "palavra de estação", que consubstancia as características das estações de maneira sintética. Isso situa o leitor e permite a reunião dos haikais por sua temática sazonal, critério mais usual de organização das antologias de poesia japonesa.

Senti, ao organizar essa coletânea, um aprimoramento da sensibilidade do autor, em relação ao Arquipélago, no que tange esses critérios estéticos tão particulares à poesia oriental. Talvez por isso eles tenham ficado melhor representados ocupando a totalidade da página, sobressaindo ao vazio em sua presenticidade singela.

A foto da capa é do autor.

haikais poemados no inverno, mas já com algumas intromissões da primavera. agradeço mais uma vez ao gambá solitário arthur mello brotto, que novamente foi revisor, editor e, sobretudo, amigo.

Felipe Demetri

inverno chegou

o vento se espreme entre prédios e dentes

mas que frio que faz não há roupa que cubra essa abertura

fim de outono inverno tem pressa e não piedade

o vento
faz
e assim ela treme
frio
sacudir a árvore
aquecedor trabalha muito ele precisa manter a minha preguiça

inverno deitado na cama hiberno

noite sem vento finalmente a árvore descansa

ressaca que não passa – café passado
cigarrinho do diabo já me avisaram que se fica um trapo
epitáfio da preguiça: confusão remediada do gambá inseticida
boa noite de sono sem dúvida o melhor retorno

manhã de domingo sol ameno piado esparso

certa
a capivara: descansa e depois nada
vê se eu posso com um bicho chamado opossum

gambá solitário divisa o espólio quer tudo pra si

gambá solitário só lhe interessa

o seu poemário

aceito de coração o seu kokoro

pirilampos oníricos: olhos fechados luzes ausentes

fui aproveitar o dia mas ele já foi – inverno

vagalume ronda rondó da noite canção de luz

primavera se anuncia o mosquito voa a abelha se retira

o som da chuva ele mais se parece com o silêncio
o sol sai da toca e toca o solo
inverno fui o mesmo nesse longo ano
já é primavera mas a tua frieza floresce
torço por você pego o destino na mão e vergo

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