Trancos e barrancos

trancos e barrancos haikais na praça

felipe demetri

felipe demetri

de uns tempos pra cá adquiri o hábito de ir na praça perto de casa. vez ou outra acompanhado de um cigarro, vez ou outra de uma cerveja, e sempre do meu celular e o bloco de notas. quase todos os haikais dessa coletânea nasceram dessa solidão. eles tematizam as coisas que via ao meu redor – a figueira, as pombas, o ipê, a amendoeira… e aquele vazio renitente era preenchido por esses pensamentos intrusivos que chamo de fazer poesia. se na técnica clássica do haikai japonês a dissolução do eu é quase que uma condição para a captura do fugidio momento poético, o deslocamento de cenário (da casa para a praça), somada a uma necessidade meio sem nome – um desejo por conexão e, ao mesmo tempo, solidão –, se tornaram uma forma quase acidental de técnica, me levando a algum lugar em que fazer esse tipo de poesia era possível. eu pensava que o meu tino poético estava represado, e que os haikais haviam se tornado mais difíceis; mas subterraneamente eles estavam fluindo, ainda que aos trancos e barrancos.

amendoeira da praça fica vermelha – o tempo passa

chuva intensa ainda não preenche o vazio duradouro

o vento assopra as nuvens: nunca houve chuva

céu branco sol encoberto nublado de tristezas

ipê desflorido não há nada mais descabido

à sombra da figueira as ideias se clareiam

na praça a pomba ao meu lado cisca companhia

na praça rolinhas se enrolam pombas se empombam

um vulto nos meus pés – era só a sombra da borboleta

a lua cheia e cansada senta no céu

silêncio da noite entrecortado pelo chiado dos insetos

calor de inverno adorna melhor o ipê-amarelo

pelas arestas do morro ilumina-se metade da mata

luz alva e rosa hora rara aurora

entre nuvens: luz borocochô sol sem sal

了