BH 120 - Memórias

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ESPECIAL

ESPECIAL

ESTADO DE MINAS DOMINGO, 8 DE OUTUBRO DE 2017

MEMÓRIAS

GUARDIÕES DA HISTÓRIA RACHEL BOTELHO

A cidade mal amanhecia e seus traços, projetados por Aarão Reis (1853-1936), já se retorciam. Os números, cálculos, quarteirões matematicamente medidos e contornos definidos se misturavam às letras, frases e experimentações literárias, coexistindo em um mesmo território. Pelas mãos dos escritores que nela viveram e dela tiraram sua inspiração, a ainda hoje jovem Belo Horizonte já nasceu memória. “Os escritores se colocam nessa relação com a cidade de várias formas. Eles tanto vivem na cidade e convivem entre si quanto vão observando os transeuntes, moradores e, a partir daí, tendo ideias pra escrever”, analisa Fabrício Marques, autor do livro Uma cidade se inventa – Belo Horizonte na visão de seus escritores, para quem as sucessivas gerações de literatos teve um papel fundamental para a construção do legado da capital mineira. Para os leitores – ou não – dos sem-número de contos, crônicas, poemas, romances e memórias propriamente ditas lavrados em terras belo-horizontinas é impossível não tropeçar na geografia dessa literatura. “Tudo ficava entre Bahia, Caetés, Curitiba e Oiapoque”, recorda Pedro Nava (19031984), o grande memorialista da literatura brasileira, em Beira-mar, livro dedicado ao período em que estudou medicina na capital mineira, na década de 1920. No “tudo” desse perímetro, a zona boêmia da cidade, a mesma que décadas mais tarde seria o palco da socialite que escandaliza a sociedade mineira dos anos 1950 e 1960 ao se transformar em meretriz. Eternizada em Hilda Furacão, de Roberto Drummond (1933-2002), virou minissérie e entrou para o imaginário até de quem não folheou o livro. Homenageado em forma de estátua, o autor mora hoje na Savassi – “no doce embalo do bairro

que é um território livre, cada vez mais vasto, onde a liberdade é amante e musa”–, que explorou palmo a palmo, pertinho de Henriqueta Lisboa (1901-1985), a primeira escritora a ingressar na Academia Mineira de Letras. A homenagem a Nava ficou mesmo no reduto da boemia: um cumprimento de estátuas na Rua Goiás com Bahia, em encontro póstumo com o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Por ali, na Bahia, onde hoje é o Hotel Othon, ficava o famoso Bar do Ponto, frequentado por um e outro. Por essa mesma via se chega ao Viaduto Santa Tereza, ícone de O encontro marcado, a obra de Fernando Sabino (1923-2004) que alinhava duas gerações de escritores ao citar o poeta de outrora que, como os personagens do livro, escala seus arcos. Sabino e seu inquieto grupo também são homenageados em forma de estátuas. Ao lado dele, os também escritores e amigos retratados na obra Hélio Pellegrino (1924-1988), Paulo Mendes Campos

(1922-1991) e Otto Lara Resende (1922-1992) eternizam o encontro em frente à Biblioteca Pública. Na certa ainda reclamam do provincianismo da capital mineira e, contraditoriamente ou não, da contínua transformação de sua arquitetura. A eles se juntou este ano Murilo Rubião (19161991), o mais significativo representante do realismo fantástico no Brasil. Fundador, na Imprensa Ofi-

cial, do Suplemento Literário, Rubião tornou reais os sonhos de outros escritores, em uma das mais prestigiosas publicações do gênero no país, enquanto ele próprio povoava a cidade – ou todas elas – com seus personagens mágicos. Na Belo Horizonte dos escritores, a vida real ganha ares de ficção e o que não é até poderia dar um bom livro. “Tem muita história, né bem?”, diz Mário Viana Filho, de 67 anos, à sua mulher Edila Madureira Viana, de 68, que conheceu quando os dois passavam por tratamento contra a tuberculose, na década de 1970. O ambiente de relações furtivas do início do romance do casal, que Marinho sonha pôr no papel, remete – descontados os inestimáveis avanços da medicina – ao descrito por Nava em seu Beira-mar. Memória coletiva e individual também se misturam. No mesmo Parque Municipal que Roberto Drummond elege como a “praia de BH”, ou onde Cyro dos Anjos (1906-1994) flagra a cena em que “com pequenas do subúrbio, o estudante se ressarcia do carinho que lhe negavam as emproadas moças dos palacetes”, lambe-lambes, que começaram a chegar à cidade em 1920, insistem em manter algo do papel dos bons tempos de cronistas visuais da cidade. “Os clientes vêm, tiram as fotografias de que precisam e esperam 20 minutos. É o tempo de eu ir correndo à reveladora de fotos e imprimi-las”, conta João Pereira, de 54, que com uma câmera digital sob a carcaça da antiga máquina-caixote disfarça o fluxo incessante do tempo e suas mudanças.


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