BH 120 - Cicatrizes

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ESPECIAL ESTADO DE MINAS DOMINGO, 22 DE OUTUBRO DE 2017

CICATRIZES

OITAVO ESPECIAL DO ESTADO DE MINAS EM HOMENAGEM AO ANIVERSÁRIO DA CAPITAL MOSTRA COMO O DESCASO AO LONGO DE DÉCADAS TRANSFORMOU O ARRUDAS EM UMA FERIDA NO CORAÇÃO DA CIDADE LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS

SOBRA LIXO, FALTA VIDA EDUARDO MURTA Boa parte das cidades do mundo tem um rio pra chamar de seu. Belo Horizonte já teve. O Arrudas – na verdade, um ribeirão –, foi sendo devorado palmo a palmo até se transformar definitivamente num canal em que sobram esgoto e cimento e falta vida. De curso d’água poupado das intervenções na planta da construção de Belo Horizonte (1894 a 1897), elaborada por Aarão Reis, ele foi “incorporado” ao sistema viário a partir dos anos 1920. Daí à ocupação paulatina e desordenada de suas margens e ao despejo sem controle de detritos industriais e esgoto não demorou. Já nos anos 1950, o Arrudas começava, na verdade, a se transformar na “Geni” da capital mineira. Foram-se as lavadeiras, foramse os peixes. Hoje, fica difícil acreditar que as águas cristalinas de parte de suas várias nascentes em poucos metros se fundem a um líquido turvo, como ocorre nos limites do Parque das Águas, na Região do Barreiro. Dali em diante, é só desolação. Num trecho de 47 quilômetros de extensão (30,6 deles em BH), até que haja o encon-

tro com o Rio das Velhas, o cenário evoca a morte. Mais do que isso, é uma prova da falência nas ações do poder público, descuidadas tanto nas escolhas sobre que destino dar a ele quanto na incapacidade de realmente protegê-lo ou de prevenir tragédias associadas a inundações devastadoras em cujos episódios há um único inocente: a natureza. Exemplos de recuperação ambiental mundo afora não faltam. O Tâmisa, na Inglaterra, o Sena, na França, e o Cheonggyecheon, na Coreia do Sul, são apenas alguns dos rios mortos que, por meio de escolhas acertadas e políticas de Estado, foram salvos e devolvidos a suas populações como espaço de convivência, ponto para prática de esportes e lazer. Para além de se tornar modelos, ganharam o orgulho de seus moradores e o status de cartão-postal.

DESAFIO HISTÓRICO O Arrudas, intervenção pós-intervenção, conseguiu no máximo se converter numa cicatriz aberta que desafia a capital mineira a

30,6km 9,6km extensão do Ribeirão Arrudas dentro de BH

comprimento dele em canal aberto e natural

18,2km 2,8km

total revestido e aberto do manancial em BH

extensão do canal que é revestido e fechado

caminho de seus 120 anos. O papel dos governos nesse desastre é decididamente emblemático no pior dos sentidos – desde a inofensiva Lei 67, de 1913, que previa multa a quem poluísse o ribeirão e seus afluentes, à autoelogiosa e enganosa teoria dos anos 1980, de que a canalização de trechos na área central havia “domado” suas águas. Um dos melhores resumos sobre essa tragédia está na visão do coordenador de Gestão de Águas Urbanas da Secretaria Municipal de Obras da prefeitura, Ricardo Aroeira, ao reconhecer o aniquilamento de um rio com diversidade de fauna e flora, que deu lugar a um canal de esgotamento sanitário. Em suas palavras a “uma galeria de concreto”. Há quem proponha, como o ambientalista e médico sanitarista Apolo Heringer Lisboa, saídas nada convencionais. Arrancar toda a estrutura cimentada, criar ilhas de convivência, afastar o trânsito e recompor matas ciliares. Radical? Pode ser. Mas, em sua avaliação, a única forma de devolver o ribeirão à vida e a sua gente. Para, quem sabe, chegue o dia em que a cidade possa finalmente chamá-lo de seu.


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