A PRODUÇÃO COMPARADA DA PROVA NO SISTEMA PENAL ACUSATÓRIO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO CROSS EXAMINATION

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Pedro Ivo de Sousa Doutor em Direito Constitucional pela Università degli Studi Roma Tre - Itália. Professor Adjunto no Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo. Dirigente do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do MPES. Membro-Auxiliar da Ouvidoria Nacional do Ministério Público/CNMP. Vice-Diretor Acadêmico e Professor da Escola de Estudos Superiores do Ministério Público/AESMP e promotor de Justiça do MPES.

William Clinton Machado Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Assessor do Ministério Público do Espírito Santo.

A PRODUÇÃO COMPARADA DA PROVA NO SISTEMA PENAL ACUSATÓRIO: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO CROSS EXAMINATION NOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS ITALIANO E BRASILEIRO THE COMPARATIVE PRODUCTION OF EVIDENCE IN THE ACCUSATORY CRIMINAL SYSTEM: A CRITICAL ANALYSIS OF CROSS EXAMINATION IN THE ITALIAN AND BRAZILIAN PENAL PROCEDURAL SYSTEMS LA PRODUCCIÓN COMPARADA DE LA PRUEBA EN EL SISTEMA PENAL ACUSATORIO: UN ANÁLISIS CRÍTICO DEL CROSS EXAMINATION EN LOS SISTEMAS PROCESALES PENALES ITALIANO Y BRASILEÑO Resumo: Este artigo estuda a aplicação hodierna do contraditório na produção da prova testemunhal a partir do pensamento do cross examination, procedimento que visa garantir às partes o protagonismo da produção da prova, por dibattimento. Na atual conjuntura processual penal brasileira, assim como na italiana, o cross examination é o meio pelo qual se busca assegurar este protagonismo das partes, reservando ao magistrado o papel de presidente (modelo presidencialista) dos atos processuais, velando pela regular instrução probatória e, ao final, havendo dúvida, esclarecendo pontos obscuros. Trata-se de um estudo comparado dos sistemas processuais italiano e brasileiro, que pretende apresentar, no encerramento, algumas conclusões comparativas e propositivas.

Palavras-chave: Prova, cross examination, contraditório, igualdade, direito comparado. PEDRO IVO DE SOUSA / wILLIAM CLINTON MACHADO

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Abstract: This article studies the contradiction of the present time in the production of the testimonial test, based on the thought of cross examination, a procedure that aims to guarantee the protagonists when producing the test, producing it in dibattimento. In the current Brazilian criminal procedure, as well as in the Italian, cross examination is the means by which it is sought to ensure this protagonism of the parties, reserving to the magistrate the role of president (presidential model) of the procedural acts, overseeing the regular probative instruction and, at the end, when there is doubt, clarifying obscure points. This is a comparative study of the Italian and Brazilian procedural systems, which intends to present, at closing, some comparative and propositional conclusions. Keywords: Proof, cross examination, contradictory, equality, comparative law.

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Resumen: Este artículo estudia la aplicación cotidiana del contradictorio en la producción de la prueba testimonial a partir del pensamiento del cross examination, procedimiento que tiene por objeto garantizar a las las partes el protagonismo de la producción de la prueba, por dibattimento. En la actual coyuntura procesal brasileña y en la italiana, el cross examination es el medio por el cual se busca asegurar este protagonismo de las partes, reservando al magistrado el papel de presidente (modelo presidencialista) de los actos procesales, velando por la regularización probatoria y, al final, en haber duda, aclarando puntos oscuros. Se trata de un estudio comparado de los sistemas procesales italiano y brasileño, que pretende presentar, en el cierre, algunas conclusiones comparativas y propuestas. Palabras clave: Prueba, cross examination, contradictorio, igualdad, derecho comparado.

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INTRODUÇÃO A temática da produção da prova no processo penal está ligada intrinsecamente ao estudo dos sistemas processuais penais. Conforme leciona Rangel (2015, p. 46), sistema processual penal é “o conjunto de princípios e regras constitucionais, de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a serem seguidas à aplicação do direito penal a cada caso concreto1”. Ele pretende, portanto, regular o próprio jus puniendi do Estado Moderno. Neste sentido, Zilli (2003, p. 34) pontua que: Sistemas processuais penais são, pois, campos criados a partir de agrupamento de unidades que se interligam em torno de uma premissa. Funcionam como uma indicação abstrata de um modelo processual penal constituído de unidades que se relacionam e que lhe conferem forma e características próprias2”.

A partir do sistema processual acusatório, como ensina Badaró (2016, p. 95), existe uma nítida separação das funções, em que diferentes personagens atuam em igualdade de posições, caracterizando o actum trium personarum, que se consagra pelo contraditório. Este jurista paulista sustenta ainda que, em que pese a unanimidade de que o atual sistema pátrio é o acusatório, não existem sistemas “puros”, sejam acusatórios ou inquisitórios, e que a conjuntura se dá em razão da prevalência de um sobre o outro. Ou seja, o sistema acusatório prevalece em detrimento do inquisitório no sistema processual penal brasileiro, o que o leva a ser entendido como acusatório3. Considerando a essência do procedimento em contraditório, é de fundamental importância estudarmos a atual conjuntura de formação probatória a fim de eventualmente concluirmos sua provável eficácia no sistema acusatório. Neste sentido, o estudo do direito comparado nos ajuda a compreender como sistemas alienígenas têm aceitado e aplicado as novas ideias do cross examination, a exemplo 1

Por sua vez, Jacinto Coutinho (2001, p. 16) define sistema processual: “Ainda que com uma visão sucinta, tenho a noção de sistema a partir da versão usual, calcada na noção etimológica grega (systema-atos), como um conjunto de temas jurídicos que, colocados em relação com um princípio unificador, formam um todo orgânico que se destina a um fim. é fundamental, pelo que parece óbvio, ser o conjunto orquestrado pelo princípio unificador e voltado para o fim ao qual se destina.”. Dinamarco (2004, p. 190) ensina que “Sistema é um conjunto fechado de elementos interligados e conjugados em vista de objetivos externos comuns, de modo que um atua sobre os demais e assim reciprocamente, numa interação funcional para a qual é indispensável a coerência entre todos. Sistema processual é um conglomerado harmônico de órgãos, técnicas e institutos jurídicos regidos por normas constitucionais e infraconstitucionais capazes de propiciar sua operacionalização segundo o objetivo externo de solucionar conflitos”. 2 Neste mesmo sentido, Andrade (2008, p. 28) conceitua os sistemas processuais penais como: “subsistemas jurídicos formados a partir da reunião, ordenada e unificada, de elementos fixos e variáveis de natureza processual penal”. 3 Em posição minoritária, Lopes Júnior (2015, p. 47) entende ser o processo penal brasileiro essencialmente inquisitório, no que veio a chamar de neoinquisitório. Reconhece o autor, assim como Badaró (2016), que todos os sistemas são mistos, porém o ponto nevrálgico está na essência, no princípio fundante do sistema, posto que o princípio informador do sistema é o inquisitivo, eis que a gestão da prova está nas mãos do juiz. PEDRO IVO DE SOUSA / wILLIAM CLINTON MACHADO

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da Itália, que após as reformas mais recentes em sua Costituzione e em seu Codice di Procedura Penale, inseriu a chamada “regra de ouro” em seu ordenamento, que assegura o contraditório na formação da prova. Esta previsão já havia sido instituída na promulgação do vigente Codice de Procedura Penale (1988). Entretanto, havia sido mal recebida, principalmente pela magistratura italiana. Disso resultou a chamada “revolução inquisitória” de 1992, que teve na Suprema Corte Italiana o estopim, a partir das sentenças n. 24, 254 e 2554, conforme veremos adiante. Este trabalho é formulado, portanto, a partir de uma metodologia de pesquisa comparativa, com desenvolvimento de análises por estudos dedutivos, baseados em normas e doutrinas específicas. Os tópicos deste estudo estão distribuídos com a intenção de analisar a produção da prova pelas partes na sistemática processual brasileira, o contraditório, a produção da prova testemunhal em contraditório no processo penal brasileiro e o cross examination e a produção da prova testemunhal em contraditório no processo penal italiano e o cross examination, como se verá a seguir.

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Apesar de o tema não ser tão recente no âmbito dos debates brasileiros, é importante destacar que a análise comparativa do sistema processual italiano ainda pode revelar aspectos inovadores, especialmente quanto ao âmbito de aplicação e às consequências da aplicação do cross examination no Brasil. é oportuno esclarecer que a escolha comparativa com o sistema italiano se deve justamente ao fato destas modificações sistemáticas terem acontecido antes da alteração brasileira, servindo de inspiração para o nosso sistema, ainda que não totalmente e igualmente aplicadas, como se verá adiante. O problema a ser enfrentado, portanto, é se o cross examination se constitui em importante instrumento para a garantia da validade e da eficácia do sistema penal acusatório. A hipótese desenvolvida é a de que a utilização do cross examination é importante recurso de garantia e eficiência constitucional do sistema acusatório, sendo de extrema relevância construir a forma mais adequada de sua aplicação, especialmente no sistema brasileiro. Diante desta inicial apresentação, este trabalho desenvolverá adiante seus respectivos tópicos, tendo o firme propósito de tecer algumas considerações finais que venham, ainda que de forma singela, a contribuir para o amadurecimento do debate da aplicação deste instituto processual no Brasil.

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Para uma devida apresentação do paradigma italiano, ver Ferrua (2017, p. 661).

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DA PRODUÇÃO DA PROVA PELAS PARTES NA SISTEMÁTICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA Tradicionalmente, com Tourinho Filho (2017, p. 569), tem-se que: provar é, antes de mais nada, estabelecer a existência da verdade; e as provas são os meios pelos quais se procura estabelecê-la. Entendem-se, também, por prova, de ordinário, mesmo que sob críticas, os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio juiz visando a estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos. é um instrumento de verificação do thema probandum5.

Numa perspectiva diversa, prova, conforme ensina Nicolitt (2016, p. 648), “é o instrumento ou o meio através do qual as partes pretendem formar a convicção do julgador em um determinado processo”. Esta convicção, então, não deve advir de apreciações subjetivas do juiz e deve ser, conforme Malatesta (1927, p. 53), “tal que os factos e as provas submetidas ao seu juízo, se fossem submetidas à apreciação desinteressada de qualquer outra pessoa racional, deveriam produzir, também nesta, a mesma convicção que produziram no juiz [sic]”. Este proceder veio a ser chamado pelo jurista italiano de sociabilidade do convencimento. Neste sentido, Tonini (2002, p. 49) acresce que, para que o acertamento seja objetivo (ausência de subjetividade), é necessário que se fundamente nos elementos externos, ou seja, nas provas (externas) – trazidas pelas partes. Assim, considerando o processo penal como uma atividade recognitiva em que o juiz busca, por meio das provas, reconstruir um fato histórico tido como criminoso pela lei penal, o ato de produzir a prova é substancialmente uma atividade de representação, eis que, etimologicamente falando, representar significa fazer presente o que não está, qual seja, o conhecimento que é trazido ao juiz ignorante (do latim ignorare). A determinação de que as partes tragam as provas ao conhecimento do juiz é essencial para inibir a figura do juiz-inquisidor, posto que tanto no Brasil quanto na Itália é sustentado doutrinariamente que “se fosse atribuído ao juiz o poder de buscar as provas e formular as perguntas, ele, de maneira inconsciente, tenderia a escolher a tese da acusação ou da defesa” (TONINI, 2002, p. 49)6 .

DO CONTRADITÓRIO O (processo em) contraditório possui em sua essência a ideia de dialética. Na concepção atual, podemos entender a dialética como um modo de pensarmos as contradições de realidade (KONDER, 2008, p. 7-8). 5

é importante destacar que Renato Lima (2016, p. 573-574) chama a atenção para o fato de que o termo “prova” possui 3 (três) acepções na doutrina brasileira: 1) prova como atividade probatória; 2) prova como resultado; e 3) prova como meio. 6 Neste sentido, ver Lopes Júnior (2015, p. 170). PEDRO IVO DE SOUSA / wILLIAM CLINTON MACHADO

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Aproximando de nossa realidade de estudo e considerando que o processo gira, em regra, em torno de uma contradição de um fato histórico, Carnelutti (2004, p. 67) ensina que o juiz faz história na medida em que escruta no passado para saber como as coisas ocorreram. Assim, seus juízos exarados são juízos de realidade ou históricos. A fim de que o juiz possa exercer estes juízos, deve ser reservada às partes principalmente a garantia do contraditório, que na clássica acepção de Almeida (ANO apud FERNANDES, 2012, p. 65), Badaró (2016, p. 54), Dezem (2017, p. 113), Marques (1997, p. 87) e tantos outros processualistas, significaria nada menos que a “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”. Desta pequena grande definição, podemos extrair duas essências do contraditório: o direito à informação, no primeiro momento, e a participação, em um momento posterior. Ademais, principalmente com os preceitos de élio Fazzalari, deve-se incluir ainda o critério de igualdade ou da par conditio, como aponta Oliveira (2008, p. 282-283), pois de nada valeria a participação se esta não ocorresse em simétrica paridade.

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A paridade, para Ferrajoli (2014, p. 565), necessita de que haja uma perfeita igualdade entre as partes, no sentido de que tanto a defesa seja munida das mesmas capacidades e poderes do órgão acusador, quanto seu papel de contraditor seja amplamente admitido em todo e qualquer procedimento e em cada ato deste, independentemente de onde se encontre o feito. Contraditório, ainda, não se confunde com direito de defesa, até mesmo porque é uma garantia também estendida à acusação. Grinover et al. (2006, p. 85) explicam que defesa e contraditório estão: Indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório.

O ato de contradizer é o cerne do sistema acusatório e deve ser pleno e efetivo. Pleno, pois deve abarcar o processo em sua plenitude até seu encerramento, e efetivo, pois não se limita somente ao conhecimento dos fatos, mas também à possibilidade de contrapô-los. Por isso, esse ato está umbilicalmente ligado com o princípio do audiatur et altera pars, que obriga a reconstrução dos fatos ditos delituosos ser feita com observância do apresentado tanto pela acusação quanto pela defesa, pois conforme Bellavista e Tranchina (1982, p. 181 apud COUTINHO, 1998, p. 187): “dove non c’è contestazione, non c’è rapporto giuridico processuale; dove non c’è contradittorio, non c’è processo”. O adágio então “está atrelado ao direito de audiência, o qual o juiz deve conferir a ambas as partes, sob pena de parcialidade (LOPES JúNIOR, 2017, p. 370). Nas Constituições brasileiras, historicamente, o contraditório passou a ser parte integrante desde a Constituição de 1937 (art. 122, n. 11, segunda parte), passando pelas seguintes REVISTA DO MINISTéRIO PúBLICO DO ESTADO DE GOIÁS


em 1946 (art. 141, §25º), 1967 (art. 140, §16º), 1969 (art. 153, §16º), até finalmente a consagração atual na Constituição da República de 1988, insculpido no art. 5º, LV7 em capítulo destinado aos direitos e garantias fundamentais. No processo penal italiano, a mudança de paradigma do Código Rocco para o Codice di Procedura Penale atual foi enorme. O primeiro, de matrizes eminentemente totalitárias, possuía em sua gênese um caráter inquisitivo. Assim, o juiz era detentor de amplos poderes e a matéria probatória era quase regulamentada de maneira precária, o que permitia um maior arbítrio por parte do julgador. Como aponta Tonini (2002, p. 17), o juiz era “o senhor do processo e das provas”. Seguindo o pensamento inquisitorial, a jurisprudência reforçava os poderes (arbitrários) do juiz sob a fundamentação de que assim se asseguraria o princípio do livre convencimento. Com o advento da codificação de 1988, houve uma divisão das “cargas probatórias” pelas partes a serem distribuídas de diversas formas na produção e valoração. Diferentemente da codificação anterior, a atual dedicou um livro inteiro à matéria probatória, o que demonstra um maior cuidado do legislador, como será mais adiante demonstrado.

DA PRODUÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL EM CONTRADITÓRIO NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO E O CROSS EXAMINATION O ponto crucial para aquilo que se costuma apontar como o marco legal para o surgimento do cross examination no Brasil é a Lei nº 11.690/08, que promoveu significativa mudança no art. 312 do Código de Processo Penal brasileiro. Antes da reforma no Código de Processo Penal brasileiro pela Lei mencionada, a redação do artigo 212 previa que as perguntas das partes seriam requeridas ao juiz e este a formularia à testemunha. Vedava-se ao magistrado, ainda, a recusa de perguntas das partes, exceto se não tivessem relação com o processo ou se, de alguma forma, houvessem sido respondidas. Na atual redação, após a alteração promovida pela Lei nº 11.690/08, o mesmo artigo8 prevê que as perguntas serão formuladas pelas próprias partes diretamente à testemunha, vedando-se as mesmas hipóteses da redação antiga.

7 “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 8 Código de Processo Penal, artigo 212: “As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”. Parágrafo único – “Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.

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Acrescenta-se também que o parágrafo único prevê a possibilidade do juiz complementar a inquirição de fatos que, a seu ponto de vista, não estejam devidamente esclarecidos. Denota-se, outrossim, que ainda existe divergência na doutrina se este novo procedimento estabelecido no art. 212 do Código de Processo Penal brasileiro teria abolido ou não o sistema presidencialista9. Apesar desta divergência, a melhor doutrina tem entendido que ainda cabe ao juiz a condução da instrução processual, sendo uma de suas atribuições justamente manter a regularidade do processo e a ordem nos atos respectivos, como se depreende do artigo 251 do Código de Processo Penal. Desta forma, a mudança buscou aproximar cada vez mais a práxis processual do princípio acusatório ao adotar o sistema do direct examination, no qual a parte que arrolou a testemunha fará a sua inquirição e posteriormente assegurará o contraditório através do cross examination, ao permitir que a outra parte também formule suas indagações. Marcellus Lima (2016, p. 455) batizou esta atividade como sendo princípio da audiência contraditória, no sentido de que: toda prova admite uma contraprova, e, no processo penal, deve ser produzida com o conhecimento da outra parte. A audiência, portanto, é bilateral, advindo nulidade se uma das partes não tiver ciente ou não tiver oportunidade de se manifestar sobre a prova produzida nos autos.

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Considerando que o juiz é o destinatário final da prova, a fim de que possa exercer a sua persuasão racional num silogismo de toda instrução probatória, a lei o concedeu a faculdade de complementar a instrução com o intuito de que venha a ter suas dúvidas dirimidas sobre o que foi pontuado. O cross examination, assegurado pelo right of confrontation, teve sua origem nos Estados Unidos, com previsão expressa em sua Constituição, oriunda da VI Emenda10. Procura, desta forma, garantir a lisura do testemunho ao permitir que ele seja confrontado pela parte contrária, a fim de que sejam evitadas contradições ou influências (leading questions). Como leciona Gomes Filho (2008, p. 286 apud LIMA, 2016, p. 696): No cross examination evidenciam-se as vantagens do contraditório na coleta do material probatório, uma vez que, após o exame direto, abre-se à parte contrária, em relação à qual a testemunha é presumidamente hostil, um amplo campo de investigação. No exame cruzado, é possível fazer-se uma reinquirição a respeito dos fatos já abordados no primeiro exame 9

Neste sentido, asseveram Lopes Júnior e Rosa (2015, p. 121): “é, claramente, uma função completiva e não mais de protagonismo […] o juiz preside o ato, controlando a atuação das partes para que a prova seja produzida nos limites legais e do caso penal”. 10 “in all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right […] to be confronted with the witness against him”. REVISTA DO MINISTéRIO PúBLICO DO ESTADO DE GOIÁS


(cross examination as to facts), como também formular questões que tragam à luz elementos para a verificação da credibilidade do próprio depoente ou de qualquer outra testemunha (cross examination as to credit).

Neste sentido, Malan (2009, p. 3) fala em direito ao confronto, afirmando que: Dentre esses direitos fundamentais, avulta a importância do chamado direito ao confronto (right to confrontation), no que tange à atividade de produção da prova oral. Tal direito, originalmente plasmado na Sexta Emenda à Carta Política estadunidense, na atualidade se encontra consagrado em diversos tratados internacionais de proteção aos Direitos Humanos, além de ter sido encampado de forma expressa pela Constituição italiana em 1999 (artigo 111, §3º). Trata-se, grosso modo, do direito fundamental do acusado a presenciar e participar da produção da prova oral contra si em audiência pública.

O Código de Processo Penal brasileiro, em relação à atividade probatória, estruturou todo o procedimento de modo a respeitar o direito ao confronto, prevendo em vários dispositivos seus corolários lógicos, a exemplo dos arts. 204, 212, 260 e etc.11. Seguindo a esteira do processo justo, fundamentado na observância do contraditório, o STF também já arrematou a temática12, podendo ainda ser acrescentado nas lições de Ubertis (2000, p. 7-8, tradução nossa), que: Como consectário, essencial à validade do processo penal oportunizar defesa mediante citação, contraditório, direito de produção de provas e direito de confrontar as provas da Acusação. Nenhuma pessoa poderá sofrer prejuízo aos próprios interesses sem a efetiva celebração de um processo justo.

Este confronto, explica Dezem (2017, p. 487), vai depender do critério da cautelaridade: De nossa parte, entendemos que o critério melhor para distinção acerca do contraditório sobre a prova ou para a prova refere-se à questão da cautelaridade quando da colheita do meio de prova ou de meio de pesquisa, ou a possibilidade de ineficácia do meio de obtenção de prova. Se houver cautelaridade no caso, não se exige o contraditório para a prova, mas tão somente o contraditório sobre a prova. Caso contrário, há necessidade do contraditório para a prova.

Ou seja, a fim de que seja possibilitado o contraditório, é necessário observar a cautelaridade, razão pela qual a demora na extração da prova tenderia a torná-la possivelmente inútil. A cautelaridade seria, portanto, a exceção à produção da prova por meio do cross examination, tornando o sistema do contraditório para a prova em sistema do contraditório sobre a prova, o que, conforme veremos a seguir, guarda estreita relação com a realidade do ordenamento jurídico italiano. 11

Neste diapasão, convém ressaltar que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica – Decreto nº 678/92) prevê em seu art. 8.2, f, que "toda pessoa acusada de um delito tem o direito, em sua defesa, de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal". No mesmo sentido, o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592/92) assegura em seu art. 14, que "toda pessoa acusada de um delito terá o direito […] de interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação". 12 STF, RHC 117.752/DF, Primeira Turma, Rel.: Min. Rosa weber. Data Julg.: 7 abr. 2015. PEDRO IVO DE SOUSA / wILLIAM CLINTON MACHADO

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DA PRODUÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL EM CONTRADITÓRIO NO PROCESSO PENAL ITALIANO E O CROSS EXAMINATION Ferrajoli (2014, p. 675) aponta que o processo penal no ordenamento jurídico italiano é “uma série de atividades realizadas pelo juiz independente, nas formas previstas pela lei, e seguida da formulação em contraditório público entre acusação e defesa de um juízo consistente na verificação ou falsificação empírica de uma hipótese acusatória”, cujo resultado é a consequente condenação ou absolvição. Este conceito é extraído da teleologia dos arts. 24, 25, 27, 101, 102, 104, 105, 111 e 112 da Constituição italiana, bem como dos arts. 1º, 187, 190 e 192 do novo Código de Processo Penal italiano. O antigo Código de Processo Penal Italiano de 1930, conhecido como Código Rocco, editado na época do fascismo de Mussolini, possuía em sua gênese, como já dito anteriormente, uma essência eminentemente inquisitória, em que amplos poderes eram concedidos aos juízes na condução do processo e na gestão da prova, sendo verdadeiro “senhor do processo e das provas” (TONINI, 2002, p. 17). A prova era produzida em sigilo, quase que num conto kafkiano.

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Como aponta Bettiol (2008, p. 172), “o Código Rocco abolia as tendências liberais do Código de Processo Finocchiaro – abril de 1913, fazendo centro sobre uma fase de instrução secreta e sem garantia defensiva, e sobre uma fase de debate”. Com o advento do Código de Processo Penal Italiano de 1988, houve um rompimento de uma tradição inquisitória, com uma aproximação do modelo processual ao modelo brasileiro, no qual predomina o sistema acusatório que, como já afirmado anteriormente, não pode ser apontado como um sistema eminentemente puro, mas sim como um sistema de características mistas. A principal inovação, segundo Ferrajoli (2014, p. 678), foi a eliminação do juiz-inquisidor, criando-se a figura do Giudice per le indagini preliminari (art. 328), o qual é estranho ao processo instrutório, e do pretor, o qual possui função apenas judicante. O legislador passou também a ter um cuidado maior com a temática das provas, motivo pelo qual dedicou um livro inteiro à matéria probatória (libro III), inovando significativamente sua ordem jurídica. O Código de Processo Penal Italiano de 1988 trouxe ainda uma nova visão sobre a questão das provas orais, principalmente em relação ao contraditório em sua produção. A partir desta mudança radical, a doutrina italiana passou a resumi-la no slogan “do contraditório sobre a prova ao contraditório para a prova” (SIRACUSANO, 1989, p. 84 apud FERRUA, 2017, p. 664), demonstrando claramente a forma como se dava a produção probatória e como o contraditório se fazia presente. Até o códex de 1988, o contraditório se exercia posteriormente à produção da prova, ou seja, sobre as provas já produzidas. Assim, estabelecendo o contraditório sobre a prova.

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Após a mudança de paradigma, a produção do contraditório deve incidir no momento da produção da prova, ou seja, no contraditório para a prova, no que a doutrina italiana conhece como dibattimento. Segundo Tonini (2002, p. 18), o instituto que melhor representa esta mudança de filosofia processual acusatória é o exame cruzado (cross examination), em que há uma distribuição da iniciativa probatória entre as partes e incumbindo ao juiz o poder de controle (arts. 498 e 499 Código Penal Italiano). Também Ferrajoli (2014, p. 678) aponta que, com o novo código, foi realizado o princípio do contraditório na formulação e na discussão das provas, na medida em que estas serão produzidas perante o juiz (arts. 189-192), que atua como presidente, e o dibattimento é produzido segundo o cross examination. Entretanto, esta mudança de paradigma foi árdua. O texto original do Código de 1988 buscava minimizar ao máximo a possibilidade de utilização de declarações prestadas em segredo. Entretanto, após alguns anos, o legislador italiano (fortemente influenciado pelo judiciário), por meio da Lei de Conversão 356 de 1992, decidiu por estender a possibilidade de utilização das referidas declarações sigilosas – o que foi seguido imediatamente pela Suprema Corte Italiana através das Sentenças 254 e 255, também de 1992. Assim, a “regra de ouro”, que há pouco havia sido instituída, foi “derrubada” pela Corte Constitucional.

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E como aponta Ferrua (2017, p. 661): De fato, o erro da Corte constitucional não foi ter colocado como finalidade do processo penal o accertamento da verdade, o que precisa ser almejado por qualquer processo que aspire a confiança dos cidadãos. Ele foi, na verdade, ter considerado que o contraditório como um obstáculo à busca da verdade, ocasionando uma infeliz oposição entre dois valores que deveriam se relacionar intimamente.

As alterações, porém, eclodiram na “revolução inquisitorial”. Muitas foram as críticas e não demorou muito para que houvesse um breve resgate das garantias perdidas. Assim, em 1997, foi promulgada a Lei 267, que reformulou o art. 513 do Codice di Procedura Penale. Esta lei passou a negar “valor probatório às anteriores declarações sobre a responsabilidade de outros coimputados que depois em juízo tenham exercido o direito ao silêncio” (FERRUA, 2017, p. 661), ou seja, passou a “proibir a utilização de declaração incriminatória de corréu durante a fase investigatória, se, no momento processual, ele exercer seu direito a não autoincriminação” (CAPPARELLI; VASCONCELLOS, 2015, p. 442). Neste sentido, aponta Tonini (2002, p. 19-20) que: Com base na disciplina introduzida por essa lei, referidas declarações eram utilizáveis na fase de debates somente: a) se verificado desde a origem o respeito ao contraditório; b) se repetidas na fase de debates, permitindo ao acusado contra-examinar o acusador; c) se se tornam irrepetíveis em razão de causas supervenientes imprevisíveis no momento em que foram prestadas. Se, na fase de debates, o réu “acusador” valia-se da faculdade de não responder, as declarações precedentes não eram utilizáveis contra o acusado porque este último não podia contra-examiná-lo. PEDRO IVO DE SOUSA / wILLIAM CLINTON MACHADO


Também Orlandi (2016, p. 35) assinala que a Lei 267: È concepita in aperta polemica con la “controriforma” del 1992. Con essa si pone, di fatto, il problema di um recupero dello spirito che aveva animato la riforma processuale del 1988. La reazione della magistratura non si fa attendere. Nell’arco di pochi mesi, la l. 267/1997 subirà una fitta gragnuola di eccezioni d’illegitimità (più di cento).

Entretanto, após a reforma do art. 513 do CPP, a Corte Constitucional italiana, novamente após fortes influências da magistratura, decidiu sobre a matéria do contraditório na produção da prova. Orlandi (2016, p. 35) entendeu ser ilegítimo o dispositivo do próprio art. 513, através da Sentença Constitucional n. 361 de 1998, invocando o princípio da razoabilidade, no sentido de que “a situação do réu acusador chamado a depor sobre fatos que geram a responsabilidade penal de terceiros é semelhante à da testemunha”. Ou como destaca Ferrua (2017, p. 679): Em outros termos, diante do silêncio do coimputado se desencadeia o mesmo mecanismo de recuperação probatória previsto para o exame das testemunhas, isto é, a contestação e a incorporação das declarações feitas anteriormente ao fascicolo de julgamento.

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Assim, decidindo por ampliar a possibilidade de utilização de declarações precedentes de testemunha que havia permanecido silente, o entendimento da Corte se justificaria em razão de não cercear a possibilidade de o acusado se confrontar com seu acusador. Isto, na verdade, se tratava de um “contraditório fictício”, como aponta Tonini (2002, p. 20), pois: O acusado não podia constranger o acusador a prestar declarações. Ademais, foi considerado que a “semelhança” com a testemunha era somente formal e não substancial. De fato, se a testemunha permanece silente, comete um crime e, dessa forma, o seu silêncio configura uma situação excepcional. Diferentemente, o silêncio do acusado constitui o exercício de uma faculdade reconhecida por lei. A Corte deu ao princípio do contraditório uma interpretação restritiva, limitada à “crítica” de uma prova já formada em segredo.

Desta forma, recaiu sobre a Corte Constitucional uma imensa gama de críticas, tais como acusações de ter dizimado o contraditório, usurpação de competência do legislativo etc. Neste diapasão de crises e instabilidades no mundo jurídico e político, já no ano seguinte foi realizada uma reforma constitucional, que finalmente inseriu, através da Lei Constitucional nº 2/1999, os chamados princípios do giusto processo no art. 111 da Constituição Italiana. Como explica Orlandi (2016, p. 35): Concepita ufficialmente per conferire rango costituzionale all’idea di proces equitable (fair trial) delineata nell’art. 6 CEDU (Convenzione europea per la salvaguardia dei diritti dell’uomo e delle libertà fondamentali), la modifica dell’art. 111 si segnala anche per la puntigliosità con la quale – al comma 4° – vieta un accertamento di colpevolezza sulla scorta di dichiarazioni rese “da chi, per libera scelta, si sia sempre volontariamente sottratto all’interrogatorio da parte dell’imputato”. Parole nelle quali è ravvisabile una diretta reazione

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alle regole permissive che, dal 1992, consentivano condanne basate su dichiarazioni accusatorie non ribadite in sede dibattimentale, da chi poteva trasformarle in prova semplicemente avvalendosi del proprio diritto al silenzio. La revisione costituzionale segna um passo significativo verso l’affermazione di un’idea di individuo inédita per la nostra cultura giuridica: titolare non solo del diritto di difendersi, ma altresì del diritto a contribuire direttamente alla formazione del giudizio che lo riguarda, con la propria parola e con la propria volontà.

Aponta Tonini (2002, p. 21) que o Parlamento Italiano inseriu no art. 11113 da Constituição alguns novos incisos que devem nortear o giusto processo, sendo eles, principalmente, a reserva da lei em matéria processual, imparcialidade do juiz, paridade de armas e duração razoável do processo. Passou-se então a adotar o entendimento de que, segundo Ferrua (2017, p. 684): A regra do contraditório na formação da prova seria perfeitamente compatível com a utilização probatória das declarações feitas na investigação preliminar, quando fossem contestadas à testemunha ou ao coimputado no exame dibattimentale; e a remissão à impossibilidade de formar a prova em contraditório consagraria oficialmente o princípio de “não dispersão da prova”.

Assim, a nova redação do art. 111 da Constituição primava principalmente pelo contraditório em sua acepção mais clássica, de possibilidade de conhecimento e de confrontação. Posteriormente, em 2001, altera-se novamente o Código de Processo Penal italiano, reestabelecendo as garantias previstas anteriormente e que haviam sido declaradas inconstitucionais, “determinando a separação entre as fases, a exclusão dos atos investigatórios, o direito ao confronto/exame-cruzado e a proibição das declarações por ‘ouvi-dizer’ (hearsay) de policiais”. (CAPPARELLI; VASCONCELLOS, 2015, p. 442-443). Ainda em relação à produção das provas em contraditório, Taruffo (1992, p. 352 apud BADARÓ, 2014, p. 179) adverte que dizem respeito às provas constituendas, ou seja, provas a serem produzidas durante o processo. Diferentemente das provas pré-constituídas, as quais dizem respeito a fontes probatórias anteriores à própria relação processual. Em relação a esta última, o contraditório não acontece em sua formação, e sim para sua valoração, consagrando, desta forma, o slogan “do contraditório sobre a prova ao contraditório para a prova”, salvo exceções legais. 13

Constituição Italiana, artigo 111: 1. A jurisdição deve atuar conforme o princípio do devido processo legal. 2. Todo o processo deve se resolver através do contraditório entre as partes em posição de igualdade, diante de um juiz afastado e imparcial. A lei assegura o prazo razoável ao julgamento. 3. No processo penal, a lei assegura que: o acusado seja informado, na maior brevidade possível, da natureza e das razões da imputação criminal que lhe é feita; disponha do tempo e das condições adequadas para preparar sua defesa; ter a oportunidade de interrogar ou ter interrogada, diante do julgador, qualquer testemunha que o incrimine; dispor do direito de apontar testemunhas de defesa em condições de igualdade à acusação; assim como o direito de ser assistido por tradutor se não entender ou falar a língua utilizada no julgamento. 4. O processo penal é regulado pelo princípio do contraditório na formação da prova. A culpa do acusado não pode ser provada por declarações de alguém que, voluntariamente, se absteve de ser examinado pelo réu ou seu advogado. 5. A lei regulará os casos em que a prova poderá ser considerada mesmo se não produzida em contraditório, em razão do consentimento do acusado, de provada impossibilidade objetiva de repetição ou conduta ilícita (tradução nossa). PEDRO IVO DE SOUSA / wILLIAM CLINTON MACHADO

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Desta forma, a validade da prova testemunhal no sistema penal italiano está condicionada à regra de ouro do processo acusatório pela via do cross examination, salvo as exceções legais, que assim como no Brasil, são as provas taxativamente tidas como irrepetíveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se que, após caminhadas tormentosas em busca de um processo penal mais justo, a Itália e o Brasil experimentaram grandes avanços em seus respectivos sistemas penais, com a implantação do cross examination de forma específica nos ordenamentos jurídicos. Com sua adoção, busca-se adequar o papel do juiz na produção da prova e aumentar a proximidade entre as partes e o juiz, de forma a preservar as garantias fundamentais destas, o que reflete em uma maior atenção aos postulados constitucionais do processo penal.

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Portanto, a aplicação do cross examination termina por garantir um sistema mais legítimo e eficaz, tornando-se elemento de grande relevância para um sistema que pretende garantir direitos e observar deveres. De maneira mais direta e objetiva, é possível ainda desenvolver algumas conclusões relevantes, que podem ser resumidas em afirmações que encontram sintonia com o pensamento apresentado no decorrer do texto: 1 – O sistema acusatório válido e eficaz exige um contraditório legítimo e aperfeiçoado; 2 – O cross examination é a forma de qualificação do princípio do contraditório em busca de um sistema acusatório mais justo e equilibrado; 3 – O cross examination produz a inversão do “sistema de contraditório sobre a prova” para o “sistema de contraditório para a prova”; 4 – O cross examination não é meio absoluto, reservando exceções para casos de provas irrepetíveis; 5 – Com algumas dificuldades, o cross examination foi adotado no Brasil com a redação do atual art. 212 do CPP, formulada pela Lei nº 11.690/08; 6 – A introdução do cross examination no Brasil teve como grande referência a modificação produzida no sistema penal italiano;

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7 – Não existe ainda, no Brasil, o cross examination nas investigações preliminares, apesar das modificações realizadas no Estatuto dos Advogados e de algumas outras propostas de lei que tramitam no Congresso Nacional; 8 – Não existe, no Brasil, a ideia consequencialista adotada na Itália em relação ao cross examination de se desconsiderar a prova produzida pelo depoimento do coautor na fase de investigação preliminar, caso não seja confirmada na fase processual; 9 – Não existe, no Brasil, a ideia consequencialista adotada na Itália em relação ao cross examination de se desconsiderar a prova testemunhal policial indireta no caso da situação anteriormente descrita; 10 – Não existe ainda, no Brasil, a figura do juiz das investigações preliminares, apesar de haver proposta de criação da figura do juiz das garantias na proposta do novo CPP; 11 – Por fim, apesar da inspiração italiana, o cross examination brasileiro possui suas peculiaridades, que não permitem dizer que se trata de instituto de mesma dimensão que o italiano.

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