ACESSO À JUSTIÇA: UMA MUDANÇA DE PARADIGMA NA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO SOB A PERSPECTIVA DA

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José César Naves de Lima Júnior Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa - UAL (Portugal). Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Associação Goiana de Ensino - Faculdade Anhanguera de Ciências Humanas e em Ciências Penais pela Universidade para o Desenvolvimento do Estado e Região do Pantanal. Professor de Criminologia do Curso de Pós-Graduação em Ciências Penais da Rede Juris em Goiânia-GO e da Pós-Graduação em Direito Processual Civil da Faculdade Santa Rita de Cássia - Itumbiara-GO. Professor de Direito Processual Constitucional e de Criminologia do Curso de Direito do UNICERRADO (Centro Universitário de Goiatuba/GO). Membro titular do grupo brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Promotor de Justiça do Estado de Goiás.

ACESSO À JUSTIÇA: UMA MUDANÇA DE PARADIGMA NA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO SOB A PERSPECTIVA DA TERCEIRA ONDA RENOVATÓRIA ACCESS TO JUSTICE: A PARADIGM CHANGE IN THE JUDICIAL AUTHORITY ACTION UNDER PERSPECTIVE OF THE THIRD RENOVATORY WAVE ACCESO A LA JUSTICIA: UN CAMBIO DE PARADIGMA EN LA ACTUACIÓN DEL PODER JUDICIAL BAJO LA PERSPECTIVA DE LA TERCERA ONDA RENOVATORIA

Resumo: O ensaio aborda a tutela de direitos fundamentais sob a dimensão material (de prestação) exercida pelo Poder Judiciário por meio de sentenças aditivas, reveladoras de um ativismo judicial estrutural dialógico. A mudança de paradigma na atuação jurisdicional, para ser compreendida, exigiu o estudo da formação do Estado de direito decorrente do contrato social e a separação de Poderes, descrevendo-se o protagonismo inicial do Poder Legislativo e a tripartição idealizada por Montesquieu, seguida do checks and balance system para viabilizar seu controle. A posteriori, diante da complexidade das relações sociais, políticas e econômicas provenientes do surgimento do mundo globalizado e da revolução digital, chamou-se atenção para a crise da Justiça, do nascimento de litígios policêntricos (estruturais), além da omissão inconstitucional caracterizada, inclusive, nas hipóteses de normas constitucionais de eficácia plena, em superação ao reducionismo semântico prevalente na doutrina clássica. Destacou-se ainda a função do Supremo Tribunal Federal de guardião da Constituição brasileira por meio do controle JOSÉ CÉSAR NAVES DE LIMA JÚNIOR

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de constitucionalidade (difuso e concentrado) e de convencionalidade (teoria da dupla compatibilidade vertical material), bem como a relevância de acesso à Justiça no novo milênio sob a ótica da terceira onda renovatória para a proteção das liberdades fundamentais. Palavras-chave: Contrato social, direitos fundamentais, ativismo, dialogia, flexibilidade.

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Abstract: The essay addresses the protection of fundamental rights under the material dimension (of provision) exercised by the Judiciary Power through additive sentences revealing a dialogical structural judicial activism. The change of paradigm in the judicial process, to be understood, required the study of the formation of the Rule of Law resulting from the social contract and the separation of powers, describing the initial protagonism of the Legislative Power and the tripartition idealized by Montesquieu, followed by the checks and balance system to enable its control. Subsequently, given the complexity of social, political and economic relations arising from the emergence of the globalized world and the digital revolution, attention was drawn to the crisis of Justice, the birth of polycentric (structural) litigation, and the unconstitutional omission characterized, including , in the hypotheses of constitutional norms of full effectiveness, in order to overcome the semantic reductionism prevalent in classical doctrine. The role of the Federal Supreme Court as guardian of the Brazilian Constitution was also highlighted through the control of constitutionality (diffuse and concentrated) and conventionality (theory of double material vertical compatibility), as well as the relevance of access to justice in the new millennium under the perspective of the third renewal wave for the protection of fundamental freedoms. Keywords: Social contract, fundamental rights, activism, dialogue, flexibility. Resumen: El ensayo aborda la tutela de derechos fundamentales bajo la dimensión material (de prestación) ejercida por el Poder Judicial por medio de sentencias aditivas, reveladoras de un activismo judicial estructural dialógico. El cambio de paradigma en la actuación jurisdiccional, para ser comprendida, exigió el estudio de la formación del Estado de derecho derivado del contrato social y la separación de Poderes, describiendo el protagonismo inicial del Poder Legislativo y la tripartición ideada por Montesquieu, seguida de los controles y balance de sistema para viabilizar su control. A posteriori, ante la complejidad de las relaciones sociales, políticas y económicas provenientes del surgimiento del mundo globalizado y de la revolución digital, se llama la atención sobre la crisis de la justicia, el nacimiento de litigios policéntricos (estructurales), además de la omisión inconstitucional caracterizada, en las hipótesis de normas constitucionales de eficacia plena, en superación del reduccionismo semántico prevalente en la doctrina clásica. Se destacó también la función del Supremo Tribunal Federal de guardián de la Constitución brasileña por medio del control de constitucionalidad (difuso y concentrado) y de convencionalidad (teoría de la doble compatibilidad vertical material), así como la relevancia de acceso a la justicia en el nuevo milenio bajo la óptica de la tercera oleada renovadora para la protección de las libertades fundamentales. Palabras clave: Contrato social, derechos fundamentales, activismo, diálogo, flexibilidad.

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INTRODUÇÃO O surgimento da sociedade se deve à natureza gregária da pessoa humana, que somente em comunhão de esforços com seus semelhantes consegue satisfazer as necessidades e ter acesso aos bens primários – a exemplo da própria liberdade, que será abordada ao longo do texto sob o prisma dos direitos fundamentais e do Estado democrático de direito. De proêmio, surge o contratualismo preconizado por Thomas Hobbes, em que o homem abandona seu estado natural (de guerra) e firma o pacto de submissão (Estado leviatã, de cunho absolutista), assim como aquele descrito por John Locke – do estado natural (de harmonia) ao estado de sociedade civil (pacto de consentimento), em que a coletividade deposita no aludido ente fictício o poder de pacificação de conflitos, em evidente cotejo com a vingança privada, pois as normas estariam sempre em consonância com a vontade da maioria. Independentemente da concepção contratualista e dos fundamentos sobre os quais se encontra alicerçado, o homem transita da liberdade natural para a civil, deixando o poder ilimitado de agir com o fito de obter a proteção do corpo coletivo, oriundo da união de indivíduos que decidiram instituí-lo. Para tornar possível o contrato social, é preciso, sobretudo, a sujeição da vontade ao imperativo categórico, como o dever de se portar em conformidade com as leis, comando ético e moral, resultantes de um consenso formador do Estado. Logo, esse deslocamento da liberdade e autonomia individual para o coletivo pela obediência às normas (regras e princípios) permite garantir a liberdade pela igualdade de tratamento e, assim, passa a conviver o domínio público – isto é, a área de necessária intervenção do Estado – com o domínio privado, cuja intervenção moderada procura preservar a liberdade individual. Desse modo, a liberdade passa a ser protegida pela lei, cujo respeito é dever de todos, seja quanto às vedações por ela estabelecidas ou quanto à possibilidade de se agir em defesa de algum direito. Em contexto de liberalismo e igualdade nos domínios da lei, a Constituição revela que está acima de qualquer indivíduo e Poder, justamente por se tratar de fonte de legitimação das políticas públicas e validade das normas, sem prejuízo de garantir as liberdades fundamentais. Na verdade, o constitucionalismo surge como uma técnica limitativa de poder com fins garantísticos, e a separação ordenada dos Poderes públicos possibilitará a realização de controle. Conforme a separação de Poderes idealizada por Locke, esta deveria contemplar quatro funções (Legislativo, Executivo, Federativo e de Prerrogativa), atribuindo-se ao primeiro o status de Poder Supremo, que elabora as normas, enquanto o Executivo as aplica, ficando o Federativo encarregado de representar a coletividade. Ao final, o Poder de Prerrogativa, na hipótese de o regramento ser omisso ou incerto, buscaria intervir e resolver os casos dessa espécie sob a ótica do bem-comum. Entrementes, o iluminista Montesquieu concebeu a teoria da tripartição de Poderes, por meio da qual o Poder Legislativo (função legiferante) continuou hegemônico, tanto que deveria congregar os representantes do povo para seu

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exercício pleno, restando ao Executivo (função administrativa) a representação individual para promover a rápida tomada de decisões e providências na seara administrativa, cabendo ao Judiciário o exercício do poder jurisdicional por intermédio de indivíduos integrantes da comunidade, das camadas populares, de modo a garantir a impessoalidade e ausência de privilégios. A posteriori, no intuito de se afastar o risco de lesão ao princípio da separação de Poderes, admitiu-se o modelo de checks and balances system, no qual eles exercem controle mútuo para o exercício de sua função constitucional. Portanto, tudo aquilo que estiver legitimamente instituído no ordenamento e que seja compatível com a Constituição autoriza o Estado a valer-se de força coercitiva para sua observância, salientando o fortalecimento do princípio da legalidade pelo juspositivismo (normativismo). Por outro lado, no final do século XX, o Estado de direito sofreu uma releitura em seus fundamentos, mormente quanto ao princípio da legalidade que passa a integrar o conteúdo material da Constituição. Inicia-se o período do neoconstitucionalismo ou do que se denominou constitucionalismo pós-positivismo, que, muito além de limitar o poder estatal, busca alcançar a acepção objetiva dos direitos fundamentais sob a égide da força normativa da Constituição.

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ATIVISMO JUDICIAL ESTRUTURAL DIALÓGICO PARA PACIFICAÇÃO DE LITÍGIOS POLICÊNTRICOS E A NECESSIDADE DE MUDANÇA DE PARADIGMA NA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário brasileiro passou a decidir inúmeras ações envolvendo os denominados interesses metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos) por meio de uma série de instrumentos previstos no sistema jurídico nacional, notadamente as ações civis públicas. Inobstante ao Estado-juiz que ressurgia, abarcando diversas demandas dessa natureza, em menos de duas décadas o mundo contemporâneo sofreu profundas transformações, decorrentes do processo de globalização e revolução digital, a ponto de se exigir do Poder Público – diante da complexidade de certas relações jurídicas e, ainda, da interdependência de seus protagonistas – uma nova forma de atuação, notadamente de seus membros e meios legais; proativa e dialógica. Os métodos convencionais, que outrora logravam êxito na resolução de questões essenciais para o corpo social, revelaram-se totalmente incapazes de compor a realidade que se apresenta neste século. A crise do sistema prisional, a segurança pública, a saúde, o trabalho e a moradia, além da corrupção institucionalizada, dentre outros, revelaram que os remédios estruturais poderiam contribuir para minimizar o quadro caótico vivenciado no país, do qual decorre uma indiscutível violação massiva de direitos fundamentais. Em outras palavras, essa deficiência estrutural a que nos referimos encontra-se na forma de atuação dos Poderes, na alocação de recursos orçamentários e principalmente na falta ou mau funcionamento das políticas públicas. Há, na verdade, questões ou litígios policêntricos, quer dizer, de problemas centrais – complexos, dos quais advêm inúmeros outros subsidiários; a solução de cada um depende da solução dos demais, devido a sua marcante e inafastável característica: a interdependência.

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Explicitando melhor a ideia, a solução de litígios policêntricos exigem remédios estruturais, a fim de possibilitar a criação de uma relação coordenada entre os poderes e a sociedade civil, que deverão dialogar entre si com o objetivo de elaborarem, em prazo a ser ajustado judicialmente ou não, as políticas públicas, levando-se em consideração uma série de fatores – econômicos, políticos, sociais e culturais – que apenas seus representantes teriam acesso e por isso não comprometeriam, em tese, outras áreas essenciais de atuação pública. O sistema prisional do Brasil pode ser considerado um litígio policêntrico, cuja crise, que se alastrou por todo o país, não poderá ser resolvida por instrumentos jurídicos convencionais, sendo imprescindível à construção de políticas públicas para o setor de prevenção terciária uma abertura de agenda política e medidas estruturais fixadas dialogicamente por vários atores públicos e a sociedade – todo um processo coordenado que exigirá tempo, estratégia, acompanhamento e avaliação posterior. Aliás, a solução pactuada envolvendo o corpo social e o Estado, tendo como baliza a lei magna, revela sua interpretação pluralista e procedimental, que muito se aproxima de uma sociedade aberta dos intérpretes da constituição (HÄBERLE, 1997, p. 33-34). Os remédios estruturais adequados aos litígios dessa espécie têm sua origem assentada na luta pelo reconhecimento dos direitos civis na década de 1950, nos Estados Unidos da América (Brown I e II). Na Colômbia, pode-se constatar vários casos que levaram sua Corte Constitucional ao ativismo para a composição de lides dessa natureza envolvendo o sistema penitenciário, em 1998 (Sentencia T-153), ou até o deslocamento forçado de refugiados civis em virtude da guerra com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em 2004 (Sentencia T-025). A sentença aditiva (estrutural) é uma técnica de decisão judicial que determina comandos para se alcançar transformações nos órgãos da administração pública necessárias à proteção dos direitos fundamentais (CAMPOS, 2016, p. 189). Procura-se, em epítome, reestruturar as instituições de governo por medidas legislativas, administrativas, regulatórias e orçamentárias, exigindo para isso determinados pressupostos e, ainda, o mais importante e indispensável: seu monitoramento no exercício de uma espécie de jurisdição retida ou supervisória, cujos fundamentos para decisões efetivas na defesa de direitos fundamentais, dentre outros, do acesso à Justiça este artigo científico almeja revelar. A identificação de litígios estruturais exige a presença de quatro pressupostos: 1) uma violação massiva dos direitos fundamentais de determinados grupos ou minorias; 2) a omissão reiterada e persistente dos Poderes Públicos em adotar providências condizentes com a composição de lides estruturais; 3) a ineficiência das medidas adotadas para superar o estado de crise; e 4) a potencialidade de a situação conflituosa desencadear diversas ações individuais contra o Estado e, dessa forma, comprometer o planejamento orçamentário para atuar em outras áreas, também consideradas essenciais. Desses quatro pressupostos ou requisitos abordados sucintamente, convém destacar a indolência do Poder Público em cumprir a Constituição Federal, principalmente no que diz respeito aos dispositivos referentes aos direitos e garantias fundamentais de milhares de pessoas lesadas e em situação de risco, caracterizando-se a inconstitucionalidade por omissão. Procura-se, como visto, proteger a dimensão objetiva dos direitos fundamentais que alicerça deveres objetivos e

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seu modo de cumprimento, centrada na dignidade da pessoa humana como um valor absoluto (NOVAIS, 2017, p. 162-163). No Brasil, a omissão inconstitucional sempre foi tratada pela doutrina sob uma perspectiva formalista. Logo, sua caracterização somente ocorria diante das denominadas normas constitucionais de eficácia limitada – dependentes de complemento normativo para sua plenitude eficacial. Lado outro, esse reducionismo semântico estrutural deve ser superado pelo Direito pós-moderno, a exemplo do que se verificou em 2015 no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347 e do Recurso Extraordinário nº 592.581 do Ministério Público do Rio Grande do Sul, com a Repercussão Geral nº 2201, sob a relatoria do eminente ministro Marco Aurélio de Mello, que reconheceu o estado de coisas inconstitucional (ECI) no sistema penitenciário brasileiro. Esse precedente revela sua importância na medida em que admite a inconstitucionalidade por omissão sob um prisma material, ou melhor, sua caracterização diante de normas constitucionais de eficácia plena, aplicabilidade direta, imediata e integral. Perceba que não se defende aqui apenas a prolação de decisões sob uma roupagem estruturante – o que pode ser necessário em alguns casos –, mas adotar como norte da atuação jurisdicional uma racionalidade dialógica, flexível e monitorada de atores e medidas destinadas à conformação de litígios estruturais, que inegavelmente chegam ao Poder Judiciário em diversas áreas, como patrimônio público, meio ambiente, saúde, idoso, educação, infância e juventude e consumidor, além da segurança pública etc.

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O ativismo judicial estrutural dialógico é considerado legítimo nas democracias ocidentais justamente por preservar a independência dos poderes ao decidir um litígio, determinando-se a abertura de diálogo entre os grupos de pessoas que integram uma sociedade e o Estado, fixando-se um prazo para a adoção de medidas em conformidade com a Constituição e apresentação de solução pactuada.

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS Cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Constituição, realizar o controle de constitucionalidade (difuso e concentrado) e de convencionalidade (teoria da dupla constitucionalidade vertical material2), interpretando-se o texto magno sob a ótica formal (iniciativa/processo legislativo) e material (conteúdo/norma constitucional).

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Tema da Repercussão Geral nº 220: competência do Poder Judiciário para determinar ao Poder Executivo a realização de obras em estabelecimentos prisionais com o objetivo de assegurar a observância de direitos fundamentais dos presos. 2 Cf. §1º do art. 5º da Constituição Federal: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Também, §2º do art. 5º: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” E ainda, o §3º do art. 5º: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (BRASIL, 1988). REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE GOIáS


Todas as normas infraconstitucionais que vierem a ser produzidas no país devem, para a análise de sua compatibilidade com o sistema do atual Estado Constitucional e Humanista de Direito, passar por dois níveis de aprovação: (1) a Constituição e os tratados de direitos humanos (material ou formalmente constitucionais) ratificados pelo Estado; e (2) os tratados internacionais comuns também ratificados e em vigor no país. A compatibilidade das leis com a Constituição é feita por meio do clássico e bem conhecido controle de constitucionalidade, e com os tratados internacionais em vigor no país (sejam ou não de direitos humanos) por meio dos controles de convencionalidade (em relação aos tratados de direitos humanos) e de supralegalidade (no que toca aos tratados comuns), tema até então inédito na doutrina brasileira (MAZZUOLI, 2009, p. 65-66).

Na interpretação das leis e princípios, o pretório excelso constrói um direito, seja pela simples subsunção do fato à norma ou pela criação de teoria que permita a aplicação e/ou afastamento de determinados princípios em casos difíceis (leading cases), nos quais se exige, no exercício da jurisdição constitucional, a prolação de decisões que ultrapassem a mera aplicação convencional da norma, como as sentenças estruturais, aditivas ou manipulativas abordadas anteriormente, que acabam açambarcando a judicialização de direitos fundamentais e deliberação de temas sociopolíticos. Para melhor compreensão, introduziu-se a questão da judicialização da política (como consequente do que Mauro Cappelletti chamou de “agigantamento do Poder Judiciário”) que permite, para além do Direito, o reconhecimento que os novos textos constitucionais, permeados de princípios e recheados de direitos individuais, exigem dos tribunais – especialmente dos tribunais constitucionais – por seus juízes, decisões que ultrapassem a simples aplicação da lei ao caso concreto, impondo a imersão em assuntos políticos do Estado para deliberação sobre temas sócio-políticos controvertidos. A mudança do paradigma atuário do Poder Judiciário teve reflexos na jurisdição que, devendo proteger a Constituição, recebeu nova denominação, a ponto de ser chamada de jurisdição constitucional como indicativo, grosso modo, da função judiciária voltada a preservação da Constituição (PIRES, 2016, p. 303).

Essa mudança de paradigma revelou a jurisdição constitucional, em que a função do Poder Judiciário é garantir o cumprimento da decisão política fundamental do Estado e assim tutelar os direitos fundamentais em uma dimensão objetiva. Resta dizer que, na atualidade, o Poder Judiciário exerce jurisdição de participação ativa na distribuição de direitos, experimentando uma espécie de agigantamento traduzido na judicialização de políticas públicas destinadas à proteção de direitos fundamentais em casos difíceis (leading cases) por meio de sentenças estruturantes, o que para muitos não passa do exercício de função jurisdicional típica. A judicialização dos direitos fundamentais não se confunde com a invasão de um poder sobre o outro, pois visa apenas resguardar a ordem jurídica por meio da concretização de políticas públicas existentes e afastar os efeitos nocivos da constitucionalização simbólica, quer dizer, de uma deficiente concretização normativa-jurídico do texto constitucional (ALVES, Alinne Cardimapud. NEVES, 2015, p. 26). O positivismo jurídico encara a jurisdição como função estatal limitada ao campo do direito positivado. Assim, ao aplicar o direito ao caso concreto, o juiz não pode questionar ou verificar a justiça ou equidade da norma. Assim, encontra-se totalmente afastado da jurisdição o controle dos atos do governo, em especial as políticas públicas, que se encontram, segundo o Direito Administrativo clássico, na esfera da discricionariedade e oportunidade da administração pública. Resta claro que a teoria positivista não oferece mais sustentáculo ao fenômeno jurídico (SIQUEIRA JÚNIOR, 2017, p. 99).

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A jurisdição não deve ser compreendida como uma função de Estado limitada ao direito positivado de mera subsunção, pois, do contrário, o juiz não poderia questionar a justiça ou equidade da norma em litígios complexos. O caso paradigmático de Elmer, citado por Dworkin (2014, p. 20-25), exemplifica a necessidade de se criar uma nova hermenêutica, desatrelada da literalidade da lei, jungida ao contexto histórico e aos princípios de justiça. Nesse caso, Elmer foi beneficiado no testamento de seu avô e tinha ciência disso; no entanto, temendo que ele viesse a se casar novamente e lhe prejudicasse no testamento, o assassinou. Descoberto seu ato criminoso, a dúvida era se ele teria legitimidade para receber os bens, salientando que o ordenamento era silente quanto à situação ocorrida. Prevaleceu o entendimento, diante da ausência de lei expressa quanto ao fato, de que os legisladores não admitiam a ideia de que um herdeiro responsável pelo assassinato do testador pudesse receber a herança – por isso sequer havia uma previsão expressa à respeito. Além disso, convém asseverar que o fenômeno jurídico não se restringe às leis, mas certamente alcança também os princípios e as políticas públicas.

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O texto constitucional é composto por regras e princípios, revelando um sistema aberto que afasta as limitações de uma racionalidade prática, reveladora de um sistema constituído apenas por regras, confinado a uma disciplina legislativa exaustiva e “completa”, portanto impossível, sem margens para a complementação (legalismo estrito) – inviabilizando, com isso, a ponderação ou sopesamento de valores e interesses próprios de uma sociedade plural, marcada pela diversidade. Por outro lado, um sistema constituído exclusivamente por princípios provocaria incertezas e a insegurança jurídica revelaria toda a sua fragilidade e incapacidade na composição de conflitos, evidenciando a necessidade imperiosa da presença de regras e princípios em um sistema funcional – o que já acontece –, porém pairando dúvidas quanto à presença de políticas públicas como elemento integrante. A política pública é um padrão normativo que estabelece uma meta a ser atingida, isto é, alguma melhoria de natureza econômica, política ou social em favor da comunidade diante de problemas difíceis; já o princípio aparece como um fator axiológico norteador do proceder a ser adotado, como exigência de justiça, equidade ou de moralidade. Para Dworkin, as políticas e os princípios são elementos do sistema jurídico e são utilizados na solução dos casos difíceis. O autor “parte da ideia de que a formulação de políticas pressupõe uma regulação jurídica capaz de torná-las efetivas, isto é, capazes de determinar a conduta das autoridades públicas, mas também viabilizando o exercício de direitos pelos membros beneficiados. Logo, as políticas dependem, para sua realização, da adoção de um padrão jurídico que vai inocular no ambiente social um conjunto de objetivos cujos desdobramentos buscam estabelecer patamares de interação social que serão processados, a partir de então, no nível jurídico”. Nessa linha de raciocínio, afigura-se possível a intervenção judicial nas políticas públicas, uma vez que surgem com amparo no sistema jurídico normativo. A política é dita pública quanto elaborada pelos órgãos do Estado. Nessa dinâmica, compete ao Poder Legislativo e ao Executivo, respectivamente, a elaboração e execução das políticas públicas, estando o Poder Judiciário afastado desta função. Mas o controle é exercido pela jurisdição (SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton apud DWORKIN, 2017, p. 101).

Os Poderes Executivo e Legislativo não possuem poder discricionário absoluto para a elaboração e execução de políticas públicas livres de qualquer controle segundo a ordem constitucional vigente, salientando que a jurisdição é um poder-dever garantista do Estado democrático de direito. Quer se dizer com isso que, na hipótese de ausência ou mesmo no mau funcionamento de políticas públicas resultantes na lesão massiva de direitos fundamentais,

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competirá ao Poder Judiciário, no exercício do poder jurisdicional, promover adequação aos postulados da Constituição Federal. O ativismo judicial, aqui defendido excepcionalmente, revela-se nos casos de omissão inconstitucional, seja na ótica formalista ou material, um forte instrumento de freios e contrapesos para a construção de políticas públicas efetivas ou mesmo de aperfeiçoamento daquelas já existentes. O grande desafio do Direito pós-moderno (neoconstitucionalismo) encontra-se na efetivação dos dispositivos da Constituição (do teórico para o concreto), principalmente dos direitos e garantias fundamentais, tanto na limitação de poder (prescrições negativas) como no controle das políticas públicas (prescrições afirmativas). Nessa última acepção, caberá ao Poder Judiciário o exercício de controle político, na medida em que o conteúdo da Constituição possui perfil político, principalmente quanto aos direitos fundamentais.

O ACESSO À JUSTIÇA COMO MUDANÇA DE PARADIGMA NA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO Discorrido acerca da crise instalada na justiça do novo milênio e de instrumentos, como as decisões estruturais para a pacificação de conflitos de alta complexidade em um sistema que prima pela segurança jurídica sob os fundamentos do Estado democrático de direito, resta destacar a terceira onda renovatória do Direito como o paradigma dessa necessária transformação para a tutela de direitos fundamentais em sua dimensão objetiva. O acesso à Justiça é o requisito fundamental mais básico dos direitos humanos de um sistema jurídico moderno e mais igualitário, que pretenda garantir, e não apenas proclamar, o direito de todos. A título de ilustração, é conveniente apontar o art. 20º da Constituição da República Portuguesa, que, de forma expressa, intenciona assegurar o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva3 , demonstrando-se, a toda evidência, a relevância dessa garantia para a proteção dos direitos fundamentais. Nesse particular, é o magistério de Canotilho e Vital Miranda (2007, p. 408-409): O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (nº 1 e epígrafe) é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito. É certo que carece de conformação através da lei, ao mesmo tempo em que lhe é congénita uma incontornável dimensão prestacional a cargo do Estado (e, hoje, também da União Europeia), no sentido de colocar à disposição dos indivíduos – uma organização judiciária e um leque de processos garantidores da tutela judicial efectiva. A sua natureza de direito prestacionalmente dependente e de direito legalmente conformado é visível, quer quanto ao direito de acesso ao direito através das vias não-jurisdicionais (ex.: serviços de informação jurídica, <<lojas do

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1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. 2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazerse acompanhar por advogado perante qualquer autoridade. 3. A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça. 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo (PORTUGAL, 1976). JOSÉ CÉSAR NAVES DE LIMA JÚNIOR

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cidadão>>em questões de direito), quer quanto ao direito de acesso aos tribunais (patrocínio judiciário). De qualquer modo, ninguém pode ser privado de levar a sua causa (relacionada com a defesa de um direito ou interesse legítimo e não apenas de direitos fundamentais) à apreciação de um tribunal, pelo menos como último recurso. Por isso, o art. 20º consagra um direito fundamental independentemente da sua recondução a direito, liberdade e garantia ou a direito análogo aos direitos, liberdades e garantias.

De sorte, convém salientar que as cortes ou tribunais não são as únicas formas de promoção de justiça. Logo, qualquer regulamentação processual, inclusive a criação de alternativas ao Poder Judiciário, produz efeitos de grande valia sobre a forma como opera a lei substantiva, com que frequência ela é executada e em benefício de quem, além de seu impacto social. O acesso não é apenas um direito social fundamental, e seu estudo propõe ampliação e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica, cujo desafio encontra-se em sua efetividade e na superação de vários obstáculos. Inicialmente, cumpre salientar que a prestação de assistência judiciária aos pobres (primeira onda renovatória) é imprescindível para a garantia de acesso à justiça, ressaltando a necessidade de representação por advogado a fim de interpretar e aplicar as leis em procedimentos dotados de alta complexidade, notadamente no Direito pós-moderno. O Estado remunera os causídicos prestadores de serviços forenses, seja na orientação de causas ou assistência em processos – advocacia privada paga pela prestação de serviço público.

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Ao longo dos tempos, a assistência judiciária sofreu profundas transformações. Dentre outras, merece destaque o surgimento do sistema judicare, no qual esses serviços são considerados um direito de todas as pessoas que se enquadram nos requisitos da lei e cuja remuneração é arcada pelo Estado; países como áustria, Inglaterra, Holanda e França o adotaram. Ademais, o sistema francês de 1972, com alterações em 1974/1975, revelou avanços, pois não alcança somente os desfavorecidos de uma sociedade, mas ainda algumas pessoas que estão acima do nível de pobreza. Embora tenha conseguido afastar a barreira do custo financeiro, a deficiência do sistema judicare encontra-se na falta de fomento aos advogados em auxiliar os pobres a compreender seus direitos e identificar os instrumentos de sua concretização. O modelo de assistência judiciária com advogados públicos (defensoria pública) busca suprir essa deficiência, inclusive quanto à reinvindicação de reformas legislativas no ordenamento, evidenciando o exercício pleno de cidadania. Por outro lado, depende de apoio político contra o próprio Estado de que é parte integrante. Assim, certamente o melhor caminho estaria na adoção dos dois modelos (sistema eclético) diante das limitações de cada um deles frente à realidade social. Além disso tudo, não basta a reinvindicação de direitos, defesas e ações; é preciso, também, primar pela qualidade dos serviços prestados, e isso exige capacitação e custos, o que dificilmente desperta o interesse de advogados atuantes na iniciativa privada. O acesso à justiça compreende, ainda, a representação dos interesses difusos em juízo (segunda onda); esse grande movimento envolvendo os direitos coletivos ou de grupos, diversos daqueles pertencentes aos menos favorecidos, de cunho individualista, exigirá

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profundas transformações nos sistemas processuais devido ao aparecimento dos litígios de direito público, cuja legitimidade para sua proteção é plural. Não poderia ser diferente, pois em sua maior parte exige uma série de conhecimentos, muito além da seara jurídica que pode comprometer a atuação de órgãos públicos e seus membros – capacitação deficiente (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, passim). Avançando no estudo do acesso à Justiça, Cappelletti e Garth (1988) idealizaram a terceira onda como um novo enfoque de acesso à justiça. Em outras palavras, por incluir os enfoques anteriores, vai muito além deles e ainda procura superar seus limites, notadamente quanto aos obstáculos de uma representação efetiva para a tutela exitosa de interesses anteriormente não representados ou mal representados. O progresso na obtenção de reformas da assistência jurídica e da busca de mecanismos para a representação de interesses “públicos” é essencial para proporcionar um significativo acesso à justiça. Essas reformas serão bem-sucedidas – e, em parte, já o foram – no objetivo de alcançar proteção judicial para interesses que por muito tempo foram deixados ao desabrigo. […] O fato de reconhecermos a importância dessas reformas não deve impedir-nos de enxergar os seus limites. Sua preocupação é basicamente encontrar representação efetiva para interesses antes não representados ou mal representados. O novo enfoque de acesso à Justiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo. Essa “terceira onda” de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. Nós o denominamos “enfoque do acesso à Justiça” por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67-68).

Por esse novo enfoque, o Poder Judiciário passa a centralizar sua atenção nas instituições, mecanismos, pessoas e procedimentos, para processar e prevenir litígios, sem abandono das ondas anteriores, destinadas a ampliar o acesso individual dos menos favorecidos e a representação dos interesses difusos, quer dizer, de possibilidades de melhorias do acesso à justiça em várias situações, para pessoas ou grupos distintos. Como se pode perceber, envolve profundas alterações no sistema, seja na estrutura de tribunais, forma de procedimentos, utilização de pessoas leigas ou nos métodos informais, na tentativa de adaptar o processo à natureza do litígio. Logo, tratando-se de litígios estruturais, objeto deste estudo, o foco das mudanças deve se concentrar na forma de funcionamento dos órgãos, poderes, instituições e como se relacionam entre si e com os demais entes. A flexibilidade e monitoramento das medidas adotadas por eles são cruciais na pacificação dessa espécie de conflito. Outro aspecto relevante diz respeito aos modelos alternativos de justiça (justiça terapêutica, instantânea, restaurativa etc.), além de meios extrajudiciais de composição (arbitragem, mediação e conciliação), que certamente podem auxiliar na construção de um novo sistema jurídico – proativo e dialógico, mais adequado ao enfrentamento das demandas estruturais.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a chegada do novo milênio, o mundo globalizado e a revolução digital verificados há menos de duas décadas dispensaram às relações sociais, políticas e econômicas um grau de complexidade elevado, além de desencadear o aumento progressivo de demandas judiciais em um sistema jurídico lerdo e modorrento, de difícil acesso, realidade essa provocadora de uma crise na Justiça. Diante do quadro descrito, a separação de Poderes nascida do contrato social – que, no decorrer da história, revelou a preponderância do Poder Executivo em Estados autoritários e, posteriormente, do Legislativo – agora parece conceber um agigantamento do Poder Judiciário, que, para pacificar os conflitos sociais, necessitou promover uma mudança de paradigma em sua atuação jurisdicional. Nesse ponto, surge o ativismo judicial estrutural dialógico, considerado legítimo nas democracias ocidentais, em nada lesando a separação de Poderes e a reserva do possível, como demonstrado ao longo do texto. Ao contrário, propõe somente uma judicialização de direitos fundamentais na dimensão objetiva (material) que caracteriza o exercício de função jurisdicional típica.

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Para a jurisdição constitucional tornar-se possível, o Poder Judiciário, nos casos de litígios policêntricos ou estruturantes, passou a valer-se de sentenças aditivas marcadas por uma jurisdição retida ou supervisória, dotada de flexibilidade, de modo a preservar a independência dos Poderes e a reserva do possível. Com isso, as sentenças aditivas transformaram-se em institutos jurídicos destinados ao enfrentamento de demandas no Direito pós-moderno, fazendo com que o Poder Judiciário mudasse seu paradigma de atuação convencional, de inércia, para em casos difíceis (leading cases) agir de maneira estrutural e dialógica, no intuito de salvaguardar efetivamente os direitos fundamentais, cuja lesão advém da omissão inconstitucional – seja pela ausência de regulamentação por lei das normas constitucionais de eficácia limitada, seja ainda porque a lei regulamentadora revela-se ineficiente ou também, nos casos de normas constitucionais de eficácia plena, sem efetividade concreta (dimensão objetiva), por inexistência de políticas públicas ou mesmo deficiência daquelas existentes. Apesar do distanciamento entre o ideal e o real, nesta pesquisa defendeu-se que a mudança de paradigma e seus desdobramentos no sistema de Justiça tivessem como norte os fundamentos de um ativismo judicial estrutural dialógico destinado a tutelar os direitos fundamentais na dimensão objetiva, afastando-se o reducionismo semântico prevalente na doutrina clássica e seus efeitos, que impedem a caracterização de omissão inconstitucional em normas de eficácia plena. Portanto, pode-se concluir que a dialogia e uma jurisdição retida ou supervisória decorrentes de ativismo judicial certamente poderão facilitar o acesso à justiça sob um novo enfoque, notadamente quanto à proteção de direitos fundamentais, seja na esfera individual ou coletiva, pública ou privada, por meio de decisões estruturais para que a terceira onda renovatória possa ser, de fato, concretizada, proporcionando a construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária, nos termos descritos no art. 3º, I da Constituição Federal.

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