A SANGUE FRIO NO CENTENÁRIO DE TRUMAN CAPOTE

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A SANGUE FRIO NO CENTENÁRIO DE TRUMAN CAPOTE

EDITORA OLYMPIA

F825 Franco, Carlos (Organizador)

A sangue frio no centenário de Truman Capote, Editora Olympia, Uberlândia, MG, 2024

Pág. 114

ISBN 978-65-86241-19-8

1.1 Literatura brasileira – Contos I Título

“As coisas pequenas nunca deixam de ser suas. Não precisam ser deixadas para trás. Você sempre pode carregar com você numa caixa de sapatos.” Truman Capote

Carlos Franco/Apresentação

Sumário

Página 7

Machado de Assis/A semana

Página 14

João do Rio/Crimes de amor

Página 18

Antônio Manuel da Silva Filho/O amor nos tempos do cólera

Página 27

Carlos Henrique dos Santos/A dinastia

Página 30

Carlos Henrique dos Santos/Mão branca

Página 35

Célio D’Ávila/Contos paranormais: o aniversário sangrento

Página 41

Graziela Leão/Verdade sangrenta

Página 58

J. Machado/Na hora da missa

Página 64

J. Machado/Weekend

Página 70

Jean Javarini/Guardiãs das sombras: a redenção de Willon Creek

Página 72

Jean Javarini/Sombras da verdade: o mistério de Cedar Grove

Página 77

Jefferson Machado/Diário da Sacramenta: Memórias de uma comunidade esquecida

Página 83

Jefferson Machado/ O causo do Seu Sorveteiro

Página 89

Leandro Narciso/A casa

Página 92

Leandro Narciso/A chapeleira desaparecida

Página 95

Matile Facó/Sob a Lua do Esquecimento

Página 99

Rafael G. V. de Sousa/A fotografia

Página 104

William R.F. Ramires/Crime sem final

Página 110

Apresentação

Desde o Código de Hamurabi, um conjunto de leis babilônicas atribuído ao rei Hamurabi que governou a Babilônia de 1792 a 1750 antes de Cristo (a.C.), o homem tem mostrado ao longo da sua trajetória profundo interesse por crimes, investigações e condenações. São inúmeras as obras e as diferentes abordagens criminais que todos os anos chegam aos mercados editoriais do mundo, algumas, porém, acabam por deixar a sua marca no tempo. Este é o caso de “A sangue frio”, de Truman Capote, obra publicada em 1966 que críticos e estudiosos literários apontam como marco do novo jornalismo (New Journalism). Ou seja, um fato real abordado com linguagem literária.

É este escritor, dramaturgo e ator norte-americano nascido Truman Streckfus Persons em 30 de setembro de 1924 o homenageado desta coletânea de contos no ano do seu centenário. Capote partiu para a eternidade, ou como diria o mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967) ficou encantado, em 25 de agosto de 1984, deixando como legado a inovação na escrita de crimes que tem inspirado vários outros escritores como os brasileiros Vicente Vilardaga (“À queima roupa: o caso Pimenta Neves” e “A clínica: a farsa e os crimes de Roger Abdelmassih”), Ilana Casoy (“Serial Killers Made in Brazil”), Ulisses Campbell (“Elize Matsunaga – a mulher que esquartejou o marido”, “Flordelis: a pastora do Diabo” e “Suzane: assassina e manipuladora”) entre muitos outros que hoje mesclam o jornalismo, os fatos reais e seus

desdobramentos, com a literatura, prendendo a atenção dos leitores.

De crimes reais aos fictícios que têm como ponto partida a sociedade em que vivemos, esses eventos mexem com o inconsciente coletivo e são reveladores da violência e do ódio que, muitas vezes, nos é residual, mas que, por urbanidade, o saber viver em sociedade e compartilhar lugar e território com os diferentes, nos impede de cometer crimes hediondos. Então, ao ler tais histórias e ao assistir filmes, séries e documentários criminais, homens e mulheres se sentem confortados porque não serão eles a serem punidos, uma vez souberam domar seus instintos mais selvagens. Daí a importância de obras como “A sangue frio” que busca mergulhar na vida dos protagonistas de um crime e da comunidade onde ele ocorreu traçando o perfil psicológico dos envolvidos e as motivações que conduziram ao dramático e sangrento desfecho.

A história de “A sangue frio” começa para Capote com uma pequena nota se 300 batidas (os jornalistas contam as letras e os espaços entre elas) nas páginas do The New York Times em sua edição de 16 de novembro de 1959, relatando que, no dia anterior, quatro membros da família Clutter – o fazendeiro e patriarca Herb (48 anos), sua esposa Bonnie (45 anos) e os filhos adolescentes Kenyon (15 anos) e Nancy (16 anos) –haviam sido brutalmente assassinados em Holcomb, uma pequena cidade então de 270 habitantes no oeste do Kansas.

A nota intrigou Capote, que já havia conquistado notoriedade com seu livro “Breakfast at Tiffany's” lançado em 1958 e que, em 1961, ganharia uma versão musical na Broadway e um filme que, no Brasil foi intitulado “Bonequinha de luxo”, consagrando a atriz Audrey Hepburn (1929-1993) e os figurinos assinados por Hubert de Givenchy (1927-2018), além, é claro, da famosa joalheria norte-americana.

O escritor, então, convenceu, naquele ano de 1959, a sua amiga de infância e também escritora Nelle Harper Lee (19262016) a acompanhá-lo na viagem até a pequena Holcomb. Lá coletaram dados do crime, foram à casa enlutada dos Clutter, entrevistaram autoridades locais e moradores e, depois, acompanharam a prisão dos dois assassinos da família, Richard Eugene Dick Hickock e Perry Edward Smith, até a sentença de morte, por enforcamento, de ambos em 14 de abril de 1965. A pena de morte já prevista no Código de Hamurabi em que valia o olho por olho, dente por dente, foi, assim, colocada em prática em pleno século 20 e prevalece ainda hoje em alguns estados federados da América do Norte como Texas, Flórida, Alabama, Missouri e Oklahoma.

Capote entrevistou por diversas vezes Richard Dick e Perry Smith mergulhando em “A sangue frio” na vida e na trajetória familiar de ambos cuja ideia de roubar os Clutter teria nascido na cela de uma prisão, onde compartilharam o espaço com Floyd Wells, um antigo trabalhador rural da fazenda dos Clutter que contava histórias fantasiosas a respeito da família dizendo que eles mantinham em casa um cofre apinhado de dólares. A história tantas vezes repetida fez com que os dois, depois de soltos, colocassem em execução um plano de invadir a casa, roubar o dinheiro do cofre e, milionários, viverem uma vida de luxo e prazeres no vizinho México.

Os criminosos chegaram em Holcomb no dia anterior ao crime e ficaram observando a casa até que, de madrugada, decidiram invadi-la prendendo Bonnie e os dois filhos no banheiro, mantendo o patriarca da família no porão, também preso. Reviraram tudo e acabaram por descobrir que não havia cofre e o que encontraram foram apenas 42 dólares, um rádio da marca Zenith e um par de binóculos. Temendo serem identificados decidiram executar toda a família. Depois, fugiram e foram capturados em dezembro em Las Vegas, Nevada, numa tentativa de se distanciar do local do crime.

O enterro dos Clutter foi acompanhado por toda a população de Holcomb e de cidades rurais vizinhas reunindo mais de mil pessoas segundo os jornais da época. Capote e Harper Lee, no entanto, chegaram ao local apenas dois dias depois do cortejo que também mobilizou a agência estadual de investigações do Kansas, KBI (The Kansas Bureau of Investigation). Afinal, o caso ganhara repercussão além das fronteiras agrícolas daquele estado e os norte-americanos exigiam a sua solução e detetives cultivavam a ideia de que criminosos violentos costumam comparecer ao enterro de suas vítimas para se inteirarem do andamento das investigações, medindo os passos das autoridades policiais.

Não estavam de todo errados, mas isso não ocorreu no caso dos Clutter, ao contrário do que ocorreria no Brasil em 28 de dezembro de 1992 quando o ator Guilherme de Pádua e sua mulher Paula Thomaz mataram à tesouradas a atriz Daniella Perez. Com total desfaçatez, típica de um criminoso ardiloso, Guilherme de Pádua não só compareceu ao velório da sua vítima, como tentou consolar a mãe, a novelista Glória Perez, autora da novela “De corpo e alma”, da TV Globo, em que ambos trabalhavam na época.

Num intenso trabalho de reportagem, com toques de literatura, Capote começou a publicar “A sangue frio” de forma seriada na revista The New Yorker com o último dos quatro capítulos chegando às bancas em 25 de setembro de 1965, após a execução dos criminosos de Holcomb que Capote acompanhou. A revista bateu recorde de vendas com este último capítulo e, no ano seguinte, “A sangue frio” foi lançado em livro que popularizou o escritor.

O filme “Capote”, de 2005, dirigido por Bennet Miller e que rendeu a Philip Seymour Hoffman o Oscar de melhor por sua interpretação do escritor, tem como pano de fundo

justamente o assassinato dos Clutter. Já a atriz Catherine Keener deu vida à escritora Nelle Harper Lee.

Capote inovou ao inaugurar o “New Journalism” com “A sangue frio”, coube, no entanto e no século anterior, ao norteamericano Edgar Allan Poe (1809-1849) a revolução dos textos, especialmente os contos de crimes e suspenses. E foi ninguém menos que Machado de Assis (1839-1908) que aproximou Poe dos brasileiros com sua tradução de “O corvo” em 1883, obra que ganharia nova tradução em 1924 pelas mãos de Fernando Pessoa (1888-1935).

É, aliás, Machado de Assis que assina a intrigante crônica que abre esta obra que celebra o centenário de Capote. No texto publicado em 28 de julho de 1895 em “A Semana”, do jornal “A Gazeta de Notícias”, “o bruxo do Cosme Velho”, como o denominou o jornalista, escritor e poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), brilhantemente desqualifica o criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909), autor entre outros dos livros como “Gênio e loucura” (1874), “O homem delinquente” (1876) e “O crime, causas e remédios” (1894).

Para Lombroso, hoje completamente desacreditado, a criminalidade era hereditária e o uso de tatuagens denunciava criminosos, assim como a tese que defendia de que a epilepsia, que atormentou o escritor brasileiro, seria prenúncio de mentes criminosas. Ou seja, um festival de bobagens, que hoje seria tratado como um portentoso conjunto de “fake news”, no entanto, tais absurdos encontravam eco entre investigadores e médicos brasileiros, além de jornalistas que buscavam revelar as causas do crime da Rua da Relação, no Rio de Janeiro, objeto do texto machadiano de domínio público que abre esta antologia. Como no caso de Capote, só que bem antes, Machado de Assis parte de uma notícia de jornal para nos brindar com este texto genial e engenhoso.

As obras criminais, por sinal, nunca saíram das estatísticas das mais vendidas em todo o mundo e, durante décadas, coube à britânica Agatha Christie (1890-1976) liderar a lista com livros onde figura Hercule Poirot, o detetive escalado pela escritora para desvendar os mais famosos crimes literários de que se tem notícia. Dona de um estilo único, Agatha Christie deixava brechas para que todos os personagens em cena pudessem ser culpados pelo crime retratado até que nas últimas páginas revelava o autor, levando o leitor a participar efetivamente das investigações de Poirot.

Antes de Agatha Christie, outro britânico, Arthur Conan Doyle (1859-1930) se notabilizou por criar o famoso personagem Sherlock Holmes, uma das maiores referências em detetives desvendando crimes com uma dosagem elevada de suspense e intrigas. Além de Doyle, uma imensa leva de escritores se dedicaram ao gênero, a exemplo de Raymond Chandler, Dashiel Hammett, Georges Simenon e o seu inspector Maigret, Dorothy L. Sayers e muitos outros.

Contemporaneamente à Truman Capote, a brilhante norteamericana Patricia Highsmith (1921-1995) conquistou terreno com o seu famoso personagem Tom Ripley. Em comum, as obras de quase todos estes escritores ganharam as telas do cinema, ampliando a visibilidade para este gênero literário.

No Brasil, o mineiro Rubem Fonseca (1925-2020) se notabilizou como um dos maiores escritores de romances policiais e criminais com obras como “O Caso Morel" e "A Grande Arte". Mais recentemente, outros destaques foram Patrícia Melo, autora de “O Matador” e “Valsa Negra”, e o Titãs Tony Bellotto com seu detetive Remo Bellini da série de obras iniciada com "Bellini e a Esfinge", além de Luiz Alfredo Garcia-Roza, criador do detetive Espinosa.

No Rio de Janeiro do início do século 20, quando a cidade, capital do país, se modernizava, o jornalista, escritor, cronista,

contista, tradutor e dramaturgo João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), o João do Rio, lançou em 1908 o livro “A alma encantadora das ruas”, uma obra de referência antropológica e literária da cidade. Entre as 37 crônicas reunidas no livro, destaca-se uma que fala dos crimes por amor cometidos por presidiários e que aqui publicamos nesta antologia por seu frescor e atualidade e um texto tão pungente como o de Capote quando sequer existia a expressão “novo jornalismo”.

Na sua incursão a um presídio, João do Rio descobriu que aqueles e aquelas que matam por amor confessam seus crimes e, por vezes, se orgulham deles, pois acreditam estar salvando este sentimento que nos move a todos.

É, afinal, de crimes neste ano em que se celebra o centenário de Truman Capote de que tratam os contos desta antologia.

Por fim, me cabe ressaltar que a Editora Olympia tem imenso orgulho em, por meio destas obras, abrir caminho para novos e premiados autores que, com seus textos, estimulam a leitura e o desenvolvimento da escrita.

Boa leitura,

A semana 28 de julho de 1895

MachadodeAssis

Raramente leio as notícias policiais, e não sei se faço bem. São monótonas, vulgares, a língua não é boa; em compensação, podem achar-se pérolas nesse esterco. Foi o que me sucedeu esta semana, deixando cair os olhos na notícia do assassinato de João Ferreira da Silva. Não foi o nome da vítima que me prendeu a atenção, nem o do suposto assassino, nem as demais circunstâncias citadas no depoimento das testemunhas, as serenatas de viola, o botequim, a bisca e outras. Uma das testemunhas, por exemplo, fala do clube dos Girondinos, que eu não conhecia, mas ao qual digo que, se não tem por fim perder as cabeças dos sócios, melhor é mudar de nome. Sei que a história não se repete. A Revolução Francesa e Otelo estão feitos; nada impede que esta ou aquela cena seja tirada para outras peças, e assim se cometem, literariamente falando, os plágios. Ora, o nome de Girondinos é sugestivo; dá vontade de levar os portadores ao cadafalso. Tudo isto seja dito, no caso de não se tratar de alguma sociedade de dança.

Vamos, porém, ao assassinato da rua da Relação. O que me atraiu nesse crime foi a força do amor, não por ser o motivo da discórdia e do ato, há muito quem mate e morra por mulheres mas por apresentar na pessoa de Manuel de Sousa, o suposto assassino, um modelo particular de paixões contrárias e múltiplas. Foram as tatuagens do corpo do homem que me deslumbraram.

As tatuagens são todas ou quase todas amorosas. Braços e peito estão marcados de nomes de mulheres e de símbolos de amor. Lá estão as iniciais de uma Isaura Maria da Conceição, as de Sara Esaltina dos Santos, as de Maria da Silva Fidalga, as de Joaquina Rosa da Conceição. Lá estão as figuras de um homem e de uma mulher em colóquio amoroso; lá estão dois corações, um atravessado por uma seta, outro por dois punhais em cruz...

Quando os médicos examinaram este homem fizeram-no com Lombroso na mão, e acharam nele os sinais que o célebre italiano dá para se conhecer um criminoso nato; daí a veemente suposição de ser ele o assassino de João Ferreira. Eu, para completar o juízo científico, mandaria ao mestre Lombroso cópia das tatuagens, pedindo-lhe que dissesse se um homem tão dado a amores, que os escrevia em si mesmo, pode ser verdadeiramente criminoso.

Se pode, e se foi ele que matou o outro, não será o “anjo do assassinato”, como Lamartine chamou a Carlota Corday, mas será, como eu lhe chamo, o Eros do assassinato. Na verdade, há alguma coisa que atenua este crime. Quem tanto ama, que é capaz de escrever em si mesmo alguns dos nomes das mulheres amadas... Sim, apenas quatro, mas é evidente que este homem deve ter amado dezenas delas, sem contar as ingratas. Convém notar que traz no corpo, entre as tatuagens públicas, um signo de Salomão. Ora Salomão, como se sabe, tinha trezentas esposas e setecentas concubinas; daí a devoção que Manuel de Sousa lhe dedica. E isso mesmo explicará a vocação do homicídio. Salomão, logo que subiu ao trono, mandou matar algumas pessoas para ensaiar a vontade. Assim as duas vocações andarão juntas, e se Manuel de Sousa descende do filho de Davi, coisa possível, tudo estará mais que explicado.

A força do amor é tamanha que até aparece no conflito do Amapá. Daquela tormenta sabe-se que dois nomes sobrevivem, Cabral e Trajano. O retrato do chefe Cabral, que com tanto ardor defendeu a povoação, quando os franceses a invadiram levando tudo a ferro e fogo, está na loja Natté; mas não é dele que trato. Trajano, que os franceses alegavam ser seu, chegou à capital do Pará onde foi interrogado por mais de um repórter, visto e ouvido com extraordinária atenção. A todos respondeu narrando as cenas terríveis. Dizem os jornais que é homem de seus cinquenta e cinco anos, inteligente, falando bem o português, com uma ou outra locução afrancesada.

Tudo narrou claramente e tristemente, decerto, mas, acaso pensais que essas cenas de sangue são a sua principal dor? Não conheceis a natureza e seus espantos. Trajano sente mais que tudo uma caboclinha, sua mulher, que lhe fugiu. Este duro golpe penetrou mais fundo na alma dele que os outros. Não daria a pátria pela caboclinha, nem ninguém lha pede; mas, enquanto a dor lhe dói, vai confessando o que sente.

Quem sabe se o caso da ilha da Trindade é mais de amor que de navegação e posse? Agora que o conflito está findo ou quase findo, graças à habilidade e firmeza do governo, podemos conjeturar um pouco sobre este ponto, não para explicar poeticamente a ação inglesa, mas para mostrar que os corações mais duros podem ter seus acessos de ternura.

Camões chama algures duros navegantes aos seus portugueses. Nem por duros puderam esquivar-se ao amor.

Um dia acharam a ilha dos Amores, que Vênus, para os favorecer, ia empurrando no mar, até encontrá-los. Os descobridores da índia desembarcaram. As belezas da floresta, a aparição das ninfas nuas e seminuas, que iam fugindo aos intrusos, as falas deles e delas, os famintos beijos, o choro mimoso, a ira honesta, e toda a mais descrição e narração, lidas em terra, fazem extraordinariamente arder os corações.

Imaginai um navio inglês, patrício de Byron, no alto mar, batido dos ventos e da miséria, e dando com uma ilha deserta e inculta. Se os tripulantes estivessem lendo as ordens do almirantado do século XVIII, podia ser que não entrassem na ilha; mas liam Camões, e exatamente o episódio da ilha dos Amores. Desceram à ilha; a imaginação acesa pela poesia mostra-lhes o que não há; dão com tranças de ouro, fraldas de camisa, pernas nuas. Um Veloso, por outro nome inglês, dá espantado um grande grito, repete o discurso do personagem de Camões, e conclui que sigam as deusas, e vejam se são fantásticas, se verdadeiras. Todos obedeceram, inclusive o Leonardo do poema, e entraram a correr pela mata e pelas águas, até que deram por si em um espaço deserto, sem fruta, sem flores, sem moças...

Ouviram alguma coisa, ao longe, a voz de um homem, que falava pela língua do poeta, ainda que em prosa diplomática.

E dizia a voz estranha uma porção de coisas que eles, antes de ler Camões, deviam trazer de memória. Tornaram a bordo, não menos ardentes que desconsolados, e foram consolar-se com o imaginado episódio da ilha dos Amores; mas então já haviam passado as estrofes das ninfas nuas e seminuas; estas tinham-se casado com os navegantes e a deusa principal com o grande capitão. Os versos já não eram lascivos, mas conceituosos. Um deles lia para os outros escutarem:

E ponde na cobiça um freio duro,

E na ambição também, etc.

Crimes de amor*

JoãodoRio

Ao entrar no seu gabinete, severamente mobiliado de canela escura, o capitão Meira Lima disse:

Meu caro amigo, tem você ampla liberdade. Pode ver, interrogar, examinar. Há agora na detenção quatrocentos e cinquenta e quatro detentos, dos quais trezentos e noventa e cinco homens e cinquenta e nove mulheres. Antigamente, era maior o número. Nós conseguimos que se não mantivessem aqui presos à disposição dos delegados sem processo. Mas, ainda assim, o exército do crime está bem representado. Há gatunos, desordeiros, incendiários, defloradores, mulheres perdidas, vítimas da sorte, criminosos por amor toda uma flora estranha e curiosa. Estude você os crimes de amor. Lembra-se de um dramalhão do repertório da Ismênia: Aimée, ou o assassino por amor? Não é do seu tempo nem do meu, mas comoveu a geração passada e tem contínuos exemplos nas penitenciárias.

E nas literaturas.

Pois vá ver esses criminosos. O assassino por amor é o único delinquente que confessa o crime. Alguns chegam mesmo a reviver detalhes insignificantes. Ao passo que os gatunos, os incendiários e os homicidas vulgares, mesmo tendo a cumprir sentenças longas, negam sempre o crime; essas vítimas da paixão não se cansam de contar a sua história, cada vez com maior número de minúcias e mais abundância de memória.

Pois, vejamos as vítimas do amor!

O capitão mandou chamar o chefe dos guardas, Antônio Barros, e saímos para o pátio, onde os presos serventes mourejavam.

Há uns cinco casos notáveis, informava-se o guarda. Vamos entrar na primeira galeria.

A galeria é um enorme corredor, ladeado de cubículos engradados. A má disposição de luz, com a claridade da frente e dos fundos e a claridade das prisões, dá a esse corredor uma perpétua atmosfera de meia sombra. Através dos muros brancos ouve-se o sussurro das conversas murmuradas. Barros aponta-me silenciosamente uma das jaulas. Aproximome e do fundo vejo surgir um velho preto, magro, seco, com o olhar ardente e a cabeça branca. Pergunto receoso:

Por que está aqui?

Porque matei.

Nas prisões há duas coisas revoltantes: o cinismo do que nega e o que confessa como uma afronta. Aquela frase breve tinha, porém, cunho de uma dolorosa sinceridade.

Eu sou do crime da Estrada Real, continuou o pobre agarrando-se aos varões de ferro. Chamo-me Salvador Firmino, tenho sessenta e três anos.

E matou?

Porque ela quis.

E de repente, como se a lembrança da cena o forçasse a se desculpar, a sua cabeça branca curvou-se, os seus olhos lampejaram:

Quando eu encontrei Silvéria, era casado e feliz. Abandonei a mulher, só para viver com ela. Silvéria tinha dois filhos. Eduquei-os eu, dei-lhes o sustento, o ensino. Uma casa que consegui comprar logo passei para o seu nome, e de tudo eu me lembrava que a tornasse feliz. Silvéria tinha quarenta anos e eu gostava dela. Foi quando apareceu o outro. A mulher ficou com a cabeça virada, já não lhe bastava o meu carinho. Saía só, para passear com ele, não se importava com o passado, não me falava. O desaforo chegou ao ponto do outro vir trazê-la até à porta de casa. As vezes, eu os via de longe e entrava no mato para os não encontrar. Que dor! Eu tinha tanto medo de acabar... Uma noite, ela saiu, esteve na festa de Nossa Senhora e voltou acompanhada até à porta pelo outro. Eu bem que os vira, mas fingi não saber de nada quando entrei em casa. Silvéria conversava com a vizinha e dizia:

“Mas se eu já lhe disse que podia vir...”

Não pude comer a sopa; fui logo deitar-me. Do quarto via-se a sala, onde dormia o pequeno filho dela e não demorou muito tempo que a vizinha não colocasse na cama outro travesseiro. Eu estava olhando, à luz da lamparina. Deixei passar alguns minutos e disse:

“Ó Silvéria, vem-te deitar.” Ela não respondeu. “Silvéria, já disse que viesses dormir!” “Já vou.” De repente, os cães, no terreiro, começaram a ladrar. Era um alarido. Saltei da cama, agarrei o revólver. “Quem está aí?” Ela apareceu então: “Deita-te, não é nada.” “Qual! Pois se os cães estão ladrando...É alguém.” “Que vais fazer?” “Ver”. “Não vás, Firmino não vás, não é nada!” E agarrava-se ao meu braço. “Como não hei de ir? Se for gatuno? Talvez esteja a roubar a criação.” “Firmino, meu velho, não vás!” Dei-lhe um empurrão, abri a tranca. Na moita, só a lua aclarava as moitas e os cães arfavam cansados. Voltei. Ela estava sentada, chorando. “Tu desconfias de mim!” “Eu? que falso!” “Tu

pensavas que era o Herculano!” “Eu? Nem pensava nisso!” “Pensavas, sim! E o melhor é acabar com isso. Vou-me embora!” Ela estava à espera de um pretexto. Para que discussões? Deitei-me outra vez, sem poder dormir. Silvéria continuava na sala, remexendo os móveis. Pela madrugada, já os galos tinham cantado e o luar estava desmaiado, ouvi que abriam a porta. Ergui-me, corri. Ela ia pela estrada, com a trouxa da roupa, ia sem se despedir de mim, que lhe dera tudo, ia embora... Deitei a gritar: “Silvéria! Silvéria!

Não vás.” “Adeus!” “Mas tu estás maluca, mulher.” “Não me fales, estou farta.” “Vais para o Herculano?” “Vou, sim, e agora?” “Um homem que podia ser teu filho!” “Talvez seja mais feliz.” “Silvéria! Silvéria!” “Basta de conversa fiada...” Eu então senti um desespero que me sacudia os nervos e não pude mais...

Para ouvir a história, encostara a cabeça na pedra em que os varões de ferro se encravavam. O pobre velho tremia num soluço sem fim. Então, eu lhe estendi a mão sem uma palavra, e segui, como se tivesse acordado de um horrível pesadelo. O guarda Barros acompanhava-me.

Pobre homem! Tentou suicidar-se e é preciso uma vigilância extrema para que aqui não tente outra vez contra a própria vida.

Já os sinais misteriosos com os quais se correspondem os detentos haviam anunciado uma pessoa estranha ao estabelecimento. Em todos os cubículos, nas galerias, correra o som anunciador, e nas grades amontoavam-se as caras dos que não serão em breve da sociedade.

Barros parou pouco adiante, apontando-me um homem magro, pálido, com o pescoço embrulhado num cache-nez. O homem corcovava tossindo, e os seus dois olhos brilhavam

como os de um tísico. Ao lado, um português bem disposto sorria.

O seu crime?

Umas rusgas, tentativa de morte, não fui eu...

E o seu?

Matei minha mulher.

Esse também confessava. Então era verdade? O crime de amor é o único confessável? Acerquei-me cheio de simpatia, e o sujeito magro não esperou que eu lhe perguntasse mais nada.

Antes, na ânsia de desabafar, atirou o cache-nez às costas e começou:

Chamo-me Abílio Sarano, sou barbeiro. Sempre fui honesto. É a primeira vez que entro aqui por causa do crime do Catete. Não sabe? V. Sa não sabe? Eu namorei uma moça, d. Geraldina, e com ela casei-me. Dias depois do nosso casamento minha esposa confessou-me que tinha sido gozada por um negociante, amante de sua própria mãe. Esse homem voltava a persegui-la. Era de noite, eu voltara do trabalho e amava minha senhora. Foi como se o mundo todo se desmoronasse. Ela, coitadinha, caíra de joelhos; eu interrogava, querendo saber tudo.

“Anda, fala, dize como foi.” O negociante, o biltre forçara-a numa cadeira, e ninguém soubera. Quando acabou, eu estava sem forças e chorava. “E agora, Geraldina, que será de nós? que vai ser de nós?” Ela consolava-me. Agora, era esquecer esse sujeito odioso. Acreditei e começamos a viver a triste vida da dúvida. A mãe infame e a família continuavam, porém, a seduzi-la. Uma noite, apesar de ser sábado, eu fui cedo para casa. Geraldina estava nervosa. Conversávamos na sala

quando a criada veio dizer que um homem procurava a patroa. “Um homem? Espera, vou eu mesmo ver quem é.” No topo da escada estava um cidadão robusto. “d. Geraldina está?”. Num relâmpago compreendi que era ele. “d. Geraldina? Ah! canalha, espera que eu te vou dar a Geraldina!” Saquei do revólver, e minha senhora apareceu assustada: “Fuja, seu Álvaro, fuja! Fuja!”. Ela mandava-o fugir. Como um louco, ergui a arma. Ele descia os degraus da escada e Geraldina tapara-me a passagem. Detonei uma, duas vezes, descemos de roldão. No patamar, o corpo dele jazia. Matei-o, pensei, acabei a minha vida! E deitei a correr. .. Só mais tarde, soube a verdade. As balas tinham ferido minha mulher. Ele fingira-se morto e escapara são e salvo. É por isso que estou aqui.

O chefe dos guardas chamara-me ao fundo, para a mesa que fica entre as escadas das galerias superiores.

Há ainda dois casos interessantes: um menino e uma mulher. Quer ver? Vou mandar buscar o menino. Sente-se.

Eu sentei-me. Por todas as janelas gradeadas, o sol entrava claro e benfazejo. Minutos depois, surgia, trazido pelo guarda, um pardinho cor de azeitona, dessas fisionomias honestas, alheias a devassidões.

Como se chama?

Ele tomou uma posição respeitosa, falando bem, com desembaraço.

Chamo-me Alfredo Paulino, sim, senhor. Tenho dezoito anos.

E já casado?

Casei aos dezesseis. Os meus parentes não queriam, mas depois o pai disse: “É melhor mesmo. Ao menos, não ficas perdido”. Eu já ganhava o suficiente para sustentar

dignamente a minha família. Casei. Foi nessa ocasião que o Dr. Constantino Néri me ofereceu o emprego de copeiro no palácio de Manaus. Aceitei, e voltávamos para o Rio quando a bordo encontramos um rapaz de dezoito anos, chamado José.

Era bonito o José?

Era simpático, sim, senhor, não posso negar. Ficamos tão amigos que, ao chegar, ele foi morar conosco. Primeiro, tudo andou direito, mas depois começaram os cochicos, as frases, as cartas anônimas. Era preciso tomar uma resolução. Disse ao José que não o podia ter mais em casa por certas dificuldades. Ele saiu, mas eu sabia que a Adélia lhe falava. Passaram-se meses nessa tortura. De vez em quando eu a interrogava e sempre obtinha respostas negativas.

Certo dia passei pelo José na rua e ele riu. Em casa pus Adélia em confissão, e ela disse: “É mesmo, fizeste bem em pôr esse homem na rua. Andava-me tentanto e foi tão ingrato que nem se despediu da gente direito.” De outra feita, encontrei-os na esquina, conversando e afinal, em casa. Foi então que eu fiquei desatinado.

Oh! o amor! Eu ouvira o amor sexagenário, o amor doloroso, o amor lilliput desse ménage de crianças! Todos tinham chegado ao mesmo fim trágico, ontem criaturas dignas, hoje com as mãos vermelhas de sangue, amanhã condenados por um juiz indiferente. Fiz um gesto. O pequeno insistiu.

Já que estou aqui, quero trabalhar. Nunca passei sem trabalhar. Peço a V. As para ver se entro como servente. Não quero estar no cubículo com aquela gente.

Neste momento traziam uma negra roliça, de dentes afiados, com um sorriso alvar a iluminar-lhe a cara. Era a Herculana, a autora de um crime célebre. Matara o amante enquanto este

dormia, acendera todas as velas que encontrara e começara a cantar. O amante tinha vinte e três anos.

E por que foi?

Ora, nós brigamos. Eu gostava dele. Nós brigamos. Um dia, ele me disse uma porção de nomes. Eu fiquei calada, mas quando o vi deitado, com o pescoço à mostra, roncando, parece que o diabo me tentou. Eu fui então, com a faca...

Aproximei-me, e bem perto, quase murmurando as palavras:

Diga: era capaz de fazer o mesmo outra vez, de abrir o pescoço do pobre rapaz, de acender as velas, de cantar? diga: era?

Ela riu como uma fera boceja, e disse num arranco de todo o ser:

Eu era, sim, senhor...

Que estranha psicologia a dessas flores magníficas do jardim do crime! Que poderoso transformador o amor! Bem dizia Tennyson ao evocá-lo: Thou madest Life, in man and brute, thou madest Death... (Tu fizeste a Vida, no homem e no bruto, tu fizeste a Morte...).

Eu começara a minha visita à beira do desespero, na púrpura de uma moita de lírios vermelhos.

Com os corações em sangue, vi uma coleção de assassinos, desde um velho lamentável até uma criança honesta, postos fora da sociedade pelo desvario, pela loucura que a paixão sopra no mundo. A mulher, que os poetas levam a cantar, Vênus inconsciente e perversa, Lilith, lendária, surgia nessa ruína, perdendo, estragando, corroendo, matando, e eu sentia, no olhar e no gesto de cada uma das vítimas do amor, o desejo de guardar o perfil das suas destruidoras.

Oh! esses seres, que Schopenhauer denominava animais de cabelos compridos e ideias curtas, que formidável obra de destruição cometem! São a torrente a que ninguém pode resistir, a força dominadora da maldade, os molochs da alegria. As gerações futuras, livres dos nossos velhos deuses, devem, para que a harmonia as guie, levantar nas cidades um altar votivo onde os adolescentes possam sacrificar, todas as manhãs à ira de Vênus sanguissedenta.

Mas as minhas reflexões pararam. Como tocasse um sino, pela escada da direita desceu um cavalheiro elegante que tapava o rosto com o lenço. E logo depois, grácil e airosa, com um rico vestido preto, caminhou pela galeria, olhando altivamente os presos, uma mulher cuja fronte parecia a pura fronte da inocência.

O guarda curvou-se:

O Dr. Saturnino e a esposa...

Eu vira o último crime de amor da detenção.

*Crônica extraída do livro “A alma encantadora das ruas”, Rio de Janeiro: H. Garnier, 1910

O amor nos tempos do cólera

Junito tinha uma loja de celular e nela ralhava duro para sustentar a mulher e dois filhos. Dedicava-se ao trabalho com muito zelo para poder suprir a família com dignidade. O comerciante não pensava em outra coisa, apenas vender e vender para vencer e ser feliz no seu lar.

Um dia qualquer, desses que dele ninguém espera nada, entra em sua loja um rapaz que mudará todo o curso dos acontecimentos, a trilha da cólera vai começar exatamente nesse dia. O rapaz entrou, perscrutou a vitrine; tinha a tez pálida, olhos claros, cabelo rente num estilo degradê, tinha um jeito desses rapazes que se cultivam em academias nos dias de hoje, mas nada que chamasse atenção. Ele tinha um nome, mas a alcunha que pegou: Manteiga. Dizia-se que as adolescentes almejavam o olhar de Manteiga, mas ele não estava nem aí... Foi quando cruzou com os olhos de Junito.

Junito puxou conversa querendo vender, e naquele dia parado a conversa caminhou por vários assuntos. A pabulagem foi desenvolvendo muito bem, um toque aqui e ali, e algo estranho ocorreu. Junito ficou enlevado por Manteiga, e Manteiga retribuiu o olhar com desejo inaudito. Com uma semana os dois já começaram os encontros. A relação foi avassaladora.

Márcia nem desconfiava, mas Junito não vinha voltava para a hora do almoço, praticamente passando a semana toda na loja.

À noite chegava tarde, nem ao menos cogitou que estivesse ocorrendo algo estranho. O dinheiro continuava ajudando, Junito demonstrava um pouco de abuso, sem a procurar por algumas noites, mas nada que fosse de estranhar. O fato é que as coisas mudaram e ela pensou que fosse apenas o desejo de trabalhar para vender, vender e vencer.

Passados alguns meses e a relação entre Manteiga e Junito chegou em um ponto que estava difícil disfarçar. Manteiga chega um dia à loja e diz à queima roupa: Ou eu, ou ela! Não quero mais dividi-lo com mais ninguém. Junito não admite deixar a mulher, tem filhos, não pode em hipótese alguma se separar. Manteiga faz pouco caso da família, dos filhos do outro, quer sua felicidade, exige monopólio. Manteiga com os olhos vermelhos exige o amor incondicional e exclusivo, Junito pede um tempo para pensar.

Alguns dias depois, Junito liga para Manteiga. Pega moto e põe uma roupa especial, um perfume, algo assim, porque nós vamos comemorar. O sangue de Manteiga entrou em ebulição, estava desejando mais um encontro, a voz de Junito denunciava aquele tipo de prazer animalesco. Quase sem pensar em nada, pegou a moto e se dirigiu ao lugar combinado. Junito vai na sua moto e em pouco tempo se encontram no local ermo, em uma zona rural entre montanhas, perto de uma trilha, a trilha da cólera, lugar que se dizia habitado por cobras peçonhentas, mas que atraiam pessoas sedentas por aventuras impublicáveis.

Ao chegar ao local, Junito pediu que Manteiga esperasse um pouco, que ia se preparar para a grande surpresa iminente. Ali naquele matagal, longe de tudo, entrecortado pelo silvo dos animais, rasgado pelo canto de alguma ave de rapina, animados pelo farfalhar provocado pelo vento, Junito se afastou. O vento trazia o perfume forte de Manteiga e isso o inebriou um pouco. Ajoelhou-se, preparou o tambor. Foi sorrateiro em direção de Manteiga, que estava com um sorriso

malicioso no canto da boca fitando a limpidez do céu beijando o topo da montanha de pedra ao longe. Manteiga ouviu a palavra amor, virou-se nesse instante. Foi perfeito! A bala cravejou no meio de sua testa estourando sua nuca. Junito nunca mais esqueceu os olhos de espanto. Pegou a sua moto, nem olhou para trás, saiu em disparada e voltou para a loja, para vender, vender e vencer.

A dinastia

O tirou ecoou no interior da igreja assustando os pombos e os primeiros fiéis que chegavam para a missa da manhã de domingo. ***

O que deveria ser um dia feliz acabou sendo o pior dia da vida de Caio. Na manhã de 13/09/1993, quando completava dezoito anos, o jovem recebeu duas notícias, ambas ruins. A primeira foi descobrir que o pai era um assassino profissional e que fazia parte de uma dinastia em que todos os integrantes eram matadores. A segunda foi saber que tal posto era herdado diretamente de alguém da família, não sendo possível se desvincular desse fato. Havendo uma recusa por parte do herdeiro da vez, tanto este quanto os demais familiares seriam exterminados, já que A Dinastia constituía um grupo forte, íntegro e homogêneo e não seria abalado ou desfeito pela mera recusa de um novo integrante, fosse quem fosse. Agora cabia a ele assumir seu lugar na organização. Seu pai não deu detalhes sobre a origem do grupo como também não explicou os motivos que levaram Alencar, o tataravô de Caio, a entrar para A Dinastia. Mas ficou claro para o rapaz que a aura de mistério era um ponto importante na identidade da organização e que apenas com o tempo, talvez, recebesse mais informações. Junto das notícias Caio ganhou de presente uma

bela caixa de madeira. Trazia desenhado em alto relevo o emblema AD, de A Dinastia, adornado por pequenas pedras preciosas. Ao abri-la era possível ver alguns desenhos de diferentes tipos de armas, indo desde facas e machados até revólveres e fuzis. Compunha ainda seu interior trinta fileiras de pequenos arquivos. Eram os exercícios obrigatórios, como o pai de Caio explicou, ou seja, cada ficha daquelas mostrava um desafio que o herdeiro deveria cumprir para se tornar um verdadeiro assassino profissional. Inicialmente o jovem sorriu imaginando que tudo não passava de uma brincadeira. Algo semelhante ao trote que vivenciou há poucas semanas ao entrar na faculdade. Entretanto, o pai prontamente o repreendeu, dizendo que ele deveria ter mais deferência. Caio ficou quieto, afinal, era preciso respeitar as cinco gerações dentro do seu clã que honravam A Dinastia, pois a partir de agora caberia a ele dar mais um passo nessa história.

Passou a conhecer um pouco melhor quem eram seus antepassados, descobriu que viviam vidas de fachada, não sendo na prática advogados e sim matadores. Soube que todos os bens que possuíam foram conquistados através das diversas mortes por encomenda praticadas ao longo do último século e que, por isso, deveria terminar sua faculdade de Direito, mantendo assim a tradição e mascarando a imagem em torno do nome da família; trabalhar no escritório Alencar & cia, fundado por seu tataravô, além de cumprir as tarefas elencadas na caixa que recebera de presente. Isto é, ao longo dos próximos trinta anos, deveria, além das encomendas que recebesse diretamente da alta cúpula dA Dinastia, executar todas os serviços indicados no catálogo recebido. Para isso, se fazia necessário assassinar anualmente uma vítima específica, pois dessa forma a organização se consolidava como uma das principais no ramo de matadores de aluguel do país.

Dando um beijo na testa do filho o pai se retirou. Alegou que seria importante o jovem descansar um pouco enquanto

lidava com toda aquela informação. Sozinho no quarto Caio tentou dormir e não conseguiu. Eram novidades demais caindo com força sobre ele. Sentiu como se estivesse em uma tempestade dessas de verão que chegam sem aviso prévio, o deixando totalmente encharcado. Mais do que novidades, eram questões um tanto absurdas entrando abruptamente em sua vida. Não bastasse a ideia de maioridade e a possibilidade de se tornar universitário e viver uma vida nova longe de casa (a faculdade onde pretendia estudar ficava em outra cidade e ele teria com isso todo um mundo a descobrir), agora ficara sabendo que era membro de um clã de assassinos que mantinha fortes laços com um grupo obscuro chamado A Dinastia. Nem um filme policial, dos que Caio tanto gostava de assistir com o avô, seria capaz de surpreendê-lo tanto. Com um misto de curiosidade e receio pegou a caixa e se pôs a manusear os arquivos: ator, banqueiro, contador, dona de casa, engenheiro... assim iniciava-se a listagem das suas vítimas futuras. Organizadas em ordem alfabética, ela enumerava uma série de profissões. As trinta fichas vinham ordenadas pelas vinte e seis letras do alfabeto, finalizando com zelador. Em seguida apareciam quatro novas, estas eram de cores diferentes, possuíam o AD em destaque, como uma marca d’água, e não indicavam uma profissão, mas traziam um pequeno texto: “O verdadeiro assassino deve ser capaz de matar com total consciência. Penso, logo atiro, deve ser seu lema. Não é permitido sentimentalismo, por isso, os quatro crimes finais são os mais emblemáticos e somente a sua execução dará ao candidato a honraria de ser um membro permanente dA Dinastia.” Após o texto cada cartão apresentava uma nova frase, na seguinte ordem: 27- seduza e mate. 28- alguém próximo deve pagar pelos erros cometido no passado. 29- nenhuma família é perfeita. 30- não há Deus, não há pecado e padres são perversos.

Caio não sabia mais o que pensar. Fechou a caixa com força e chorou convulsivamente. Lágrimas escorriam por sua face,

queria gritar mas sabia que não deveria chamar a atenção do pai. Pensou em rezar, pois mesmo não sendo devoto era um jovem que acreditava em Deus e às vezes acompanhava a mãe à igreja para assistir as missas matinais de domingo, porém desistiu, sentia-se mal, perdido e sem capacidade de se concentrar numa oração, por mais simples que fosse. A última ficha o deixou atônito. Sentia náuseas, uma dor revirou seu estômago, pensou que ia vomitar. Se controlou, foi até a janela e a abriu. Fechou os olhos, sentiu o vento frio entrar, se arrepiou, respirou fundo e desejou que o tempo passasse o mais rápido possível ao longo dos próximos trinta anos.

E o tempo passou, veloz, levando Caio para um novo século. Agora, frente ao espelho do banheiro, ele via refletida sua face séria, talvez aquela que menos gostasse e admirasse nele mesmo. Já no espelho da razão de Caio havia um misto de reflexão e angústia, de dor e ódio, de amargura e incompreensão. Aos quarenta e oito anos era um homem silencioso, de poucos amigos, solteiro, sem filhos e que morava sozinho num bairro de periferia. Mantinha-se afastado dos poucos familiares que restavam: duas tias e algumas primas. Seu pai e avô já haviam morrido, o que fez dele um homem ainda mais amargurado, porque agora detinha sozinho o segredo familiar. A Dinastia talvez fosse o que possuísse de mais seu e isso só fazia aumentar sua aflição. Desde seu aniversário de dezoito anos convivia com o peso de saber que era parte de algo atroz e desumano. De início aceitou ser da organização com medo das represálias que a família poderia sofrer. Chegou mesmo a contestar todo o poder dA Dinastia se recusando a cometer seu primeiro assassinato. Mas bastou dizer isso para receber um tapa no rosto e ter apontada uma arma para a cabeça pelo próprio pai. E naquele momento o jovem pôde ver nos olhos de seu genitor algo que nunca vira. Sentiu um calafrio percorrendo todo o corpo com a certeza de que nada o impediria de puxar

aquele gatilho se Caio não cumprisse com o destino que lhe fora reservado.

Então Caio matou. Seguiu à risca as indicações da caixa com os crimes do papai, como ele dizia em tom irônico para si mesmo toda vez que precisava, ano após ano, cumprir com aquelas obrigações. Mas agora ele se sentia muito cansado. Fazia menos de um ano seu pai falecera e desde então Caio percebia como viveu toda a vida perdido dentro da própria solidão.

Agora estava ali, entrando na igreja prestes a executar seu último ato para, enfim, se ver livre dA Dinastia depois de três décadas. Toda sua existência foi uma fuga em direção ao futuro, caminhava para a frente querendo na verdade dar um passo atrás, retornando assim para seus dezessete anos. Só que isso não era possível, então Caio decidiu se vingar. Se não teve a chance de viver a própria vida com liberdade, podendo fazer escolhas autônomas, A Dinastia também não viveria mais em sua família e por isso não casou, não teve filhos e não transmitiu a ninguém o legado da sua miséria. Agora seria o ponto final, não haveria mais continuidade para aquele fluxo insano de sangue sendo derramado em vão, seu tataravô não deveria ter feito o que fez, prendendo seus descendentes à Dinastia e Caio encerraria esse ciclo. Chegou cedo à igreja, procurou o padre alegando urgência, sentou no confessionário, pediu perdão e, antes mesmo que o clérigo dissesse algo, um tirou ecoou no interior da igreja assustando os pombos e os primeiros fiéis que chegavam para a missa da manhã de domingo.

Mão branca

Carlos Henrique dos Santos

A piada foi o início da sua ruína, o movimento que precedeu sua queda, no entanto ele sequer se dava conta disso e, talvez por esse motivo, seguisse sorrindo sozinho da própria piada, sorria a tal ponto que em determinado momento pareceu que ia se engasgar, se recompôs e bebeu mais um gole do uísque antes de pedir licença aos demais membros da roda de conversa e se retirar. Foi ao banheiro e deu mais uma cheirada usando seu canudo de ouro. Olhando-se ao espelho o que via era emoldurando por empáfia e sordidez, porém não se incomodava, sentia-se bem em ser como era e sabia que não mudaria, no fundo gostava der ser arrogante, tinha noção de que sua riqueza lhe dava direito de agir como bem entendesse, pois nesse mundo nós somos o que nós temos, e ele tinha muito, muito dinheiro.

Mas nem sempre foi assim: nasceu pobre, paupérrimo, filho de uma jovem mãe solteira, fruto de uma transa descompromissada de dois adolescentes ele cresceu sem pai nem mãe. Aquele ele nunca conheceu, sequer soube o nome. Esta, inconformada com as frustradas tentativas de aborto, deixou o menino aos cuidados da avó e antes mesmo que ele completasse um ano as rodas de um ônibus o deixaram um órfão completo. Com lágrimas, suor e muita oração dona Maria tentou do modo que pôde dar um mínimo de dignidade ao neto. Mas dignidade não combina com a vida que levam milhões de brasileiros em meio à miséria e ao caos social das

favelas e periferias. Nessas regiões, que abrangem boa parte do país, o que se faz é, quando muito, lutar para sobreviver. Diante disso, e não querendo ser apenas vítima, ele aprendeu desde cedo que o mundo pode não ser dos mais espertos, mas certamente não é dos mais trouxas. Percebeu ainda criança que ser pobre não precisa combinar com ser explorado, é possível também ser explorador, já que na arena social perde mais quem nunca ganha. Na escola conheceu a violência e com ela travou uma relação duradoura e até mesmo prazerosa. No início batia apenas como forma de revide, só que gradativamente compreendeu que bater antes era o jeito de se impor e isso não fazia distinção de gênero ou hierarquia, dessa forma acabou acumulando advertências e, antes mesmo de concluir o ensino fundamental, decidiu abandonar os estudos. Não gostava de se ver como vítima, por isso escondeu da avó o abandono da escola e, com o novo horário disponível, deu passe livre a si mesmo e começou a circular pelas áreas mais nobres da cidade. Ali observava como se comportavam as pessoas ricas, do andar ao ficar parado, do tom de voz ao modo de falar, da maneira como seguravam talheres ao sorriso de agradecimento ou à reclamação pelo serviço incompleto, tudo ele absorvia. Era um menino esponja se embebendo de desejos e estes só poderiam ser realidade se ele fosse outro que não ele. Decidiu que seria rico. Só não sabia ainda como, mas custasse o que custasse, era esse seu objetivo e estava decidido a agir com firmeza para atingi-lo.

O tempo passou e suas aulas de observação começaram a surtir resultado. Um dia, sentado em frente a um quiosque logo no início da manhã, ele percebeu uma cena diferente, dois homens, um senhor de terno e um jovem de bermuda e sem camisa, discutiam acaloradamente e era o mais jovem quem falava de modo mais enérgico, como se não apenas desse ordens mas também cobrasse algo do outro. Com seu terno alinhado, mala e óculos escuros o homem ouvia, balançava a cabeça assentindo e demonstrava impaciência.

Até que o jovem de bermuda, dedo em riste ao falar, deu um tapa na cara do engravatado. O estalo seco ecoou no ouvido do menino. Ele se assustou, não entendeu o porquê do não revide à agressão e aguardou. Alguns minutos depois os homens partiram, saíram para lados opostos, ficando o menino sozinho com seus pensamentos. Sua curiosidade o levou nos dias seguintes ao mesmo local mas os homens não apareceram. Cerca de um mês depois ele já quase não ia mais ao quiosque, só que o destino resolveu lhe ajudar. Garoava e as ruas estavam vazias quando um carro se aproximou dele, que estava sentado num banco à beira mar, era o homem de terno. Assim de perto ele pareceu ao menino ser mais jovem, já que de longe o que ele viu no dia da discussão foi um senhor negro de cabelos grisalhos e um jovem de cabelos desalinhados, de bermuda e sem camisa mais parecendo um surfista. Deu bom dia, perguntou como estava o menino e disse que precisava de um favor.

Você pode me ajudar? Eu já te vi por aqui algumas vezes e sei que você também já me viu. Mas não precisa ficar assustado, só preciso mesmo de uma ajuda.

Um tanto assustado com a abordagem inesperada o menino apenas balançou a cabeça. O homem pegou um envelope no banco ao lado e deu ao jovem. Passou-lhe ainda algumas instruções:

Daqui a mais ou menos meia hora um rapaz vai sentar aí perto de onde você está, provavelmente você também se lembrará dele, pois nos viu aqui outro dia numa situação não muito agradável mas já está tudo resolvido entre nós, não se preocupe. Ele vem aqui para me encontrar, mas eu não poderei esperá-lo. Então gostaria que você entregasse esse envelope para ele, basta entregar e ir embora, ele já sabe do que se trata. Você pode fazer isso por mim? E aqui está meu agradecimento. Receba como meu “muito obrigado!”

Dizendo isso o homem entregou ao menino um segundo envelope.

Sim, posso.

No dia seguinte os jornais noticiavam o atentado sofrido pelo filho de um conhecido deputado. Um envelope contendo notas envenenadas fora entregue à vítima. O menino levou um tempo para saber o que tinha feito. Mas sua contribuição foi o primeiro passo rumo a uma nova vida. Ele se tornou protegido do homem de terno que, dias após o ocorrido, retornou ao quiosque e o convidou para uma água de coco. Enquanto admirava o mar e tecia elogios à natureza o homem expôs toda a situação ao jovem: contou quem era, explicou como fazia seu trabalho de assessor político e de que modo conseguia tirar certas vantagens da posição que ocupava, explicou quem era o jovem a quem o menino entregara o envelope, falou de como vinha sendo chantageado e ameaçado e o porquê de ter optado por fazer o que fez:

Era eu ou ele, não havia mais meio termo. Mas pode ficar tranquilo porque ninguém desconfia de mim (e nem de você, claro!).

Desde então eles passaram a trabalhar juntos, com o menino sendo uma espécie de mensageiro do caos do homem, pavimentando assim a estrada que levaria o assessor, já com seus 50 anos, a se tornar um dos políticos mais influentes do país por cerca de três décadas. Entre ambos surgiu um laço de amizade, uma relação com um tom paternal, protetor e, às vezes, também violento. O que não impedia que formassem uma dupla eficiente naquilo que tinham como meta. Acumularam poder agindo em conjunto, um era a cabeça pensante, aquele que tinha as ideias e dava as ordens. Ao outro restava a ação, era quem executava. Brincavam dizendo que formavam um homem bicolor: uma face e um cérebro negro e as mãos brancas:

Você é o meu elemento surpresa, sempre que preciso de uma mãozinha extra é você quem eu procuro, então posso dizer que é minha terceira mão!

E assim o apelido que, inicialmente era uma brincadeira particular entre os dois, ganhou corpo, cresceu, assim como o menino. Hoje, mais de 30 anos após o primeiro encontro deles, é o ex-menino, agora um homem experiente, quem manda e desmanda, tendo forte controle e ingerência sobre diversos políticos. Seu mentor se aposentou mas fez com que seu protegido ficasse em posição privilegiada. Mais do que um assessor, o menino se tornou um controlador, é ele quem decide quem será candidato e a qual cargo, faz as alianças, define as propinas, intermedeia os contratos e gerencia o caixa 2. Mas tudo isso feito sem que precise aparecer demais, age de modo discreto, sem chamar a atenção e não atraindo para si os holofotes da mídia. Mas há um porém, sua personalidade, seu jeito rude, arrogante e prepotente faz dele alguém odiado pelos que convivem com ele. Seu gosto pela violência não se amainou, pelo contrário, só fez crescer. E cresceu a tal ponto que ele passou a fazer piada das próprias façanhas em torno de seus atos violentos: a surra dada no filho de um vereador (a mídia sugeriu homofobia, no entanto as pessoas próximas sabiam que a surra era resultado de uma aposta boba entre o homem e o vereador, este perdeu, não pagou o combinado e o castigo foi ver o filho exposto midiaticamente como vítima de violência); o incêndio no restaurante da neta de um senador e o vazamento de fotos íntimas da filha do próprio presidente, nada escapava da sua metralhadora giratória de piadas grotescas, salpicadas de sexo e violência. E foi justamente dessa última piada que lembrou após cheirar a última carreira, olhar-se novamente ao espelho e abrir a porta do banheiro antes de sair rumo ao círculo de conhecidos. Alguns metros antes de chegar ele já sorria enquanto organizava mentalmente o texto e a forma de contá-lo, porém seu riso foi interrompido por uma forte pressão na parte superior do abdome, sua vista

escureceu, as pernas fraquejaram e ele mal teve tempo de se escorar na mesa repleta de taças, caiu mas não se dignou a tombar de qualquer maneira, joelho escorado no chão, ele ainda tentou se reerguer mas faltava-lhe força, uma sensação forte de sono se abateu sobre ele, seu coração disparou, sua visão ficou totalmente escurecida e então tudo virou silêncio.

A autópsia não durou muito, o legista identificou no organismo da vítima uma grande quantidade da substância ativa monofluoroacetato de sódio, um raticida bastante comum e encontrado com facilidade nas ruas da cidade pelo nome de “Mão branca”. Após anotar as informações no prontuário ele recolheu os pertences do morto que estavam sobre a mesa: o relógio de ouro, os anéis e o canudo também de ouro e saiu pensando se ainda daria tempo de tomar um banho antes de encontrar a esposa para jantar.

Contos paranormais: o aniversário sangrento

Era uma noite como tantas outras naquela cidade interiorana, quando uma mulher negra de cabelos cacheados passara correndo por algumas ruas, fugindo de alguém, sua respiração estava ofegante, seu olhar disperso, desejando olhar para trás para ver se ainda era perseguida, mas ciente que o ato de olhar poderia ser sua ruína, pois perderia algum tempo na ação. Ela seguiu por algumas ruas e pensou enfim estar livre, quando parou para tentar ao menos respirar, virou e viu dois olhos brilhantes em sua frente, em seguida apenas um grito foi ouvido naquela vizinhança, acordando inúmeras pessoas. Mas quando se aproximaram finalmente, tudo o que foi encontrado foi uma mancha de sangue, um par de sapatos de salto e a carteira.

Então o nome dela era Paula? - Perguntou um homem, às 10:22 da manhã, dia ensolarado, calor insuportável como vinha sendo naqueles dias. Seu semblante era neutro, usava um chapéu que era mais um recurso alegórico do que necessário, por esse mesmo motivo usava luvas, mesmo neste calor e um sobretudo que parecia saído do Inspetor Bugiganga, mas mesmo por baixo de todos acessórios, dava para ver que parecia mais um lutador do que um policial

Sim, senhor, Carlos tudo o que temos é esse documento, já vamos fazer testes com o sangue e os sapatos foram guardados para evidência, um deles está com o salto quebrado, não sabemos se de correr ou se ela teria usado como arma, antes de ser levada por sua vítima. - Respondeu o investigador, na faixa dos 31 anos, cabelos bem definidos ondulados até o ombro e com algumas mechas amarelas.

Neste caso então, Victor, não temos na verdade uma prova que houve homicídio.

Evidente que não senhor, mas me chamaram aqui por que o modus operandi é o mesmo de outros desaparecimentos que já aconteceram na cidade, mais precisamente de pessoas ligadas a essa mesma escola, onde a senhorita Paula era Coordenadora pedagógica.

- Se não há corpo, não precisamos falar no passado ainda, tenhamos fé. Agora, me acompanhe, sei que não é usual, mas quero que você seja meu parceiro neste caso.

Para mim seria uma honra detetive, para onde vamos?Pergunta o jovem.

Evidentemente, para a escola, já que temos mais casos acontecendo por lá.

Seguiram então atravessando alguns bairros da cidade e em cerca de meia hora estavam onde neste momento era hora do almoço. Interfonaram e tiveram uma demora nada usual para que alguém abrisse, talvez porque a secretária estivesse almoçando. O fato é que assim que entraram, todos os adolescentes os fitavam como cães observando frango assar, os deixando em dúvida se era uma atitude de medo ou de demonstrar que precisavam de socorro para resolver a situação.

A primeira pessoa a quem se dirigiram foi a diretora da escola, seu nome Marília, mulher de cerca um metro e sessenta, cabelos longos e considerada por muitos uma das mais belas diretoras de toda a cidade, mas naquele momento, não parecia ser exatamente assim a forma mais eficiente para descrevê-la diante das imensas olheiras e tom de voz apavorado.

Sejam bem vindos! Até agora não sei como isso foi acontecer, mais uma pessoa de nossa escola desaparecida, até quando esse massacre ai acontecer… não consigo entender o que nossos alunos e funcionários podem ter feito a alguém, todos são tão amáveis e apesar do ambiente de fofoca, a escola é sem dúvida um ambiente acolhedor. Disse a mulher entre lágrimas.

Acalme-se senhora, nós viemos aqui para ajudar e se depender de nós, nesse momento vamos resolver e punir que for responsável por isso, o quanto antes. Disse o líder da investigação

Sim, não deixaremos que as pessoas façam isso com um ambiente educacional, ainda mais, na escola onde eu me formei - disse o jovem investigador, enquanto percebia ter dito mais do que devia e percebendo seu novo chefe com um olhar que diz algo como “falaremos disso mais tarde”.

Um ex-aluno? Bom, sinto que realmente isso tornará o seu trabalho mais forte já que também deve guardar algum amor pela escola, o que vocês precisam ver ou com quem precisam conversar? Segue a diretora.

Bem, existe alguma suspeita a senhora ou a escola tem alguém? Algum funcionário que possa estar querendo retaliação ou algo do tipo? falou o jovem investigador. Antes de responder, senhorita Marilia, acho prudente irmos para sua sala, para ter mais privacidade. Falou o líder enquanto ela abria a porta e fazia sinal para seguirem.

Ao entrar na sala da diretora, se depararam com um ambiente com vários armários e equipamentos que chegavam a parecer desnecessários e na parede esquerda, um conjunto de imagens de desaparecidos, com a aparência de um painel de investigação.

Respondendo a pergunta anterior, ainda que nossa escola não seja tão grande quanto outras, principalmente por ser integral, as pessoas costumam se apegar muito ao trabalho aqui, temos muitos professores que pegam designação continuamente por gostarem da escola, mas pra falar a verdade, há duas situações que podem me fazer desconfiar de pessoas, mas não acredito que elas pudessem ser tão cruéis ao ponto de sumir com alguém.

Belo painel que a senhorita tem aqui, as possíveis suspeitas são essas no centro? Aliás, belo trabalho de montagem.

Sim, senhor investigador. A primeira Doroteia é uma exfuncionária que foi demitida por decisão do colegiado, após múltiplas infrações, ela disse que iriamos nos arrepender por ter feito isso, então se tornou evidentemente, nossa primeira opção. Já a segunda, é a antiga bibliotecária da escola Tarsila, que por mais de uma vez fez denúncias contra a própria escola por uma rivalidade principalmente com o atual vicediretor. Quanto ao elogio ao quadro de investigação, eles devem ir para Erick, nosso professor de arte, ele que montou isso, nunca vi ele tão determinado, principalmente após o desaparecimento das alunas Emily e Natália, com as quais ele era unha e carne.

Calma senhorita, muita informação em pouco tempo, primeiramente sim, são suspeitas boas pelo o que você diz, mas além desses três desaparecimentos: Paula, Emília e Natalia, temos mais pessoas? Pergunta o jovem.

Ainda não, ao menos não que a gente saiba...

Bem, esse professor investigador pode ser uma boa fonte, até por que, parece haver envolvimento excessivo da parte deles, ele está na escola? Pergunta o homem com o sobretudo.

Infelizmente não, pegou alguns dias de licença alegando falta de condições psicológicas, mas se conheço bem, deve estar investigando o caso por conta própria.

Nos passe o endereço por favor Falou o detetive com uma voz segura, como um verdadeiro diplomata.

Claro, não vejo por que não fazer, se é para o bem de uma investigação séria como essa. Por favor senhores, tragam de volta nossos desaparecidos ou ao menos, descubram quem os fez mal, para fazermos com que a pessoa pague.

Faremos o possível, podemos olhar o armário desse professor e talvez a biblioteca também? A escola é de vocês, amigos.

Seguiram então para a biblioteca, que estava sem cadeado, mas trancada na chave tetra, que a diretora havia deixado com eles, pedindo para ser devolvida posteriormente. Um ambiente que estava escuro demais para uma biblioteca de escola, aparentemente não havia encontrado uma substituta desde que a antiga bibliotecária havia saído. E a próxima certamente teria trabalho para organizar aquele espaço.

Começaram a investigação procurando algo de anormal entre os livros e papeis na mesa, vendo que haviam alguns desenhos soltos e atividades de alfabetização largadas pela sala, uma delas chamou atenção por uma escrita em vermelho e letra trêmula “Ela me maltrata”, e uma assinatura escrita “Otávio”

_ Bom, pode até não ser nossa suspeita talvez, mas que de fato essa mulher fazia algo de ruim, ela fazia. Comenta o mais

jovem. Aliás, poderíamos olhar as gavetas da mesa que ela usava.

Quando se aproximam, percebem que está trancada e logo o mais jovem abre sua mochila e tira de dentro um conjunto de arrombamento, conseguindo abrir com facilidade o compartimento que tinha um velho caderno de assinaturas de reservas de livro, uma pasta sanfonada com 12 divisórias e uma estranha chave com sigilos gravados nela e um símbolo que se assemelhava a um olho.

Senhor, acho que encontrei algo bem estranho, disse ele levantando a chave.

É o que parece, meu jovem parceiro, mas vamos olhar esses arquivos e por alto.

O que encontraram, foram estranhas anotações sobre algumas pessoas da escola:

Marilia: um pouco leve demais para o objetivo, acredito que seu corpo jovem seria um receptáculo ideal, mas não consigo ver ela resistindo mais de uma semana.

Mislele: seu conhecimento poderia ser alimento ideal para receber o Dom, mas seu lado maternal pode fazer sua alma resistir ao controle por mais tempo e temos pressa para trazêlo à vida.

Ricardo: ainda que eu tenha um completo nojo por este ser, seu corpo jamais teria dignidade, para receber a dádiva.

Erick: não sei o que se passa na sua mente, mas sua personalidade amável pode tornar interessante o embate com a criatura e ainda que o físico seja seu fraco, parece ser um bom candidato.

Doroteia: tanta raiva acumulada, sem dúvidas parece um prato cheio para o dom, acredito que ele a vingaria facilmente das pessoas que lhe fizeram raiva

Emília: uma aluna com sede de conhecimento e por mais que ainda tenha o corpo jovem demais, pode valer como receptáculo, principalmente por seu desejo de conhecer coisas sobrenaturais

Natália: por não desgrudar de Emília, posso até pensar que seria curioso uma das duas como receptáculo, poderia agir em relação a outra.

Arthur: seu comportamento rebelde parece ser uma forma fácil de assimilar e já é quase adulto, logo, pode ser que a união aconteça de maneira espontânea.

Haviam ainda alguns nomes em destaque, mas nada que chamasse atenção como esses, após lerem cuidadosamente, o investigador disse:

Bem acredito que ir à casa dela é nossa prioridade.

Não haveria como discordar, chefe.

Colocaram-se na estrada e pouco tempo depois chegaram a casa, que era ali no bairro mesmo, tudo parecia fechado e abandonado, mais uma vez usando seu kit de arrombamento, Victor garantiu acesso a casa, e logo que entraram a visão bizarra tomou conta do ar e mexeu pela primeira vez com a sanidade dos detetives. O corpo da então bibliotecária estava completamente destruído, com marcas recentes de sangue e seus membros espalhados, em sua mão direita, próxima a porta do porão, havia uma chave, mas o mais estranho era sua cabeça, pois estava de olhos abertos com ar de orgulho e um sorriso imenso.

Senhor, mesmo em meus dias mais fantasiosos, não achava que eu poderia encontrar uma cena estranha como essa. Com o tempo de carreira a gente se acostuma?

Ah, meu jovem parceiro, confesso que até para meus anos de carreira essa cena parece estar acima da média no nível de coisas bizarras. Mesmo já tendo lidado com seitas, nada que vi até agora parecia realmente sobrenatural

Ao examinar a casa, encontram uma arma com dois cartuchos cheios e um estranho livro com inscrições parecidas com as da chave e um cadeado, fazendo com que fosse imediato o impulso de abrirem o livro, usando a que encontraram na escola.

Assim que o fizeram ambos tiveram uma sensação e delírio coletivo como se ouvissem algo perguntar “Qual o seu maior medo? ”. A resposta de Carlos veio com muitas lagrimas e a certeza que seu maior medo era que nunca descobrir os responsáveis pelo sumiço de sua filha, Julia, que desapareceu meses antes e o responsável pelo caso, nada conseguira encontrar. Já para Victor o seu maior medo era a própria morte, temia a imprevisão do não existir como se fosse possível evita-lo de alguma forma.

Quando ambos voltaram a si, ficou claro que parte da sanidade deles havia se perdido naquele processo, mas assim que conseguiram, se recompuseram e o mais jovem se colocou a ler.

Assim como existem criaturas paranormais que podem se manifestar por meio de animais, como as aranhas, existem outros cuja o poder deve ser administrado por cautela pois ele se é colocado deve ser colocado no corpo de um humano apto a recebe-lo. O parasita cerebral é um destes, após o ritual de invocação desenhando o símbolo de sangue com o sacrifício de um coração carregado de ódio, ele vai procurar a pessoa

mais próxima como hospedeiro, as memórias dessa pessoa não vão lembrar da cerimonia ou mesmo do dia em que ela aconteceu, mas aos poucos a pessoa vai ganhar força, enquanto o parasita se espalha e aumenta sua energia paranormal, buscando armazenar sacrifícios para se fortalecer devorando a todos, de uma única vez, enquanto. O coração foi fácil de encontrar, aquela inútil Doroteia tinha o coração perfeito quando foi demitida, como se a demissão não fosse certa... tendo tentado assediar jovens da escola.

E o receptáculo está a alguns dias fazendo vítimas, enquanto investiga, sem saber que ele mesmo é o autor da tragédia. A única coisa que pode ser capaz de parar essa criatura é uma exposição massiva a uma forma de luz potente que o fará sair do corpo, por segurança, devo deixar um refletor calibrado para poder me proteger.

Parece então que Erick é o responsável, mas estaria ligado a algo paranormal que não tem controle? Isso faz algum sentido para você senhor? Para mim, parece história para boi dormir. E continuou falando sem perceber que o seu chefe ainda foleava o livro com olhos vidrados.

No dia 15 de março, usei o lodo de morte que recolhi para dar origem a um conjunto de aranhas paranormais, tudo o que era preciso eram lagrimas de uma criança e o corpo da mesma sendo usado para alimentar a líder do enxame. A garotinha dizia que seu nome era Julia a encontrei na rua correndo atrás de um animal e facilmente a capturei, tudo que ela dizia, antes do ritual que fizemos no armazém, foi que seu pai era policial e não demoraria para salva-la. Nem foi preciso forçar o choro, pirralha indesejável!

Ao ler essas palavras, Carlos caiu de joelhos no chão e parecia completamente fora de si, sentia ainda mais forte a sensação de loucura próxima, sua filha que antes era desaparecida, agora estava certamente morta e envolvida em algo paranormal, o

que seria o correto a fazer? Sair da investigação por ética? Continuar para ao menos em partes poder vingar a morte de suja filha? Onde ficaria aquele armazém? Por que essa mulher já estava morta? Como pode Carlos perder a chance matar ele mesmo aquela maldita? Em meio acenos de loucura que tomavam conta de sua cabeça, Victor pegou o livro e ao ler, deduziu o que estava acontecendo.

Escute senhor, não faço ideia de quem seria essa tal Julia, mas neste momento o que eu sei é que novas vítimas como ela podem ser feitas se você não voltar a si, então por favor, seja o oficial que é referência para novatos como eu, me ajude a resolver esse caso e impedir que esse sei lá o que do capeta se devore essas pessoas, se é que isso não aconteceu ainda.

Aquelas palavras fizeram com que Carlos voltasse a si por um momento, mas seu semblante sereno é tomado por um olhar furioso que não se desfaz, ele tira o seu sobretudo, mostrando sua imensa massa muscular, quase incondizente com um homem perto de se aposentar. Enquanto ele caminha para o porão e ignorando a chave que haviam encontrado, investe um chute que arrebenta a porta em instantes.

Se tem algo que podemos usar para salvar esse professor desse suposto parasita, vamos fazer.

Quase instantaneamente a abertura, o cheiro podre saia do porão e tomava conta da casa, acenderam as luzes e desceram, procurando o maldito refletor ou algo de luz, como o descrito. O porão tinha ainda mais símbolos e inscrições, além de aparentemente livros de ocultismo e um corpo com um buraco no que seria o coração, e apesar do estado deplorável, logo imaginaram se tratar de Doroteia.

Senhor, isso parece um canhão de luz teatral, mas tem umas inscrições. Falou Victor.

- Deve ser isso mesmo, você consegue carregar?

Ao dizer isso começaram a ouvir uma espécie de grunhido alto e mal tiveram tempo de se virar e viram o corpo de Doroteia investir contra Victor, mordendo seu ombro esquerdo e o fazendo gritar.

Porra! Eu vou virar zumbi, merda!! Eu nunca quis ter um fim como esse, tira essa coisa de mim!

Carlos então puxou o monstro, que levou um pedaço de carne de seu amigo e investiu uma sequência de socos contra ele que caiu no chão, Victor pegou a arma que encontraram, mirou na cabeça e a queima roupa disparou duas vezes na boca do monstro, como vingança.

Você está se sentindo bem? Pergunta Carlos.

Parece que não era um zumbi clássico senhor, ao menos não me sinto diferente ainda, mas se eu sentir, por favor, me mate.

Corta o drama rapaz, isso não é um romance policial, vou fazer um curativo improvisado rasgando meu sobretudo e vamos seguir, eu levo o refletor. Disse o homem enquanto pegava com as duas mãos.

Vamos alertar nossos superiores, pedir reforços?

Seria o usual, mas acredito que matariam o Erick assim que ele se movesse, nós temos alguma chance de salva-lo ainda, se é que tudo isso que lemos é real.

Colocaram o refletor no carro então e assim que saíram, viram pelo retrovisor uma van preta parando na porta da casa, o que os fez acelerar ainda mais para sair do local. A casa do professor Erick era afastada, ele morava em um setor rural próximo a saída da cidade e muitos até se admiravam de quanto ele precisava andar para chegar a escola. Assim que

chegaram, improvisaram uma ligação do refletor à bateria do carro, já que Victor tinha algum conhecimento de tecnologias.

Perto da casa era visível uma espécie de nevoa que não havia em outros lugares próximos, e manchas de sangue espelhadas por alguns lugares e os investigadores já não sabiam se era mais bizarro a situação ou que eles não achassem aquilo muito louco, diante do cenário que viveram antes. A primeiro momento foram para a porta principal, que estava aberta, fazendo com que entrassem furtivamente, o plano era atrair para fora o professor para expor ele à luz, mas já estavam prontos para mata-lo se fosse necessário. Nenhuma coisa fora do normal parecia haver na casa principal, tudo que acharam foi um kit de primeiros socorros e no quarto do professor, próximo a cama algumas anotações:

Já não sei o que pode ser real, parece que quanto mais próximo estou de descobrir quem fez isso, mais distante eu fico.... Ontem fui a casa da antiga bibliotecária e lembro de ouvi-la recitar algumas palavras que fizeram parte da minha pele sair e em seguida correr para o porão, depois, quando dei por mim, eu estava envolto em sangue e seu corpo estava espalhado. Será possível, será que fui eu? Será que também sou eu quem foi responsável pela morte dos outros? Como eu ainda torcia para que eles estivessem vivos.

E esse cansaço? É como se meu corpo tivesse duas vidas e uma deixa a outra exausta, tem já sei que não consigo voltar a lecionar tão cedo, mas espero que consiga descobrir o que realmente acontece... Primeiro Emília e Natália e depois Paula. Só terei paz quando conseguir um resultado, uma resposta. Tem semanas que parece que ao chegar perto da casa dos fundos, minha energia se esgota, como se meu corpo não quisesse ir lá, não quisesse ver algo que está naquele lugar.

Deve ser horrível não saber que há algo dentro de si que está corroendo sua mente e controlando seu corpo. Disse

Victor respirando ainda com dificuldade por conta do ferimento causado pelo monstro.

Seja lá o que for, está nessa casa de fundo, entre pelo portão lateral, eu irei arrombar por dentro concluiu Carlos e assim fizeram.

Ao colocar o carro para dentro, viram que o quintal tinha muitas arvores e uma torre de celulares cercada, ao lado dessa torre que nada de anormal parecia ter, havia uma segunda casa, como um puxadinho, onde a névoa parecia particularmente mais densa ainda do que nos arredores, mesmo com seus músculos, Carlos pegou uma pá que havia encontrado lá perto, para que pudesse usar em caso de combate. A porta do puxadinho estava entreaberta e havia espécies de fios de sangue, como canos que passavam pelo chão próximo a entrada, dentro da casa, haviam vários casulos com corpos de pessoas em suspensão. De forma intuitiva, Victor disse que deveriam estar vivos, considerando que o monstro parecia precisar recolher um tanto de pessoas, o problema era que haviam muito mais do que os três desaparecidos da escola, muitos outros corpos estavam ali, possivelmente de pessoas de outras chácaras próximas.

Quando chegaram ao centro dessa segunda construção, havia uma espécie de rosa dos ventos no chão onde os três corpos ocupavam posições - Emília no Leste, Natalia no Oeste, Paula no Sul e um casulo aparentemente sem corpo no Norte.

Creio que chegamos na hora, falta apenas um corpo para que ele complete seja lá o que ele precisa completar. Falou Victor.

Bom, sabemos também que ele deve trazer ainda hoje alguém e por alguma razão para essas vagas principais ele fez questão de recolher corpos de pessoas conhecidas de seu hospedeiro.

Mal haviam dito isso, puderam ouvir gritos de uma voz conhecida e viram o professor ou o que deveria ser ele carregando a diretora da escola pelo cabelo

Me solte Erick, nem parece você, seus olhos brilham e seu dedos tem garras, eu sei que você não quer fazer isso, você precisa reagir. Gritava Marilia entre os pedidos de socorro.

Furtivamente Carlos e Victor se posicionaram vendo a figura do professor aparecer com a mulher, seu aspecto era monstruoso, seus olhos eram brancos como se exalassem medo, suas mãos pareceriam ter unhas brancas e ele flutuava no ar ao se deslocar, como um fantasma, logo ao chegar na sala viram ele dizer com uma voz estridente e parecendo distante.

Esse humano já se foi, e você é a última peça que falta para completar a missão, além de me alimentar irei enfraquecer a membrana para mais de nós podermos vir a seu mundo, sintase honrada, seu corpo também será um receptáculo do futuro!

Cala sua boca! Gritava a diretora, tentando se soltar.

Quando estavam perto do casulo, Carlos saiu de surpresa acertando a pá com o máximo de força que podem, jogando o monstro longe e fazendo sua cabeça sangrar.

Vocês? Façam alguma coisa, aquele não é ele, está falando como um monstro.

Ah, senhorita diretora, você não sabe da missa um terço. Nós sabemos como lidar com a situação, mas precisamos leva-lo lá para fora.

Ele disse que precisa de mim, eu posso ser o seu chamariz. Responde a mulher com insegurança na voz. Enquanto o professor se levanta, parecendo de volta a si e sentindo o ferimento.

Quem? Quem são vocês e o que estou fazendo aqui? Marilia, essas pessoas estão por trás dos desapareci pausando um pouco e se dando conta que ele estava em sua casa Não, não pode ser, não tem como! Eu não posso ser o responsável por isso Vê os corpos nos casulos Não, eles estão mortos, eu fiz isso?

Ao perceber que o homem estava próximo de enlouquecer Marilia dá um tapa forte em seu rosto.

Não sei como nem quando, mas tem algo em seu corpo e essas pessoas parecem saber como tirar.

Só me digam como! Diz enquanto sua mão estica em direção a mulher. Eu não estou fazendo isso, não consigo controlar o meu braço!

Marilia, corra para fora, perto do carro, precisamos expor ele ao refletor. Gritou Victor.

Sem pensar duas vezes a diretora se colocou a correr, seguida por Victor enquanto Carlos jogava o professor na parede tentando ganhar tempo.

Espero que me desculpe por isso. Fala antes de correr para junto de seus amigos.

Ao chegar no carro Victor se posiciona para ligar a luz enquanto Marilia fica a frente e Carlos mantem sua pá pronta para reagir. Logo o corpo começa a flutuar novamente em direção a diretora e quando ligam o refletor, Victor vê os sigilos brilhando em uma intensa luz dourada que ao atingir a criatura o separa do professor, que fica caído. A visão da criatura fora de um corpo era ainda mais perturbadora, sua aparência etérea fazia parecer que não tinha corpo ou como ser atingido, mas assim que formado, Carlos tem a iniciativa de atingir a criatura com a pá por trás, e causando algum dano, mesmo que menor do que o esperado e fazendo com que ele

se tornasse alvo da criatura que instantaneamente crava suas unhas no peito dele, que não parece se entregar.

Marilia corre para o corpo de Erick e vê que ele estava vivo ainda, enquanto Victor atira com cuidado na criatura e ainda que o tiro parecesse atravessar seu corpo, dava para ver que parte de sua forma já está com dificuldade de se manter.

Aproveitando a proximidade, Carlos arranca unha da criatura de seu peito e o arremessa contra o chão, fazendo com que a parte debaixo de seu corpo desaparecesse, mas ainda flutuando, novamente a criatura enfia suas garras no corpo do homem, que agora assim parece ter sentido o dano.

Sem ter visão adequada, Victor corre para perto e tenta dar um soco, com medo que seu tiro atingisse o parceiro, mas a criatura desvia e ainda arremessa o corpo de Carlos contra o de Victor, deixando ambos no chão. Quando criatura parece pronta para dar um último ataque em Carlos, o carro com a luz se aproxima mais, sendo guiado por Erick e Marilia e a proximidade da luz parece fazer ainda mais mal ao corpo do dela, fazendo mais parte de si dissolverem.

Carlos se levanta com a boca ensanguentada e diz

Seu maldito, não deixarei minha Julia ter morrido e pragas como você continuarem no mundo, prometo que matarei cada um de vocês! - Logo, pegando pelas mãos, ele cola a criatura contra o vidro a fazendo terminar de se desintegrar, restando apenas um pó branco no chão. Acabou! Diz o homem enquanto cai desacordado, morrendo.

Nesse momento se houve um barulho de uma van chegando e antes de morrer de vez, Carlos vê um fantoche na mão de um homem e sorri, como quem reconhece aquele fantoche. Em sua mente, antes de morrer Carlos tem certeza que de alguma forma estranha sua filha vive dentro daquela criatura.

Bem, senhoras e senhores, meu nome é Wymber e sei que agora que tiveram sua primeira experiência de exposição paranormal, vocês vão precisar de explicações e acolhimento, mas antes, nos permitam arrumar todo esse caos, estamos praticamente ligados ao outro lado nesse momento.

Sem nenhuma reação, Erick e Marilia se abraçam enquanto Victor chora junto ao corpo de seu parceiro, tudo que se vê em sequência são mais pessoas chegando e começando a destruir os casulos, enquanto o pequeno homem com o fantoche leva os sobreviventes, prometendo mais explicações, que ficaram para uma futura história.

Verdade sangrenta

GrazielaLeão

Quando lhe disserem que a vaidade é uma via de mão dupla, acredite, essa é a verdade. Álvaro Sommers sempre fora um homem de gostos apurados, exímio entendedor de vinhos e tecnologia, não havia um país que não conhecesse, uma lástima, conhecia o mundo não as pessoas ao seu redor.

Convidado para uma palestra, pedirá à secretaria para agendar sua estadia na cidade vizinha, aproveitaria para ter uns dias de descanso. A cidade em questão era pequena, aconchegante. Era curioso o fato de ambas as cidades nada terem em comum; River Miles possuía uma universidade, lojas de conveniência, restaurantes, por outro lado, Houston More; carregava o ar de lugar parado no tempo. Apesar de tudo parecer distante, nunca pensei em conhecer um local sem sinal de internet, nem mesmo o celular funcionava para ligações. Tudo bem, seria interessante passar um tempo longe da civilização.

A palestra fora de longe uma das melhores que ministrará. Na estrada para Houston nada percebeu, parecia estar viajando sozinho. Não era adepto de viagens de carro à noite, mas nada poderia fazer.

Do lado de fora do casebre, um arrepio lhe correu a espinha. Não podia estar certo. Alice o informará sobre uma pousada, o que via era qualquer coisa menos aquilo. Após alguns passos, sua mente mostrou um vislumbre de inúmeros filmes de terror que assim começavam.

O carro demorava a pegar, o pânico lançava em seu sangue grandes quantidades de adrenalina. Novamente, girou a chave no contato, o automóvel fez um som de engasgo, enfim, dera sinal de vida. Sairia dali o mais rápido possível.

Morgan Phillips digitava furiosamente em seu computador. Tomara a terceira xícara de café só aquela manhã, não era saudável, mas precisava terminar o relatório dentro de quinze minutos. O aparelho sobre a mesa apitou: Agente Phillips, na escuta.

Temos um acidente na sua área, câmbio.

Certo, chefe. Qual a localização?

Próximo a cabana Silver. Por favor, detetive, seja discreta pediu a chefe.

Descrição faz parte dos meus atributos. Câmbio. Desligo.

Sabia que a chefe lhe escondia algo, era a primeira vez que lhe pedia descrição, como se a mesma já não executasse o trabalho sempre dessa forma.

Depois de dirigir alguns minutos, a detetive Phillips desceu do veículo. No caminho cumprimentava os demais oficiais, era óbvio não se tratar apenas de um acidente. Chamou a atenção do legista responsável: Doutor Martin, o que temos aqui?

O médico retirou as luvas para o devido descarte: Homem, Álvaro Sommers. 40 anos. É de fora da cidade. Ferida grave na cabeça, provocada por instrumento contundente.

Certamente, a causa da morte foi uma hemorragia intracraniana.

Subtração de algum pertence? os olhos da agente seguiram para o corpo agora coberto.

Aparentemente não. A carteira não fora remexida, o relógio ainda no pulso esquerdo. O carro também, tudo intacto. Nem um caso de desaparecimento relatado, curioso, um homem aparentemente bem sucedido, e nem na cidade de onde veio é procurado.

Descobriram o motivo de estar por aqui?

Creio que posso ajudar o jovem assistente corria com a prancheta em mãos. A vítima foi palestrante em uma universidade na cidade vizinha, estamos tentando contato com a empresa em que trabalhava. Talvez, alguém saiba o motivo de ter vindo para cá, invés de escolher um hotel requintado.

Obrigada, pessoal! aquele dia prometia. A agente voltou para a delegacia, prontamente foi em busca do nome da vítima na ferramenta de busca. Várias fotos nas redes sociais, cercado por mulheres atraentes, em restaurantes sofisticados, em quase todas pareciam estar de posse de uma taça de vinho. Anotou o telefone para pedir informação. O aparelho indicava a discagem: Alô, escritório do senhor Sommers.

Sou a agente Morgan Phillips, da polícia de Houston More. Gostaria de uma informação, por favor entre ouviu agitação no fundo da ligação. Senhorita, ainda está na linha? Des-desculpe. Do que se trata?

O senhor Sommers por acaso tinha algum evento a participar em Houston More?

Não! Que saiba não respondeu enérgica. Posso ajudar com algo mais?

A mudança de fala da secretária foi um indicativo de algo errado: Seu chefe pretendia tirar dias de folga?

Desculpe senhora, não posso dar essa informação sem saber o motivo, caso queira saber algo mais, peço que o espere voltar ameaçou desligar, a voz da agente a parou.

Houve um acidente com seu chefe, infelizmente ele não sobreviveu um choro baixo surgiu do outro lado da linha. Sei que é uma notícia impactante. Acredite, é difícil ter de dar essa informação dessa forma. O senhor Sommers devia ser um chefe querido tinha medo da resposta, pois a mulher parecia instável. Alice?

Como sabe meu nome? Quem é você? a mulher se exaltava cada vez mais. Não acredito no que diz! Ele nunca faria isso! Nunca! Ele me disse que não levaria isso para a frente! a voz em um sussurro. Pedi para ele parar.

Pediu o quê? Para quem? Alice, por favor. Me conte. Sou uma oficial da polícia, posso ajudar. - o telefone ficou mudo. A agente queria jogar algo na parede. Tinha certeza de que Alice sabia de alguma coisa, a reação dela dizia muito sem a necessidade de palavras.

Na sala de espera, a ansiedade a irritava. Parecia que ninguém estava realmente interessado em resolver o caso. No recinto, a presença da chefe era marcante, uma mulher de semblante fechado, do tipo que pune só com o olhar: Novidades do caso Sommers, agente?

Falei com a secretária, a mulher me pareceu nervosa, em um instante altiva no outro, acuada. Além de repetir que pediu para alguém parar de fazer algo, não entendi de todo.

Acredita no envolvimento dela?

Talvez não diretamente, no entanto, algo me diz que se chegarmos a ela, chegamos mais perto de solucionar o crime. Gostaria de pedir permissão para um interrogatório, senhora.

Me permita alguns minutos, caso o chefe da outra jurisdição der o aval, poderá ir à cidade hoje mesmo, para convocar a suspeita.

De posse dos papéis, a detetive Phillips dirigia repassando a forma que conduziria as coisas.

Na delegacia de River Miles, foi recebida por pastas com arquivos sobre a vítima, nada de relevante. A secretaria também possuía a ficha limpa, isso não podia se dizer do irmão caçula. Preso por agressão, solto por falta de provas. Era um começo.

Um mandado de busca foi expedido, nas fichas constava que Alexander vivia com a irmã na cidade.

Na primeira luz da manhã, a policial se encontrava pronta. Não daria chance para que a secretária tivesse tempo de esconder o irmão caso fosse culpado: Agente, coloque o colete à prova de balas. Aqui muitos atiram primeiro antes de perguntar algo foi a instrução do colega que a acompanharia.

O bairro de classe média era contrastante com a cidade vizinha, humilde em sua essência. Foi fácil localizar a casa, a menor da rua. Luzes ainda apagadas pelo horário.

Polícia! bateram. Abram! Não queremos ter de arrombar. avisou o agente.

Alice Lopes, só queremos conversar fez gesto de contar até três. Podemos invadir? sussurrou para o colega, que de arma em punho, assentiu com a cabeça. O homem forçou a porta, jogou o corpo contra ela até surtir efeito.

Se tiver alguém saia com as mãos onde possamos ver pediu o agente Barners. Sem resposta. Dando cobertura um ao outro, entraram na sala destruída, no corredor sangue como uma trilha para um dos quartos. A morte passara por ali. No

chão jazia Alexander Lopes, de suas costas se projetava uma faca de destrinchar frango. Queima de arquivo?

Provavelmente Phillips colocou os dedos na garganta do rapaz, sem pulsação.

Ele tem algo na mão. Um papel puxou a folha suja de sangue das mãos também feridas. Merda! Viemos atrás da pessoa errada! a mulher com a folha diante de si, sorriu de escárnio. Piranha! leu a carta.

Irmãozinho, duas vezes você agiu na intenção de me proteger. Feriu o George, matou o Álvaro. Quanta incompetência, quanta ingenuidade de sua parte. Tudo bem, quando descobrirem a verdade nenhum de nós estará mais aqui. Você foi o único homem que me amou o suficiente para acreditar em cada palavra minha. Adeus. ps: Como vão os policiais? Surpresos?

Até breve!

Os agentes ficaram atônitos, porque parecia que uma vítima era a culpada. Ela não poderia se esconder para sempre. A agente Phillips a caçaria até o fim do mundo. Agora era questão de honra.

Na hora da missa

J. Machado

Estamos afinados disse Antenor ao final do ensaio.

Todas as sextas-feiras o grupo Voz da Vida se reunia para ensaiar as músicas da missa de domingo. Podia fazer chuva, podia ventar ou qualquer outro sinistro da natureza, fosse o que fosse, a hora do ensaio era uma obrigação! Também um momento de relaxamento. Havia muita harmonia entre eles. O grupo já tinha alguns anos de existência e era formado por donas de casa, professores, comerciantes. Uns jovens, outros nem tanto.

Todo primeiro domingo do mês o grupo abrilhantava e encantava a missa. Esse louvor era ouvido pelos fiéis na igreja e também por toda a comunidade católica da cidade, pois a missa era transmitida pela rádio local, aliás, a única.

A rádio Difusora era ouvida por todos como se fosse uma rádio comunitária. Era usada para recados, para promover encontros, para achados e perdidos, plantão policial, horóscopo e também algumas fofocas.

Cidade pequena é assim, todo mundo conhece todo mundo, não existe segredo que não seja desvendado. Pode levar algum tempo, mas um dia alguém descobre e começa a andar de boca em boca e cada qual faz a sua interpretação. Às vezes acrescenta ou, dependendo do caso, diminui algo sobre o fato. Todo lugar é assim, não poderia ser diferente com Santidade. É ainda uma cidade cheia de marcos históricos entre museus e casarios, a maioria tombada pelo Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional. Para muitos o tombamento é vantajoso, para outros, porém, dá muita dor de cabeça, já que construir algo novo não é possível. Isso faz com que a cidade não se desenvolva como deveria, apesar de ser um lindo museu a céu aberto.

Muito se aprende sobre as épocas de colonização com os estilos que estão estampados nas arquiteturas e muito bem conservados.

A população sobrevive de turismo, pesca, artesanato e algumas pequenas empresas que se arrastam no vermelho.

Santidade é conhecida pelos pessimistas como a cidade “do já teve”. Tudo já teve em Santidade, até uma universidade que não conseguiu permanecer por falta de clientes. Tem um potencial turístico maravilhoso ainda não explorado, talvez pela falta de interesse. A própria política é marcante e acirrada. Tem sempre alguém levando vantagem e muitas vezes impedindo o crescimento e o progresso.

Santidade tem lindas garotas solteiras. A maioria dos rapazes nativos acabam se deslocando para grandes centros à procura de trabalho e realização pessoal. Poucas encontram marido na própria cidade e, apesar da simplicidade, conseguem conduzir suas vidas de acordo com as possibilidades. Umas acabam encontrando satisfação pessoal. Foi o que aconteceu com Helena, uma jovem senhora, aliás, bem jovem. Cantava no grupo Voz da Vida em companhia do marido Raul, que era extremamente apaixonado por ela.

Raul era funcionário do comércio local, vendia aparelhos eletrônicos em uma loja especializada e também era aluno do conservatório de músicas. Tinha pela esposa uma profunda admiração, às vezes até meio exagerada. Os dois formavam um belo par de cantores.

A harmonia entre os membros do grupo Voz da Vida era notadamente saudável, apesar dos comentários de que João, o

tocador de violão, tinha um certo interesse por Helena, moça bonita, corpo escultural, que, aliás, não fazia questão de esconder as silhuetas, muitas vezes em roupas ousadas e provocantes. Raul nem desconfiava, acreditava demais em sua amada. Acreditava que quando se ama não se percebe os pequenos defeitos da pessoa amada. Porém, se percebidos, somos capazes de fazer de conta que não vemos e voltamos nossa atenção somente para aquilo que nos agrada, que nos dá prazer, principalmente prazer, que é o que mais se quer, é o que nos faz feliz e nos faz sentir vivos.

O grupo, com a fama que se espalhou por toda a cidade, passou a ser convidado para cantar, além das missas, nas festas de casamento, aniversário, bodas de prata, de ouro, e com isso a amizade entre os membros cada vez crescia mais, pois participavam juntos de grandes momentos.

Raul e Helena tinham planos de ter um filho. Imaginavam um menino correndo naquele pátio grande.

A casa na qual moravam era linda e antiga, réplica de uma quinta lá de Portugal. Era toda azulejada com cerâmicas vindas da Europa, trazida ainda pelos antigos colonizadores de Santidade.

Albano, o pai de Raul, teve um trágico fim. Este herdeiro de antigas moradas e descendente de um dos fundadores da cidade era Sargento da Polícia Militar. Num simples atendimento a uma ocorrência, teve a vida ceifada por uma bala de revolver calibre trinta e dois, disparada por um meliante lá dos pampas que assaltara a filha de um fazendeiro no intuito de resgatar joias valiosas do pai da garota.

Sempre fiel à Corporação, não deixou de fazer sua obrigação e acabou morrendo com um tiro na cabeça. Sua esposa, a mãe de Raul, também não durou muito tempo. O desgosto a fez definhar e em menos de um ano acabou morrendo. A casa deixada a Raul pelo pai ficava bem perto da igreja matriz, a Igreja de São Pedro, o padroeiro da cidade. Muitas vezes se

ouvia o casal ensaiando sozinho nas noites calmas de uma cidade tranquila e sossegada. Há muitos anos não se ouvia falar em assaltos, roubos nem assassinatos.

Como em todo grupo pode haver um contratempo, com o Voz da Vida não foi diferente. Numa certa noite de sextafeira, durante o ensaio, Helena foi fazer um solo acompanhada de violão e acordeão. Possuía uma voz deliciosamente linda, cantava suave, sem precisar fazer muito esforço, talvez porque sentisse aquilo que cantava. Mas como se tratava de uma música difícil, não houve entre os três uma afinação e acabaram se desentendendo. Ofenderam-se com desagrados e acusações. João ficou chateado com Helena e saiu do grupo. Ela também passou a ficar desconfortável com a situação, sentia que alguém a culpava pela saída do colega, excelente violinista. Adquiriu um bloqueio, algo que a impedia de participar, e aos poucos foi deixando de comparecer. Mesmo com os convites carinhosos de Raul ela se recusava a acompanhá-lo.

Vai você, meu amor. Te ouço pela rádio dizia.

E assim fazia. Todo dia no horário da missa ela sintonizava o rádio na Difusora e ficava ouvindo até o final da celebração.

Quando Raul chegava em casa ela sabia todas as músicas cantadas e o elogiava. Dizia que a voz dele ficava linda pelo rádio. Raul ficava envaidecido com os elogios de sua amada. Com o passar do tempo acostumou-se à situação. Afinal, como dizem, o tempo é um ótimo remédio para que possamos esquecer certos problemas, aliás o tempo cura.

Num domingo de setembro, uma bela manhã de sol, iniciavase a mais bela das estações. A cidade estava florida. Os morros começavam a colorir-se com lindos espécimes silvestres, enquanto as aranquãs, aves comuns na região de Santidade, acompanhavam com uma melodia estridente.

O grupo estava cantando na missa das nove e, como sempre, com o maior fervor, com empenho. Mas não era uma manhã comum, parecia que algo estava por acontecer. Algo inusitado, algo sinistro. De repente, no cântico do Ofertório, Raul mostrou-se assustado. Parou de cantar e saiu em direção à escada que desce o coro, onde ficava o grupo durante a apresentação.

A Igreja de São Pedro fora toda restaurada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e decorada com uma tinta à base de ouro, além de abrigar no seu interior uma linda e famosa tela de Leonardo da Vinci. Hoje, a igreja serve não só para as atividades religiosas como também para visitação de turistas que se encantam com tamanha beleza barroca.

O que foi, rapaz? Está se sentindo mal? perguntou um dos amigos.

Mal nada. A Helena ficou dormindo, e eu deixei o ferro de passar roupas ligado. Eu tenho que ir.

E saiu em direção a sua casa, que ficava a uns quinhentos metros da igreja.

Ao entrar, ouviu o grupo cantando na rádio. Abriu a porta e foi direto para a salinha na qual havia passado a camisa. A porta de seu quarto estava entreaberta e, apesar do rádio estar muito alto, ouviu sussurros e gemidos que vinham de dentro do quarto.

Então abriu a porta e viu o que nunca imaginara. Helena e João estavam se amando ardentemente. Os dois nem souberam o que fazer!

“Isso não pode estar me acontecendo!”, pensava Raul. Voltou e observou mais uma vez para se certificar de que não era realmente um pesadelo.

Foi à cozinha tentando encontrar respostas, saídas, acordar do pesadelo. Pensamentos confusos lhe ocorreram.

Caminhou até o corredor, parando em frente a uma velha cômoda. Abriu a gaveta e tirou uma arma antiga que fora de seu pai, um revólver calibre trinta e oito. Carregou-a com cinco munições e voltou vagarosamente ao quarto.

Parou diante dos dois e chorando descarregou. Três tiros para ele e dois para sua amada, que ainda gritou desesperadamente antes de morrer.

Na hora do cântico final, Raul apareceu na igreja novamente e foi indagado pelos amigos:

Está tudo bem na sua casa?

Tudo bem, pessoal, vamos ao cântico final.

Raul baixa a cabeça e diz:

Quero dedicar à minha querida esposa que está em casa dormindo com os anjos. E conclui olhando para todos: Ou com os demônios!

J. Machado

Encosto-me na cadeira, estico ainda mais o pescoço e percebo sua presença na multidão. Eu a reconheci pelo cabelo verde, conforme o combinado. Deve ser uma peruca, mas ficou bem destacada entre as demais. Tudo me faz crer que vem em minha direção. Ela para na porta, observa ainda a rua com certa desconfiança e depois começa a me procurar por entre as cadeiras da praça de alimentação. Assim de perto não parece ser ela, como diz aquele cantor “de perto ninguém é normal”. Tenho vontade de me apresentar e dizer a ela que mudei a roupa combinada, também estou sem o boné. Não. Mudar de plano agora seria bobagem.

Passo a observá-la ainda mais, pois meu disfarce permite, ao contrário de sua sinceridade que a fez vir com a roupa do combinado. Ela resolve sentar e pede um suco de limão. Toma lentamente enquanto olha atenta a porta e o relógio. Acho que não é o tipo que eu esperava, mas tudo bem. Agora não volto atrás.

Percebo que meu atraso a deixa desconfortável. Já está no segundo suco, agora de laranja. O tempo passa e eu a observo atentamente. Agora ela sorri e outro homem se aproxima dela, ele muito parece com a descrição que dei a ela sobre a minha pessoa. Ele lhe traz flores. Ela o convida para sentar em sua mesa e este lhe paga um suco de morango. Conversam um pouco e, em seguida, ela vai ao toalete. Também, com tanto suco, não há bexiga que aguente. Aproveito e também vou ao banheiro. Na volta não a vejo, nem o homem que chegou com as flores. Decidi sair atrás, ela não podia estar longe.

Apesar da miopia, não foi difícil de percebê-la no final da rua.

Só poderia ser ela. Fui chegando devagar. Era ela. Estava sentada no banco da praça. Conheci pela peruca. Não! Era cabelo de verdade pintado de verde! Verde com pintas vermelhas que se espalharam por todo o corpo e em baixo do banco. As rosas em suas mãos eram vermelhas, como o sangue que escorria. Uma estranha que eu jamais conheceria. Na outra rua encontro Rômulo. Tem uma leve expressão de contentamento. Discretamente me passa a faca enrolada numa folha de jornal e diz:

Semana que vem você paga a bebida e as flores. Boa semana.

Guardiãs das sombras: a redenção de Willon Creek

Na tranquila e aparentemente pacata cidade de Willow Creek, onde as ruas de paralelepípedos guardavam segredos tão sombrios quanto as árvores que as ladeavam, uma série de eventos sinistros estava prestes a abalar a realidade dos seus habitantes. Era o verão de 1955, quando o corpo de uma jovem americana foi descoberto em um beco escuro, seu capote manchado de sangue revelando a brutalidade do crime. Ela era uma figura conhecida na cidade, uma das talentosas e habilidosas artistas que encantavam a comunidade com suas telas inspiradoras. Os detetives locais, conhecidos por seus tratos firmes e perspicazes, foram convocados para investigar o assassinato. Mas conforme mergulhavam mais fundo na investigação, descobriram que a morte da jovem não era um caso isolado. Outras mulheres da cidade começaram a desaparecer, uma a uma, deixando para trás apenas pistas fragmentadas e um rastro de sangue que parecia conduzir a lugar nenhum. Enquanto a pequena cidade se via mergulhada em pânico e desespero, os detetives lutavam para desvendar o enigma por trás dos terríveis crimes. Em meio à investigação, segredos obscuros começaram a emergir das sombras da comunidade. Famílias respeitáveis escondiam segredos sombrios, e casamentos que pareciam perfeitos se revelavam como fachadas frágeis para a brutalidade que se escondia por trás das portas fechadas.

Enquanto os detetives seguiam a trilha de pistas ardilosas e calculistas, eles se viram enfrentando uma verdade mais

sinistra do que jamais imaginaram. Por trás dos crimes hediondos estava um grupo de criminosos maquiavélicos, manipuladores habilidosos que usavam a pequena cidade como seu playground para jogos brutais. Em uma jornada cheia de reviravoltas e perigos, os detetives lutaram para desvendar a verdade e trazer justiça para as vítimas inocentes. Mas quando a poeira finalmente baixou e os culpados foram levados à justiça, eles perceberam que a sombra do crime nunca desapareceria completamente de Willow Creek. E assim, em uma cidade onde as aparências enganosas escondiam a brutalidade da realidade, uma história de crimes e redenção foi escrita, deixando para trás cicatrizes que jamais seriam esquecidas. Mas, apesar de tudo, Willow Creek permaneceria de pé, uma testemunha silenciosa das sombras que espreitavam nas ruas estreitas e dos segredos que jaziam sob a superfície aparentemente tranquila.

Conforme os detetives continuavam sua investigação, descobriram uma ligação inesperada entre os criminosos maquiavélicos e os casamentos aparentemente perfeitos na cidade. Por trás da fachada de respeitabilidade das famílias locais, escondia-se um mundo de traições, manipulações e segredos obscuros. Uma série de documentos comprometedores encontrados em uma reunião secreta revelou a extensão da conspiração, envolvendo não apenas os criminosos, mas também figuras influentes na política e na aplicação da lei. Era uma teia de corrupção que se estendia por toda a cidade, alimentada pela ganância e pela sede de poder. Enquanto os detetives lutavam para expor a verdade, enfrentaram uma oposição feroz dos inescrupulosos manipuladores por trás dos crimes. Mas, com coragem e determinação, eles perseveraram, seguindo cada pista até o seu desfecho inevitável. Em uma reviravolta surpreendente, descobriram que os crimes brutais eram apenas a ponta do iceberg de uma conspiração muito maior. Por trás das mortes aparentemente aleatórias estava um plano meticulosamente elaborado para consolidar o controle sobre a cidade e eliminar

qualquer um que ousasse desafiar a autoridade dos criminosos. Com suas habilidades astutas e perspicazes, os detetives finalmente desvendaram a conspiração, trazendo os culpados à justiça e libertando Willow Creek do domínio sombrio que a havia aprisionado. Mas as cicatrizes dos crimes brutais permaneceriam na cidade, um lembrete constante do preço da ganância e da corrupção. E assim, em uma reviravolta final e inesperada, os detetives emergiram vitoriosos, provando que, mesmo nas sombras mais escuras, a luz da justiça pode prevalecer. Willow Creek estava livre para começar de novo, deixando para trás os horrores do passado enquanto olhava para um futuro de esperança e renovação.

À medida que os detetives aprofundavam sua investigação, novas revelações surgiam, lançando luz sobre os segredos mais sombrios de Willow Creek. Descobriu-se que por trás dos criminosos maquiavélicos estavam pessoas aparentemente respeitáveis da cidade, incluindo alguns dos próprios líderes religiosos e filantropos. Essas figuras manipuladoras haviam utilizado sua influência para encobrir os crimes e proteger os verdadeiros culpados, criando uma teia de corrupção que se estendia por todos os cantos da pequena cidade. Enquanto os detetives mergulhavam mais fundo na escuridão que permeava Willow Creek, uma revelação chocante veio à tona: por trás dos assassinatos brutais estava uma organização clandestina conhecida como "Os Guardiões". Esses indivíduos insidiosos operavam nas sombras, realizando experimentos cruéis e sádicos em suas vítimas, tudo em nome de uma suposta "purificação" da cidade. À medida que a verdadeira natureza dos crimes era revelada, os detetives se viram confrontados com uma escolha difícil: continuar a lutar contra a corrupção que infectava Willow Creek ou ceder ao poder obscuro dos Guardiões e arriscar perder suas almas para as trevas. Determinados a não permitir que o mal prevalecesse, os detetives reuniram suas forças para enfrentar os Guardiões de frente. Em uma batalha épica entre o bem e o mal, eles lutaram com todas as suas

habilidades e astúcia, determinados a trazer justiça para as vítimas inocentes e libertar Willow Creek do domínio dos Guardiões. No final, foi a coragem e a determinação dos detetives que prevaleceram. Eles desmantelaram a organização dos Guardiões, revelando seus membros e expondo-os à luz da verdade. Willow Creek estava finalmente livre da escuridão que a havia assombrado por tanto tempo, e seus habitantes podiam finalmente começar a curar as feridas deixadas para trás pelos crimes brutais e pela corrupção desenfreada. E assim, em uma reviravolta final e inesperada, os detetives emergiram como heróis, lembrados para sempre como aqueles que enfrentaram o mal de frente e triunfaram sobre ele. Willow Creek estava livre para escrever um novo capítulo em sua história, um onde a justiça e a verdade reinavam supremas, e onde o poder das trevas nunca mais seria permitido retornar.

Conforme os detetives celebravam sua vitória sobre os Guardiões, uma figura misteriosa emergiu das sombras, lançando uma nova luz sobre os eventos que assolaram Willow Creek. Era uma mulher de beleza enigmática, conhecida apenas como Selene. Ela trazia consigo segredos antigos e uma aura de poder que deixou os detetives intrigados. Rapidamente, tornou-se claro que Selene estava envolvida nos acontecimentos de Willow Creek de maneiras que os detetives não podiam imaginar. Com sua astúcia e habilidades sobrenaturais, Selene revelou a verdade por trás dos crimes brutais e da corrupção que havia assombrado a cidade por tanto tempo. Ela era uma guardiã ancestral, encarregada de proteger Willow Creek de forças malignas que se espreitavam nas sombras. Com a ajuda de Selene, os detetives desenterraram segredos antigos e enfrentaram ameaças que desafiavam a compreensão humana. Em uma batalha final contra uma entidade sombria que ameaçava consumir a cidade, eles lutaram lado a lado, determinados a proteger Willow Creek a qualquer custo. No clímax emocionante, Selene sacrificou sua própria vida para derrotar

a ameaça sobrenatural, revelando-se como a verdadeira guardiã de Willow Creek. Com sua morte, a cidade foi libertada das trevas que a haviam assombrado por séculos, e seus habitantes puderam finalmente encontrar paz. Enquanto os detetives prestavam homenagem a Selene e aos que haviam perdido durante a jornada, uma nova era de esperança e renovação começou para Willow Creek. Sob a luz do sol recém-erguido, a cidade se ergueu das cinzas, mais forte e resiliente do que nunca. E assim, em uma conclusão inesperada e emocionante, os detetives e os habitantes de Willow Creek encontraram redenção e força uns nos outros, unidos pela determinação de construir um futuro melhor. Para eles, a história de crimes e mistérios de Willow Creek se tornou uma lembrança dolorosa do passado, mas também um lembrete poderoso do poder da coragem, da amizade e do amor.

Sombras da verdade:

o mistério de Cedar Grove

Na pacata e aparentemente inocente cidade de Cedar Grove, os segredos se escondiam nas sombras das árvores, entre os telhados cobertos de hera e sob as luzes fracas das vielas escuras. Era uma pequena cidade onde todos se conheciam, onde o fio que ligava os habitantes era tão fino que bastava um pequeno trato para romper e expor as verdades mais sombrias. Era o verão de 1957, quando o jornaleiro local, Henry, encontrou algo mais que as manchetes cotidianas em seu jornal da manhã. Um corpo foi descoberto em um beco nos arredores da cidade, uma cena brutal que fazia jus aos melhores filmes de crime. O sangue manchava o capote do homem desconhecido, cujo rosto estava marcado por uma expressão de frio desespero. O detetive Carter, um americano de fala mansa e habilidosa mente, foi convocado para investigar o crime. Ele era conhecido por sua capacidade de reunir as peças mais obscuras dos quebra-cabeças do crime e transformá-las em histórias que poderiam rivalizar com os melhores romances de mistério. A vítima foi identificada como um forasteiro que recentemente chegara à cidade. Sua presença tinha trazido consigo uma novidade que Cedar Grove não estava acostumada. Rumores sobre luxuosas festas, telas cheias de vida e uma boneca tão perfeita quanto intrigante começaram a circular entre os habitantes da cidade. Enquanto Carter vasculhava a cena do crime em busca de pistas, ele descobriu uma corda cuidadosamente enrolada em

torno do pescoço do falecido, vestígios de sangue que pareciam ter sido cuidadosamente limpos e um revólver abandonado ao lado do corpo. As investigações levaram Carter a uma mansão isolada nos arredores da cidade, onde a família localmente influente residia. O detetive estava determinado a descobrir o que realmente aconteceu naquela noite fatídica, mas cada passo o levava mais fundo em um emaranhado de segredos e traições. Com a ajuda de sua talentosa assistente, a jovem jornalista Alice, Carter mergulhou na escuridão que se escondia sob as fachadas de respeitabilidade da cidade. Juntos, eles desvendaram um enredo de romance, crime e traição que envolvia a família proeminente e seus segredos mais obscuros. No final, a verdade veio à tona em um confronto brutal, onde as máscaras caíram e as alianças se revelaram. O assassino foi revelado, não por sua força física, mas por sua mente fria e calculista, capaz de tecer uma teia de mentiras tão intrincada que quase enganou até mesmo o mais astuto dos detetives. E assim, em uma pequena cidade onde todos se conheciam, uma história de crime foi escrita, não apenas nos jornais, mas nas mentes e corações dos habitantes de Cedar Grove. Uma história que seria lembrada como uma das melhores, não apenas no cinema, mas na própria história do jornalismo criminal.

Enquanto o detetive Carter e sua assistente Alice desvendavam os segredos da família proeminente de Cedar Grove, uma nova figura emergia das sombras, determinada a manter as verdades enterradas. A chegada de uma investigadora particular, Evelyn Blackwood, trouxe uma reviravolta na trama. Evelyn era conhecida por sua astúcia e por não se deixar influenciar pelas aparências. Ela se aproximou de Carter e Alice com uma proposta de colaboração, mas logo ficou claro que seus verdadeiros interesses estavam em conflito com os da dupla de detetives. Enquanto isso, os habitantes da cidade estavam agitados com a revelação de segredos há muito esquecidos. Rumores sobre

traições, subornos e chantagens corriam pelas ruas estreitas, alimentando o suspense e a desconfiança. Em meio ao caos crescente, um novo assassinato abalou Cedar Grove. Desta vez, a vítima era um membro proeminente da família, e as evidências apontavam para uma conexão com o crime anterior. Mas as pistas eram escassas e os suspeitos, numerosos. Enquanto Carter, Alice e Evelyn corriam contra o tempo para desvendar o mistério, uma série de eventos perturbadores começou a se desenrolar. Uma testemunhachave desapareceu misteriosamente, e os próprios detetives se viram na mira de uma conspiração que ameaçava revelar segredos que jamais deveriam ver a luz do dia. Enquanto a cidade fervilhava com suspeitas e paranoia, a verdadeira natureza do mal que se escondia por trás da fachada tranquila de Cedar Grove começou a emergir. Era uma história de vingança, traição e redenção, onde as linhas entre o bem e o mal se borravam e os verdadeiros motivos dos personagens eram revelados em um jogo mortal de gato e rato. No final, foi uma revelação chocante que virou o caso de cabeça para baixo, levando os detetives a confrontar um inimigo que jamais imaginaram enfrentar. E assim, em uma pequena cidade onde os segredos eram tantos quanto as sombras que os escondiam, uma história de crime se desenrolou, desafiando as noções de justiça e moralidade, e deixando uma marca indelével na história de Cedar Grove.

Enquanto o mistério se aprofundava em Cedar Grove, uma nova personagem surgiu, lançando uma sombra ainda mais sinistra sobre a pequena cidade. Tratava-se de Victoria Sinclair, uma mulher enigmática com conexões obscuras e uma habilidade incomparável para manipular aqueles ao seu redor. Victoria era uma figura conhecida nas altas esferas da sociedade, mas poucos sabiam dos segredos sombrios que ela guardava. Com um sorriso frio e olhos calculistas, Victoria entrou em cena como uma aparente benfeitora, oferecendo apoio financeiro à investigação do detetive Carter e sua equipe. No entanto, sua verdadeira agenda permanecia

envolta em mistério. Enquanto isso, os eventos em Cedar Grove tomavam um rumo ainda mais sombrio. Um incêndio misterioso consumiu uma parte da cidade, destruindo evidências cruciais e lançando suspeitas sobre os habitantes locais. Enquanto as chamas se espalhavam, segredos há muito enterrados começaram a emergir das cinzas, revelando uma teia complexa de conspiração e traição. Enquanto Carter, Alice, Evelyn e agora Victoria lutavam para desvendar o enigma, uma série de assassinatos brutais assombrava a cidade. As vítimas pareciam não ter conexão aparente, exceto por uma coisa: todas haviam cruzado o caminho de alguém poderoso o suficiente para querer silenciá-las para sempre. À medida que a investigação avançava, os detetives se viram enredados em uma rede de mentiras e decepções, onde cada pista parecia levar a um beco sem saída. Com o tempo se esgotando e o perigo aumentando, eles se viram confrontando não apenas um assassino impiedoso, mas também as sombras de seu próprio passado. Foi apenas quando Carter fez uma descoberta chocante sobre a verdadeira identidade de Victoria Sinclair que o véu do mistério começou a se dissipar. Revelações surpreendentes vieram à tona, revelando uma conspiração que se estendia além das fronteiras de Cedar Grove e envolvia os mais altos escalões do poder. No clímax emocionante, Carter, Alice, Evelyn e Victoria se viram lutando não apenas pela verdade, mas pela própria sobrevivência. Em uma batalha final de inteligência e coragem, eles enfrentaram o mal em sua forma mais pura, revelando segredos que abalariam Cedar Grove até o seu núcleo. E assim, em uma cidade onde as sombras escondiam mais do que se podia imaginar, uma história de crime e redenção chegou a uma conclusão explosiva, deixando para trás cicatrizes que nunca seriam apagadas. Para os habitantes de Cedar Grove, o passado jamais seria esquecido, e o futuro seria moldado pelas lições aprendidas nas profundezas da escuridão.

Enquanto o mistério de Cedar Grove atingia seu clímax, uma revelação chocante lançou uma nova luz sobre os

acontecimentos sombrios que assolavam a cidade. No auge da investigação, Carter, Alice, Evelyn e Victoria se depararam com uma descoberta perturbadora: todos os assassinatos, incêndios e conspirações que assombravam Cedar Grove estavam ligados a uma organização secreta que operava nas sombras da sociedade há décadas. Esta organização, conhecida apenas como "A Ordem", era composta por membros influentes da cidade, incluindo figuras proeminentes da política, dos negócios e até mesmo das forças policiais. Seu objetivo era manter o controle sobre Cedar Grove a qualquer custo, eliminando qualquer um que ameaçasse expor seus segredos. À medida que a verdade sombria era revelada, uma corrida contra o tempo se iniciava. Carter, Alice, Evelyn e Victoria se uniram para expor A Ordem e acabar com seu reinado de terror sobre Cedar Grove. Mas à medida que se aproximavam da verdade, tornava-se claro que enfrentar A Ordem seria mais perigoso do que jamais imaginaram. Em uma batalha épica entre o bem e o mal, os detetives enfrentaram membros poderosos de A Ordem, lutando não apenas por justiça, mas pela alma da cidade. Em um confronto final, onde as balas voavam e as facas brilhavam à luz da lua, a verdade finalmente veio à tona. Mas o que ninguém esperava era a verdadeira identidade do líder de A Ordem. Em um final inesperado e surpreendente, descobriu-se que o líder era ninguém menos que o próprio prefeito de Cedar Grove, um homem que sempre fora considerado um pilar da comunidade. Com a queda de A Ordem e a prisão do prefeito, Cedar Grove finalmente viu a luz do dia. Mas as cicatrizes deixadas pela conspiração nunca desapareceriam completamente. A cidade seria sempre lembrada como o lugar onde o mal se escondeu sob a fachada da bondade, onde a verdade foi enterrada sob uma montanha de mentiras. E assim, em uma reviravolta final e inesperada, a história de crime e redenção de Cedar Grove chegou a uma conclusão que deixou todos os envolvidos atordoados. Mas, apesar de tudo, a cidade estava livre, pronta para começar de

novo e deixar o passado sombrio para trás, enquanto olhava para um futuro de esperança e renovação.

Diário

da Sacramenta: Memórias de uma comunidade esquecida

Jefferson Machado

Em meio às sombras das ruas esquecidas da Sacramenta, numa comunidade marginalizada à beira da baía do Guajará, uma série de acontecimentos desdobrou-se, deixando cicatrizes indeléveis na alma dos seus habitantes e na paisagem urbana que os cercava. Neste diário, mergulhamos nas profundezas dessas memórias, onde as histórias de “O Homem dos Cordões Prateados” e “Andrezinho” se entrelaçam, revelando os desafios, tragédias e momentos de violência que marcaram a vida na periferia de Belém.

No primeiro relato, testemunhamos a crueldade impiedosa do submundo urbano, através dos olhos de um adolescente que presenciou um assassinato brutal nas ruas desertas da Sacramenta. O “Homem dos Cordões Prateados”, figura enigmática e temida, lança um sinal sinistro sobre a comunidade, deixando um rastro de morte e desespero em seu caminho.

Na sequência, somos apresentados a Andrezinho, um jovem cuja jornada tumultuada o levou dos corredores da escola à liderança impiedosa de uma das maiores gangues da região. Sua ascensão ao poder é marcada por violência, vingança e tragédia, culminando em sua morte prematura nas ruas que o viram crescer.

“Diário da Sacramenta: Memórias de Uma Comunidade Esquecida” é mais do que um simples registro de eventos; é um mergulho profundo na alma de uma comunidade marginalizada, onde a esperança luta para sobreviver na escuridão da negligência urbana. Estas páginas são um testemunho das vidas perdidas, dos sonhos despedaçados e das lutas diárias que moldaram o destino daqueles que chamam a Sacramenta de lar.

No terceiro relato, adentramos na vida de Marcinho, um adolescente cuja jornada é marcada pela dualidade entre a violência das ruas e o amor incondicional por sua mãe. Em meio à pobreza e à falta de oportunidades, Marcinho sucumbe ao mundo das drogas e dos assaltos, buscando preencher desesperadamente o vazio que o consome. Sua história é um reflexo das contradições e desafios enfrentados por aqueles que lutam para encontrar seu lugar em uma comunidade esquecida, onde os sonhos muitas vezes se perdem entre as ruas perigosas e os destinos traçados pela violência urbana.

O Homem dos Cordões Prateados

Eu morava na Sacramenta, um dos bairros mais perigosos de Belém, uma área periférica que lutava contra os alagamentos constantes da baía do Guajará. A vida seguia seu curso em meio aos desafios diários, e a banca de bombons do meu pai, posicionada à frente de nossa casa, era um ponto de referência constante na paisagem urbana.

Era um domingo monótono, como tantos outros naquele bairro esquecido pelas autoridades. Minha mãe estava na igreja e meu pai, como de costume, trabalhava como vigilante. Fiquei incumbido de cuidar da venda de caramelos na rua deserta após o fechamento da feira.

Enquanto observava os filhos do dono da loja de roupas, entediado, lavando um carro próximo, uma cena boba capturou minha atenção inesperadamente. O “Caveirinha”, conhecido pela sua estatura esguia e pela profusão de cordões

prateados em seu pescoço, chamou a atenção de um rapaz negro que passava pela rua naquele momento.

A troca rápida de palavras entre os dois foi interrompida pela súbita explosão de tiros vindos do revólver calibre 38 de Caveirinha. Seis disparos rasgaram o ar, desenhando a tragédia iminente na paisagem urbana antes tão tranquila. Paralisado pelo horror, eu, um menino de 15 anos, permaneci imóvel, testemunha silenciosa de um assassinato em pleno domingo.

O rapaz alvejado tentou fugir desesperadamente, correndo por cerca de cem metros antes de desabar sem vida sobre o pavimento frio. Caveirinha, imperturbável, recolheu-se lentamente para sua casa, deixando para trás uma rua tomada pela comoção.

A agitação logo se instalou, e descobri que a vítima era o sobrinho de Marta Pirenta, uma figura respeitada no bairro. O jovem, recém-saído do presídio, tinha uma dívida impagável com seu algoz, um dos “boqueiros” mais temidos da região.

Anos depois, Caveirinha saiu cedo de sua casa para ir à feira. Era por volta das oito horas da manhã, quando dois homens de bicicleta o cercaram e disparam vários tiros contra ele. Há quem diga, que Caveirinha se ajoelhou e pediu para lhe pouparem a vida. Mas seus assassinos não tiveram dó.

Naquela manhã fatídica, a violência crua e impiedosa do submundo urbano se revelou diante dos meus olhos, deixando cicatrizes permanentes na minha alma e na comunidade à minha volta.

Andrezinho

Eu vou lhes contar a história de Andrezinho, um amigo de infância que cresceu ao meu lado na periferia da Sacramenta. Naquela época, íamos juntos para a escola, com Andrezinho sempre proclamando que assim que as aulas terminassem, ele jogaria os livros fora. Seus pais, uma presença constante na

comunidade religiosa, não foram suficientes para manter Andrezinho no caminho reto. Aos poucos, ele se afastou da fé de seus pais e mergulhou nas ruas violentas do bairro.

A década de noventa trouxe consigo o surgimento das gangues em Belém, e Andrezinho não demorou a se juntar aos “Queimados”, uma gangue que logo percebeu que o dinheiro estava no tráfico de drogas. Em pouco tempo, ele ascendeu para se tornar um dos maiores “boqueiros” da Sacramenta, conhecido não apenas pela sua influência nas ruas, mas também pela sua brutalidade implacável.

Uma briga com “Orelha Podre”, um assaltante de moto, deixou Andrezinho à beira da morte, mas ele se recuperou e voltou ainda mais determinado. A vingança não tardou, e Andrezinho eliminou seu adversário sem hesitação. Já tinha se passado um ano do acontecido e o Orelha Podre, que morava na outra rua, estava sentando à frente de sua casa jogando baralho, quando Andrezinho atravessou e descarregou dois revólveres em direção ao Orelha, fazendoo cair sem vida.

Após um período sumido do bairro, ele retornou, agora com uma família para proteger. Os anos que se seguiram foram marcados por tentativas de assassinato contra Andrezinho, mas ele sempre se mostrava alerta e pronto para revidar. Sua reputação de impiedoso precedia cada confronto, espalhando o medo por onde passava.

Dois anos se passaram, quando, num final de semana, dois homens tentaram matá-lo. Mas ele estava atento, revidando os tiros, foi um apavoro em toda a rua. Um ano depois, ele estava na frente de sua casa num domingo à noite, quando dois homens em duas bicicletas o cercaram e o alvejaram com vários disparos. Eu mesmo corri para lá, para vê-lo. Ele estava jogado no chão, até vi as perfurações em seu corpo e o desespero dos familiares para levá-lo ao Pronto Socorro. Depois de uns meses, Andrezinho estava novo em folha

Numa sexta-feira qualquer, a violência que sempre o cercou finalmente o alcançou. Na frente de sua casa, em meio à movimentada feira, Andrezinho foi brutalmente executado por um assassino em uma moto, deixando para trás um rastro de dor e desespero na comunidade que o viu crescer.

E assim, a vida tumultuada de Andrezinho chegou a um fim violento, ressoando nas ruas perdidas da Sacramenta. Sua história, marcada por violência e tragédia, é um reflexo da realidade implacável que permeia as periferias urbanas, onde a vida é tão precária quanto a esperança de um amanhã melhor.

Marcinho: Entre as Ruas e os Sonhos Perdidos

Cresci ao lado de Márcio, ou Marcinho, como era chamado carinhosamente por todos, na Sacramenta, um bairro onde as ruas contam histórias de lutas diárias e sonhos perdidos.

Desde cedo, Márcio se destacava por sua atenção dedicada à sua mãe, uma presença constante em sua vida, sempre zelosa e amorosa. Era a mãe quem o tratava com afeto, mesmo diante das circunstâncias adversas que a vida nos impunha.

Certa vez, conversando comigo, Marcinho me confessou que tinha um sonho de ser miliar do Exército, pois achava bonito os soldados marchando. Mas, em um lugar onde a falta de oportunidades e a desigualdade social são tão palpáveis, não demorou muito para que Márcio se perdesse em um labirinto de desespero e dependência química. Os caminhos tortuosos o levaram ao mundo das drogas e dos assaltos, uma busca incessante por algo que preenchesse o vazio que habitava sua alma.

Lembro-me vividamente de uma tarde na parada de ônibus, quando vi Márcio descer do coletivo com uma mochila nas costas, enquanto os gritos de “pega ladrão” ecoavam ao seu redor. Era mais um episódio da violência que se tornara parte da rotina do bairro, mais uma vez protagonizado por Márcio. Mas, apesar da fama de criminoso, havia outro lado de Márcio

que poucos conheciam. Sua ternura e dedicação à sua mãe eram evidentes em momentos como aquele em que o vi cuidar dela com todo carinho durante um evento na igreja, um contraste surpreendente com a imagem de durão que ele projetava para o mundo.

No entanto, o ciclo de violência e criminalidade continuou a consumir Márcio, culminando em um trágico evento que chocou a comunidade. Ele e outros rapazes foram acusados de roubar e brutalmente assassinar um homem por um simples par de tênis. A cena de sua mãe idosa, levando andiroba para aliviar as dores causadas pelas pauladas dos policiais no distrito, é um retrato doloroso da realidade que enfrentávamos.

Após um período atrás das grades, Márcio encontrou o caminho da religião e parecia ter deixado para trás seu passado sombrio. Mas como tantas vezes acontece nesse mundo, as tentações e as fraquezas humanas o levaram de volta ao abismo do crime. E foi em um domingo tranquilo, quando a noite caía sobre a cidade, que Márcio e seu comparsa, o Cara de Velho, embarcaram em um ônibus com a mente turvada pelas drogas e a intenção de cometer mais um assalto. Porém, antes que pudessem concretizar seus planos, foram surpreendidos pela violência que tanto conheciam. Um único disparo soou pelo interior do coletivo, e Márcio e seu comparsa caíram ensanguentados, encerrando uma vida marcada por tragédias e redenção falha.

Assim, a história de Márcio, como tantas outras nesta comunidade esquecida, é um reflexo das contradições e desafios enfrentados por aqueles que lutam para encontrar seu lugar em um mundo tão implacável.

O causo do Seu Sorveteiro

Jefferson Machado

Ainda consigo ver aquele sangue correndo pela sarjeta. Sua camisa social bege, bem passada, com mangas dobradas. Sua calça social preta com vinco e seus cabelos grisalhos. De bruços, não conseguia ver bem seu rosto. Eram 17:00 horas da tarde. O sol ainda estava no horizonte. Só estava eu e papai. O olhar de papai era compenetrado, como se esperasse já ver aquilo. Segurando bem forte minhas mãos, deixou de lado o carrinho de mão que trazia. Apenas olhava junto comigo, calado, até que seu silêncio foi interrompido por uma palavra. Acho que éramos os primeiros a chegar. Aquela imagem ficou eterna em minha mente como uma fotografia. Uma fotografia fúnebre.

A missa na Paróquia

Éramos uma família de 6 irmãos. Mamãe já tinha falecido. Na verdade, nunca a conheci. Eu era a irmã mais nova. Papai lia os jornais pela manhã e sempre comentava, e eu, atenta, ouvia tudo. Palavras desconexas para uma menina de 12 anos:

ARENA

GOVERNO MILITAR

ALACID NUNES

A minha única preocupação era brincar com meus amigos no braço do Igarapé, São Joaquim, que passava à frente de casa.

Na antiga rua do trilho, hoje Pedro Álvares Cabral, havia uma empresa de refrigerantes denominada Guaraná Simões e, do lado, a Gelar, onde se vendiam sorvetes de todos os sabores. No aniversário da minha irmã mais velha, papai comprou nossas roupas com preço de fábrica na indústria Jaú de confecções, que ficava na Senador Lemos com Angustura. Ele também alugou para o aniversário dela um espaço na mesma avenida, chamado Regatão. Todos os domingos íamos para a missa na Paróquia de São Sebastião. Vestíamos a nossa melhor roupa, mas naquele dia foi especial, para o aniversário da paróquia, já que se faz 13 anos desde sua fundação. A igreja também era lugar de reuniões de movimentos populares. Sempre lia os panfletos na mesa de casa. Certa vez, papai me levou junto em um dos encontros. Do púlpito, ouvi ele contar a história. Foi ali que descobri que o nome do nosso bairro, Sacramenta, tinha duas origens: a primeira de uma possível rampa, na descida da Presidente Vargas, na escadinha. A segunda era uma área onde se enterravam vários animais mortos que puxavam carroças, por isso Sacramento. Daí surgiu: Sacramenta. Era muito comum haver brigas de vizinhos por conta de terrenos. Os próprios encontros eram uma luta da comunidade pelo direito de propriedade. Muitas casas estavam em terrenos de terceiros. Logo atrás da paróquia, por exemplo, estava tomada de habitações. Havia uma grande fazenda de propriedade do seu Clóvis Ferro Costa, que se estendia da Sacramenta até a Pedro Miranda.

O padeiro e o sorveteiro

Todas as manhãs, seu Sacramento gritava na porta de casa “PADEIRO!”, e eu corria com os trocados para comprar aquele pão quentinho. Seu Sacramento era amigo da família e sempre passava primeiro em casa para nos vender o pão.

Depois do almoço, de volta da Gelar, o seu Sorveteiro, com sua geladeira de isopor, seus cascalhos, vestindo uma camisa branca e um chapéu de palha, vinha com um triângulo e uma baqueta de metal a tilintar, chamando a atenção de todos na

rua. Papai sempre comprava uns sorvetes de Açaí e Bacuri que eram a alegria da garotada.

O Corpo

Tínhamos uma horta no quintal de casa; papai sempre ia ao terreno à frente da Senador Lemos buscar terra. Era costume acompanhá-lo. Nesse dia, pegou o carrinho de mão e saímos. Fazíamos sempre o mesmo caminho. O Sol ainda estava forte no horizonte. No retorno, ele comentava sobre as plantas e a necessidade de adubá-las com terra de qualidade para crescerem com força. No meio do caminho, nos deparamos com o corpo na vala. Já sem vida, o sangue escorria e se entremeava na lama. Os pés calçavam sandálias de dedos. Parecia dormir, num sono profundo. Daqueles que não queremos acordar. Papai largou por um instante o carrinho de mão e segurou minhas mãos e, quando o olhei, ele apertava os lábios com força, com o semblante caído. Suas mãos ficaram frias, como uma pedra de gelo. Como uma estátua inerte, o meu corpo endureceu como uma rocha. Não conseguia me mover, tamanho o peso das minhas pernas. Minhas mãos suaram. Senti como se estivesse por um tempo flutuando, como um mágico que eleva sua assistente na apresentação para uma plateia. Depois de uns segundos, eternos segundos, olhando para o falecido, como se estivesse contemplando um quadro fúnebre de Portinari, a única palavra que papai disse foi: “é o SORVETEIRO.” Foi somente o que ouvi. Saímos dali e fomos para casa. Eu ainda o vi a noite toda, como se estivesse à minha frente. Parecendo uma viúva lamentando pelo seu marido. Um dia depois, o jornal anunciava: ASSASSINATO NA SACRAMENTA, BRIGA POR TERRENO, LEVA

À

MORTE DO SORVETEIRO DO BAIRRO.

A Casa

Havia anos que me refugiara numa casa abandonada, tentando reconstituir a partir das fotos desgastadas que encontrei as memórias dos seres naquele espaço que não tinha, tentando dar-lhes vida. Era um naufrago perdido entre o silêncio das árvores abundantes que me rodeavam e às paredes, crescentes os galhos e copas imiscuíam-se entre as fissuras e nas janelas, criando o contraste entre o crescimento e a decadência. Paulatinamente cortava alguns galhos e usavaos para limpar as fotos e os objetos que não eram meus, imaginando e separando-os pondo junto a cada uma daquelas representações humanas que nunca cresciam. Por vezes inventava um diálogo pressentindo o afeto que tinham uns pelos outros, pela forma que se tocavam. Nem sempre era fácil compreender as ligações, e a minha mente teimava por vezes em conclusões que sabia poderem ser erróneas. Numa foto de dois seres de idades diferentes podiam ser pai e filho como tio e sobrinho, padrasto e enteado, ou até cunhados, era difícil decifrar aquelas sépias, sem cair na mentira. Os casos que a mim me criaram mais incerteza na imaginação dialogante eram os casais, seriam namorados, casados ou irmãos, era difícil pela formalidade decifrar, e não queria criar diálogos incestuosos na casa deles que tornara minha, desde que fugira da cidade.

Passado tanto tempo em reclusão, em que estas linhas me ajudaram, de certa forma a falar comigo próprio em tempos diferentes, o que mais me atraiu nesta floresta foi o tempo

ameno (nota: não esquecer deste ponto se algum dia estiveres depressivo e quiseres partir, sublinhar visivelmente) posso sair a qualquer hora do dia para buscar frutos e a um curso de água fresca que existe a poucos quilómetros, voltando carregadoos sobre a sombra das copas. Em casa, asso por vezes algumas frutas secas que encontro, são mais rijos que os da cidade, mas igualmente bons. A minha cabeça lateja, não esquecendo que apenas devia passar por aqui e seguir o meu caminho, estava à espera dela na fronteira para fugirmos, atravessaríamos a floresta, nessa manhã sentia-me um pouco mal e a minha progenitora deu-me um comprimido. Respirei fundo e caminhei no encontro, mas ela não surgiu e fiquei preso aqui por minha vontade. Foi o destino. Encobri a mágoa pela descoberta e quedei-me no silêncio harmonioso, apesar denos últimos tempos, sentir algo diferente, que talvez falarei quando descobrir, se for algo obviamente, às vezes pode ser algo simples e a minha mente complica como sabes. Falaremos em pouco.

Hoje olho para trás e entendo porque as canetas me duram tanto, já havia imenso tempo que não escrevia. Sinto-me cada vez mais apreensivo, olho para as minhas últimas palavras e não as entendo, pois o meu estado espírito mudou no decorrer das circunstâncias que deram a rigidez ao pensamento. Entre os sons da floresta, que são muitos e característicos, pareciame com o decorrer do tempo sentir algo diferente, e tomando uma direção em que me pareceu escutar um barulho algo dissidente, avancei após passar pelo curso de água para me lavar. Pensei se teria vizinhança, com algumas pessoas a construir casas, mas após muitos quilómetros não encontrei nada. Voltei para trás após olhar nas várias direções, sentia que podia estar próximo da cidade e recuei. No dia seguinte voltei ao curso de água e continuei a escutar o barulho desconhecido, estaria na direção errada? Voltei para casa e seis horas depois compreendia. Com a minha curiosidade tomando-me novamente depois da tentativa falhada, voltei, fiz alguns quilómetros onde recolhi alguns frutos secos e não

tardei muito a encontrar um grupo de máquinas a cortar árvores, e outras a tirar medidas ao terrenos. Entre concentrações que tinham e barulhos, não me viram por detrás de um tronco. Recuei vários quilómetros até casa meditando no que havia visto, por fim assei os frutos secos e mastiguei uma fruta fresca algo picada pelos insetos, esquecendo o assunto olhando e conversando com as fotos desgastadas, mas eles se aproximaram, eles se aproximaram a um ritmo assustador, avançaram quilómetros, não se ficaram por pouco, o barulho tornara-se cada vez mais ameaçador e não tardará muito a encontrarem a casa que tomei por minha, e me falarem de burocracias estúpidas de quarto mundo. Sinto-me cada vez mais inseguro conforme trituram, não faltará muito para eu fugir, sinto isso não dentro de mim, mas fora.

Tenho que admitir, demorei imenso tempo para ler estes textos dispersos e por várias vezes, não tenho óculos e sobre a sombra das copas tinha que esforçar muito mais os olhos. Eu, um simples pastor que encontrei junto a umas raízes de uma vasta árvore, papel, várias folhas de papel se decompondo, onde se encontra em parcelas este texto. Enfim o que posso dizer sobre isto? Não sou nenhum investigador nem quero sê-lo, mas a verdade, é que depois de ler este texto e entregar o gado ao meu filho percorri a floresta e não encontrei nenhuma casa abandonada ou construção, como este rapaz explicou. Confuso mostrei o texto a um dos meus filhos, que me explicou que ele talvez seria, ele escreveu, esquizofrénico. Depois de me dizer o que era, fez sentido, se a mãe lhe deu um comprimido, a namorada não apareceu porque não existia. Enfim, o amor tem destas coisas.

A chapeleira desaparecida

Havia uma semana, a mulher de 30 anos tinha iniciado funções na chapelaria após o desaparecimento repentino e inexplicável. Era uma bênção para si, o acaso fazia-na sorrir, os seus lábios pequenos abriam-se nas explicações aos clientes, tocando o seu encaracolado cabelo castanho claro com a mão esquerda inclinando as faces na sua pose característica. A dona da chapelaria estava satisfeita com a aquisição, mas a sua consciência não a impedia de continuar a pregar cartazes nos arredores em busca de informações sobre a chapeleira desaparecida, mostrando-a numa foto com as faces sorridentes com os seus longos cabelos lisos e escuros. Foi numa manhã algo fria que colava os cartazes e parara para tomar um café próximo da chapelaria, e pela jaula de vidro, vira uma fila com seis pessoas no balcão. Satisfeita pela raridade e algo curiosa pela demora, dirigiu-se para a entrada enquanto observava a nova chapeleira atendendo as pessoas de expressão cálida e tranquila de forma a encobrir o seu vício privado. Desde que começara antes de vender definitivamente um chapéu, pegava nele e com o olhar preso nas abas do objeto retirava-se por breves segundos, sob um pretexto de uma caixa adequada, outra embalagem, código de marca ou certificação de modelo, abrindo uma cortina por detrás do balcão entrava e fechava-se, ficando em frente a um pequeno espelho onde experimentava o chapéu, abrindo o olhar e o sorriso numa pose interligada dos elementos, apreciando brevemente o seu reflexo, regressando depois ao balcão com a aba na mão, afastando a cortina com o brio profissional reposto. Era o seu ritual de despedida privado de chapéus e

com todos sem exceção repetia, num afeto interligado ao seu corpo, completando-a.

A fila do dia avançava no seu apanágio secreto, ao longe a dona da chapelaria se aproximava, uma das últimas clientes prestes a ser atendida mostrava-se tensa num vestido escuro e brilhante, ajeitava o chapéu roxo que tinha nas mãos impaciente pela demora que se esquivava na cortina.

Por fim chegou a sua vez, colocando não o chapéu sobre o balcão mas o dinheiro, a nova chapeleira pronunciara a desculpa habitual pedindo o chapéu, mas em resposta apenas teve mais dinheiro suficiente para cobrir vários chapéus, a nova chapeleira ia repetir o preâmbulo, quando a dona a olhou fazendo sinais para que prosseguisse com os clientes percepcionando a notável quantia. Contrariada a nova chapeleira continuou, enquanto a compradora dissidente saía em passo apressado pela rua. Não tardou a que a nova chapeleira se desconcentrasse de tudo, só conseguia pensar naquele chapéu e em rápido pretexto de urgência, retirou-se deixando a dona depois de concluir mais um ritual, o último da fila, e correu em busca da cliente impaciente entre ruas, procurou aquele brilho de tecido, encontrando-a na ansiedade que lhe tomava a esperança, saindo de uma padaria com o chapéu roxo e com um bolo laranja nas mãos. Não tardou a colocá-los sobre um saco que pediu numa loja, e prosseguindo o seu percurso entrou em umas casas de banho sempre com supervisão próxima da nova chapeleira, que insegura das suas certezas decidiu também entrar na casa de banho tinha receio que pudesse haver uma saída lateral desconhecida e pudesse perder a percepção daquele chapéu.

Foi assim que ficou esperando do lado de fora da porta enquanto escutava os afazeres, cogitando conspirações e fugas mágicas, ansiosa temendo perder o rasto do roxo chapéu bateu à porta sem controlar o desespero, em que ouviu a voz da mulher tranquilizando-a. A porta não tardou a abrir e de

costas, a nova chapeleira viu a mulher passar, que nem pensou no facto de aquela mulher lhe ter batido à porta, quando havia outros cubículos livres para a mesma função, antes avançou olhando as horas, perdera tempo, a nova chapeleira mantinhase à distância focada no chapéu roxo intermediada pelo som oco dos saltos da sua portadora, que subiu umas escadas entrando numa casa que tinha uma inscrição apagada.

A nova chapeleira esperou confusa na rua sem saber o que fazer, no segundo andar atravessando para o passeio mais distante da casa viu uma janela aberta, apesar de ter duas grades e uma cortina de cor clara e leve ela conseguiu percepcionar parte do seu interior com a ajuda de uma brisa, vislumbrando alguém sem cabelo que após baterem à porta atravessou a divisão para a entrada, vendo novamente surgir essa mesma pessoa, que pondo-se de costas para ela olhava o chapéu roxo que tinha entre mãos.

O que fazer? Impaciente andando no passeio de um lado para o outro a nova chapeleira decidiu entrar, com a brisa regressando na cortina após alguns breves segundos viu que a pessoa sem cabelo colocava o chapéu olhando um espelho, e não resistiu ao seu instinto do belo, entrou pela casa e guiouse em passo descalço e silencioso entre o chão de madeira, subindo as escadas desertas na adrenalina do encontro. Chegando ao corredor iluminado até olhar aquela rua de onde saíra e aquela porta ambicionada que tinha uma chave exterior colocada e uma pequena janela, por onde lhe eram entregues objetos, a nova chapeleira rodou a chave num ruído forte e entrou, a mulher sem cabelo de costas para a porta sentada sobre a cama olhava a janela indiferente, o chapéu roxo estava por detrás de si no lençol e a nova chapeleira num ímpeto final agarrando-o colocou-o fazendo satisfeita a sua pose interligada em frente ao espelho.

O que estás fazendo aí?!! Está contaminada! A mulher que trouxera o chapéu gritou fechando a porta à chave perante

a satisfação reflexiva da nova chapeleira, e por detrás de si, esquecida a chapeleira desaparecida tocava com os dedos na sua falta de cabelo e no ventre.

Sob a Lua do Esquecimento

Matile Facó

Numa pequena vila esquecida pelo tempo, onde as casas sussurravam segredos empoeirados e as ruas guardavam as memórias de gerações, a vida transcorria entre o nascer e o pôr do sol, num ciclo tão previsível quanto o caminho das estrelas. Ali, onde todos se conheciam pelo nome e as histórias de vida entrelaçavam-se como videiras num velho muro de pedra, o inesperado era um estranho, um intruso que ninguém esperava receber.

Foi numa noite de lua cheia, quando a prata celestial banhava a terra e as sombras dançavam ao sabor do vento, que o silêncio da vila foi quebrado. Um grito cortou a calmaria, agudo e desesperado, um som que parecia não pertencer àquele lugar de sonhos serenos e despertares gentis. Os cães uivaram em coro, como se pudessem pressentir o desequilíbrio súbito no tecido da noite.

Mariana, cujos cabelos carregavam a cor da noite sem estrelas e cujos olhos já haviam visto mais primaveras do que ela gostaria de contar, foi a primeira a chegar à cena que se desdobrava sob o olhar impassível da lua. No coração da praça, onde a velha fonte murmurava histórias de outros tempos, jazia o corpo de um forasteiro, um homem cujo rosto não trazia memórias, cuja presença nunca havia alterado a rotina daquelas ruelas silenciosas.

Ao redor do corpo, um silêncio tenso começava a se formar, como névoa que se adensa na madrugada. Os habitantes da vila, atraídos pelo grito que rasgara a noite, reuniam-se em um círculo apertado, o olhar carregado de perguntas que ninguém ousava formular em voz alta. A morte, embora uma companheira inevitável de todos, parecia fora de lugar ali, um enigma pintado em tons de sangue sob a luz da lua.

O delegado Almeida, homem de fala mansa e passos lentos, acostumado a resolver desavenças sobre limites de terras e pequenos furtos de galinhas, sentia o peso da responsabilidade em seus ombros. Aquela era uma situação que exigia mais do que seu habitual apaziguar de ânimos. Era preciso adentrar o labirinto escuro do crime, desvendar o véu que cobria a verdade.

Com o amanhecer, a notícia do ocorrido espalhou-se como poeira ao vento, levando consigo o manto de tranquilidade que cobria a vila. As especulações brotavam em cada esquina, cada olhar trocado carregava teorias e suspeitas. E enquanto a vila se agitava em um frenesi de murmúrios e olhares desconfiados, Mariana sentia um calafrio percorrer sua espinha. Havia algo naquele crime, um sussurro quase inaudível entre as linhas do acontecido, que tocava uma corda esquecida em sua memória.

Naquele dia, a vila acordou para uma nova realidade, onde o silêncio da noite havia sido quebrado não apenas pelo grito que anunciara o crime, mas pelo despertar de segredos antigos, que, como a lua, possuíam uma face oculta, esperando apenas pelo momento certo para ser revelada.

Nos dias que se seguiram, a vila, antes um retrato de paz e simplicidade, transformou-se em um palco de desconfianças e sussurros. O delegado Almeida, com seu bloco de notas sempre à mão, percorria as ruelas estreitas, batendo à porta de cada morador, em busca de um fio solto que pudesse

desenrolar a meada do mistério que haviam encontrado na praça.

Mariana observava, com seus olhos que pareciam captar mais do que a luz do dia revelava, o vaivém dos acontecimentos. Algo dentro dela, um pressentimento talvez, a impelia a seguir seus próprios passos na investigação. Havia algo no ar, um eco do passado, talvez, que a inquietava profundamente.

Na pequena biblioteca da vila, onde os livros repousavam em estantes de madeira carregando histórias de muitas eras, Mariana buscava algo que pudesse iluminar as sombras que se adensavam em sua mente. Folheava páginas amareladas pelo tempo, mergulhava em relatos de outros crimes, em busca de um padrão, uma chave que pudesse abrir a porta atrás da qual a verdade se escondia.

Enquanto isso, o delegado Almeida enfrentava suas próprias batalhas. Entre o ceticismo dos moradores mais velhos e o medo palpável dos mais jovens, ele tecia uma rede de informações fragmentadas. Cada pedaço de conversa, cada olhar desviado, cada silêncio prolongado eram peças de um quebra-cabeça complexo.

Foi numa tarde de céu carregado de nuvens, quando o ar parecia denso com a promessa de tempestade, que um detalhe aparentemente insignificante chamou a atenção de Mariana. Num canto esquecido da biblioteca, ela encontrou um recorte de jornal amarelado pelo tempo, uma notícia de um crime ocorrido muitos anos antes, em uma vila não muito diferente da sua. O modo de operação, a escolha da vítima, a mensagem enigmática deixada na cena do crime... tudo ecoava de forma perturbadora com o que havia acontecido sob a lua cheia.

Com o coração batendo um ritmo acelerado, Mariana levou sua descoberta ao delegado Almeida. Juntos, eles começaram a perceber que o crime na praça poderia não ser um ato isolado, mas parte de uma trama mais antiga e complexa, um

padrão que se repetia através dos anos, tecendo uma teia invisível que agora envolvia a todos na vila.

À medida que a investigação avançava, a atmosfera na vila tornava-se cada vez mais carregada. Os moradores, antes unidos pela rotina e pela familiaridade, agora se observavam com uma cautela renovada. A desconfiança infiltrava-se nas relações, transformando vizinhos em estranhos, amigos em potenciais suspeitos.

E no centro desse turbilhão de emoções e conjecturas, Mariana e o delegado Almeida seguiam, passo a passo, desvendando camadas de um mistério que parecia se aprofundar a cada nova descoberta. Eles sabiam que estavam se aproximando da verdade, mas o que ainda não podiam prever era o preço que teriam que pagar para trazê-la à luz.

À medida que a lua crescia no céu, prenunciando mais uma noite de plenitude prateada, a tensão na vila atingia o seu ápice. Mariana e o delegado Almeida, agora unidos por uma busca que havia transcendido o profissional e se enraizado no pessoal, sentiam que estavam à beira de uma revelação que poderia abalar os alicerces daquela comunidade tranquila.

Com o recorte de jornal em mãos e os fragmentos de conversas e evidências coletadas, eles montaram um mosaico de possibilidades. A chave, perceberam, estava na história não contada da vila, nos segredos que se escondiam nas dobras do tempo, esquecidos ou deliberadamente ignorados pelos moradores.

Na véspera da próxima lua cheia, Mariana convocou uma reunião na praça central, exatamente onde o forasteiro havia sido encontrado sem vida. Sob o olhar atento dos habitantes da vila, que traziam consigo a mistura de medo, curiosidade e uma centelha de esperança, ela começou a tecer a narrativa que haviam desvendado.

Ela falou de um crime ocorrido muitas décadas atrás, numa vila muito parecida com a deles, onde a paixão e o ciúme haviam desencadeado uma tragédia que ecoava através do tempo. O forasteiro, revelou, era descendente da vítima daquele crime antigo, retornando à vila em busca de respostas para sua própria história familiar.

À medida que Mariana desenrolava a teia do passado, os olhares se voltavam, um após o outro, para um dos moradores mais antigos da vila, um homem cuja figura sempre se mesclara ao cenário cotidiano, sem jamais despertar suspeitas. Seu rosto, agora iluminado pelo luar, trazia a marca do tempo e de um segredo pesado demais para ser carregado sozinho.

Com a voz embargada pelo peso das emoções, ele confessou seu papel na história antiga, um momento de raiva e desespero que havia mudado o curso de várias vidas. A morte do forasteiro, explicou, fora um acidente trágico, fruto do medo e do ressurgimento de antigas culpas.

O silêncio que se seguiu à sua confissão era palpável, como se a própria noite prendesse a respiração. A revelação não apenas trouxe à luz a verdade sobre o crime, mas também sobre a capacidade humana de guardar segredos, de viver com o peso das escolhas passadas.

Naquela noite, sob o manto da lua cheia que tudo via, a vila começou o lento processo de cura. As confissões e as verdades reveladas serviram como um bálsamo para as antigas feridas, permitindo que a comunidade começasse a tecer novas histórias, desta vez pautadas na compreensão e no perdão.

E Mariana, a mulher de olhos profundos como a noite, sentiu uma paz que há muito não conhecia. Ao desvendar os segredos do passado, ela havia ajudado a sua vila a encontrar um caminho para o futuro, um caminho iluminado pela lua do esquecimento, onde as sombras do passado finalmente davam lugar à luz da esperança.

A fotografia

Rafael G. V. de Sousa

O endereço levou-me para fora da cidade. Tive um pouco de dificuldade para encontrar o lugar. Com certeza aquela região não era muito frequentada. A estrada era ruim e não se via ninguém ou nada além de árvores assombrosas. Acho que devo ter passado várias vezes pelo mesmo lugar, mas tudo parecia tão igual que é difícil dizer. Por fim, acabei encontrando, ou melhor, esbarrei na mansão, que, segundo confirmei na carta, era onde as setas indicavam.

A construção não era nada demais. Apenas as colunas e a brancura velha e incomum chamaram a atenção. Com a carta na mão, bati na porta. Um velho veio me receber.

Era estranha toda aquela situação. E foi sem jeito que lhe falei da carta, que eu jamais soube quem enviara, e expliquei tudo.

Até a entreguei para comprovar o que eu havia dito. No final, o velho confirmou ser tudo verdade, ou seja, o emprego era real, contrariando a irrealidade que o revestia.

Disse-me, entre outras observações, que eu deveria vir sozinho e que poderia mudar naquele mesmo dia, já que eu seria uma espécie de caseiro e poderia usufruir de toda a mansão. Bem, eu não tinha muitas opções, depois de gastar tudo o que recebera de herança, de modo que aquilo me caiu tão bem quanto uma viagem de férias.

Depois daquele dia, nunca mais voltei a ver o velho e logo após me mudar, comprovei, com o correr dos dias, que apenas

a cozinheira e uma arrumadeira cuidariam de mim e do enorme casarão.

A casa até que era aconchegante. A moça de cabelos negros e seios magros limpava tudo de forma medíocre, mas a outra senhorinha até que não cozinhava mal. Só as via na mansão durante o dia. À noite, desapareciam, iam embora, talvez. Eu estava tão acostumado a viver com tanta gente que, agora, limitado à presença escassa dessas duas sentia algo que podia ser solidão.

Iniciei, com dificuldade, uma rotina que, mesmo não tendo a alegria da que eu levara até então, ainda assim, me dava toda a possibilidade de gozar minha preguiça. E ela consistia em permanecer a maior parte do tempo deitado tentando me acostumar com tudo, principalmente, com a casa.

Às vezes, eu andava pela mansão e sentia certo espanto com a estranheza de alguns lugares e eventos. Por muitos quartos tive a impressão de sentir a presença de alguém. Alguém que estivera dormindo, lendo ou coisa assim naquele ambiente, e se ausentara segundos antes da minha aparição. Quando caminhava pelos corredores, podia ouvir algum barulho vindo dos quartos. Certa vez, em uma cama, quase pude ver alguém deitado. Numa ocasião senti tocarem levemente o meu ombro. Em outra, antes de dormir, já deitado, ouvi uma voz entoar uma canção perdida pela casa. O canto veio se aproximando até morrer como um sussurro no meu ouvido. Logo depois, senti uma mão afagar carinhosamente minha face. Por estranho que possa parecer, aos poucos fui me acostumando com todos estes acontecimentos e ao fim de alguns dias, sentia neles uma companhia verdadeira, como nunca sentira antes.

A casa possuía uma imensa biblioteca que, pelo aspecto dos livros, julguei conter um grande valor. Mas poucas vezes entrei nela. Entretanto, numa dessas vezes, encontrei algo que me aproximou definitivamente da mansão e daquela vida.

Era manhã, se me lembro bem, e o peso do dia ainda era leve. Ao percorrê-la distraidamente, fui surpreendido por um livro qualquer que caiu de repente e vomitou uma fotografia antiga. Na foto, uma família se reunia feliz num jardim bonito. Por trás deles se erguia a mansão, tão branca e imponente como nunca. Observei-os e senti logo uma grande simpatia por todos eles. Todos tinham uma aparência nobre e requintada. Olhando a foto senti como se eles, e até mesmo a casa, já estivessem em mim desde algum tempo remoto. Era como se de alguma maneira eu já tivesse feito parte daquilo no passado, como se eles me pertencessem de alguma maneira. Atrás da foto, podia-se ler o nome da família e esse nome eu guardei para mim como se também fosse meu. Assim, decidi leva-los comigo. No meu quarto, coloquei-os em um bonito portaretratos e todas as noites eu os observava com admiração.

A partir daí, a cada dia que passava, a mansão passou a me pertencer cada vez mais e aquela família eu tomei para mim como se tivesse o direito do nascimento para isso. Tudo, agora, me pertencia e eu fazia parte deles de forma tão adequada quanto um objeto que se integra perfeitamente a uma decoração. E foi depois desse ocorrido, depois de minha posse sobre tudo aquilo, que acabei sendo afetado de alguma forma. Pois é natural, penso eu, que a coisa possuída interfira no possuidor.

Depois disso, passei a procurar velhos conhecidos para visitar a mansão. Ia à cidade e os procurava. Geralmente eles se recusavam, mas eu insistia tanto, de tal maneira, que eles acabavam por vir como que forçados. Na realidade, eu parecia querer retomar o tom festivo de outrora. Porém, as pessoas acabavam por me causar muito aborrecimento, por não me proporcionarem o mesmo prazer de antes, e eu me cansava delas rapidamente. Então eu as fazia desaparecer como bolhas de sabão que explodem no ar.

Foi por essa época que as empregadas da casa passaram a ter um comportamento estranho em relação a mim. Evitavam

minha presença. Cochichavam a meu respeito pelas entranhas da casa. E passaram a me fitar com um olhar suspeitoso e até mesmo com um medo disfarçado. Talvez, imaginei, elas apenas estranhassem o meu estilo de vida ocioso, e pensei, tentando esquecer o caso, que elas deveriam se acostumar. Com o tempo voltariam ao seu ar habitual.

Mas acontece que nada pareceu mudar, ou mais acertadamente dizendo, piorou. Elas desenvolveram um verdadeiro horror por mim. Então, eu, que jamais gostei de qualquer desconfiança sobre mim, tratei de me livrar delas. Feito isso, vivi dias de muita paz no espírito.

Depois desse desagradável acontecido, numa tarde agradável, enquanto passeava no que antes fora um lindo jardim, avistei um sujeito parado de frente a minha residência. Fiquei observando-o só por curiosidade. Ele corria os olhos por toda a casa, como que procurando algo, e, nessa sua incursão, seu olhar veio de encontro a mim. Acenei para ele com o braço direito, eu acho. Ele não retribuiu o meu aceno, entrou no carro e foi embora. Não encontrei qualquer razão para sua grosseria a não ser a rudeza de sua própria pessoa.

À parte isso, tudo corria muito bem. Eu já estava perfeitamente adaptado a minha nova vida. Sentia mesmo até um prazer em permanecer na casa. Às vezes, ficava dias sem sair dela. Porém, em uma noite de início de verão, novamente o impulso me dominou. Fui à cidade.

Estava uma noite quente e logo após entrar e rodear a praça, começou a chover. Parei o carro numa ruazinha escura que eu conhecia bem e esperei o tempo ruim passar. Fiquei ali sentindo minha lenta respiração e observando a água escorrer pelo para-brisa.

Quando a chuva amenizou, pude ver uma figura se aproximando. Vinha exatamente em minha direção. Quando chegou mais perto distingui que era uma mulher. Caminhava apressada, quase corria.

Ao passar bem perto de mim, o meu impulso fez reconhecêla, então eu abri a porta e gritei por ela. A moça parecia não se lembrar de mim, por isso, tive que sair do carro e até mesmo correr atrás dela para que me reconhecesse e concordasse a vir comigo. Seus olhos pareciam tão atordoados quanto os de alguém que acabara de levar uma pancada muito forte na cabeça quando entrou no carro. Ela tremia, estava ensopada. Apesar disso, naquele momento, sua companhia me agradou muito.

Porém, quando chegamos à mansão, ela já havia se tornado um peso. Começou um choro horrível. Forjou um ferimento na perna que não era nada mais que uma mentira descarada. Jogou-se num canto da sala e de lá não queria sair de maneira alguma. Arrependi-me por tê-la trazido. Acomodei-me na poltrona e meditei. Com minúcia ponderei a frase: levá-la de volta. Entretanto, ali no canto, com as duas mãos a acalmar a cabeça, os seus cabelos molhados sobre a pele pálida não me deram outra opção senão, já com uma suposta afeição, mantêla comigo.

Chovia forte novamente e era com desespero que o misto de vento, e água, e raios, batia nas janelas. Sentei ao seu lado e, segurando sua mão trêmula, pedi que se tranquilizasse. Seus lábios se entreabriram como se fossem proferir alguma palavra, mas se fecharam rapidamente, mostrando seu perfeito formato. Do delicado queixo caía uma lágrima de água. Segurei o seu braço e, num abraço lateral, apertei-a contra mim para lhe consolar. Passei a mão pelo seu ombro e corri-a chegando até o pescoço. Sua garganta estava quente e macia, pulsando como um coração excitado. Nesse momento, ela produziu um gemido quase infantil e apertei mais forte o seu pescoço para que não chorasse mais. Segurei sem hesitação enquanto ela parecia querer soluçar. Ela tentou me afastar com um grito tão fraco que mal podia sair da garganta e que, conforme a pressão foi aumentando, foi se silenciando até ficar limitado, se muito, a um pensamento. Agora, sentada na cadeira, ela estava tranquila, fria, e os seus olhos até tinham

uma expressão romântica. Não havia dúvidas de que ela estava bem melhor e senti grande prazer por tê-la acalmado. Sentei novamente na poltrona e olhei para seus cabelos que tinham caído sobre os ombros e tomado uma posição de profunda beleza. Na janela, ainda se configuravam tímidos relâmpagos, mas a chuva e a noite já iam muito longe, se afastando como se caíssem num abismo infinito.

Pela manhã, senti-me muito feliz. Olhei com prazer para minha família no porta-retratos. O sol já estava alto, se eu abrisse as cortinas ele inflaria o quarto como um vento desvairado. Deitado na cama, pensei várias vezes em levantar, mas em todas elas mudei de ideia. Então sempre voltava a dormir.

Porém, num instante de arrepio, um estrondo vindo lá de baixo me fez despertar num sobressalto.

Desci apressadamente as escadas. O meu coração estava alarmado. Comecei a suar de repente, não sei se de tensão ou por percorrer os degraus. Quando cheguei na sala, ainda pude ver o espanto no rosto dos policiais ao verem o corpo sem vida na cadeira. Depois disso, todos eles se lançaram sobre mim. Fui tratado como um animal, mas não fiz qualquer esforço para fugir. No interrogatório, ao ser indagado sobre os motivos que me levaram a cometer tais atos, respondi, com razão, que “era tudo culpa da família”.

William R. F. Ramires

Crime sem final

Quando foram encontrados estavam amarrados. Havia buracos de balas nos quatro corpos. No pai da família, senhor Cláudio Albuquerque, foi notado que a garganta tinha sido cortada, não dando para determinar se aquilo causou sua morte ou se foi o tiro. Nunca se havia presenciado tamanha atrocidade naquela região.

A Vila de Igatú tem menos de trezentos habitantes, é um distrito de Andaraí, toda a região se orgulha de ser um local pacato e sem violência, aquele crime chamou a atenção e comoveu todo o país.

Saíram matérias em vários jornais de repercussão nacional e até internacional.

Este caso despertou a curiosidade de um excêntrico americano, cuja alcunha é Capote. Este sujeito baixinho e excêntrico se interessou pelo caso e começou a acompanhar os andamentos da investigação.

Logo descobriu que aquela família era a mais abastada daquele local. Uma família exemplar e sempre solícita para ajudar a todos. Davam apoio para quem necessitasse, financeiro, alimentar, moral, jurídico e até educacional. Haviam pagado os estudos de muitos filhos daquele lugar. Filantrópicos por natureza, adorados por todos. O crime chocou a comunidade que depois daquilo ficou traumatizada. Se fizeram isso com

a mais decente família deste local, imagine o que podem fazer com o resto. filosofava um dos moradores da pacata vila.

Capote logo percebeu que tinha um grande caso jornalístico em mãos. Começou a levantar informações sobre a família, enquanto a polícia procurava os assassinos.

Descobriu que todos falaram que os Albuquerques eram ricos, mas o pai da família tinha aversão ao dinheiro e a bancos, sempre usava seu surrado cartão magnético, nunca ninguém tinha visto aquele homem usar dinheiro em espécie. Isso fazia com que espalhassem que ele enterrava objetos de valor em sua propriedade, diziam que costumava ter moedas de prata e ouro em baús enterrados.

Por uma denúncia anônima os assassinos foram capturados. Estavam numa cidade mediana ainda no estado da Bahia e numa bebedeira confessaram serem os assassinos daquele brutal crime. Fizeram isso quando viram a matéria no noticiário da televisão. No outro dia, o atendente do bar ligou para a polícia, que acabou capturando os dois réus confessos. Faltava entender como tudo foi feito, e as motivações.

O excêntrico jornalista americano começou a refazer os passos dos assassinos e descobriu que eram ex-prisioneiros que haviam fugido numa rebelião do presídio. Fugiram juntos e num bar nas proximidades da vila ouviram a história de uma família rica que enterrava ouro e prata. Queriam roubar e com o dinheiro fugir para bem longe, pensavam em ir para o Paraguai.

Durante o crime os assaltantes descobriram que não havia dinheiro e com medo de serem reconhecidos decidiram matar a família. Amarraram o pai e cortaram sua garganta para que parasse de falar, colocaram ele no chão e junto amarraram a mãe e seus dois filhos. Os criminosos encontraram uma velha espingarda na casa e com essa arma deram um tiro fatal em cada um dos familiares.

O jornalista foi a fundo nas investigações e descobriu que na fuga os criminosos combinaram que deveriam roubar algo que valesse a pena para poder fugir. Dias depois de uma caminhada sem parar, acabaram num bar e lá num canto escutaram a conversa de dois bêbados sobre a tal família rica. Essas informações o americano conseguiu diretamente com os assassinos. Mexendo seus pauzinhos conseguiu acesso aos presos e assim pode ouvir em primeira pessoa a versão dos executores.

A família, nunca ostentou nada, vivia uma vida relativamente boa e tranquila, mas tudo era provido das produções agrícolas da mediana fazenda de Cláudio Albuquerque. A fama de riqueza era boato espalhado por invejosos e preguiçosos que tinham medo de trabalhar. Mentiras fatais.

Os criminosos aguardavam o julgamento, era um caso de grande repercussão e o Capote continuava esmiuçando as causas e consequências daquele horroroso crime. Em suas pesquisas investigativas percebeu que a justiça aqui no nosso país demorava a acontecer, quando acontecia. Via presos vivendo em presídios superlotados, sem visitas de advogados ou qualquer autoridade legal. Havia muitos que estavam ali há muitos anos sem sequer saber por qual crime estavam presos. Vários estavam há mais tempo do que a lei determina quando são julgados e condenados.

O descaso era imenso, a atrocidade era pavorosa, o jornalista não entendia como um crime tão bárbaro poderia ficar assim sem julgamento. Mesmo com os culpados atrás das grades, ainda não percebia que havia justiça.

Na Vila de Igatú a paz acabou, moradores que antes viviam com suas casas abertas, agora trancavam e passavam grossas correntes com grandes cadeados nos portões de madeira. Não se encontram mais janelas abertas à noite, mesmo com o insuportável calor. O medo assolava a mente de todos. O

problema psicológico daqueles moradores era imenso, e o descaso com aquele crime era maior ainda.

Capote percebeu que não existe interesse do poder público pelas consequências do crime, nem uma atenção com os vizinhos ou familiares das vítimas. É cada um por si.

O americano tinha esperança de publicar sua matéria após o encerramento do caso, mas pelo andar da carruagem isso era bem improvável de acontecer. Notou que outros crimes de maior gravidade continuavam sem solução.

O jornalista foi atrás das famílias dos assassinos e encontrou alguns parentes em bolsões de extrema pobreza, desacreditados de tudo, então percebeu o gigantesco descaso.

Aquilo nem poderia ser chamado de comunidade, muito menos parecia com um local para se viver. A questão aqui neste país era muito pior do que ele imaginava, a sociedade fabrica a marginalização, colocando pessoas fora dos padrões mínimos de civilidade. O roubo é uma solução honrosa e digna, visto que os políticos fazem pior.

O desânimo tomou conta da traumatizada vila pacata, seu maior filantropo foi terrivelmente morto, seus descendentes baleados juntos. Não há esperança para uma sociedade melhor.

No presídio uma rebelião levou a vida de um dos assassinos, uma justiça feita pela miséria humana. O outro comparsa fugiu. A essa altura deve estar bem longe ou morto como indigente.

Capote decidiu voltar para seu país, não sabe se considera essa história resolvida ou um crime sem final. Porém, de uma coisa tem certeza, é melhor correr atrás dos assassinatos em sua pátria. Lá a justiça é dura, tendo até pena de morte, mas há justiça.

O norte-americano Truman Capote, que completaria 100 anos em 2024, foi um mestre da escrita ao inaugurar com a obra “A sangue frio” o chamado “novo jornalismo”, mesclando fatos reais, o assassinato brutal da família Clutter em Holcomb, no Kansas, com a literatura. É este escritor e esta obra que inspiraram esta antologia que reúne crimes relatados com brilhantismo por diversos escritores brasileiros.

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