O comprador de fazendas e outros contos, Monteiro Lobato

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grandalhudas, tão caras às mamangavas438, manchavam de amarelo-pálido o tom cru da folhagem verde-negra. Fora, a pouca distância do telheiro, a “casa-grande” se erguia, vislumbrada apenas através da cortina d’água. E a água a cair. E a trovoada a escalejar seus ecos pela morraria intérmina. E o meu amigo, tão calmo sempre e alegre, a exasperar-se: — Raio de peste de tempo desgraçado! Já não posso almoçar em Vassouras amanhã, como pretendia. — Chuva de corda não dura hora — consolei-o. — Sim, mas será possível alcançar o tal pouso do Alonso ainda hoje? Consultei o pulso. — Cinco e meia. É tarde. Em vez de Alonso, temos que gramar o Aleixo. E dormir com as bruxas, mais a alma do capitão infernal. — Inda é o que nos vale — filosofou o impenitente Jonas. — Que assim, ao menos, haverá o que contar amanhã.

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II O temporal durou meia hora e ao cabo amainou, com os relâmpagos espacejados e os trovões a roncarem muito longe dali. Apesar de próxima a noite, inda tínhamos uma hora de luz para sondar o terreiro. — Há de morar aqui por perto algum urumbeva — disse eu. — Não existe tapera sem lacraia.439 Vamos à cata desse abençoado urupê. Encavalgamos de novo e saímos a rodear a fazenda. — Acertaste, amigo! — exclamou de repente Jonas, ao divisar uma casinhola erguida entre moitas, a duzentos passos de distância. — Bico-de-papagaio, pé de mamão, terreiro limpo; é o urumbeva sonhado! Para lá nos dirigimos e já do terreiro gritamos o “Ó de casa!”. Uma porta abriu-se, enquadrando o vulto dum negro velho, de cabelos ruços. Com que alegria o saudei…

438  O mesmo que mamangaba: um tipo de abelha. 439  A expressão sugere que, assim como toda casa arruinada tem uma lacraia ou um escorpião, há de haver também algum morador ali.

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