Filosofia autentica

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m alguns de seus textos, Nietzsche usa o termo francês décadence (decadência). Tal uso se explica por ele ter sido bastante influenciado por pensadores franceses que justamente explicavam a decadência. Segundo Charles Andler, um de seus melhores biógrafos, Nietzsche apreciava especialmente Paul Bourget, escritor católico francês que viveu entre 1852 e 1935. A França do final do século XIX foi marcada por eventos políticos muito controversos. O combate entre a tendência autoritária (monarquistas e imperialistas) e a tendência democrática (republicanos) produzia um clima de incerteza e de falta de direção. Em seus primeiros romances, Paul Bourget revela grande capacidade de análise psicológica, explorando o que ele chamava de desejo de modernidade por parte das jovens gerações. São dessa época seus livros Cruel enigma (1885), Um crime de amor (1886) e Mentiras (1887). Em outra fase de sua produção literária, Paul Bourget dedica-se a analisar as causas dos sentimentos que estava acostumado a descrever. Produz, então, o livro O discípulo, de 1889, considerado sua obra-prima. Escreve também ensaios, ou seja, textos menos curtos do que um romance, com um claro caráter de análise. Vários dos ensaios de Bourget foram dedicados à obra de autores que ele admirava e ao mesmo tempo criticava: Charles Baudelaire (1821-1867), Joseph Ernest Renan (1823-1892), Gustave Flaubert (1821-1880), Hippolyte Taine (1828-1893) e HenriMarie Beyle, conhecido como Stendhal (1783-1842). Bourget associa esses escritores com o espírito dos anos 1880 e as incertezas políticas. Compara-os aos romanos do período do declínio do Império e acredita que eles se consideram a si mesmos como “nascidos tarde demais” e em um “mundo ultrapassado”. Eles seriam marcados por um incurável cansaço diante da vida; seriam diletantes9 em sentido pejorativo, ou seja, eram gênios da Literatura e das artes, mas também imaturos nos assuntos “sérios” da existência. O escritor francês tomará, então, a palavra décadence para exprimir os anos 1880 e os escritores que analisou. Em linhas gerais, a decadência seria um período em que uma sociedade não consegue

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Filosofia e filosofias – existência e sentidos

Charles Gallot, Paul Bourget, sem data, fotografia.

suscitar um grande número de pessoas com uma produção em vista do bem comum. Ao contrário, as pessoas pensam em si mesmas, em seu próprio benefício e em sua glória individual. Como a Sociedade é um organismo vivo e dependente dos seus componentes (indivíduos e grupos), então, se os indivíduos só pensam em si mesmos, o conjunto sofre e entra em declínio. É a decadência. De acordo com Bourget, embora os escritores e artistas do fim do século XIX denunciassem em termos gerais a decadência do mundo, eles mesmos também eram decadentes. A decadência de uma sociedade afeta a arte da palavra; e os literatos decadentes não são capazes de vencer o desejo de chamar atenção para si. Nas palavras de Bourget, um estilo decadente é aquele em que a unidade de um livro decompõe-se para chamar a atenção para a independência da frase; e, a frase, para a independência da palavra. Nietzsche não partilhava inteiramente a visão de Paul Bourget. O livro O vermelho e o negro, de Stendhal, por exemplo, foi tão importante em sua vida, a ponto de ele comparar a descoberta de Stendhal com sua descoberta de Arthur Schopenhauer ( p. 85), autor que lhe teria permitido pensar um modo de sair da decadência. Desse ponto de vista, a decadência ainda não significa um fim, pois ela pode ser revertida em construção de novas formas de vida. Nietzsche concentrava seus esforços para encontrar tais formas novas. 9

Diletante: quem exerce uma atividade por prazer, e não por obrigação. Mas o termo também tem um sentido pejorativo, designando alguém imaturo, que reage com orgulho e provocação diante da vida porque é medroso e não tem coragem de enfrentar as dificuldades, fechando-se em sua visão de mundo.

Reproduç ão/New York Public Libr ary, EUA

Nietzsche e a décadence


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