Caleidoscópio de vidas

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Na paisagem caótica e encantadora da cidade do Rio de Janeiro, três histórias se conectam pelos laços do afeto. Um casal passa seus dias em um lixão. No monturo, há motivos de alegria, mas também resquícios de tragédias anônimas. Em meio à euforia da véspera de Ano-Novo na praia de Copacabana, um menino talvez seja o único a torcer pelo pior: que o temporal desabe logo para vender todas as suas capas de chuva. Um velho estivador aposentado aproveita um dia especial: nele cabem uma roda de samba e a visita à casa onde vivem a filha, o genro e o neto. De maneira delicada, João Anzanello Carrascoza apresenta elementos diversos e complexos que compõem uma metrópole e o olhar de três gerações sobre as dificuldades e as belezas de uma vida comum.

Posfácio Luiz Puntel

ISBN 978-85-96-02242-2

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João Anzanello Carrascoza

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ilustrações adriano catenzaro

São Paulo – 2019

1a edição


Copyright © João Anzanello Carrascoza, 2019 Todos os direitos reservados à EDITORA FTD S.A. Matriz: Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP CEP 01326-010 – Tel. (0-xx-11) 3598-6000 Caixa Postal 65149 – CEP da Caixa Postal 01390-970 Internet: www.ftd.com.br E-mail: projetos@ftd.com.br Diretor de conteúdo e negócios Ricardo Tavares de Oliveira Gerente editorial Isabel Lopes Coelho Editor Estevão Azevedo Editora assistente Bruna Perrella Brito Coordenadora de produção editorial Letícia Mendes de Souza Preparadora Maria Fernanda Álvares Revisoras Aline Araújo, Thaíse Costa Macêdo Editor de arte Daniel Justi Projeto gráfico Julia Masagão Diretor de operações e produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno João Anzanello Carrascoza nasceu em 1962, em Cravinhos, pequena cidade de São Paulo. É autor de romances, novelas, contos e obras para o público infantojuvenil e adulto. Algumas de suas histórias foram traduzidas para o croata, o inglês, o francês, o italiano, o sueco e o espanhol. Recebeu prêmios nacionais importantes, como Jabuti, APCA, Fundação Biblioteca Nacional e Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, além do Prêmio Internacional Guimarães Rosa (Radio France Internationale).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Carrascoza, João Anzanello Caleidoscópio de vidas / João Anzanello Carrascoza ; ilustrações Adriano Catenzaro. – 1. ed. – São Paulo : FTD, 2019. ISBN 978-85-96-02242-2 1. Ficção - Literatura infantojuvenil I. Catenzaro, Adriano. II. Título. 19-24631 CDD-028.5 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura infantil 028.5 2. Ficção : Literatura infantojuvenil 028.5 Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014

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os urubus

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os urubus de lá pra cá em

voos

lentos

a negra coreografia pelo céu sobre os monturos

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latas, plásticos, comida, papel, roupas, vidros, latas, comida, latas, ratos, garrafas, comida, plásticos, cascas, miolos, plásticos, tocos, metais, tudo lambuzado de um mel nauseante que escorre pela terra, as mãos catando o que já foi descartado, e entre tantos e tantos homens e mulheres ali, que buscam sob o sol, nos dejetos, a sua comida, lá está Maria, cercada de imundície, de onde ela retira o seu sustento, e, numa pirâmide de entulhos, lá na frente, remexendo na sujeira que um caminhão basculante vomitou em cima de outras tantas camadas de resíduos, entre o formigueiro de catadores, eis José, com a camisa enrolada no pescoço, já sem sentir o fedor pútrido do aterro, o fedor que embebeda as narinas e anestesia até o olhar, e enquanto vai separando as PETs de Coca-Cola e Guaraná e enfiando-as num saco preto, José tenta distinguir, para além daquelas montanhas de restolhos, a silhueta de Maria, que ela não saiba o que Mateus encontrou ainda há pouco, e Maria, como se pudesse sentir que José, mesmo lá distante, a observa, ela espanta a barata que lhe sobe pela perna e sorri com aquele achado especial, que hoje, junto a outras coisas, vai levar para o barraco, e assim eles trabalham, um pensando no outro, enquanto sobre a cabeça de ambos planam

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2 O Sol, esgotado (tanto quanto os dois) por se repartir em incontáveis raios que, pelo dia afora, lutam contra as gretas e os espaços opacos, já cede lugar à noite, que, sem cerimônia, ocupa a sua vaga, como uma peça de reposição na engrenagem do tempo, e José, até então submerso num canto dos monturos, arrasta numa sacola o que ali achou, de valia, ele no máximo proveito do que, para outros, é apenas sobra; e Maria, do lado contrário daquele mar malsão, também regressa para casa (mas antes se volta para si mesma, que lá, no aterro, ela, ou qualquer outro, só pensa nas coisas que vê e de que se apodera,

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a mulher que Maria é a abandona quando ela está ciscando entre os dejetos), ela vai chegar primeiro que José, que segue no seu passo de cansaço; os dois carregam o que o dia lhes deu de mais precioso e inesperado, ele na memória, ela nas mãos — essas duas formas de levarmos o que não cabe, por direito ou dever, largar no caminho —, embora leve seja o achado de Maria, quase nem pesa daquele jeito que ela o leva, dobrado, o que não se pode dizer de José, é rocha, de tonelada, e ainda lacerante, o que Mateus achou e, contando a ele, acabou por lhe fincar brutalmente na memória, e essa nunca desliga, às vezes ainda, do nada, na sanha de selecionar as lembranças torna ainda mais frenética a sua voltagem.

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3 Àquela hora, o casal já havia jantado. Maria lavava a louça na bacia com água, e José, sentado no banquinho, com o prato de alumínio na mão, mirava, pelo vão entre as tábuas, — janela provisória — as sombras da noite lá fora, quando ouviu, acima do rumor do córrego que fluía atrás do barraco, o som do Plantão da Globo vindo lá do boteco do João. Só podia ser coisa ruim, alguma desgraça no Brasil ou pelo mundo. (José recordou do que se dera, à tarde, no aterro.) E se aquele som assustava num instante, no seguinte o boteco se entupia de gente diante da tevê, — a única daquele lugar — com a fome dos fatos na cara, nos olhos fixos, nas bocas abertas. Há poucas semanas, José fora lá farejar: era um terremoto no Chile — umas cidades destruídas, mil mortos, outras mil pessoas desaparecidas… Noutra noite, já no colchão, exausto, reconheceu aquele som macabro, mas não se moveu. O corpo era só dor, dor. Mas Maria foi. E voltou com a notícia: tsunami no Japão. Uns dias atrás, o som se repetira: a morte do doutor Sócrates, ex-jogador do Corinthians e da seleção brasileira. Agora, o que seria? José pensou no que havia acontecido, à tarde,

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no aterro. Não, não iria passar na tevê. Ninguém ligava para o que acontecia lá, no lixão da cidade. A recordação dentro dele fervilhava. Não queria ficar sozinho, com aquilo na memória. Pesava, e demais. Se falasse, dividiria o espanto. Mas não era justo despejar mais carga nas costas de Maria. Os últimos acordes do Plantão da Globo soaram, quando ela se virou e disse, Lá vem mais uma tragédia! Apanhou o prato da mão dele e emendou: O que será dessa vez? José permaneceu calado. Que ficasse só em sua mente aquele acontecimento, como uma semente seca, pra não se arvorar nunca. Maria suportava as mordidas dos ratos, os cacos de vidro, a coceira e a fedentina do lixo, mas, às vezes, bastava uma palavra, e ela com os olhos d’água, a resistência derretida num segundo. Devia poupá-la, sobretudo pelo seu sonho: na conversa diária, Maria rabiscava, para os dois, uma criança.

4 José se ergueu. Foi atrás do barraco urinar no córrego. Ficou ali por um tempo, sendo ele também

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o mundo de fora. Ele só. Separado das coisas, como as que catava no lixo. Desmisturado de tudo o mais. Na sua apenas, e íntima, existência. E a noite — sem Lua e estrelas. Maria, deitada no colchão, lia, à luz mortiça, uma revista, o cheiro e as manchas do chorume nas páginas (que, por mais que se lavassem, persistiam). José retornou ao barraco. Escovou os dentes com a água do balde. Tirou a bermuda e a camiseta e, antes de se deitar ao lado dela, de cueca, pegou o despertador (que, como quase tudo ali, recolhera do lixo) e programou o alarme para as seis da manhã. Não precisa, Maria disse, Você sabe que eu nunca perco a hora. É só pra garantir, José comentou. Ela moveu a cabeça, concordando, Meu corpo já se acostumou, e ele, Eu sei, e colocou o relógio no chão: Mas tem dias que a gente tá um bagaço! Ela, virando a página da revista, disse, Mesmo assim, sempre acordei antes dele tocar… É verdade!, concordou José. De longe, muito longe, vinha o eco de um pagode. O volume aumentou, aumentou, chegou ao auge, tão próximo, e, depois, foi diminuindo, diminuindo,

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até sumir. Algum carro passara na estrada. O ruído da vida ali, naquela montoeira de barracos, à margem do aterro, se sujou novamente de silêncio. Maria fechou a revista e perguntou: O que aconteceu hoje, lá, no seu lado? José, inerte. Mas rápido em suas resoluções: se ela não souber por mim, vai saber por outro. Como em qualquer lugar, as notícias, entre os monturos, também se espalhavam. Então, era melhor dizer. Com o liso das palavras. Porque a imaginação dela, por si só, ia meter mesmo pontas no fato e encrespar seus pormenores.

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O que foi que aconteceu?, Maria perguntou outra vez. José abaixou a cabeça e respondeu: Acharam um bebê! E, para represar, ao menos por um instante, o espanto dela, emendou, Veio num dos últimos caminhões. Maria em sobressalto, quase a expelir a alma. Tanto que, instintivamente, tapava a boca com as mãos: Meu Deus! Meu Deus! Outro esguicho de silêncio. E estava vivo?, ela perguntou, querendo o milagre. Não! Como pode alguém fazer isso?

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A gente ainda pensa que já viu tudo… Maria precisava de minúcias. Não conseguia, por si só, erguer em pensamento aquela realidade. O mundo que lhe desse os contornos inteiros: Menino ou menina? Branco ou preto? Vestido ou nu? E outras perguntas na fila, pelo assombro de não poder calar. Como se… Mas José apenas respondeu (porque sabia que um detalhe, por ser detalhe, extravasa e supura), Não sei, não vi, não sei. E, para não a deixar no desamparo, na responsabilidade de reinventar para si a história toda, ele disse: O Mateus, o Mateus que viu primeiro. Viu e levou pra cooperativa. A noite calada, lá dentro, se interpunha. E o sussurro do córrego. Os dois ali, sem culpas, num momento que não lhes pertencia, embora a dor alheia fosse como se deles. Então, por acreditar que só se responde ao fim com um começo, Maria esboçou um sorriso, a voz de quem se reencanta: E o nosso bebê? José pegou o despertador, só para ter algo nas mãos, sob o seu controle. Já disse, tudo tem a sua hora, ele respondeu, tentando ser macio o máximo que podia. Eu sei!, ela disse. Não vai demorar muito, ele completou. Logo vou arranjar algum serviço melhor. E Maria: Temos de acabar a casinha…

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No fim de semana, levanto mais uma parede lá. José se ajeitou no colchão, mais perto dela, para que comprovasse a verdade do que dizia. Mas vamos ter de parar a obra, ele continuou: O cimento está acabando.

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Maria se ergueu, tão lenta e leve que nem dava para notar a sua vida inteira naquele seu gesto (mesmo José, que a via, translúcida, como se por um vidro, o percebia), e, retirando de uma sacola o objeto, disse, Olha o que eu achei! Ele olhou, e reolhou, sem entender: O que é isso? Ela desdobrou à sua frente, até alcançar os próprios pés, o que um dia fora, todo branco, em par com sua grinalda, um vestido de noiva! Ainda gerava ohs de admiração, mesmo imundo e amassado, assim como um homem velho enlameado de tempo ainda é (se cuidou de preservar) o menino de antes. Maria nada disse e o exibia, como se o vestisse, em tudo o vestido dizia por si mesmo, com seu longo

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e seus babados, embora não tanto quanto antes, ao receber alvo e virgem o ajuste final da costureira, e, ainda assim, atraía a atenção de qualquer um, até José, não porque ele não tivesse nos olhos, prévia, a beleza que há nas coisas lindas, ou não a levasse primeiro em si para depois descobri-la, mas porque ele estava surpreso com aquilo. Assim era em seus dias, cavoucando os escombros do lixo — de repente dava com uma mochila ainda boa, uns óculos escuros, um porta-retratos, e, então, se acendia aquela luz de desconfiança que a verdade, em seguida, apagava. Que tal?, Maria perguntou, Não é bonito? José moveu a cabeça, num sim parcial, Você não está pensando… Claro que não, disse ela. E completou: Vou vender, e aí teremos dinheiro pro cimento. Ele a mirou forte, cético mas com o desejo de ser crente. Vender pra quem? Quem vai comprar isso? Ela dobrou o vestido, devolvendo-o ao que ele era, — uma esperança guardada — e respondeu: A Marta, do brechó. Ela compra tudo. Lava e depois vende. [Aquela sua calça, eu comprei lá. E vale alguma coisa?

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Vale, vale muito! Tomara! É um vestido de noiva. Ainda tá bom. E dá pra reformar…

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José colocou o despertador de lado e se ajeitou no colchão. A vida já estava para transbordar naquele dia. Era hora de serená-la com a tampa do sono. Vem, Maria!, ele chamou. Ela foi. Apagou a luz e o universo lá fora. Só o córrego, na noite, insistia com suas águas. Os dois perfilados, afundavam-se, devagar, nos seus quietos. Ela o abraçou por trás, como se precisasse do corpo dele para sentir o seu próprio. Tirou o bebê morto de sua mente e se pôs a rascunhar o rosto do seu, desejado e vivo, no futuro. José, imaginoso, de olhos fechados, pegava outro tijolo, ia subindo, sem pressa, outra parede da casinha; e a casinha ia aparecendo, toda, vinda lá do fundo do líquido revelador, o sonho verde dos dois, que a criança e um trabalho digno fora do aterro completariam. Depois, aos poucos, eles foram adormecendo,

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