Revista Tricerata #11

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Revista Tricerata

Nº 11 - JUNHO de 2022

ISSN: 2675-9349

A bolha

A bolha

Presente perdido

Presente perdido

Projeto Darwin - Dia 365

Projeto Darwin - Dia 365

5Editorial

7A BOLHA Élio Braga

13PRESENTE PERDIDO Alexandre JCF Jr

22PROJETO DARWIN – DIA 365 Tiago F. Ribeiro

32NOVIDADES E FUTUROS LANÇAMENTOS

ÍNDICE

A Revista Tricerata é uma publicação independente. Ajude-nos curtindo as redes sociais da editora:

Revista Tricerata

Fundador e editor-chefe

Maurício Coelho

Projeto gráfico e diagramação (capa)

Maurício Coelho

Projeto gráfico e diagramação (miolo)

Douglas Domingues

Imagem da capa

Shutterstock

Imagens do índice e página 4 e 6

Douglas Domingues + Stable Diffusion 2.1

Este número não teve revisão final, foi revisado apenas pelos próprios autores de seus respectivos textos. Caso tenha interesse em revisar voluntariamente, mande-nos um e-mail: editoracyberus@gmail.com

REVISTA TRICERATA. Vol. 2, nº11, 2022. Pode ser baixada gratuitamente no site da Editora Cyberus.

ISSN 2675-9349

EDITORIAL

A Revista Tricerata chegou!

Uma revista bimensal exclusivamente digital de fantasia, ficção científica e horror. A revista traz o melhor destes três gêneros da literatura fantástica em colunas e conteúdos singulares, desde entrevistas com autores a novidades da editora.

Prepare-se! Esta décima primeira edição traz contos distópicos. E se os nazistas tivessem ganhado a Segunda Guerra Mundial? Boa leitura através deste subgênero de história alternativa chamada, dentre outros nomes, de “Hitler Wins”.

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NOTA

Você já sabe, mas não custa lembrar: a apologia ao nazismo é crime e se enquadra na Lei 7.716/1989.

A BOLHA

Numa distopia pós segunda guerra mundial, as pessoas são controladas por bolhas de bem-estar, utilizadas como chapéu, e a possibilidade da verdade é vislumbrada quando da falha de um desses dispositivos. Uma triste metáfora com os algoritmos mercadológicos de nossos dias pós-guerra, onde quem venceu não foi a humanidade.

Ao sair da cafeteria em que se encontrava, o incomodado rapaz percebeu que, atrás, alguém lhe chamava na língua alemã, em alarde. Era um garçom magrelo, ariano, que vinha abanando as mãos num gesto nervoso. “O senhor deixou cair sua bolha”, ele disse sorrindo e olhando fixamente para o objeto em suas mãos. Num ato automático, o rapaz colocou ambas as mãos sobre a cabeça, como que procurando por um chapéu. Ela havia caído, realmente. “Que descuido o meu! Obrigado!”, respondeu ao garçom. Vestiu a bolha num movimento igualmente automático.

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Segurava sua superfície lisa e transparente, feita de um material entre o vidro e o plástico, fruto da tecnologia nova dos anos que chegaram.

Vestiu a bolha e percebeu que o incômodo que sentia passara. Depois da Guerra Atômica, foi assim. Era um zumbido, algo nauseante, mas tolerável. Como um incômodo fraco nas costas que se vai imediatamente quando se deita. Este, no entanto, era mental, mas já havia passado. Ufa! Que estranho lhe tinha sido aquele incômodo. Parecia querer mostrar alguma coisa. Era como se o incômodo estivesse alertando sobre outro incômodo secundário, obscuro e discreto. Poderia ser? Um incômodo por um incômodo. Ao menos o mais aparente passara.

Desceu a rua em direção ao metrô. As pessoas chocavam suas cabeças e barulhos de “tec-tec-tec” eram ouvidos por todos os lados, oriundos dos choques entre as bolhas encaixadas na cabeça de cada pessoa da multidão. Elas pareciam não se importar. Algumas, inclusive, sorriam. Para onde elas iam? Para onde ele ia? Em algum lugar do metrô ouvia-se uma bossa muito aprazível. Parecia trazer sossego ao metrô. Talvez fosse isso que estivesse gerando o bom humor tranquilo daquela multidão dinâmica, quem sabe. É, as pessoas realmente pareciam amortecidas.

Novamente, perguntou-se para onde

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ia. Parecia tão certo seu destino, antes de entrar na cafeteria; sabia exatamente o que tinha de fazer, a que horas devia estar lá e como devia se portar. Mas, onde era “lá”? Que estranho. Sua cabeça parecia não funcionar direito. Passou a sentir novamente um incômodo, desta vez do lado direito da cabeça, acima da orelha. A bossa parecia desvanecer, mas voltava a tocar no volume normal logo em seguida, como num movimento em onda. Era como se um rádio com defeito tocasse na estação. Percebeu que não se movia, obrigando as pessoas a desviarem-se dele. Percebeu, também, que as olhava nos olhos. Há quanto tempo não fazia isto? Não tinha memória do último par de olhos humanos que havia visto. As pessoas desviavam de si, mas pareciam não notar sua real presença humana bem no meio da estação metroviária, pois seus olhares eram fixos de forma a enxergar a nuca da pessoa à sua frente. Andavam como vagões de um trem puxados por uma locomotiva. Qual seria a locomotiva daquela multidão que sabia — sem saber — exatamente para onde ir?

O incômodo crescia e o rapaz pôde enxergar que as paredes da estação pareciam mudar. Elas, que tinham desenhos lindos — verdadeiras obras de arte a decorar o caminho até o trem —, aparentavam-se embaçadas, por alguns instantes, até se mostrarem

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repletas de rachaduras que interrompiam a cor cinza das paredes escuras e malcuidadas. Havia piches clandestinos por todos os lados, e um formato padrão de desenho podia ser observado a cada cinco metros, mais ou menos. Era o formato de uma pessoa com uma bexiga (no lugar da cabeça) que explodia por consequência do toque de um alfinete. Abaixo do desenho, a escrita “LIBERTE-SE” podia ser vista. Como nunca havia reparado naquilo antes? As paredes sempre lhe pareceram tão belas e impecavelmente decoradas. Olhou para cima e percebeu que havia bolhas negras espaçadas e grudadas no teto da estação. A multidão prosseguia, andando num rumo sem rumo, fosse lá para onde fosse. A música tocava muito baixo, dando lugar a um ensurdecedor barulho de passos e de gente conversando. Alguém falou, mais próximo, “olá, tudo bem?” e nosso rapaz se virou instantaneamente, mas não era ele o receptor daquelas palavras, que foram ditas para ninguém. As pessoas conversavam sozinhas. Falavam em etapas, como se estivessem ao telefone. No entanto, não havia telefone algum naquelas mãos, que estavam guardadas nos bolsos das calças.

Decidiu pegar o metrô e seguir para qualquer lugar. As pessoas formavam comportadas filas para entrar nos vagões, e ele encontrou uma fila um pouco menor; espe-

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rou ali. Podia ouvir o trem chegando em alta velocidade, mas notou que aquele não era o trem que pegava todos os dias: o lindo trem moderno, de um branco brilhante, com faixas a decorar as laterais. Em sua frente, via um antigo trem de metal sujo e meio enferrujado. Mudaram-no?

Chegou ao resultado óbvio de toda sua observação: quem mudara fora ele. Suas mãos saíram dos bolsos da calça num ato próprio, natural, e subiram em direção àquela esfera cilíndrica que rodeava sua cabeça. Pela primeira vez em tempos — não podia lembrar quanto tempo — ele era dono de si. O trem freava e trazia junto um barulho ensurdecedor que agora era um insuportável incômodo aos ouvidos do rapaz. A bolha transparente caiu no chão e rolou até os pés de três homens com roupas-de-funcionário-de-metrô que iam em sua direção. Ele estava atordoado. Os homens retiraram de uma caixa de papelão uma bolha idêntica àquela no chão e pediram-lhe que abaixasse a cabe-

ça. Resignado pelo barulho do metrô — ou do que fosse aquilo que fazia tanto barulho —, nem ousou discordar. Os homens gentilmente disseram-lhe “Senhor, percebemos uma pequena rachadura do lado direito de sua bolha antiga e estamos aqui para lhe oferecer esta nova, inteiramente grátis.” Colocaram-

-na, imediatamente, sobre a cabeça do rapaz,

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que nem ao menos estranhou o fato dos homens desaparecerem em sua frente, como mágica, pois o alívio que sentiu era mais importante agora que as paredes estavam novamente lindas, que as pessoas sorriam e falavam umas com as outras, que as luzes eram belas e revelavam o moderníssimo trem que deveria levá-lo até a estação do lado leste da cidade, onde iria trabalhar.

Élio Braga é autor de Os Dois

Fazendeiros (2018) e Realidades Rompidas (2021). Autor em antologias de contos e cronista mensal nos jornais CCN (SP), Tribuna (SP), Diário de Marília (SP), Dolce Morumbi (SP) e Monte Sião (MG). Vencedor do I Concurso de Contos de Iguaba Grande - RJ.

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PRESENTE PERDIDO

Alexandre JCF Jr

O que aconteceria com alguém que viveu a vida em um regina nazista? Como seria a vida dessa pessoa? Esses são temas abordados em “Presente Perdido”, um mergulho breve em um mundo controlado em que o partido se tornou uma espécie de religião. Você segue o itinerário de um jovem agente da Gestapo brasileira — a polícia secreta do estado —, uma inspiração direta da Gestapo alemã depois do controle total do Brasil por forças nazistas. Agora o país inteiro está sob o domínio nazista há décadas e a Gestapo faz o que sempre fez: buscar dissidentes. Conseguirá o protagonista descobrir como encontrá-los com a ajuda de um dos fundadores da Gestapo brasileira? Descubra as entranhas do regime nazista brasileiro lendo um “Presente Perdido”.

As pessoas se atulhavam aos montes na assembleia para a reza matinal em nome do Führer. Uma massa concentrada em um mesmo ponto, voltada para o mesmo ponto: uma grande torre empoleirada por uma suástica.

Muitas pessoas saudavam o símbolo antes de entrar, esticando o braço e a mão. Querendo ou não se acaba entrando na assembleia, a multidão te leva como uma maré imponente e paulatina; ali, o que reina é a vontade e a necessidade geral de louvar a um só homem.

Este é o costume: sempre se deve dedicar os primeiros pensamentos do dia para o nosso

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Líder Supremo; ele que cuida de nós, ele que dita o que deve ser feito, ele que diz quem é o inimigo. Sempre foi assim, sempre será... Era o que eu achava. Entrava-se na assembleia e via uma estrutura enorme, espaçosa e com o foco total na grande representação que ocupava a parede oposta inteira de seis metros: a fotografia do Líder Supremo. Dentro daquele imenso local, achar um assento era uma sorte grande; e mesmo com sorte ela acaba rápido: para rezar pelo Führer tinha que ajoelhar. Este era o itinerário que acontecia religiosamente todos os dias, ao primeiro raiar, antes mesmo de qualquer desjejum. Dedicações ao Líder Supremo são de suma importância para o bem-estar da nação; portanto, estavam todos ali para o bem comum, concentrando as suas preces naquele que guiaria a Nação e a consciência do povo consigo. A assembleia é para isso, um local de reunião, um local para agradecer, para lembrar todo dia a quem agradecer, principalmente.

Um membro do partido vinha para o sermão matinal — ele era um sujeito tão afiado com o espírito ariano (como diziam muitos) que ele podia identificar os dissidentes. Sempre temi o oficial do partido: bastava um olhar dele para saber se estava ou não possuído por um espírito divergente. Ele nunca

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errava. Nunca ninguém me apontou nessas provações de fé, ainda bem — não havia outro método de purificação a não ser a morte. Puxavam a pessoas aos gritos para a tribuna, no alto dos degraus, para todos verem. Usavam cassetetes primeiro, exclamando: “Arrependa-se! Arrependa-se!”. E batiam-lhe até a pele mudar de cor. Quando os possuídos desistiam, confessavam seus crimes, davam nomes de outros e eram enforcados ali mesmo, diante de todos.

Nunca me perguntei o porquê havia torcida durante esses atos. As pessoas urravam a cada golpe e saldavam o enforcamento com aplausos e gritos de celebração. Também me juntava é claro — eram dissidentes quem sofriam, então nada mais justo. Todos pensam assim. Apenas dissidentes pensam o contrário.

Por isso que todo dia eu agradecia por ser fiel e obediente, sempre tive motivo para agradecer; o Líder Supremo era benevolente. Jamais duvidei.

Quando acabavam as cerimônias matinais, tínhamos de deslocar para os respectivos trabalhos. Enquanto o fazíamos que podíamos comer, não antes nem depois; por vezes podia ser um pedaço duro de pão, outras uma porção pequena de mingau de aveia, entre outras variações do mesmo tipo. O bom era po-

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der ver toda a glória da cidade: uma conjunta obra de arte cinza, moldada no concreto rijo que representava o povo. Percorria bairros inteiros com a ajuda do maquinário revolucionário feito pelo partido: as grandes máquinas à vapor. Eu frequentava um dos últimos vagões naquele período; ia para a casa de um dos mais renomados oficiais aposentado do partido. Heinrich era seu nome. Um senhor tão importante que até na velhice ainda tinha lugar na sociedade — coisa que não acontece com o povo em geral; os incapazes são todos excluídos da vida pública, são uma fraqueza nos olhos do partido. Mas não o senhor Heinrich, centenário e pioneiro da Gestapo brasileira. Suas táticas foram tão importantes que até os dias de hoje elas são aprendidas.

Toquei a campainha e uma figura cheia de sulcos fadada à cadeira de rodas entreabriu a porta.

— Quem é? — perguntou o velho de olhar afiado e um sotaque puxado.

— Sou o empregado novo do Sr. Heinrich.

— Ah! É mais um que veio tentar surrupiar minhas ideias. — O velho riu com um deboche nítido. — Mais um que vai fracassar.

Sem cerimônia alguma, Heinrich já sabia de minha missão, algo que ele levou na completa brincadeira.

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— Vocês são todos iguais, babões do mesmo jeito — dizia afagando o seu leão entalhado.

O homem vivia num luxo absoluto. Entretanto, um empregado não podia ser qualquer um, tinha de vir do partido; ou seja, naquele momento, era eu.

Como Heinrich tinha sido franco, também fui com ele.

Ele riu.

— Um ladrão de caradura! Vou me divertir muito.

Servi-o como bem conseguia, entre vários insultos, mas manter a postura é algo que já tinha aprendido há muito. Qualquer que fosse uma tentativa minha de discutir sobre suas táticas de espionagem, não passava de uma mera tentativa; Heinrich ria e me pedia outra coisa. Foi assim o dia inteiro.

— Até amanhã, faxineira! — disse o velho na soleira de sua porta rindo à beça.

Tudo para ele era uma brincadeira. Insisti durante muito tempo, vários dias. Continuei servindo-o com toda a cerimônia que alguém como ele merecia. Até o dia que ele me pegou tendo um ataque de fúrias:

— Vai ser como sempre foi, rapaz. Ou

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você enlouquece, ou, de alguma forma, sairá daqui acusado de dissidência.

O ouvi e estremeci: soube no mesmo instante que ele usara os métodos dele nos empregados anteriores. Um pequeno progresso.

— Senhor Heinrich — perguntei servindo-o chá —, durante toda a manhã, eu vejo os oficiais na assembleia apontando para dissidente sem mesmo que eles saibam que são; acabo me perguntado: será que não sou um e nem sei?

O velho apertou o olhar para mim:

— Não vai querer jogar esse joguinho comigo, moleque. Você quer que eu mostre meus métodos para você. Não farei isso, na verdade, vou mostrar o que eles realmente fazem nas assembleias.

Eu me inclinei em expectativa.

— Os altos oficiais da Gestapo, todo dia, mandam uma listinha, com fotos, daqueles que não seguem os ditames do partido. Vez ou outra há um espião ou conspirador, mas a maioria das vezes é só alguém com interesses muito individuais. Aquilo nas assembleias é tudo ato, para amortecer as mentes e deixá-las mansas.

Aquele foi o primeiro ensinamento.

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Logo fiz um relatório para os superiores e fui promovido. Meu trabalho com Heinrich, tentando extrair mais dele, ficou depois muito simples. Algo tinha mudado nele, ficara mais pensativo, aberto; devia ser por conta das tosses com sangue. Ele sabia que algo o espreitava.

— Sente aqui, rapaz — disse ele em uma voz cansada. — Você quis tanto saber o meu método para identificar dissidentes, vou te dar isso. Mas já te aviso: quando acabarmos, você será o maior partidário de todos ou será o maior dissidente de todos. Não há outro caminho.

Heinrich puxou das vestes um diário, era dele, completamente desbotado.

— Estas são as minhas anotações sobre antes do domínio alemão, quando eu ainda era um imigrante tolo. Você vai entender. —

Entregou o diário tão velho quanto ele nas minhas mãos. — Nunca ninguém viu isso. Nunca fiz o método através desse diário, mas será efetivo da mesma forma. Estou cansado. Vá embora.

— O que é para fazer, senhor Heinrich?

— Só leia...

Fui ligeiro para um local iluminado e abri as páginas. No primeiro momento pensei que as notas tratavam apenas de proble-

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mas da juventude. Nada de importante. Foi necessária uma lida minuciosa nos primeiros capítulos para eu me dar conta do cenário que estava inserido: o Brasil dos anos sessenta. Era outro mundo, de possibilidades simples: pessoas podias escolher o que estudar, o que comer, o que vestir, com quem se relacionar. As maravilhas da segunda década do nosso novo século, todas já existiam outrora — o que torna todo progresso desde aquele tempo pura mentira. Deparei-me com um mundo de oportunidades que jamais poderia ter. Naquele momento, eu soube que era um dissidente.

— Eu vi tudo.

Heinrich murmurou.

— Com essa cara, eu sei muito bem que uma tempestade se formou na sua cabeça. — Ele parou para tossir um pouco. — Meu segredo para descobrir os dissidentes, rapaz, é simplesmente mostrar o que eles perderam. Só isso.

— É um caminho sem volta.

— Exatamente. O seu fardo foi o meu durante uma vida toda.

— Como você não foi morto?

— Rapaz, os mais adeptos do partido são seus maiores dissidentes.

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— O medo impele paixão — falei seco e Heinrich assentiu.

Naquela noite ele poderia ter me entregado, assim como fizera com tantos outros; mas não. A partir de então, cresceu uma amizade entre nós. Ele o mentor e eu seu pupilo. Por algum tempo pelo menos, pois Heinrich morreu logo depois, de causas naturais.

Eu mantive os segredos de suas táticas, não os revelei por relatório e, por consequência, tive uma carreira meteórica dentro do partido; me tornei diretor geral da Gestapo brasileira em pouco menos de cinco anos. Dissimulei muito bem, ninguém suspeitava de minha verdadeira natureza: um diretor dissidente.

Alexandre JCF Jr é um escritor em ascensão com várias grandes obras em produção, que são, em sua predominância, dos gêneros de fantasia, ficção-cien-

tífica e ficção medieval; além de também ter uma dúzia de contos variados. Também cria conteúdo digital em seu blog e vídeos curtos no TikTok e Instagram. Fique atualizado nos seus projetos seguindo-o nas redes sociais.

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PROJETO DARWIN –DIA 365

Tiago F. Ribeiro

Os rebeldes ameaçam a dominação Nazista total. Centros de pesquisa surgem para solucioná-lo, mas as descobertas vão além do esperado.

Passos altos. Ecoam pelo corredor frio e escuro. A ponta do salto estala como tiro de revólver. Armas são proibidas ali em baixo. Um novo corredor se abre à direita, cheio de mais gelidez e breu, com algo, porém, que abafa até mesmo o som dos passos: gritos. Berros ininteligíveis por causa da grossura das paredes, amplificados pelo pé direito diminuto do corredor.

A hora dos testes havia começado. “Como porcos no abatedouro.” Pensa a

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dra. Pluth, escolhendo uma das portas, a que não emanava barulhos assustadores.

– É realmente necessário fazer o que quer que os esteja fazendo gritar tanto? – Fechou a porta de imediato para abafar o caos sonoro.

À frente, a calma da saleta era contagiante. Cheiro de café. Um homem com um jaleco sujo balançava de lá para cá enquanto fazia algo sobre o balcão branco. Será que ele não conseguia ser mais profissional e manter o uniforme limpo como o dela? Era o que Pluth estava para dizer antes de perceber que ele nunca a escutaria com o volume de seus fones de ouvido.

– Ah, oi, Syd. – Bordado em seu bolso dianteiro lia-se: “Dr. Marcus Urek”. – Hã... você acabou de me jogar um pedaço de bolacha? Sabe que são da Vanya, né?

– Vou dizer que foi você quem pegou sem pedir. – A doutora recosta-se no balcão e solta os cabelos loiros ondulados com alívio. – E o que está fazendo, afinal? Você não gosta de café.

– Eu só... preciso de um estímulo. – O homem, de cabelos menos dourados que os

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da colega, enche tristemente dois copos de plástico com o líquido quente.

Aquele não parecia ser o colega extrovertido e otimista com quem Pluth trabalhara o ano inteiro. O que o estaria deixando tão cabisbaixo?

– Hoje é o dia 365 que estamos aqui embaixo, né? – Ela pergunta retoricamente. O café estava levemente forte, como preferia. – Um ano depois do início da rebelião na América do Norte. Ouvi dizer que as coisas estão feias por lá. Não se entregam fácil, mesmo sendo os únicos a não se renderem ao Fuhrër.

Urek não reage.

– Porém, mesmo assim, – Continua a mulher. – dizem que nossas tropas tem uma boa vantagem. E como não teriam, afinal? São só alguns judeus armados com forcados, enxadas e...

– E armas nucleares. – O doutor termina de mexer seu café e começa a esfriá-lo.

– São boatos, é claro, de que conseguiram furtar uma das nossas instalações, mas por que outro motivo nos mandaram acelerar o projeto?

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– Marcus, o Projeto Darwin serve para expandir os limites da humanidade...

– E criar super soldados. Reticências. A sala fica um pouco mais fria.

– É por causa do seu paciente? Aconteceu alguma coisa com o paciente 1...? – Tenta perguntar a doutora.

– Como está indo com as duas cobaias?

– O tom do dr. Urek, apesar da interrupção, é manso.

– Ah, bem, o paciente 7 não apresentou tanta mudança desde a manifestação de suas habilidades especiais. – Pluth puxa a cadeira mais próxima e acomoda uma perna sobre a outra. – Ele só... come. Tudo o que damos para ele, não importa que tipo de substância seja. Ainda lembro quando começamos com uma pastilha para tosse por que achávamos que os experimentos no sistema digestivo haviam sido exagerados. Agora o Glutão faz jus ao apelido que você inventou e devora madeira podre como se fosse um sanduíche. Com certeza a mudança em suas papilas gustativas foi a coisa mais impressionante. E ele está sem -

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pre com fome, sabe, outro dia ele comeu o próprio...

Não devia contar ao Urek sobre aquilo, sua mente alertou-a. Mas agora não havia mais escapatória. Que desleixada.

– Bem, foi um acidente, na verdade. –O copo estala com o aperto dos dedos dela. Ainda sentia arrepios só de lembrar. – Era um material resistente e... ele tinha que morder forte. O dedo dele estava na frente e... bem, quando vimos, havia sangue para todo lado. O paciente gritou. Porém, quando os paramédicos entraram na sala de testes, ele já havia voltado a comer, como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse sangue literalmente cobrindo tudo. Ele... até mesmo lambia os dedos restantes. Foi nojento, mas... creio que seja algum tipo de avanço? Eu não sei. Depois disso tive de aumentar seu nível de ameaça.

Pluth olha para o colega, que esperava silenciosamente. Ele quer ouvir o resto da história, percebeu.

– Claro, o número 6. – A doutora empertigou-se. Urek sempre dizia que ela era como gelo, mas falar dos pacientes a fazia

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sentir um frio inquestionável na espinha. –Regeneração acelerada durante o sono profundo. Sinceramente não entendo o porquê do dr. Biden o ter abandonado. Tudo o que ele faz é dormir. Algumas vezes durante os testes. Nada fora do comum, olhando para seu modus operandi.

– Sério? Por isso aumentaram recentemente o nível de ameaça do Dorminhoco para o mesmo que o do Glutão? – Marcus Urek senta-se à mesa calmamente. Pluth não entendia o porquê de todos aqueles questionamentos.

– Já disse que não é boa ideia ficar inventando nomes para os pacientes.

– Vamos lá, me conta, vai. Eu sei que você descobriu alguma coisa. Talvez tenha a ver com o sumiço do Biden. Pluth respirou fundo. Não queria mesmo continuar falando daquilo, mas fez um esforço, sabe-se lá o porquê:

– Ok. Na semana anterior ao desaparecimento do dr. Biden houve um experimento com a quantidade de tempo que o Dorminho... que o paciente 6 conseguiria ficar sem dormir. Na teoria, ele apenas teria sua habili-

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dade regenerativa enfraquecida. Mas não foi o que aconteceu. Depois de 48 horas acordado, sob estímulos externos, é claro, começamos os testes. Ele estava mal, como qualquer um ficaria. Nem parecia estar no próprio corpo. O enfermeiro aproximou-se, para desamarrá-lo, mas não precisou, pois as tiras de couro foram imediatamente arrancadas. Foram necessários três guardas armados com bastões para parar o ataque do paciente 6 e salvar o que restou do enfermeiro. Mas, apesar de tudo, sabe o que foi mais impressionante? O paciente 6 estava dormindo! Sim, durante todo o processo! Seu estado de sonambulismo assustou a todos, principalmente por conta dos ferimentos que sofreu durante a batalha. Porém, como sempre, no momento em que acordou já estavam todos cicatrizados e os ossos estavam no lugar. Ele não se lembrava de nada.

– Então ele matou o enfermeiro.

– Marcus, eu sei que está preocupado com seu irmão. Qualquer um estaria. Mas o front não é tão perigoso para os curandeiros.

E as nossas pesquisas não tem nada a ver com qualquer coisa que esteja acontecendo por lá, pode acreditar.

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Inquieto, Marcus levanta e dirige-se de volta à cafeteira com o copo vazio na mão esquerda.

– Na primeira semana após os primeiros testes – Seu tom era mais cansado do que triste. – Eu ficava apenas observando como o paciente 1 estava reagindo. Ajudaria muito se nos contassem o que haviam feito com ele. Eu não o conhecia antes, mas quando acordou eu tive quase certeza de que nada de sua vida passada havia sobrado. Como? O cara parecia ter saído de uma daquelas novelas antigas de cavalaria. O perfil de um rei. Daí o apelido: Monarca. Eu sabia que ele era especial, mesmo em relação aos outros seis. Podia sentir só de olhar para ele. Mas...

– Ele nunca apresentou resultados. –Completou Pluth, abraçando o amigo. Marcus soluça e, mesmo virado para o balcão, a doutora percebe que ele chora. – Então por isso você está tão triste. Sinto muito, Marcus. Com tudo o que está acontecendo no mundo e você lidando com uma cobaia defeituosa... não deve ser fácil.

– Esse é o problema, Syd. – A doutora solta o colega e se afasta, mas já é tarde de-

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mais. O parafuso da cafeteira já se vê na aorta de seu pescoço, assim como seus dedos a tentar estancar o sangramento. – O Monarca nunca foi uma cobaia defeituosa.

Dor. O mundo escurece e os sentidos falham. Ela está caindo? Achou que sim, pois num instante Marcus ficou maior e olhando para ela de cima como se olha para os porcos no abatedouro. Foi difícil de, enquanto se arrastava na direção da porta, entender as próximas palavras dele:

– Batizei a habilidade dele de Predador Alfa. Qualquer espécie que entre em contato com ele tem sua vontade forçada a se curvar perante o Monarca.

Faltavam poucos metros. O sangue ameaça afogá-la. A voz de Marcus, agora abafada, aproxima-se:

– Eu sinto muito, Syd. Mas o que o rei manda, eu devo obedecer. Não se preocupe, pois o Glutão nunca deixa sobrar nada. Isso ficou comprovado depois que eu dei o dr. Biden para ele comer.

Pluth berra ao ser puxada de volta pelas pernas. Por que aquilo estava acontecendo com ela? O que ela havia feito de errado? Por

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que Marcus estava chorando? Onde Marcus havia achado aquele bisturi? Por que o estava aproximando de seu rosto? Não, não, não, aquilo não podia ser, não podia...

“Por quê?” Pensou, antes que o chão deixasse de ser branco.

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Tiago F. Ribeiro é brasileiro de origem e coração e tendo Belém do Pará como linha de largada na vida. Começou a escrever com 6 anos e, desde então, vive para tal.

NOVIDADES E FUTUROS LANÇAMENTOS

Nosso podcast Território Cyberus está disponível nas principais plataformas de áudio. Caso tenham alguma sugestão de assunto que vocês queiram conversar e/ou ouvir manda pra gente! Como sabem, estamos sempre correndo atrás de conteúdos novos.

Fizemos uma tentativa de lançar a Associação Brasileira de Ficção Científica e Fantasia (ABFCF), porém, eu, Maurício Coelho, estou sem tempo para continuar o projeto. Apesar disso, você pode conhecer a ABFCF clicando aqui.

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Tivemos um atraso tremendo nas nossas obras de financiamento coletivo. Pedimos desculpas mais uma vez por isso.

É isto, pessoal. Obrigado novamente por ter lido até aqui e nos vemos em breve!

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