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A BOLHA
Élio Braga
Numa distopia pós segunda guerra mundial, as pessoas são controladas por bolhas de bem-estar, utilizadas como chapéu, e a possibilidade da verdade é vislumbrada quando da falha de um desses dispositivos. Uma triste metáfora com os algoritmos mercadológicos de nossos dias pós-guerra, onde quem venceu não foi a humanidade.
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Ao sair da cafeteria em que se encontrava, o incomodado rapaz percebeu que, atrás, alguém lhe chamava na língua alemã, em alarde. Era um garçom magrelo, ariano, que vinha abanando as mãos num gesto nervoso. “O senhor deixou cair sua bolha”, ele disse sorrindo e olhando fixamente para o objeto em suas mãos. Num ato automático, o rapaz colocou ambas as mãos sobre a cabeça, como que procurando por um chapéu. Ela havia caído, realmente. “Que descuido o meu! Obrigado!”, respondeu ao garçom. Vestiu a bolha num movimento igualmente automático.
Segurava sua superfície lisa e transparente, feita de um material entre o vidro e o plástico, fruto da tecnologia nova dos anos que chegaram.
Vestiu a bolha e percebeu que o incômodo que sentia passara. Depois da Guerra Atômica, foi assim. Era um zumbido, algo nauseante, mas tolerável. Como um incômodo fraco nas costas que se vai imediatamente quando se deita. Este, no entanto, era mental, mas já havia passado. Ufa! Que estranho lhe tinha sido aquele incômodo. Parecia querer mostrar alguma coisa. Era como se o incômodo estivesse alertando sobre outro incômodo secundário, obscuro e discreto. Poderia ser? Um incômodo por um incômodo. Ao menos o mais aparente passara.
Desceu a rua em direção ao metrô. As pessoas chocavam suas cabeças e barulhos de “tec-tec-tec” eram ouvidos por todos os lados, oriundos dos choques entre as bolhas encaixadas na cabeça de cada pessoa da multidão. Elas pareciam não se importar. Algumas, inclusive, sorriam. Para onde elas iam? Para onde ele ia? Em algum lugar do metrô ouvia-se uma bossa muito aprazível. Parecia trazer sossego ao metrô. Talvez fosse isso que estivesse gerando o bom humor tranquilo daquela multidão dinâmica, quem sabe. É, as pessoas realmente pareciam amortecidas.
Novamente, perguntou-se para onde ia. Parecia tão certo seu destino, antes de entrar na cafeteria; sabia exatamente o que tinha de fazer, a que horas devia estar lá e como devia se portar. Mas, onde era “lá”? Que estranho. Sua cabeça parecia não funcionar direito. Passou a sentir novamente um incômodo, desta vez do lado direito da cabeça, acima da orelha. A bossa parecia desvanecer, mas voltava a tocar no volume normal logo em seguida, como num movimento em onda. Era como se um rádio com defeito tocasse na estação. Percebeu que não se movia, obrigando as pessoas a desviarem-se dele. Percebeu, também, que as olhava nos olhos. Há quanto tempo não fazia isto? Não tinha memória do último par de olhos humanos que havia visto. As pessoas desviavam de si, mas pareciam não notar sua real presença humana bem no meio da estação metroviária, pois seus olhares eram fixos de forma a enxergar a nuca da pessoa à sua frente. Andavam como vagões de um trem puxados por uma locomotiva. Qual seria a locomotiva daquela multidão que sabia — sem saber — exatamente para onde ir?
O incômodo crescia e o rapaz pôde enxergar que as paredes da estação pareciam mudar. Elas, que tinham desenhos lindos — verdadeiras obras de arte a decorar o caminho até o trem —, aparentavam-se embaçadas, por alguns instantes, até se mostrarem repletas de rachaduras que interrompiam a cor cinza das paredes escuras e malcuidadas. Havia piches clandestinos por todos os lados, e um formato padrão de desenho podia ser observado a cada cinco metros, mais ou menos. Era o formato de uma pessoa com uma bexiga (no lugar da cabeça) que explodia por consequência do toque de um alfinete. Abaixo do desenho, a escrita “LIBERTE-SE” podia ser vista. Como nunca havia reparado naquilo antes? As paredes sempre lhe pareceram tão belas e impecavelmente decoradas. Olhou para cima e percebeu que havia bolhas negras espaçadas e grudadas no teto da estação. A multidão prosseguia, andando num rumo sem rumo, fosse lá para onde fosse. A música tocava muito baixo, dando lugar a um ensurdecedor barulho de passos e de gente conversando. Alguém falou, mais próximo, “olá, tudo bem?” e nosso rapaz se virou instantaneamente, mas não era ele o receptor daquelas palavras, que foram ditas para ninguém. As pessoas conversavam sozinhas. Falavam em etapas, como se estivessem ao telefone. No entanto, não havia telefone algum naquelas mãos, que estavam guardadas nos bolsos das calças.
Decidiu pegar o metrô e seguir para qualquer lugar. As pessoas formavam comportadas filas para entrar nos vagões, e ele encontrou uma fila um pouco menor; espe- rou ali. Podia ouvir o trem chegando em alta velocidade, mas notou que aquele não era o trem que pegava todos os dias: o lindo trem moderno, de um branco brilhante, com faixas a decorar as laterais. Em sua frente, via um antigo trem de metal sujo e meio enferrujado. Mudaram-no?
Chegou ao resultado óbvio de toda sua observação: quem mudara fora ele. Suas mãos saíram dos bolsos da calça num ato próprio, natural, e subiram em direção àquela esfera cilíndrica que rodeava sua cabeça. Pela primeira vez em tempos — não podia lembrar quanto tempo — ele era dono de si. O trem freava e trazia junto um barulho ensurdecedor que agora era um insuportável incômodo aos ouvidos do rapaz. A bolha transparente caiu no chão e rolou até os pés de três homens com roupas-de-funcionário-de-metrô que iam em sua direção. Ele estava atordoado. Os homens retiraram de uma caixa de papelão uma bolha idêntica àquela no chão e pediram-lhe que abaixasse a cabe- ça. Resignado pelo barulho do metrô — ou do que fosse aquilo que fazia tanto barulho —, nem ousou discordar. Os homens gentilmente disseram-lhe “Senhor, percebemos uma pequena rachadura do lado direito de sua bolha antiga e estamos aqui para lhe oferecer esta nova, inteiramente grátis.” Colocaram-
-na, imediatamente, sobre a cabeça do rapaz, que nem ao menos estranhou o fato dos homens desaparecerem em sua frente, como mágica, pois o alívio que sentiu era mais importante agora que as paredes estavam novamente lindas, que as pessoas sorriam e falavam umas com as outras, que as luzes eram belas e revelavam o moderníssimo trem que deveria levá-lo até a estação do lado leste da cidade, onde iria trabalhar.
Élio Braga é autor de Os Dois
Fazendeiros (2018) e Realidades Rompidas (2021). Autor em antologias de contos e cronista mensal nos jornais CCN (SP), Tribuna (SP), Diário de Marília (SP), Dolce Morumbi (SP) e Monte Sião (MG). Vencedor do I Concurso de Contos de Iguaba Grande - RJ.