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PRESENTE PERDIDO

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A BOLHA

A BOLHA

Alexandre JCF Jr

O que aconteceria com alguém que viveu a vida em um regina nazista? Como seria a vida dessa pessoa? Esses são temas abordados em “Presente Perdido”, um mergulho breve em um mundo controlado em que o partido se tornou uma espécie de religião. Você segue o itinerário de um jovem agente da Gestapo brasileira — a polícia secreta do estado —, uma inspiração direta da Gestapo alemã depois do controle total do Brasil por forças nazistas. Agora o país inteiro está sob o domínio nazista há décadas e a Gestapo faz o que sempre fez: buscar dissidentes. Conseguirá o protagonista descobrir como encontrá-los com a ajuda de um dos fundadores da Gestapo brasileira? Descubra as entranhas do regime nazista brasileiro lendo um “Presente Perdido”.

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As pessoas se atulhavam aos montes na assembleia para a reza matinal em nome do Führer. Uma massa concentrada em um mesmo ponto, voltada para o mesmo ponto: uma grande torre empoleirada por uma suástica.

Muitas pessoas saudavam o símbolo antes de entrar, esticando o braço e a mão. Querendo ou não se acaba entrando na assembleia, a multidão te leva como uma maré imponente e paulatina; ali, o que reina é a vontade e a necessidade geral de louvar a um só homem.

Este é o costume: sempre se deve dedicar os primeiros pensamentos do dia para o nosso

Líder Supremo; ele que cuida de nós, ele que dita o que deve ser feito, ele que diz quem é o inimigo. Sempre foi assim, sempre será... Era o que eu achava. Entrava-se na assembleia e via uma estrutura enorme, espaçosa e com o foco total na grande representação que ocupava a parede oposta inteira de seis metros: a fotografia do Líder Supremo. Dentro daquele imenso local, achar um assento era uma sorte grande; e mesmo com sorte ela acaba rápido: para rezar pelo Führer tinha que ajoelhar. Este era o itinerário que acontecia religiosamente todos os dias, ao primeiro raiar, antes mesmo de qualquer desjejum. Dedicações ao Líder Supremo são de suma importância para o bem-estar da nação; portanto, estavam todos ali para o bem comum, concentrando as suas preces naquele que guiaria a Nação e a consciência do povo consigo. A assembleia é para isso, um local de reunião, um local para agradecer, para lembrar todo dia a quem agradecer, principalmente.

Um membro do partido vinha para o sermão matinal — ele era um sujeito tão afiado com o espírito ariano (como diziam muitos) que ele podia identificar os dissidentes. Sempre temi o oficial do partido: bastava um olhar dele para saber se estava ou não possuído por um espírito divergente. Ele nunca errava. Nunca ninguém me apontou nessas provações de fé, ainda bem — não havia outro método de purificação a não ser a morte. Puxavam a pessoas aos gritos para a tribuna, no alto dos degraus, para todos verem. Usavam cassetetes primeiro, exclamando: “Arrependa-se! Arrependa-se!”. E batiam-lhe até a pele mudar de cor. Quando os possuídos desistiam, confessavam seus crimes, davam nomes de outros e eram enforcados ali mesmo, diante de todos.

Nunca me perguntei o porquê havia torcida durante esses atos. As pessoas urravam a cada golpe e saldavam o enforcamento com aplausos e gritos de celebração. Também me juntava é claro — eram dissidentes quem sofriam, então nada mais justo. Todos pensam assim. Apenas dissidentes pensam o contrário.

Por isso que todo dia eu agradecia por ser fiel e obediente, sempre tive motivo para agradecer; o Líder Supremo era benevolente. Jamais duvidei.

Quando acabavam as cerimônias matinais, tínhamos de deslocar para os respectivos trabalhos. Enquanto o fazíamos que podíamos comer, não antes nem depois; por vezes podia ser um pedaço duro de pão, outras uma porção pequena de mingau de aveia, entre outras variações do mesmo tipo. O bom era po- der ver toda a glória da cidade: uma conjunta obra de arte cinza, moldada no concreto rijo que representava o povo. Percorria bairros inteiros com a ajuda do maquinário revolucionário feito pelo partido: as grandes máquinas à vapor. Eu frequentava um dos últimos vagões naquele período; ia para a casa de um dos mais renomados oficiais aposentado do partido. Heinrich era seu nome. Um senhor tão importante que até na velhice ainda tinha lugar na sociedade — coisa que não acontece com o povo em geral; os incapazes são todos excluídos da vida pública, são uma fraqueza nos olhos do partido. Mas não o senhor Heinrich, centenário e pioneiro da Gestapo brasileira. Suas táticas foram tão importantes que até os dias de hoje elas são aprendidas.

Toquei a campainha e uma figura cheia de sulcos fadada à cadeira de rodas entreabriu a porta.

— Quem é? — perguntou o velho de olhar afiado e um sotaque puxado.

— Sou o empregado novo do Sr. Heinrich.

— Ah! É mais um que veio tentar surrupiar minhas ideias. — O velho riu com um deboche nítido. — Mais um que vai fracassar.

Sem cerimônia alguma, Heinrich já sabia de minha missão, algo que ele levou na completa brincadeira.

— Vocês são todos iguais, babões do mesmo jeito — dizia afagando o seu leão entalhado.

O homem vivia num luxo absoluto. Entretanto, um empregado não podia ser qualquer um, tinha de vir do partido; ou seja, naquele momento, era eu.

Como Heinrich tinha sido franco, também fui com ele.

Ele riu.

— Um ladrão de caradura! Vou me divertir muito.

Servi-o como bem conseguia, entre vários insultos, mas manter a postura é algo que já tinha aprendido há muito. Qualquer que fosse uma tentativa minha de discutir sobre suas táticas de espionagem, não passava de uma mera tentativa; Heinrich ria e me pedia outra coisa. Foi assim o dia inteiro.

— Até amanhã, faxineira! — disse o velho na soleira de sua porta rindo à beça.

Tudo para ele era uma brincadeira. Insisti durante muito tempo, vários dias. Continuei servindo-o com toda a cerimônia que alguém como ele merecia. Até o dia que ele me pegou tendo um ataque de fúrias:

— Vai ser como sempre foi, rapaz. Ou você enlouquece, ou, de alguma forma, sairá daqui acusado de dissidência.

O ouvi e estremeci: soube no mesmo instante que ele usara os métodos dele nos empregados anteriores. Um pequeno progresso.

— Senhor Heinrich — perguntei servindo-o chá —, durante toda a manhã, eu vejo os oficiais na assembleia apontando para dissidente sem mesmo que eles saibam que são; acabo me perguntado: será que não sou um e nem sei?

O velho apertou o olhar para mim:

— Não vai querer jogar esse joguinho comigo, moleque. Você quer que eu mostre meus métodos para você. Não farei isso, na verdade, vou mostrar o que eles realmente fazem nas assembleias.

Eu me inclinei em expectativa.

— Os altos oficiais da Gestapo, todo dia, mandam uma listinha, com fotos, daqueles que não seguem os ditames do partido. Vez ou outra há um espião ou conspirador, mas a maioria das vezes é só alguém com interesses muito individuais. Aquilo nas assembleias é tudo ato, para amortecer as mentes e deixá-las mansas.

Aquele foi o primeiro ensinamento.

Logo fiz um relatório para os superiores e fui promovido. Meu trabalho com Heinrich, tentando extrair mais dele, ficou depois muito simples. Algo tinha mudado nele, ficara mais pensativo, aberto; devia ser por conta das tosses com sangue. Ele sabia que algo o espreitava.

— Sente aqui, rapaz — disse ele em uma voz cansada. — Você quis tanto saber o meu método para identificar dissidentes, vou te dar isso. Mas já te aviso: quando acabarmos, você será o maior partidário de todos ou será o maior dissidente de todos. Não há outro caminho.

Heinrich puxou das vestes um diário, era dele, completamente desbotado.

— Estas são as minhas anotações sobre antes do domínio alemão, quando eu ainda era um imigrante tolo. Você vai entender. —

Entregou o diário tão velho quanto ele nas minhas mãos. — Nunca ninguém viu isso. Nunca fiz o método através desse diário, mas será efetivo da mesma forma. Estou cansado. Vá embora.

— O que é para fazer, senhor Heinrich?

— Só leia...

Fui ligeiro para um local iluminado e abri as páginas. No primeiro momento pensei que as notas tratavam apenas de proble- mas da juventude. Nada de importante. Foi necessária uma lida minuciosa nos primeiros capítulos para eu me dar conta do cenário que estava inserido: o Brasil dos anos sessenta. Era outro mundo, de possibilidades simples: pessoas podias escolher o que estudar, o que comer, o que vestir, com quem se relacionar. As maravilhas da segunda década do nosso novo século, todas já existiam outrora — o que torna todo progresso desde aquele tempo pura mentira. Deparei-me com um mundo de oportunidades que jamais poderia ter. Naquele momento, eu soube que era um dissidente.

— Eu vi tudo.

Heinrich murmurou.

— Com essa cara, eu sei muito bem que uma tempestade se formou na sua cabeça. — Ele parou para tossir um pouco. — Meu segredo para descobrir os dissidentes, rapaz, é simplesmente mostrar o que eles perderam. Só isso.

— É um caminho sem volta.

— Exatamente. O seu fardo foi o meu durante uma vida toda.

— Como você não foi morto?

— Rapaz, os mais adeptos do partido são seus maiores dissidentes.

— O medo impele paixão — falei seco e Heinrich assentiu.

Naquela noite ele poderia ter me entregado, assim como fizera com tantos outros; mas não. A partir de então, cresceu uma amizade entre nós. Ele o mentor e eu seu pupilo. Por algum tempo pelo menos, pois Heinrich morreu logo depois, de causas naturais.

Eu mantive os segredos de suas táticas, não os revelei por relatório e, por consequência, tive uma carreira meteórica dentro do partido; me tornei diretor geral da Gestapo brasileira em pouco menos de cinco anos. Dissimulei muito bem, ninguém suspeitava de minha verdadeira natureza: um diretor dissidente.

Alexandre JCF Jr é um escritor em ascensão com várias grandes obras em produção, que são, em sua predominância, dos gêneros de fantasia, ficção-cien- tífica e ficção medieval; além de também ter uma dúzia de contos variados. Também cria conteúdo digital em seu blog e vídeos curtos no TikTok e Instagram. Fique atualizado nos seus projetos seguindo-o nas redes sociais.

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