Select 42

Page 114

EM DESCONSTRUÇÃO / CENSURA

A VOZ DO RALO É A VOZ DE DEUS MÁRION STRECKER

Juliana Wähner na performance do coletivo És Uma Maluca apresentada na rua em 14/1/19, depois de ser censurada na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro

A IDEIA ERA JUNTAR DEZ ESCRITORES DA PERIFERIA DO RIO DE JANEIRO E CHAMAR DEZ ARTISTAS VISUAIS PARA INTERPRETÁ-LOS. Convidado pelo projeto Literatura Ex-

posta, o coletivo És Uma Maluca, nascido em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, escolheu interpretar “Baratária”, conto de Rodrigo Santos sobre uma mulher que teve baratas introduzidas na vagina em sessão de tortura nos anos 1960. Fizeram uma instalação que consistia num bueiro cercado por 6 mil baratas de plástico, com um aparelho de som que reproduzia, sem manipulação, falas do capitão reformado Jair Bolsonaro. Entre elas, aquela em que o hoje presidente da República enaltece o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, único brasileiro declarado torturador pela Justiça. Comandante do DOI-Codi, órgão de repressão política da ditadura militar brasileira (1964-1985), Ustra chefiou espancamentos, choques, afogamentos, atropelamentos e ocultação de cadáver de opositores do regime. A obra foi censurada. “Isso eu não vou permitir. O presidente foi eleito pela maioria dos brasileiros e merece respeito”,

argumentou o diretor da Casa França-Brasil, Jesus Chediak, que sediaria a exposição. O coletivo decidiu então substituir a voz de Bolsonaro por uma receita de bolo, num procedimento que rememora o que os jornais faziam quando eram censurados durante a ditadura. A performance que fariam junto ao bueiro na abertura da exposição foi transferida para o dia do encerramento. Só que não ocorreu. “O motivo do fechamento da Casa França-Brasil neste domingo (13/1) deu-se pelo fato de os responsáveis pelo projeto Literatura Exposta terem programado uma performance de duas mulheres nuas, uma delas expelindo baratas pela boca. Impedimos que isto acontecesse porque não estava no contrato”, declarou Chediak. “Fecharam a nossa exposição um dia antes da data oficial, como forma de impedir que as performances acontecessem. Comuniquei com antecedência o teor das performances à direção da Casa, foi autorizado e ontem à noite enviaram esse comunicado. Este é o governo que temos. A arte vai sobreviver aos ignorantes”, reagiu o curador artístico Álvaro Figueiredo. A notícia espalhou-se como rastilho de pólvora. O coletivo decidiu fazer a performance na rua, em frente à Casa França-Brasil, que se transformou em ato de repúdio à censura. A Polícia Militar chegou com fuzis e escopetas, pronta para levar em cana quem estivesse nu, enquanto o público reagia citando o artigo 5º da Constituição e a Lei Municipal do Artista de Rua. A performance foi transmitida ao vivo pela internet e coberta pela grande imprensa. A performer Juliana Wähner ficou imóvel, deitada ao lado do bueiro, com baratas de plástico na calcinha. “É exatamente por atuar no campo dos poderes simbólicos que acreditamos na sua potência transformadora”, disse o coletivo que desconstruiu a censura. FOTO: EMERSON GUIMARÃES, CORTESIA ÉS UMA MALUCA

SELECT.ART.BR

MAR/ABR/MAI 2019


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.