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A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A

Venn Diagrams (Under The Spotlight), 2011, de Amalia Pica DEZ/JAN/FEV 2020 ANO 09 EDIÇÃO 45

LATINX Fricções entre as produções artísticas chicanxs, latinxs, queer , mestiçxs e representantes de uma América Latina em convulsão

CECILIA VICUÑA

XIMENA GARRIDO-LECCA

11a BIENAL DE BERLIM

ANDREA GIUNTA

TEREZA COSTA RÊGO


O GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, POR MEIO DA SECRETARIA DE CULTURA E ECONOMIA CRIATIVA, E IOCHPE-MAXION APRESENTAM

BRASIL NATIVO/ BRASIL ALIENÍGENA Anna Bella Geiger, Brasil nativo/Brasil alienígena, 1976 –1977

PATROCÍNIO


Visite a exposição no MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO ASSIS CHATEAUBRIAND 29.11.2019 - 1.3.2020 Av. Paulista, 1.578 masp.org.br Visite a exposição no SESC AVENIDA PAULISTA 30.11.2019 - 1.3.2020 Av. Paulista, 119 sescsp.org.br

CORREALIZAÇÃO

REALIZAÇÃO


O

marketplace para comprar e vender obras de arte online.

www.blombo.com



42

56

IDENTIDADES

REPORTAGEM

O termo define população com origem étnica na América Latina e abre um campo de interseções identitárias entre afrodescendentes, indígenas, feministas, queer e trans

EXPOSIÇÃO PROCESSO A 11 a Bienal de Berlim inspira-se em Flávio de Carvalho para uma proposta coletiva e experimental

LATINX

If I Were A... [Si Yo Fuera Una...], 2003, .instalação de Elia Alba

70

76

80

96

ENSAIO

HERANÇAS

HISTÓRIA DAS EXPOSIÇÕES

PERFIL

PERSONIFICAÇÃO DO MAL

REALISMO X ABSTRACIONISMO

IDENTIDADE LATINA

UMA MODERNISTA NO RECIFE

Beatriz Lemos pensa os feminismos

A obra de Amalia Pica e

Desde 1938, exposições

A pintora Tereza Costa

na América Latina hoje, articulando

Thiago Martins de Melo

internacionais tentam

Rêgo desafia os padrões

raça, etnia, classe, gênero,

em relação às vanguardas

definir uma expressão

masculinos no meio artístico

sexualidade e geopolítica

modernas latino-americanas

comum à arte da região

e social pernambucano

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DEZ/JAN/FEV 2020


92 ENTREVISTA

ANDREA GIUNTA Curadora da 12 a Bienal do Mercosul discute a multiplicidade de feminino e os sistemas excludentes da arte

48 CURADORIA

COR E SENSUALIDADE Estereótipos de uma identidade latinoamericana no sistema de arte globalizado

62 PORTFÓLIO

XIMENA GARRIDO-LECCA A artista peruana traz para a 34

Bienal de São Paulo obra que confronta produção industrial e ancestralidade

34 PORTFÓLIO

CECILIA VICUÑA Artista chilena selecionada para a 11 a Bienal de Berlim transfere saberes indígenas para obra em pintura e escultura

SEÇÕES

a

6 12 22 23 26 28 30 100 114

Editorial Da Hora Livros Colunas Móveis Acervos Itaú Cultural Mundo Codificado Fogo Cruzado Reviews Em Construção

FOTOS: CORTESIA MUSEO DEL BARRIO/ ROB VERF/ BRUNO LOPES, KUNSTHALLE LISSABON/ DIVULGAÇÃO/ CORTESIA DA ARTISTA, LEHMANN MAUPIN


E D I TO R I A L

6

ENSAIOS SOBRE INTERSEÇÕES Durante a ditadura civil-militar na Argentina

povo Kuna: Abya Yala (Terra Madura, Terra em

(1976-1983), a matemática foi considerada

Florescimento ou América).

tão subversiva quanto as ciências humanas.

Como coloca o artista Fernando Lindote, na

O governo temia que o conceito matemático

seção Fogo Cruzado, optar por apenas uma das

de interseção levasse a uma perigosa união da

etnias que se cruzam em nossas existências

sociedade e a uma conspiração antiditadura. A

latinas seria prematuro e superficial. Afinal,

consequência imediata desse delírio paranoico

sabemos que a homogeneidade da América

e repressor foi a proibição do ensino da teoria

Latina é uma invenção do Ocidente, como

dos conjuntos nas escolas.

coloca Cristiana Tejo ao apresentar sua

Na edição #45 da seLecT, em que estudamos

pesquisa sobre pedagogias radicais de

os vínculos, laços e interseções entre as

artistas mulheres latino-americanas. Portanto,

identidades latino-americanas, recorremos

expandido o entendimento do que Abya Yala

então como imagem de capa a uma obra

significa, a América Latina passaria a incluir

da artista argentina Amalia Pica, que

também os Estados Unidos, país onde anglo-

interpreta os Diagramas de Venn – método de

americanos e latino-americanos convivem e

simbolização gráfica da teoria dos conjuntos.

criam fricções nos debates em torno de raça e

Ao construir uma edição sobre o que nos

cultura, como coloca Rodrigo Moura no texto El

aproxima, não negamos o que nos diferencia,

Museo Goes Latinx.

mas o que nos afasta enquanto humanidade:

A seLecT #45 é uma construção coletiva,

o racismo, a misoginia, a transfobia, os

coeditada pela crítica e curadora chileno-

processos excludentes.

brasileira Daniela Labra. No contexto desta

Assim como as teorias pós-feministas

edição, encontramos forte reverberação dos

invalidaram o feminismo no singular –

nossos trabalhos no termo latinx. Apropriamos

estabelecido em bases cis-brancas-europeias

o termo certos de que seus significados se

–, nos propusemos aqui a pensar as Américas

expandem para além do contexto em que foi

Paula Alzugaray

Latinas no plural. E que venham escritas em

criado, para se referir a um território em que a

Diretora de Redação

português, em espanhol ou no idioma do

pluralidade não exclui as singularidades.

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DEZ/JAN/FEV 2020


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Ao ser convidada para esta coeditoria, sugeri

sentido apontamos para a impossibilidade e a

tratar de temáticas relativas à produção

impertinência de tal definição.

artística e cultural da região latino-americana,

Uma vasta conjuntura indefine o significado

por ser um tema que ainda carece explorar,

de identidade Latina ou Latinx, e as práticas

conhecer e refletir criticamente, sobretudo

artísticas e as reflexões históricas aqui

no Brasil, onde a noção de pertencimento

presentes oferecem suporte sensível para

identitário não é a de latino-americanidade.

processos prementes de desconstrução

Por sua vez, tratar da produção cultural

crítica das narrativas de dominação.

do bloco implicaria forçosamente olhar

Coincidentemente, nos meses de elaboração

processos históricos que conformam o

da seLecT #45, eventos de convulsão social

Novo Mundo – essa invenção colonial que

explodiram após décadas no Chile e na

enriqueceu reinos e Estados europeus, cujo

Bolívia, acompanhando reviravoltas de poder

projeto civilizador criou anomalias sociais

e representatividade em curso já há algum

ainda em metamorfose.

tempo no Brasil e, em especial, na Venezuela.

Esta edição assume o Brasil como parte do

Ao encerrar esta edição, a Colômbia dava

bloco latino-americano, em um levantamento

sinais de caos social em novembro de 2019.

crítico de arte contemporânea de países da região. Foram investigados artistas, movimentos culturais, teóricos, ativistas, iniciativas independentes, de pesquisa, e outros, que refletem aspectos históricos, humanos, estéticos, políticos e culturais plurais, conectados por uma matriz colonial semelhante. No sistema da arte internacional, o rótulo genérico de Arte Latino-Americana é usado para representar uma produção de

Daniela Labra

arte como se esta fosse homogênea, e nesse

Editora convidada


EXPEDIENTE

8

EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY

DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY DIREÇÃO DE ARTE: RICARDO VAN STEEN REDATORA-CHEFE: LUANA FORTES REPORTAGEM: LEANDRO MUNIZ DESIGNER: CHRISTIAN TOLEDO CECILIO

COLABORADORES PROJETO GRÁFICO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO COPY-DESK E REVISÃO

Beatriz Lemos, Bernardo José de Souza, Bruno Albertim, Cristiana Tejo, Daniela Labra, Fabio Luis Barbosa dos Santos, Rodrigo Moura, Rubens Ricupero Ricardo van Steen e Cassio Leitão Camila Piccirillo Hassan Ayoub

CONTATO

faleconosco@select.art.br PUBLICIDADE

Três Editorial Ltda. Rua William Speers, nº 1.088 - São Paulo, SP CENTRAL DE ATENDIMENTO

(11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 OUTRAS CAPITAIS: 4002.7334 DEMAIS LOCALIDADES: 0800-888 2111 (EXCETO LIGAÇÕES DE CELULARES) WWW.SELECT.ART.BR

SELECT (ISSN 2236-3939) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661-7320 COMERCIALIZAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO: Três Comércio de Publicações Ltda.: Rua William Speers, 1.212, São Paulo - SP; IMPRESSÃO: Oceano Indústria Gráfica Ltda., Rodovia Anhanguera, Km 33, Rua Osasco, nº 644, Parque Empresarial, Cajamar - SP, CEP: 07750-000

PAT R O C Í N I O :

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DEZ/JAN/FEV 2020

REALIZAÇÃO:


o ovo e a galinha anna bella geiger . claudia andujar . claudio tobinaga cildo meireles . gabriela noujaim . ivens machado jeane terra . jimson vilela . leandra espírito santo letícia parente . roberta carvalho . rubens gerchman ursula tautz . waltercio caldas abertura

curadoria ulisses carrilho

29 nov - 19h visitação até 20 fev 2020

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www.simonecadinelli.com | Rua Aníbal de Mendonça, 171 - Ipanema | 21 3496-6821


COLABORADORES

10

BRUNO ALBERTIM Jornalista e antropólogo pernambucano. Autor de, entre outros, Tereza Costa Rêgo - Uma mulher em três tempos. Ganhou um Prêmio Esso com a série de reportagens Nordeste - Identidade Comestível. perfil P 9 6

RODRIGO MOURA é curador-chefe do Museo del

RUBENS RICUPERO Jurista e diplomata de carreira. Ocupou as Embaixadas do Brasil em Genebra, Roma e Washington. É autor de livros e ensaios sobre relações internacionais, desenvolvimento econômico e comércio mundial.

Barrio, em Nova York. Foi curador do Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte, atuou como curador e diretor artístico do Inhotim e foi curador adjunto de arte brasileira no Masp. Vive em Nova York. identidades P 4 2

FABIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS Doutor em história, professor da Unifesp e autor de Uma História da Onda Progressista SulAmericana (1998-2016) (Elefante, 2019), entre outros livros.

coluna móvel P 24

mundo codificado P 2 8

CRISTIANA TEJO Curadora independente, doutoranda em Sociologia pela UFPE e cofundadora do Espaço Fonte – Centro de Investigação em Arte. Foi diretora do Mamam, no Recife, e curadora de artes visuais da Fundaj. coluna móvel P 2 3

BERNARDO JOSÉ DE SOUZA Curador, professor e crítico de arte. Foi curador residente da Fundação Iberê Camargo e curador do Espaço na 9 a Bienal do Mercosul (2013). Fez curadorias para Despina, Festival Sesc Videobrasil, EAV Parque Lage e ArtRio. Vive em Madri. crítica P 1 0 0 SELECT.ART.BR

DEZ/JAN/FEV 2020

BEATRIZ LEMOS Curadora e pesquisadora. Integrou as equipes curatoriais da Bolsa Pampulha 2018/2019 (Belo Horizonte, MG) e da 3 a Frestas – Trienal de Artes (Sorocaba, SP). É idealizadora da plataforma de pesquisa Lastro – Intercâmbios Livres em Arte. ensaio P 7 0



S Ã O PA U L O

LIMIARES Individual de Regina Silveira, de 25/1 a 12

10/3/2020, Paço das Artes, Rua Albuquerque Lins 1.345 | pacodasartes.org.br O Paço das Artes completa 50 anos de existência e comemora a abertura de sua finalmente conquistada sede definitiva com uma exposição individual de Regina Silveira. A mostra tem curadoria da diretora da instituição Priscila Arantes e traz entre as obras apresentadas dois trabalhos inéditos criados para a ocasião, chamados Dobra e Cascata (à dir., sill do vídeo Limiar, 2015). Depois de passar por espaços na Cidade Universitária e no Museu da Imagem e do Som, o Paço aterrissa no antigo casarão Nhonhô Magalhães, no bairro paulistano de Higienópolis, reformado pelo arquiteto Álvaro Razuk. Nesta nova etapa, a instituição passa a se configurar como museu com o Acervo MaPA, que será formado por obras de arte contemporânea exclusivamente digitais e trabalhos reproduzíveis. Outra novidade será a retomada da Residência Artística do Paço, que a partir de 2020 será internacional. LF

RIO DE JANEIRO

DUPLO OLHAR: PINTURA E FOTOGRAFIA MODERNAS BRASILEIRAS Exposição coletiva, de 5/12 a 26/4/2020, Casa Roberto Marinho, R. Cosme Velho, 1.105 | casarobertomarinho.org.br Os curadores Marcia Mello e Paulo Venancio Filho selecionaram cerca de 60 pinturas e 160 fotografias da Coleção Roberto Marinho de artistas como Alberto Guignard, Alfredo Volpi, Hélio Oiticica, Iberê Camargo, Geraldo de Barros, German Lorca (à esq., Anturios, 1960), Marc Ferrez, Marcel Gautherot, Miguel Rio Branco, Pierre Verger, Thomaz Farkas e Tarsila do Amaral, divididos em sete núcleos. As relações entre a imagem, suas mediações, o sujeito e o mundo real, tanto na produção pictórica quanto na produção fotográfica, estão entre as perguntas centrais propostas pelas associações entre as obras. Fotógrafos e pintores chegam em sínteses visuais parecidas a partir do século 19, quando a superfície da imagem se impõe a qualquer efeito ilusionista. Ao longo da história da fotografia foram refeitos esquemas compositivos, efeitos de luz ou de construção cromática que buscavam reproduzir características da pintura clássica. A exposição Duplo Olhar busca confrontar esses dois campos de produção de imagem, com ênfase em como o contexto social e econômico do Brasil atravessa as obras escolhidas. LM

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DEZ/JAN/FEV 2020

FOTOS: DIVULGAÇÃO/ ACERVO LORCA ESTÚDIO


RECIFE

MEMÓRIAS DA RESISTÊNCIA

13

Individual de Rose Klabin, até 19/1/2020, MAMAM, Rua da Aurora, 265 | facebook.com/mamamrecife Com curadoria de Douglas de Freitas, a exposição marca uma reflexão da artista Rose Klabin sobre a sua ascendência lituana e insumos da história de sua família, produtora de papel. Do universo da indústria a artista apropria-se das engrenagens para a produção de esculturas como Sutartine (2018), terS Ã O PA U L O

mo que designa um canto lituano ento-

OJIDU – ÁRVORE DA VIDA WARAO

ado apenas por mulheres, usado como

Exposição coletiva, até

mármore acopladas às engrenagens.

20/12/2019, Museu A CASA do Objeto

Já no vídeo Suspensão (2016), a artis-

Brasileiro, Av. Pedroso de Morais, 1.216 |

ta envolve pedras com celulose crua,

acasa.org.br

gerando um contraste entre materiais.

título de uma série de esculturas em

(na imagem, a fotografia 3064 Peles, A exposição reúne peças feitas por um

2019) A natureza dos materiais e suas

grupo de mulheres venezuelanas da etnia

relações com o corpo, em especial o

indígena Warao refugiadas no Brasil. En-

feminino, estão entre os problemas

tre os objetos expostos há cestos, vasos,

centrais de Rose Klabin. LM

chapéus e bolsas, feitos com a palha da palmeira buriti (acima). Os recursos gerados na aquisição das peças expostas vão para refugiados da etnia Warao no Brasil, um dos casos de grande fluxo migratório da população venezuelana para o País. Em estimativa veiculada pela divulgação da exposição, 4,5 mil pessoas dessa etnia chegaram ao Brasil desde 2016. As artesãs Marcelina Bermudez e Herminia Nuñez de Mariano chegaram há menos de dois anos, com maridos e filhos. O artesanato para a etnia Warao é uma atividade de extrema importância em duas instâncias: a memória e a subsistência. O saber da tecelagem e do manejo com o buriti é algo que passa de mãe para filha. “Aprendi e minhas filhas também têm o direito de aprender esse trabalho. Elas têm de aprender para que não se perca essa cultura”, afirmou Herminia Nuñez de Mariano. LF

FOTOS: DIVULGAÇÃO


MAIRINQUE

TRANSPOSIÇÃO Individual de Marcia Pastore, a partir de 30/11, FAMA Campo, Endereço| 14

famamuseu.org/famacampo A Fundação Marcos Amaro amplia sua atuação no fomento à arte e inaugura a FAMA Campo, que lida com obras que interferem, de modo permanente ou transitório, na paisagem de um parque de 100 mil metros quadrados, em Mairinque, no interior de São Paulo. Além de pinturas, esculturas e instalações de grandes dimensões, a instituição passa a integrar obras que são uma expansão da ideia de land art, na medida em que interferem e transformam a paisagem. A primeira artista convidada para desenvolver um projeto no FAMA Campo foi Marcia Pastore (acima, Transposição, 2019), que deslocou grandes porções de terra do espaço, gerando um corte geométrico na paisagem, no qual o volume de terra retirado de um lado do espaço foi transposto para o outro lado, formando um bloco arquitetônico fechado que cria sombras, reentrâncias e volumes, mas sem entradas ou saídas. LM

S Ã O PA U L O

POR SER DE LÁ, DE ALAN ADI, CANASTRA DA EMÍLIA, DE ARTHUR CHAVES Exposições individuais, até 25/1/2020, Galeria Superfície, Rua Oscar Freire, 240 | galeriasuperficie.com.br “Por ser de lá, do sertão, lá do cerrado, da caatinga, do roçado. Eu quase não saio, eu quase não tenho amigos, eu quase não consigo ficar na cidade sem viver contrariado”, assim começa a canção Lamento Sertanejo (1973), de Gilberto Gil e Dominguinhos. A música faz um retrato do migrante nordestino sem recair em clichês e caricaturas. Esse esforço de representação é um dos principais assuntos que o artista sergipano Alan Adi leva aos seus trabalhos. A individual Por Ser De Lá pega emprestado o primeiro verso da canção para demonstrar seu interesse pela música popular nordestina. Com texto de Ana Maria Maia, a exposição reúne obras recentes de Adi em que ele usa capas de discos como fontes para abordar deslocamentos populacionais inter-regionais (à dir., Nordeste É Ficção, 2014). O espaço também abre simultaneamente a individual Canastra da Emília, do carioca Arthur Chaves, com texto de Raphael Fonseca. LF

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DEZ/JAN/FEV 2020

FOTOS: HUGO CURTI/ DIVULGAÇÃO


Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, apresenta:

Terry Winters

Individual

auroras Av. São Valério, 426

Coletiva

Olhão Rua Barra Funda, 288

Realizacão:

PROJETO.AS P Associação dos Artistas e Produtores do Centro de São Paulo


RECIFE

ANTES DO CIO DOS GATOS Exposição coletiva, até 25/1/2020, Galeria Amparo 60, Rua Artur Muniz, 82, 1º andar | amparo60.com.br 16

Com curadoria de Bruno Albertim, a exposição reúne trabalhos das artistas pernambucanas Tereza Costa Rêgo, Clara Moreira e Juliana Lapa, sobretudo pinturas figurativas com protagonistas femininas. O ponto de partida é a produção de Costa Rêgo, a veterana do grupo, hoje com 90 anos, que exibe na mostra sete obras inéditas (leia perfil da artista na pág. 96), colocadas em conversa com obras de Clara Moreira e Juliana Lapa. A nudez e as inquietações acerca do feminino são elos que unem as produções das três aristas. Enquanto Clara Moreira retrata mulheres como pássaros que estão prestes a levantar voo, simbolizando a iminência da libertação, Juliana Lapa mira na representação metafórica da ideia de fecundidade, a partir de imagens de corpos, florestas e úteros. Por ocasião da exposição, Tereza Costa Rêgo, Clara Moreira e Juliana Lapa produziram um retrato em Olinda (à

esq.) para marcar o encontro entre elas, que foi transformado em cartaz. LF

S Ã O PA U L O

ESPÉCIES RARAS Individual de Tony Cragg, até 1º/3/2020, MuBE, Rua Alemanha, 221 | mube.space O escultor Tony Cragg apresenta 43 esculturas de grandes dimensões (à dir., escultura

em Gothenburg, 2015) e 70 desenhos inéditos no Brasil em uma retrospectiva itinerante que inclui trabalhos produzidos desde os anos 1980. Cragg é parte de uma geração de artistas britânicos que lidam com a escultura como principal mídia, trabalhando tanto com materiais clássicos, como bronze e cerâmica, quanto com outros próprios ao mundo contemporâneo, como plástico e aço. Entre os recursos recorrentes em sua produção estão a construção de figuras por camadas, mais ou menos distorcidas, ou pelo acúmulo de objetos organizados no espaço, como desenhos. O resultado são volumes com reentrâncias e contornos bem definidos, de estranhas formas, entre o geométrico e o orgânico, definidas pelas qualidades intrínsecas aos materiais, como seu peso, maleabilidade ou cor. LM

S Ã O PA U L O

FRANZ WEISSMANN: O VAZIO COMO FORMA Individual, até 9/2/2020, Itaú Cultural, Av. Paulista, 149 | itaucultural.org.br Com mais de 800 trabalhos produzidos entre os anos 1940 e o início do século 21 e curadoria de Felipe Scovino, a retrospectiva de Franz Weissmann (à esq., retrato em ateliê) ocupará os três andares do Itaú Cultural. A organização dá-se de forma não cronológica, mas por agrupamentos semânticos, como a passagem da figuração para a abstração, os projetos, os desenhos ou as esculturas públicas. A maior parte das obras em exposição é de maquetes de projetos, que também funcionam como esculturas de mesa, estabelecendo relações com o espectador em uma escala intimista. Além das conhecidas esculturas de metal colorido cortado e dobrado, esculturas de metal amassado dão outro olhar sobre a produção de Weissmann, mostrando a complexidade de sua prática escultural. LM

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FOTOS: DIVULGAÇÃO/ CHARLES DUPRAT/ WILTON MONTENEGRO


/inst.tomie.ohtake

/institutotomieohtake


S Ã O PA U L O

ANNA BELLA GEIGER: BRASIL NATIVO/ BRASIL ALIENÍGENA 18

Individual, até 1º/3/2020, Masp, Av. Paulista, 1.578, e Sesc Avenida Paulista, Av. Paulista, 119 | masp.org.br O Masp e o Sesc Avenida Paulista unem-se para exibir a maior exposição individual de Anna Bella Geiger já feita em São Paulo. Com curadoria de Tomás Toledo e Adriano Pedrosa, a mostra traz 180 trabalhos, entre os quais há uma relevante parte da série Brasil Nativo/ Brasil Alienígena (acima, fotografia que integra a série, 1976-1977), que trata sobre o passado colonial brasileiro e a representação de povos indígenas. No museu são apresentados eixos temáticos em nove salas, que compreendem as diferentes fases da diversa obra da artista carioca, que tem hoje 86 anos. Está presente o conjunto de gravuras produzidas nos anos 1960, da fase de sua obra apelidada de “visceral”, assim como uma bela apresentação de trabalhos que usam a cartografia como ponto de partida. Três grandes e relevantes instalações ficam a cargo do Sesc, que mostra Circumambulatio (1972), Indiferenciados (2001) e Mesa, Frio e Vídeos Macios (1981), que foi apresentada apenas uma vez, na 16ª Bienal de São Paulo. O trabalho traz uma mesa sobre a qual estão impressas manchas semelhantes a mapas ou padrões de camuflagem, que se repetem pelas paredes e em dois vídeos. LF

BRASÍLIA

TRIANGULAR: ARTE DESTE SÉCULO Exposição coletiva, de 6/12 a 6/2020, CAL UnB, SCS Q. 4 Sala 103 | acervocal.unb.br A mostra, com curadoria de Ana Avelar e Gisele Lima, é uma apresentação de obras recém-adquiridas para o acervo da Casa da Cultura da América Latina, da Universidade de Brasília, com artistas como Ana Teixeira, Aline Motta, Bárbara Wagner, Dalton Paula, Guerreiro do Divino Amor, Laercio Redondo, Lyz Parayzo (na imagem, still de Papai Está Descansando, 2016) e Sérgio Sister, entre outros, que doaram suas obras para a instituição. O título da exposição faz referência à “abordagem triangular”, metodologia cunhada pela educadora Ana Mae Barbosa para o ensino da arte. A exposição tem, portanto, caráter centralmente educativo e de formação sobre a arte contemporânea, em especial por se tratar de uma exposição dentro de um museu público e universitário, com demandas de pesquisa e reflexão menos imediatas que as instituições privadas. Nos seis meses em que estará em cartaz, a exposição terá ativações com palestras, encontros e debates, que busquem ampliar a compreensão das obras e sua relevância no contexto atual. LM

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DEZ/JAN/FEV 2020

FOTOS: DIVULGAÇÃO


O projeto Ocupação reconhece grandes nomes da arte e da cultura brasileiras

GLAUCO

LAERTE

CONCEIÇÃO EVARISTO

ANGELI

HAROLDO DE CAMPOS

HILDA HILST

ANTONIO CANDIDO

MÁRIO DE ANDRADE

MANOEL DE BARROS

PAULO LEMINSKI

NELSON RODRIGUES

Entre no site e acesse conteúdos exclusivos dos mais de 45 homenageados. www.itaucultural.org.br/ocupacao


20

S Ã O PA U L O

ALLEGRO Individual de Guto Lacaz, até 29/3/2020, Chácara Lane, Rua da Consolação, 1.024 | museudacidade.prefeitura.sp.gov.br/sobre-mcsp/chacara-lane Allegro é o nome dado ao movimento musical no qual há um ligeiro andamento, em torno de 120 e 130 batidas por minuto. Uma metáfora precisa para a mostra panorâmica dos mais de 40 anos de produção do artista paulistano Guto Lacaz, com curadoria de Douglas de Freitas. Lacaz produz desde desenhos, eventualmente transpostos para gravuras e publicações, poesias visuais, até esculturas com objetos cotidianos e grandes instalações (acima, Pequenas Grandes Ações, 2003). Uma série de traquitanas inéditas é utilizada para criar movimento em objetos banais, como guarda-chuvas ou CDs, diversas delas sendo executadas pela primeira vez. Os deslocamentos sutis que Lacaz promove nos objetos e suas representações geram um humor enérgico sobre seus sentidos, bem como indicado no título da exposição. LM

RIO DE JANEIRO

O OVO E A GALINHA Exposição coletiva, até 20/2/2020, Simone Cadinelli Arte Contemporânea, Rua Aníbal de Mendonça, 173, casa 4 | simonecadinelli.com Com curadoria de Ulisses Carrilho, a exposição presta homenagem ao centenário do nascimento da escritora Clarice Lispector (19201977) e toma emprestado o título do conto O Ovo e a Galinha (1964). A investigação proposta pelo curador é a hipótese de que o desejo também opera entre objetos e não só entre humanos. Trabalhos de 14 artistas são exibidos aos pares, para que sejam percebidos diálogos e atrações. Importa mais a Carrilho que sejam notadas as características que as obras têm em comum, do que aquilo que elas têm de singular. Entre os artistas que integram a coletiva estão grandes nome da arte brasileira, como Cildo Meireles, Leticia Parente e Rubens Gerchman, em conversa com os sete artistas contemporâneos representados pela Simone Cadinelli Arte Contemporânea, como Roberta Carvalho (à esq., Ilha, 2019), Jimzon Vilela e Leandra Espírito Santo. LF

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DEZ/JAN/FEV 2020


S Ã O PA U L O

MURAKAMI POR MURAKAMI Individual, de 4/12 a 15/3/2020, Instituto Tomie Ohtake, Av. Brigadeiro Faria Lima, 201 | institutotomieohtake.org.br 21

Cerca de 30 trabalhos de Takashi Murakami, incluindo pinturas de grandes dimensões, são apresentados ao público brasileiro, introduzindo o universo do artista japonês que condensa a energia dos animes, a placidez da cultura tradicional japonesa e a cultura pop em uma complexa produção pictórica (abaixo, Murakami Arhat Robot, 2015). Com um volume de produção quase industrial, no qual cerca de 100 assistentes trabalham nas múltiplas camadas de tinta das pinturas e gravuras, Murakami é um ponto-chave de compreensão das fusões entre a arte do Oriente e do Ocidente na contemporaneidade, com referências que vão de Francis Bacon ao zen-budismo. LM

S Ã O PA U L O

ENSAIO ABERTO Individual de Luiza Gottschalk, até 17/12, Praça das Artes, Rua Conselheiro Crispiniano, 378 | facebook.com/pracadasartes Pinturas que misturam imagens diluídas com figuras bem delimitadas e icônicas, como aves de rapina, são o cenário para o diálogo entre as artes plásticas e a dança promovido pela artista Luiza Gottschalk. A artista transita entre diversas práticas, da produção executiva de peças de teatro e exposições a ações com crianças de escolas públicas. Sua exposição na Praça das Artes é uma reunião de seus diversos projetos e interlocutores, como a curadora Ana Paula Cohen, o arquiteto Tito Ficarelli ou o coreógrafo Emílio Rogê, que faz apresentações com dançarinos dentro da instalação. No espaço formado pelas pinturas (acima, Montanhas Que Choram, 2019), a dança e o corpo dos espectadores, uma ideia de obra de arte total é atualizada, assim como os trânsitos entre figura e fundo da pintura são expandidos para as relações entre o espaço virtual da tela e o real. LM

FOTOS: DIVULGAÇÃO/ TADASHI ONO, CORTESIA DO ARTISTA, PERROTIN, KAIKAI KIKI CO


SERTÃO: 36O PANORAMA DA ARTE BRASILEIRA Org. Júlia Rebouças, MAM SP, 224 págs., R$ 65 O catálogo reproduz vistas da exposição que contava com o conceito de sertão como experimentação e resistência, e não apenas contingente geográfico, assim como depoimentos dos próprios artistas, da curadoria e de pesquisadores convidados.

De Feco Hamburger, Laranja

AI-5 50 ANOS: AINDA NÃO TERMINOU DE ACABAR

Original, R$ 50

Org. Paulo Miyada, Instituto Tomie

De um fotógrafo espera-se

Ohtake, 585 págs., R$ 100

que observe e fotografe.

O livro apresenta pesquisas,

De um astrônomo, que

reproduções de obras e

observe, calcule e projete.

fac-símiles de documentos

Mas o que temos aqui é

que estavam presentes na

O FALCÃO PEREGRINO

um fotógrafo que projeta. Feco Hamburger apropriou o nome

exposição homônima em

de uma sonda japonesa como título de seu primeiro livro. Com

2018, discutindo os horrores

imagens e palavras projetadas em páginas, ele questiona o que

da censura durante a ditadura

é a fotografia e o que diferentes olhares enxergam e imaginam

e seus ecos no presente.

através dela. Desdiz a fotografia, desenhando pontos de interrogação no céu.

OS ANOS EM QUE VIVEMOS EM PERIGO

PAUL KLEE: EQUILÍBRIO INSTÁVEL

Org. Marcos Moraes, MAM SP, 139

Org. Roberto Moreira S. Cruz,

págs., R$ 40

Ipsis, 304 págs., online

O catálogo reproduz parte das

Com reproduções de cerca

obras que estavam na expo-

de 120 obras do acervo

sição e amplia a pesquisa

do Zentrum Paul Klee,

sobre como os artistas

em Berna, o catálogo da

atuantes no Brasil entre os

exposição do CCBB traz

anos 1960 e 1970 reagiram

desenhos, pinturas, os

à ditadura, de forma

fantoches, assim como

mais ou menos direta,

ensaios do artista suíço e de

THIAGO MARTINS DE MELO

contundente ou irônica.

pesquisadores convidados.

Org. Samantha Moreira, Capivara Contemporânea, 301 págs., R$ 110

PUÑADO

O livro reproduz em

Org. Laura Del Rey e Raquel Dommarco Pedrão,

detalhes a pintura do

Incompleta, 190 págs., R$ 40

maranhense Thiago

Puñado é uma revista sobre literatura

Martins de Melo, cujas

latino-americana e caribenha sem

obras replicam a dinâmica

periodicidade definida escrita apenas por

de sincretismos religiosos

mulheres. A edição de aniversário conta

e misturas de tradições

com colaboradoras como Taís Bravo, Paula

culturais diversas da

Porroni e Gabriela Aguerre.

sociedade brasileira.

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CO LU N A M Ó V E L / C R I ST I A N A T E J O

CONSOLIDAR O CONHECIMENTO SOBRE AS PEDAGOGIAS RADICAIS de experimentação artística e pedagógica na prática de artistas do período, em que muitas vezes a obra é uma ação coletiva ou decorrente de processos educacionais. A território muito diverso culturalmente. Há muitos pontos primeira etapa contou com o levantamento de experiêncomuns que entrelaçam essa diversidade e a colonialidade cias de artistas no Brasil, na Argentina e no Chile, além de talvez seja a mais marcante variável deste continente. Trapesquisadorxs, pois desejamos construir uma rede. ta-se não apenas de um passado colonial partilhado, mas de O quebra-cabeça que estamos montando é muito complexo uma estrutura extrativista, racista e excludente que permapor vários motivos, sendo os principais: a parca bibliografia nece através dos tempos monográfica sobre artistas sempre com novas roupas. mulheres complica o maAdvém dessa estrutura a peamento inicial de nomes; subalternização deste tera dificuldade em encontrar ritório, já que o centro da registros de atividades pecolonialidade é o Ocidendagógicas dessas artistas, te, o que faz com que os pois esta faceta é sempre países latino-americanos deixada em segundo plano, (em maior ou menor grau) em detrimento das obras mirem-se na Europa e nos e exposições; a cronologia Estados Unidos. Esse, posdas ditaduras nem sempre sivelmente, seja o motivo é coincidente no continende o Brasil olhar mais para te, assim como seu reflexo o Norte Global do que para na vida artística de cada seus vizinhos territoriais e país. No entanto, essas dihistóricos. Conhecer e reAnna Bella Geiger e alunos no MAM Rio, em 1972. Artista está entre os nomes da pesquisa ficuldades são a mola prolacionar-se com a história pulsora do projeto e certifie a arte de outros países latino-americanos, além de recocam que estamos num caminho importante e pouco explorado. nhecer a produção artística de grupos subalternizados do Sabemos que temos uma cartografia incompleta, mas espróprio Brasil e as ferramentas de subalternização, pode ser tes são os nomes iniciais: Anna Bella Geiger, Lygia Pape, uma das formas de quebrar um dos pilares da colonialidade. Celeida Tostes, Maria do Carmo Secco, Yedamaria, Regina A ignorância e o desmantelamento de conexões facilitam a Silveira, Lina Bo Bardi, Mayumi Souza Lima, Teresa Nazar, perpetuação da estrutura de poder. Amélia Toledo, Mirtha Dermisache, Elda Cerrato, Noemi Há um ano tenho tido a oportunidade de estudar artisEscandell, Graciela Carnevale, Margarita Paksa, Marta tas mulheres da América Latina que exerceram prátiMinujin, Virginia Errazuriz, Luz Donoso, Cecilia Vicuña, cas pedagógicas experimentais, graças a um convite da Graça Barrios, Carmen Silva, Delia del Carril (atelier 99), pesquisadora Giulia Lamoni, do Instituto de História da Irene Dominguez e Mónica Bunster. Arte da Universidade Nova de Lisboa. O projeto Artistas O momento atual do continente, em que forças autoritárias e Educação Radical na América Latina: Anos 1960/1970 é retornam e tentam reescrever a narrativa das ditaduras milifinanciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia tares e artistas e educadores são criminalizados (caso brasileide Portugal e conta ainda com a participação da pesquiro), reforça a importância de consolidarmos o conhecimento sadora Margarida Brito Alves, filiada à mesma instituisobre as pedagogias radicais e as experimentações artísticas. ção. O estudo parte do reconhecimento da inter-relação Ligar esses pontos é uma das contribuições possíveis. A AMÉRICA LATINA É UMA ABSTRAÇÃO. OU MELHOR, A AMÉRICA LATINA COMO REGIÃO “HOMOGÊNEA” É UMA INVENÇÃO DO OCIDENTE, tendo em vista que se refere a um

FOTO: ACERVO MAM RIO

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CO LU N A M Ó V E L / RU B E N S R I C U P E RO

A INSATISFAÇÃO CONTINUA VIVA

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riadas terem uma boa cobertura de saúde ou uma educação de qualidade. Mas eu diria, também, que agora é que há a derrota definitiva de Pinochet. O Chile foi a última ditadura militar a ceder lugar na América Latina. Quando o como uma política neoliBrasil e a Argentina beral de êxito e, no caso já tinham governos da Bolívia, também havia civis, o Chile ainda a ideia de que Evo Moraestava com Pinoles tinha logrado não só chet, cuja saída só um governo com crescise deu no fim dos mento econômico, mas anos 1980, comecom baixa inflação e ço dos 1990. E avanços em favor dos ele saiu impondo indígenas e mestiços. condições, como Eram, então, dois cauma Constituisos improváveis, no ção ditada por ele sentido de que não mesmo, dando ao Acima, manifestações nas ruas de Santiago, no Chile; na pág, ao lado, passeata eram nem os dois paSenado uma comem resistência ao governo que tomou posse após golpe na Bolívia íses menos democrátiposição desequilicos nem os dois países brada, favorecendo que menos cresciam que a indústria do ou que menos avanços cobre fornecesse rehaviam tido. É interescursos às Forças Armasante, porque são dois das. Agora, com a exigência casos de orientações ideológicas muito diferentes, um popular de uma nova Constituição e de uma reforma profunda, conservador, de centro-direita, e o outro de centro-esquerda, finalmente temos a derrota definitiva da ditadura militar. Esses com um regime bem progressista. dois fatores – desequilíbrio social e inconformidade com uma Mas existem fatores locais e específicos que pesam. No Constituição que foi mais outorgada do que livremente pactuaChile, o principal fator para a insatisfação popular foi da, como foi feito aqui no Brasil em 1988 – pesaram muito para aquilo que todos os analistas têm realçado: uma política provocar as manifestações no Chile. que há 30 anos deu muita ênfase ao crescimento econôNo caso da Bolívia, de um lado, o que aconteceu foi uma remico e a uma política econômica de tipo liberal, mas que vanche do novo centro econômico do país. Santa Cruz de la foi muito menos atenta às questões do bem-estar social. Sierra é uma cidade muito próxima ao Brasil, que expressa Na previdência social, a lei sobre a aposentadoria, por muito o movimento do agronegócio, que veio do Brasil. A exemplo, acabou sacrificando as pessoas. Já a ênfase transformação da economia em Santa Cruz de la Sierra, da numa abordagem puramente de mercado em relação à mesma forma que ocorre na região limítrofe do Paraguai, vem saúde e à educação deixou a população sem acesso a esdo movimento do agronegócio brasileiro, da cultura da soja, ses dois bens. Não há oportunidades para pessoas assalada pecuária. Santa Cruz substituiu La Paz, que no passado era TODOS PROCURAM ENCONTRAR UM DENOMINADOR COMUM QUE EXPLIQUE OS ACONTECIMENTOS RECENTES QUE ECLODIRAM NO CHILE E NA BOLÍVIA, DOIS PAÍSES QUE SE CONSIDERAVAM CASOS DE ÊXITO, NUM EXTREMO E NO OUTRO. O Chile era visto

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transportes, mas acabaram o grande centro do estanho. Mas há muito tempo adquirindo uma feição maior de contestação ao a economia do estanho estava praticamente lisistema como um todo. Mas nenhum desses moquidada. O que emergiu vimentos, inclusive no na Bolívia, agora, é a pujança de Santa Cruz, Brasil, encontrou uma canalização plena. A que esteve já em revolinsatisfação continua ta aberta contra Evo muito viva. São procesMorales em 2007/2008. sos que ainda não terNa época, a liderança deles não conseguiu se minaram. Atrás disso há o aumento da desiimpor, mas desta vez gualdade, a inconforeles encontraram um midade com os prolíder forte, Luís Ferblemas ambientais, a nando Camacho, que eles chamam o “Mafrustração com o desemprego estrutural. cho Camacho”. O seÉ alta a chance de um gundo fator na Bolívia novo levante no Brasil. é que se trata de uma É alt a a ch an ce de u m n ovo l e van t e Aqui, as manifestações reação contra o que na Rússia, no século 19, o de 2013 também não no B rasil. A s m an i f e s t açõe s de 20 13 levaram a uma satisfaMovimento Populista ção. Algumas das forças chamava de “o povo não le varam a u m a s at i s f ação. que estavam por trás escuro” – os indígenas daquilo, por exemplo, a e os mestiços. E Evo As forças q u e e s t avam p or t rás Morales representou luta contra a corrupção foram m uit o be m m an i p u l adas p o r que se encarnou na Lava essa maioria de mesJato, foram muito bem tiços e índios de ChaB o l s on aro manipuladas por Bolsonapare, uma região perto ro. Agora, as pessoas percede Cochabamba, que é agora a alma da resistência contra o beram que houve manipulação e que não houve melhora. novo governo que tomou o poder depois do golpe. Por outro lado, a manifestação Chama atenção que – pouco tempo atrás no Equador, mais maior de 2013, movida pela insatisrecentemente no Chile e na Bolívia, agora na Colômbia –, fação com a baixa qualidade dos serviços públicos, a deteembora com colorações diferentes, o que mudou a situação dominante foram os movimentos de rua. São mobilizações rioração da vida urbana, dos transportes, a criminalidade, o retrocesso social, nada disso encontrou solução. Os probleparecidas às que estão ocorrendo em muitos lugares. Estamos assistindo no mundo a uma sucessão de movimentos mas reais – quando digo reais, digo desemprego, continuamos com 12 milhões de desempregados –, nada disso acaque, sobretudo, se concentram na América Latina, no Orienbou. As pessoas continuam vivendo mal, tendo de perder te Médio e em alguns países europeus. Em todos eles há características comuns. São movimentos de rua, de milhões de três horas no trânsito, enfrentar a criminalidade. Tudo isso está esperando apenas uma fagulha para acender de novo a pessoas, em rejeição às elites, aos partidos. Todos começaram com protestos contra aumentos de impostos ou taxas de convulsão. Isso está latente, está subjacente. FOTOS: CARLOS FIGUEIROA/ REPRODUÇÃO


A C E R V O S I TA Ú C U LT U R A L

ESFORÇO DESCOLONIAL

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Projetos do Instituto contribuem para a descolonização do pensamento a partir de investigações sobre arquitetura, fotografia, teatro e artesanato VERBETES

NEOCOLONIAL O neocolonial tenta propor novas bases para a modernização da arquitetura no Brasil. A orientação nacionalista do movimento explicita-se na defesa das manifestações artísticas tradicionais como expressões da nacionalidade e elementos de constituição da arquitetura brasileira (...). O interesse renovado pelo estilo colonial nas primeiras décadas do século 20 pode ser observado em diversos países da América Latina, de modo geral associado às comemorações dos movimentos de independência nacional. No México, Peru, Colômbia, Venezuela e países da América Central nota-se a retomada – utópica e, de certo modo, nostálgica – de motivos decorativos, elementos ornamentais e estilos presentes na tradição e cultura dos povos autóctones (incas, maias, astecas etc.), numa tentativa de substituir o vocabulário eclético importado da Europa no século 19. No Brasil, a ausência de uma arquitetura indígena que pudesse ser resgatada impõe a retomada do barroco e do rococó. Ricardo Severo, engenheiro português envolvido com o estilo Neocolonial, prega a necessidade de um retorno às obras de Mestre Valentim e Aleijadinho, bem como às construções do século XVIII português (...).

ARTE PRÉ-COLOMBIANA Consideram-se artes pré-colombianas as manifestações artísticas dos povos nativos da América espanhola antes da chegada de Cristóvão Colombo, em 1492. Tudo o que resta das grandes civilizações do período anterior à colonização do continente americano pelos europeus é sua arte (...). Fazem parte do universo artístico dessas civilizações tanto os templos e casas quanto as esculturas, relevos, pinturas, utensílios domésticos, objetos ornamentais, amuletos e tecidos. (...) Descobertas arqueológicas indicam que o homem está presente na América há pelo menos 20 mil anos. Contudo, são três as principais civilizações ameríndias conhecidas: a mais antiga, maia, a asteca, que é conquistada e destruída pelos espanhóis, e a inca, desenvolvida nos Andes, na América do Sul, nas regiões atuais do Peru, Bolívia e Equador, expandindo-se para partes da Colômbia, Chile e Argentina (...).

+

Links em select.art.br/acervos-esforço-descolonial

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PROJETOS OCUPAÇÃO ARACY AMARAL Entre os projetos de fôlego da vasta obra investigativa da pesquisadora Aracy Amaral estão análises sobre a obra de Tarsila do Amaral ou sobre o papel social da arte, com especial ênfa27

se na discussão sobre modernismo. Segundo a pesquisadora Regina Teixeira de Barros, em entrevista ao Itaú Cultural, uma das principais preocupações de Amaral é a inserção do Brasil no debate e na experiência latino-americana, na medida em que as particularidades linguísticas, culturais e geográficas do País devem ser analisadas em consonância com a experiência dos vizinhos de mesmo passado colonial. Um dos primeiros trabalhos de Aracy foi o livro A Hispanidade em São Paulo (1981), no qual discute a importância da arquitetura hispânica no tipo de construção realizada em São Paulo, a partir de uma rota traçada por Maria de Andrade no início do século 20. Em decorrência da Ocupação no Itaú Cultural em 2017, Amaral reeditou essa pesquisa, atualizando suas investigações.

FÓRUM LATINO-AMERICANO DE FOTOGRAFIA DE SÃO PAULO Desde 2007, o Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo passou por vários formatos, buscando criar um campo compartilhado para a discussão e difusão internacional da fotografia produzida na região. Exposições, debates, leituras de portfólio e encontros compõem o evento. O foco na fotografia foi escolhido pela sua capacidade de registrar e transformar o mundo, com potencial simultaneamente cognitivo, estético e educativo. Uma das motivações para a criação do Fórum foi a busca de pontos de identificação do Brasil com a América Latina. Mas o objetivo se expandiu, contribuindo para a formação de redes tanto no campo da fotografia quanto da literatura, as artes visuais e o cinema. A participação de figuras de referência nesse campo é um modo de qualificar o debate e ampliar as possibilidades de parcerias entre artistas, jornalistas, instituições e outros interessados.

BOI VAGAMUNDO O Boi Vagamundo, selecionado pelo Rumos Itaú Cultural 2017-2018, surgiu no aniversário de 25 anos do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare. Buscando compreender e interpretar diversas tradições culturais, o projeto foi dividido em três frentes denominadas Latinoamérica, Laboratório e Boi Galado, uma adaptação para as diversas manifestações culturais com o Boi na América Latina. A pesquisa do grupo foi centrada nas ocasiões de festejos na América Latina. Para tanto, eles desenvolveram as Residências Tupiniquins, no Norte do Brasil, e investigaram o Waka Waka, uma personagem que ironiza a figura do toureiro, como signo do colonizador europeu, na Fiesta de la Virgen del Carmen, no Peru. Nesse país, na Colômbia e no Equador, o grupo desenvolveu laboratórios junto a coletivos e grupos de teatro locais, como forma de estabelecer trocas e compreender pontos de contato entre suas tradições. Em 2020, o Boi Vagamundo apresenta o Laboratório de Cena, como resultado dessas viagens e residências.

FOTOS: REPRODUÇÃO/ REPRODUÇÃO/ AGÊNCIA OPHELIA/ ANDRÉ SEITI/ ITAÚ CULTURAL, DIVULGAÇÃO


MUNDO CODIFICADO

FILHOS DE B O L Í V A R M UI TOS

B RASIL EIRO S

CO NHE CE M

A

CO PA

LI BE R TA DORES DA AM ÉRICA,

GUZMÁN BLANCO (1829-1899) O culto a Bolívar é muito anterior a Hugo Chávez. Na realidade, difícil é encontrar um líder venezuelano que rejeite o legado do ‘Libertador’. No fim do século 19, o militar Guzmán Blanco idealizou um panteão, para onde se transferiram os restos mortais de Bolívar. Até a moeda nacional concebida por esse militar levou o nome do libertador.

M AS P OU COS SAB EM QUEM SÃO

OS

QUE

E LA

L IB ERTADORES H O MEN AGEIA

FA B I O L U I S B A R B O S A

JOSÉ MARTÍ (1853-1895) Como suas tropas, a descendência de Bolívar atravessou fronteiras. Quando o cubano José Martí foi lutar pela independência da ilha no fim do século 19, chegou à mesma conclusão que Bolívar: isolados, os países latino-americanos seriam vulneráveis. O líder cubano morreu em combate, defendendo uma “segunda independência” da região que chamou de “Nossa América”.

SIMÓN BOLÍVAR (1783-1830)

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Nossos vizinhos reconhecem Simón Bolívar (17831830), um caraquenho que liderou a luta pela independência em grande parte da América do Sul, como ‘El Libertador’. Seu nome até batizou um país, a Bolívia. Apesar do êxito nos campos de batalha, o general morreu amargurado: acreditava que os países do continente tinham de se unir, para se protegerem das potências estrangeiras. No entanto, a república que ele teceu, reunindo o que hoje são Venezuela, Colômbia, Panamá e Equador, esfacelou-se ainda enquanto ele vivia: sua obra ficou inacabada. Desde então, Bolívar é reivindicado pelo nacionalismo venezuelano, solo onde nasceu. Mas também por aqueles que defendem a unidade continental. E, às vezes, por líderes que misturam ambas as coisas.


ALBERTO NARIÑO (1903-1993) Jogos Olímpicos Bolivarianos, já ouviu falar? A proposta não emanou de Caracas, mas de Bogotá. Criados em 1938 por Alberto Nariño, descendente de um dos líderes da independência da Colômbia, os jogos ocorrem regularmente a cada quatro anos, desde 1961. Colômbia, Venezuela, Peru, Equador, Bolívia e Panamá já sediaram a competição. Sua edição mais recente ocorreu em 2017, em Santa Marta, na Colômbia, onde, em 1830, morreu Simón Bolívar.

HUGO CHÁVEZ (1954-2013) Esse militar de origem humilde elegeu-se presidente da Venezuela em 1998. Em seguida, uma nova Constituição rebatizou o país como República Bolivariana da Venezuela, dando início à controversa “Revolução Bolivariana”. No bolivarianismo de Chávez, nacionalismo e integração latino-americana se entrelaçam. Com apoio cubano, promoveu a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), em contraposição à Área de LivreComércio das Américas (Alca), proposta pelos EUA no início do século 21.

DARCY RIBEIRO (1922-1997) É comum dizer que o Brasil está de costas para a América Latina. Mas não por causa de Darcy Ribeiro. Entre as muitas realizações desse antropólogo, político e educador está a concepção do Memorial da América Latina em São Paulo. Darcy também escreveu livros sobre o continente, um deles de título bem bolivariano – América Latina: A Pátria Grande. Afinal, foi o próprio Bolívar quem disse: “Para nós, a pátria é a América

RAFAEL CORREA (1963)

EVO MORALES (1959)

HENRIQUE CAPRILES (1972) Curiosamente, o principal opositor ao bolivarianismo é um descendente de Bolívar. Em plena campanha presidencial em 2012, o diretor do Instituto Venezuelano de Genealogia divulgou que Henrique Capriles descende de um irmão 30 anos mais velho do Libertador. Tecnicamente, seria seu sobrinho oitavo. Apesar do parentesco, Capriles foi derrotado por Chávez em 2013, e também por Maduro no ano seguinte, dessa vez por apenas 220 mil votos.

Quando assumiu a presidência da Bolívia em 2006, Evo Morales seguiu os passos de Chávez: convocou uma assembleia constituinte, que modificou o nome do país para Estado Plurinacional da Bolívia. Anunciou que respeitaria a pachamama, confrontaria o neoliberalismo e se associou à Alba. Assim como no caso venezuelano, seu governo foi controverso. E em novembro de 2019, terminou de forma polêmica: em meio a acusações de fraude eleitoral, Morales foi deposto por pressão militar.

Sob a Presidência de Rafael Correa a partir de 2007, o Equador foi o terceiro país sul-americano a se incorporar à Alba. Além disso, Quito sediou a Unasul, fundada no ano seguinte. Embora dela participassem todos os países sulamericanos, a iniciativa foi associada ao bolivarianismo em razão do protagonismo de Lula e Néstor Kirchner, governos amigos da Alba. Em 2017, Correa foi sucedido por seu vice-presidente Lenín Moreno, com quem logo rompeu. O novo presidente retirou o Equador da Alba e da Unasul, solicitando que a organização devolva o prédio em Quito.

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FOGO CRUZADO

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VOCÊ SE IDENTIFICA COMO LATINO-AMERICANO?

FERNANDO LINDOTE Para além da denúncia do povo charrua na cor da minha pele, mais que os resquícios de holandeses, espanhóis e portugueses, o que se coloca como origem não é tanto a circunstância histórica dos meus antepassados – implicada e determinante –, mas a minha condição excêntrica que reivindica limites às possibilidades de atuação e inserção no mundo. A condição de latino-americano é, antes, um estado de sobredeterminações recíprocas entre dominador e dominado. Optar por apenas uma das etnias que se cruzam em mim seria confortável. No entanto, essa opção me parece prematura e superficial. Para mim, não há possibilidade de seguir adiante sem aderir visceralmente aos conflitos que me tornam – nos tornam? – um campo permanente de batalha. Pois, quem sabe, dos espólios desse combate – de cada um e de muitos – possa surgir uma nova ficção social.

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Retrato com máscara de porco, Den Haag, 2019

SE A ORIGEM DO TERMO AMÉRICA L AT I N A R E M O N TA AOS TERRITÓRIOS COLONIZADOS POR POVOS HABLANTES DE L Í N G UA S L AT I N A S, AT UA L M E N T E A CONCEPÇÃO GANHOU C A R ÁT E R D E A L I A N Ç A E RESISTÊNCIA. VA L E A P O N TA R Q U E, N O I N T E R VA L O D E Q UAT R O A N O S ENTRE AS EDIÇÕES DE 2010 E 2014 DA P E S Q U I S A “ O B R A S I L, AS AMÉRICAS E O MUNDO”, DO INSTITUTO DE RELAÇÕES I N T E R N A C I O N A I S, DA USP E DO CENTRO BRASILEIRO DE ANÁLISE E P L A N E JA M E N T O, O P O R C E N T UA L D E E N T R E V I S TA D O S BRASILEIROS QUE S E S E N T E M L AT I N O AMERICANOS PA S S O U D E 2 , 8 % PA R A 6,7 % . A R T I S TA S COM PESQUISAS DECOLONIAIS POSICIONAM-SE EM R E L A Ç Ã O À Q U E S TÃ O.


ADRIANA VAREJÃO Sem dúvida, me identifico e me reconheço como latino-americana, embora o que seja exatamente essa “identidade” latino-americana é uma pergunta que eu me faço. Não sei precisar ainda se imaginamos uma América, se forjamos sua identidade e construímos uma história a posteriori, costurando relações, ou se vamos nos construindo a partir dessa confluência, enquanto nos enxergamos como parte de um todo. Gosto de pensar em uma América Latina indígena, ligada à terra, à cultura ancestral. Ao mesmo tempo, nessa América Latina que traz como grande riqueza ser uma mistura de tantas coisas simultaneamente, esse território-microcosmo onde convivem tantos povos e tantas culturas. Me identifico com essa terra, com a nossa ancestralidade e também com esse multiculturalismo pulsante. E reconheço em meu trabalho alguns temas latino-americanos por excelência, como o barroco mestiço e mais ainda o neobarroco como uma expressão de contraconquista. Também a teatralidade e a violência que atravessam profundamente a minha obra e o meu entendimento de uma América Latina comum, onde a natureza, a exuberância, os excessos, os extremos e o viés político e revolucionário estão intrinsecamente conectados.

Eu sou uma artista nascida no cafundó do mundo, e é assim que me inscrevo, em uma terra tão arredada do centro, que apenas as escrevivências inventadas neste fim de mundo podem situar minha existência e prática. Minha boca vem do meu cafundó, que vem do cafundó da minha boca. Eu sou um cacto espinhoso que toca o sol, e num futuro próximo irei atravessá-lo. Entendo que os povos do cafundó do mundo precisam elaborar continuamente práticas de aquilombamento e de coralidade, que permitam estar em segurança e sonhando, nesse sentido é importante se identificar e se reconhecer. Compreendo também que, se existe uma unidade entre nós, a unidade que o outro nomeou como América Latina, ela se funda justamente nas inúmeras cosmovisões e epistemologias dos povos que nasceram nesse cafundó. O conjunto América Latina, enquanto conceito de identidade estanque, responsivo à hegemonia, nada pode contribuir para estilhaçar a colonialidade, porque ainda está regido pelo que o outro define e categoriza. Já a América Latina, como a reivindicação de um grande levante, onde os processos específicos de cada uma de nós são levados em conta, celebrando assim nossas estranhezas, nessa sim, eu me inscrevo.

RAYLANDER MÁRTIS

FOTOS: DENISE BENDINER (FERNANDO LINDOTE)/ VICENTE DE MELLO (ADRIANA VAREJÃO)/ ACERVO PESSOAL (RAYLANDER MÁRTIS)

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FOGO CRUZADO

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VULKANICA POKAROPA Quando escuto falar sobre a América Latina, de imediato, penso em colonização e em invasão. Me pergunto qual nome teria, se tivéssemos tido a oportunidade de sermos nomeadas pelas populações indígenas, que habitavam e habitam esses espaços. Por muito tempo me nomeei “Brasileira”, e apenas isto – por alienação e falta de acesso à informação, já que nos fazem acreditar que o Brasil não tem relação com os 19 países que compõem a chamada “América Latina”. Entendo que isso se dá por uma estrutura social capitalista, que não nos quer unidos. Que não quer o diálogo entre os moradores dessas nações. E que não permite nos organizarmos para a derrubada desse lugar de hierarquia e de exploração dos países que se dizem de “Primeiro Mundo” sob nossas economias e matérias-primas, nos mantendo continuamente como “terceiro-mundistas”. Questiono a forma como o nome “América Latina” nos foi imposto. Questiono o nome “Brasil”, que também nos foi imposto sob sangue indígena e preto. Mas penso também que temos muitas ligações e histórias que se entrecruzam. É de extrema importância nos vermos como aliados para que risquemos estratégias de sobrevivência, visto que essa elite branca, cisgênero e burguesa que está no poder quer continuar nos mantendo como mão de obra escrava para o Ocidente. Portanto, identifico-me como latino-americana, mas questiono como isso foi dado.

Pensar se me sinto latino-americano é um exercício que exige atenção. Cair numa ideia geográfica, de um passado histórico, ou mesmo cultural, não dá conta desse ponto, que é grande. Essa não é uma pergunta que me faço com frequência, mas a primeira coisa que me vem à cabeça é o lugar de onde vim: Salvador, Bahia. Depois vou compondo uma imagem com os lugares onde passei e onde vivo hoje: São Paulo. Como artista, gosto de pensar esse tema como uma questão a ser seguida e latente, mesmo que não me sinta preso a ela. Ser latino-americano é algo que perpassa muitos momentos da minha pesquisa e em idas para alguns países da América Latina passei por situações ora ampliadas, ora reduzidas. Por vezes ser brasileiro me serviu mais. Nesse caminho me identifico muito com o pensamento de Néstor García Canclini, que diz que a América Latina é, mais do que uma identidade, (pode ser) uma tarefa. O exercício que nos propõe, refletir o que é ser latino-americano já é um passo importante para a construção desse imaginário coletivo ampliado.

MANO PENALVA SELECT.ART.BR

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FOTOS: SAMIRA LEMES (VULKANICA POKAROPA)/ LEANDRO VIANA (MANO PENALVA)


26 01 Feb Mar

— 3+1 ARTE CONTEMPORÂNEA Lisbon — 80M2 LIVIA BENAVIDES Lima — ADN Barcelona — ALARCÓN CRIADO Seville — ALBARRÁN BOURDAIS Madrid — ALEXANDER LEVY New York — ÁLVARO ALCÁZAR Madrid — ANA MAS PROJECTS Barcelona — ÁNGELES BAÑOS Badajoz — ÀNGELS BARCELONA Barcelona — ANGLIM GILBERT GALLERY San Francisco — ANINAT GALERÍA Santiago de Chile — ANITA BECKERS Frankfurt — ANITA SCHWARTZ Río de Janeiro — ANNEX14 Zurich — ARCADE London — ARRÓNIZ Mexico City — ARTNUEVE Murcia — ATM Gijón — AURAL Alicante — BALCONY Lisbon — BARBARA THUMM Berlin — BARBARA WEISS Berlin — BÄRBEL GRÄSSLIN Frankfurt — BARÓ Sao Paulo — BENDANA PINEL Paris — BOMBON PROJECTS Barcelona — BRUNO MÚRIAS Lisbon — BUCHHOLZ Berlin — CAMARA OSCURA Madrid — CARLIER | GEBAUER Berlin — CARRERAS MUGICA Bilbao — CASA TRIÂNGULO Sao Paulo — CASADO SANTAPAU Madrid — CASAS RIEGNER Bogota — CAYÓN Madrid — — CHANTAL CROUSEL Paris — CHERTLÜDDE Berlin — CHRISTOPHE GAILLARD Paris — CONTINUA San Gimignano — COPPERFIELD London — CORTESI Lugano — CRISIS Lima — CRISTINA GUERRA Lisbon — CRONE Vienna — DANIEL FARIA Toronto — DENISE RENÉ Paris — DIE ECKE Santiago de Chile — DVIR Tel Aviv — EDWARD TYLER NAHEM New York — EL APARTAMENTO Havana — ELBA BENÍTEZ Madrid — ELLEN DE BRUIJNE Amsterdam — ELVIRA GONZÁLEZ Madrid — EMBAJADA San Juan — ESPACIO MÍNIMO Madrid — ESPACIO VALVERDE Madrid — ESPAI TACTEL Valencia — ESPAIVISOR Valencia — ESTHER SCHIPPER Berlin — ETHALL Barcelona — F2 GALERÍA Madrid — FERNÁNDEZ - BRASO Madrid — FILOMENA SOARES Lisbon — FORMATOCOMODO Madrid — FORSBLOM Helsinki — FORTES D'ALOIA & GABRIEL Sao Paulo — FRAN REUS Palma de Mallorca — FRANCESCA MININI Milan — FRANCISCO FINO Lisbon — FRANCO NOERO Turín — GAEP Bucharest — GALERÍA ALEGRÍA Madrid — GALERÍA DE LAS MISIONES Montevideo — GALERÍA MPA Madrid — — GARCÍA GALERÍA Madrid — GEORG KARGL FINE ARTS Vienna — GIORGIO PERSANO Torino — GREGOR PODNAR Berlin — GUIDO W. BAUDACH Berlin — GUILLERMO DE OSMA Madrid — GYPSUM El Cairo — HARLAN LEVEY Brussels — HAUSER & WIRTH New York — HEINRICH EHRHARDT Madrid — HELGA DE ALVEAR Madrid — HENRIQUE FARIA FINE ART New York — HERLITZKA + FARIA Buenos Aires — HIGHER PICTURES New York — — HOLLYBUSH GARDENS London — HORRACH MOYA Palma de Mallorca — INSTITUTO DE VISIÓN Bogota — ISLA FLOTANTE Buenos Aires — IVAN Bucharest — JAHMEK Luanda — JAN MOT Brussels — JAQUELINE MARTINS Sao Paulo — JAVIER LOPEZ & FER FRANCÉS Madrid — JÉRÔME POGGI Paris — JOAN PRATS Barcelona — JOCELYN WOLFF Paris — JOEY RAMONE Rotterdam — JOSÉ DE LA MANO Madrid — JOSÉDELAFUENTE Santander — JUAN SILIÓ Santander — JUANA DE AIZPURU Madrid — KADEL WILLBORN Düsseldorf — KEWENIG Berlin — KLEMM´S Berlin — KOW Berlin — KRAKOW WITKIN Boston — KRINZINGER Vienna — KROBATH Vienna — L21 Palma de Mallorca — LA CAJA NEGRA Madrid — LEANDRO NAVARRO Madrid — LEHMANN + SILVA Porto — LELONG Paris — LEON TOVAR New York — LEYENDECKER Santa Cruz de Tenerife — LUIS ADELANTADO Valencia — LUISA STRINA Sao Paulo — LUX London — MADRAGOA Lisbon — MAI 36 Zürich — MAISTERRAVALBUENA Madrid — MARC DOMÈNECH Barcelona — MARIANE IBRAHIM Chicago — MARLBOROUGH Madrid — MARTA CERVERA Madrid — MARTIN JANDA Vienna — MARUANI MERCIER Brussels — MASSIMO MININI Brescia — MAUBERT Paris — MAX ESTRELLA Madrid — MAX MAYER Düsseldorf — MAYORAL Barcelona — MEESSEN DE CLERCQ Brussels — MEYER RIEGGER Berlin — MICHAEL HOPPEN London — MICHEL REIN Paris — MIGUEL MARCOS Barcelona — MIGUEL NABINHO Lisbon — MONITOR Rome — MOR CHARPENTIER Paris — MOVART Luanda — NÄCHST ST. STEPHAN ROSEMARIE SCHWARZWÄLDER Vienna — NADJA VILENNE Liege — NF / NIEVES FERNÁNDEZ Madrid — NINO MIER Los Angeles — NOGUERAS BLANCHARD Madrid — NORA FISCH Buenos Aires — NORDENHAKE Berlin — NORDES Santiago de Compostela — NUEVEOCHENTA Bogota — NUNO CENTENO Porto — P420 Bologna — P74 Ljubljana — PARAFIN London — PARRA & ROMERO Madrid — PASTO Buenos Aires — PATRICIA READY Santiago de Chile — PEDRO CERA Lisbon — PELAIRES Palma de Mallorca — PERROTIN Paris — PERSONS PROJECTS / HELSINKI SCHOOL Berlin — PETER KILCHMANN Zürich — PIEDRAS Buenos Aires — PIÙ Bologna — PM8 Vigo — POLÍGRAFA OBRA GRÁFICA Barcelona — PONCE + ROBLES Madrid — PROJECTESD Barcelona — PROMETEOGALLERY DI IDA PISANI Milan — PROXYCO New York — PROYECTOS ULTRAVIOLETA Guatemala — QUADRADO AZUL Porto — RAFAEL ORTIZ Seville — RAFAEL PÉREZ HERNANDO Madrid — REVOLVER Lima — RICHARD SALTOUN London — ROCIOSANTACRUZ Barcelona — RODRÍGUEZ Poznan — ROLANDO ANSELMI Berlin — ROLF ART Buenos Aires — ROSA SANTOS Valencia — RUTH BENZACAR Buenos Aires — SABRINA AMRANI Madrid — SÉ Sao Paulo — SENDA Barcelona — SIES + HÖKE Düsseldorf — SPAZIOA Pistoia — STUDIO TRISORIO Naples — SUPERFICIE Sao Paulo — SUPRAINFINIT Bucharest — T20 Murcia — — THADDAEUS ROPAC Paris — THE GOMA Madrid — THE PILL Istambul — THE RYDER London — THOMAS SCHULTE Berlin — TIM VAN LAERE Antwerp — TIMOTHY TAYLOR London — TRAVESÍA CUATRO Madrid — TWIN GALLERY Madrid — VERA CORTÊS Lisbon — VERMELHO Sao Paulo — WALDEN Buenos Aires — WILDE Geneva — GENERAL PROGRAMME — DIALOGUES — OPENING — IT’S JUST A MATTER OF TIME


PORTFÓLIO

CECILIA VICUÑA O CÉU ESCURO NA

AO ARTICULAR POESI A, PI NTU RA , RI TUA L E PRE C A RI E DA DE, A A RT I STA CH I L E NA


CONSTRUÇÃO DE UM FUTURO ILUMINADO L UA N A F O R T E S

RE S G ATA S ABERES I NDÍ GENAS SOBR E O PO DE R DA U N I Ã O E DA RE A LI DA DE C OM U NA L FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS


Na dupla anterior, o díptico Nubes/Disappearing Jaguar (2018), que marca o retorno de Cecilia Vicuña à pintura e trata sobre os incêndios criminosos na Floresta Amazônica

A figura do Quipu frequentemente aparece na obra de Cecilia Vicuña associada ao corpo feminino, como em Quipu Viscera (2017), acima, e Quipu Womb (The Story of the Red Thread), na pág. ao lado, exposto em 2017 na documenta 14, em Atenas

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FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA, LEHMAN MAUPIN, NOVA YORK, HONG KONG E SEUL, MATHIAS VÖLZKE


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Na pág. ao lado, a pintura Leopardo de Nieve (1969), de Cecilia Vicuña. Acima, vista de instalação que reúne conjunto de Basuritas, na exposição monográfica About to Happen, no Institute of Contemporary Art da Universidade da Pensilvânia, EUA

FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA, LEHMAN MAUPIN, NOVA YORK, HONG KONG E SEUL


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COM APENAS 7 ANOS, CECILIA VICUÑA FAZIA SEMINÁRIOS NO BOSQUE, REUNINDO CRIANÇAS EM RODAS DE CONVERSAS. “O que eu ensinava, eu não tenho ideia”, conta à

seLecT. Sua prática artística compreende trabalhos de artes visuais, poesia e performance, áreas que se embaralham para a constituição de uma obra heterogênea e sensível. À artista importa reconectar o indivíduo com o coletivo. “A principal violência dos colonizadores europeus foi a destruição da visão de si que tinham os povos originários da América. E essa visão segue tendo uma força espiritual, social e política imensa, porque está baseada na concepção do indivíduo como capaz de ser parte de um todo, ao mesmo tempo que é absolutamente único”, diz Vicuña. Uma das vertentes de sua obra reside na elaboração de rituais-performances, para os quais não programa nada, com o objetivo de permitir que algo genuíno aconteça. Às vezes usa lã, às vezes pedras ou somente o silêncio para produzir uma experiência de comunhão entre os presentes. “Quem está lá e sente aquilo não esquece mais, porque é uma experiência pela qual sinto que as pessoas têm fome. Elas não têm somente fome de água limpa, de comida não contaminada. Existe fome de sentir”, diz. Vicuña reconheceu essa mesma potência do coletivo nos protestos que ocorreram em cidades do Chile em outubro de 2019. “O que se vê nessas manifestações é uma explosão de gozo, de felicidade, como uma plenitude humana que se gera ao se reconhecer como uma unidade.” A artista também se impressionou ao olhar para a mobilização social e perceber que os manifestantes compartilham de sua visão sobre a linguagem como arma, apostando no poder transformador das palavras em bandeiras, bordados e estandartes. Prova da atualidade de sua pesquisa iniSELECT.ART.BR

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ciada nos anos 1960 é o lançamento no Brasil de PALAVRARmais (Editora Medusa, 2018), escrito há 52 anos. O livro trata as palavras como criaturas que têm a capacidade de afetar as coisas vivas. Em 1973, exilada em Londres, após o golpe do general Augusto Pinochet, Vicuña compôs o livro Palabrarma, acrônimo que une palavra a arma. “As línguas, a composição interna e a energia das palavras são verdadeiramente armas por excelência, no sentido de oferecer a possibilidade de mostrar a verdade”, diz a artista.

FOTO: TARA HART, CORTESIA DA ARTISTA, LEHMAN MAUPIN, NOVA YORK, HONG KONG E SEUL


“O QUE SE VÊ NESSAS MANIFESTAÇÕES É UMA EXPLOSÃO DE GOZO, D E F E LI CI D AD E, CO MO UMA PLENIT U DE HUMANA Q U E SE G E RA A O S E R ECO N H ECER CO MO UMA U NIDADE”, DIZ CECILIA VICU ÑA SOBRE OS PROTESTOS EM CIDADES DO CHILE, EM OUTUBRO DE 2019

BASURITAS, QUIPOEMAS E PINTURAS

Aos 18 anos, fez seu primeiro objeto chamado basurita – que, em português, é um diminutivo da palavra lixo. A série de trabalhos, em processo até hoje, é composta de pequenos objetos frágeis, feitos de fragmentos de coisas despretensiosas coletadas por aí. As Basuritas (1966-2019) enquadram-se no conceito Arte Precária, que a artista criou para não usar termos colonizados já existentes. O termo reconfigura a noção de precariedade a partir de uma valorização daquilo que é efêmero, que pode ser perdido, mas que testemunha mudanças. Outro formato que se repete em sua produção, desde os anos 1960, são os Quipoemas, que junta as palavras quipu e poema. Quipus são conjuntos de cordões usados pelos Incas para comunicação. A partir de relações de cor e número de nós em cada fio eram transmitidas mensagens. Na obra de Vicuña, são recorrentes quipus de lã que, além de evocar essa memória, abordam de forma crítica a perda de sistemas de comunicação ancestrais. “O valor tão importante das culturas indígenas que ainda estão vivas é que elas não perderam a tecnologia de acesso a diferentes dimensões do ser. A proteção da selva, dos rios e da natureza é fundamental. Mas tão fundamental quanto isso é defender as dimensões da imaginação”, diz a artista mestiça, nascida em Santiago. Tanto as Basuritas como os Quipoemas são recorrentemente usados nas performances da artista. Uma linguagem que não persistiu ao longo de sua trajetória foi a pintura. Vicuña decidiu abandonar a prática pictórica nos anos 1970.

Os quipus também aparecem em performances de Cecilia Vicuña. A ação site-specific Quipu Vivo foi realizada em Nova York, em 2006

“Minha pintura foi muito perseguida e odiada. A maior parte das telas foi destruída. Os militares destruíram minhas pinturas, meus parentes e amigos destruíram minhas pinturas. Todos que tinham uma pintura minha colocaram no lixo, porque acreditavam que ela não valia nada”, conta. Foi pelo olhar de dois curadores brasileiros que as pinturas de Cecília Vicuña foram absorvidas pela cena artística internacional – as que sobreviveram, evidentemente. Em 2014, Adriano Pedrosa e Rodrigo Moura reuniram trabalhos de mais de cem artistas em diversos espaços culturais do Rio de Janeiro, com a exposição Artevida. Foi a partir dessa exposição, que contou com ampla participação de Cecilia Vicuña, que a obra pictórica da artista foi retomada, tendo sido exibida na documenta 14, em Kassel, na Alemanha, em 2017. As pinturas foram então adquiridas por importantes museus, como MoMA, Guggenheim e Tate. “Foi realmente o olhar desses dois curadores que colocou valor às minhas pinturas. A única parte da minha obra que havia sido suprimida está voltando com uma força tremenda”, diz. Por coincidência, poucos anos antes dessa legitimação, Vicuña voltava a pintar silenciosamente, pois o processo da perda dos antigos trabalhos foi muito doloroso a ela. “A primeira pintura nova que fiz, ano passado, neste novo ciclo de renascimento do óleo foi sobre o desaparecimento da Floresta Amazônica pelos incêndios provocados, que me parecem o crime máximo contra o futuro do planeta.” Até 24 de fevereiro de 2020, Cecilia Vicuña exibe a mostra Minga Del Cielo Oscuro no Centro Cultural da Espanha, em Santiago, no Chile. A exposição promove o encontro de saberes entre artistas e cientistas para pensar sobre a presença do céu escuro na construção de um futuro iluminado, em que sabedoria ancestral e ciência brilhem por igual. Minga, em quéchua (idioma inca), significa convocar um trabalho coletivo para um propósito comum.

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CO LU N A M Ó V E L / C R I ST I A N A T E J O

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CONSOLIDAR O CONHECIMENTO SOBRE AS PEDAGOGIAS RADICAIS de experimentação artística e pedagógica na prática de artistas do período, em que muitas vezes a obra é uma ação coletiva ou decorrente de processos educacionais. A território muito diverso culturalmente. Há muitos pontos primeira etapa contou com o levantamento de experiêncomuns que entrelaçam essa diversidade e a colonialidade cias de artistas no Brasil, na Argentina e no Chile, além de talvez seja a mais marcante variável deste continente. Trapesquisadorxs, pois desejamos construir uma rede. ta-se não apenas de um passado colonial partilhado, mas de O quebra-cabeça que estamos montando é muito complexo uma estrutura extrativista, racista e excludente que permapor vários motivos, sendo os principais: a parca bibliografia nece através dos tempos monográfica sobre artistas sempre com novas roupas. mulheres complica o maAdvém dessa estrutura a peamento inicial de nomes; subalternização deste tera dificuldade em encontrar ritório, já que o centro da registros de atividades pecolonialidade é o Ocidendagógicas dessas artistas, te, o que faz com que os pois esta faceta é sempre países latino-americanos deixada em segundo plano, (em maior ou menor grau) em detrimento das obras mirem-se na Europa e nos e exposições; a cronologia Estados Unidos. Esse, posdas ditaduras nem sempre sivelmente, seja o motivo é coincidente no continende o Brasil olhar mais para te, assim como seu reflexo o Norte Global do que para na vida artística de cada seus vizinhos territoriais e país. No entanto, essas dihistóricos. Conhecer e reAnna Bella Geiger e alunos no MAM Rio, em 1972. Artista está entre os nomes da pesquisa ficuldades são a mola prolacionar-se com a história pulsora do projeto e certifie a arte de outros países latino-americanos, além de recocam que estamos num caminho importante e pouco explorado. nhecer a produção artística de grupos subalternizados do Sabemos que temos uma cartografia incompleta, mas espróprio Brasil e as ferramentas de subalternização, pode ser tes são os nomes iniciais: Anna Bella Geiger, Lygia Pape, uma das formas de quebrar um dos pilares da colonialidade. Celeida Tostes, Maria do Carmo Secco, Yedamaria, Regina A ignorância e o desmantelamento de conexões facilitam a Silveira, Lina Bo Bardi, Mayumi Souza Lima, Teresa Nazar, perpetuação da estrutura de poder. Amélia Toledo, Mirtha Dermisache, Elda Cerrato, Noemi Há um ano tenho tido a oportunidade de estudar artisEscandell, Graciela Carnevale, Margarita Paksa, Marta tas mulheres da América Latina que exerceram prátiMinujin, Virginia Errazuriz, Luz Donoso, Cecilia Vicuña, cas pedagógicas experimentais, graças a um convite da Graça Barrios, Carmen Silva, Delia del Carril (atelier 99), pesquisadora Giulia Lamoni, do Instituto de História da Irene Dominguez e Mónica Bunster. Arte da Universidade Nova de Lisboa. O projeto Artistas O momento atual do continente, em que forças autoritárias e Educação Radical na América Latina: Anos 1960/1970 é retornam e tentam reescrever a narrativa das ditaduras milifinanciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia tares e artistas e educadores são criminalizados (caso brasileide Portugal e conta ainda com a participação da pesquiro), reforça a importância de consolidarmos o conhecimento sadora Margarida Brito Alves, filiada à mesma instituisobre as pedagogias radicais e as experimentações artísticas. ção. O estudo parte do reconhecimento da inter-relação Ligar esses pontos é uma das contribuições possíveis. A AMÉRICA LATINA É UMA ABSTRAÇÃO. OU MELHOR, A AMÉRICA LATINA COMO REGIÃO “HOMOGÊNEA” É UMA INVENÇÃO DO OCIDENTE, tendo em vista que se refere a um

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FOTO: ACERVO MAM RIO


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The Flag [La Bandera], 2003-2006, de Nicolás Dumit Estevez, da coleção do Museo del Barrio. Instalação articula ícones latinos e norte-americanos, como mobiliário vitoriano e brasão de armas da República Dominicana FOTO: CORTESIA MUSEO DEL BARRIO


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ESTOU A BORDO DE UM VOO PARA LAS VEGAS, ONDE VOU ME REUNIR COM OUTROS CURADORES PARA UMA SÉRIE DE VISITAS A ATELIÊS DE ARTISTAS DURANTE UMA TARDE DE SÁBADO. A

viagem faz parte de uma pesquisa em diversas cidades dos Estados Unidos para selecionar os participantes de uma trienal que o Museo del Barrio está organizando, a ser inaugurada no segundo semestre de 2020. Além de Vegas, visitamos Chicago, Miami, Houston e Los Angeles, entre outras grandes cidades com forte concentração latina. A exposição será uma nova versão dos S-Files, uma bienal que aconteceu entre 1999 e 2014 com foco em artistas latinos baseados na região de Nova York. A curadoria da mostra será feita a seis mãos, com a curadora Susanna Temkin e a artista baseada em Nova York Elia Alba. No novo formato vamos incluir pela primeira vez na exposição artistas residentes em outras partes do país, mais uma vez com todos eles tendo a origem latina em comum. A maior novidade desse projeto, no entanto, é que vamos trazer para o centro da exposição o termo latinx, a forma neutra de gênero de denominar as pessoas com origem étnica em países da América Latina vivendo nos Estados Unidos. O termo surgiu na comunidade queer no início dos anos 2000, mas se alastrou e ganhou relevância como parte do esforço coletivo de tornar a língua espanhola menos genderizante. Não mais latino ou latina, como costumava ser referida a população com origem étnica em países da América Latina, mas latinx, abarcando todos os gêneros. Como resultado, a denominação ajudou a colocar no mapa do debate racial nos Estados Unidos uma perspectiva menos dualista baseada na separação entre negros e brancos e mais amparada nas teorias de miscigenação. Substituindo a antiga dualidade surge uma nova fricção entre anglo-americano e latino-americano. Este é o tema do livro do jornalista Ed Morales Latinx – The New Force in American Politics and Culture (Verso, 2018), um fundamental estudo sobre o tema. O termo também abriu o campo para interseções identitárias. Identidades afrodescendentes ou indígenas ganham novas plataformas ou conotações no campo do LatinX, assim como as identidades feministas, queer e trans.

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If I Were A... [Si Yo Fuera Una...], 2003, .instalação de Elia Alba

Se expandirmos o entendimento, como seria bem-vindo, América Latina passa a incluir também os Estados Unidos, país onde anglo-americanos e latino-americanos convivem e criam fricções nos debates em torno de raça e cultura. O futuro, afinal de contas, é marrom. Estima-se que hoje a população latina nos EUA contabilize em torno de 60 milhões. No ano de 2043, segundo estimativas do censo, as chamadas minorias passarão a ser maioria e a população branca será pela primeira vez menos numerosa do que a não branca nos Estados Unidos. STUDIO VISITS EM VEGAS

Com sua paisagem desértica e promessas de sorte fácil nas mesas de jogo, Vegas é uma das cidades que refletem esse rápido crescimento, com a população velozmente tornando-se cada vez menos branca. Os artistas que visitamos, a maior parte deles de origem mexicana, refletem essa condição nos seus trabalhos, lidando com temas como imigração, raça, corpo, cultura, economia, linguagem – temas que ecoam eixos temáticos levantados para a trienal.


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FOTO: CORTESIA MUSEO DEL BARRIO


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A origem latina em comum não significa um achatamento de diferenças a favor de um nacionalismo étnico. Pelo contrário, é justamente no encontro entre diferentes experiências de ser latino nos Estados Unidos que a exposição e sua pesquisa buscam sua força – os porto-riquenhos de Nova York (responsáveis pela própria criação do Museo del Barrio); os chicanxs da Califórnia do Sul; os salvadorenhos filhos de refugiados da guerra civil; os cubanos na Flórida; os sul-americanos; os dominicanos; a vivência queer e trans das casas do ballroom scene (porque, afinal de contas, como escutei numa mesa-redonda que o museu organizou sobre a House of Xtravaganza: “Latinx é queer”); o poder da arte das mulheres que cresceram sob a influência das figuras femininas fortes contra a visão imperialista do patriarcado branco e hétero; a herança cultural africana explicitada na obra de tantos artistas de tantas partes; a herança nativa americana idem. Isso apenas num mapeamento inicial. Como apontou a professora Adriana Zavala no contexto do think tank que o museu promoveu em outubro para discutir a exposição e suas premissas: “Latinx é arte americana (dos Estados Unidos), mas pode absolutamente servir como ponte entre mundos, e não a posição ‘nem aqui nem ali’ que serviu apenas para marginalizar a arte e os artistas com os quais tanto nos preocupamos”. Zavala é a diretora do U.S. Latinx Art Forum, que trabalha coletando dados para revelar a sub-representação de arte latinx na academia, nos museus e no mercado de arte. No mainstream da arte contemporânea, o termo tem sido instrumental para apontar a marginalização desse grupo. Com a guerra aos imigrantes mexicanos e centro-americanos declarada pelo governo Trump e o terror da experiência das famílias separadas em campos de concentração, essa mobilização no campo da cultura é fundamental para promover visibilidade e corrigir a distorção criada pelas ofensivas do governo ao criminalizar a população latina – cuja contribuição para o desenvolvimento dos Estados Unidos é inestimável e não apenas do ponto de vista cultural. Se pensarmos a escalada conservadora em outros países das Américas, como o Brasil, essa plataforma deiSELECT.ART.BR

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Acima, Me Quieren [I’m Loved], 2005, néon de iliana emilia garcia; à dir., Pelea de Gallos [Cockfight], 2002, acrílico sobre tela de Miguel Luciano

xa de ser apenas uma questão local para, efetivamente, criar pontes com outros contextos afetados por políticas neofascistas. A criação do Museo del Barrio, há 50 anos, respondeu a questões semelhantes ao propor um centro de referência em Nova York, inicialmente para a população porto-riquenha. A instituição foi um ponto focal para o movimento de arte nuyorican (contração de “new yorker” e “puerto rican”, usada para denominar porto-riquenhos na diáspora nova-iorquina), que aproximou a arte produzida aqui a uma identidade política e indígena. Em março de 2020, o museu organiza uma exposição do Taller Boricua, um ateliê gráfico coletivo surgido simultaneamente ao Museo e que criou parte de sua identidade visual, além de uma série de pôsteres políticos. A exposição faz parte de uma serie de três mostras monográficas, que também enfocarão os primeiros anos do Museo, dedicadas a Rafael Montañez Ortiz (artista multimídia e fundador do museu) e Hiram Maristany (fotógrafo, ativista social e diretor do Museo nos anos 1970). Nesse movimento, apontando para suas origens e também lançando bases para o futuro, com a criação da Trienal, o Museo foca em seu passado para continuar comprometido com seu ethos para as próximas gerações.


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FOTOS: CORTESIA MUSEO DEL BARRIO


CURADORIA

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CLICHÊS DE UMA IDENTIDADE L A T I N O - A M E R I C A N A LEANDRO MUNIZ

El Patio (2018-2019), de Sol Calero, representa quintal interno da arquitetura colonial venezuelana SELECT.ART.BR

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EXPRESSÕES COMO “ARTE LATINO-AMERICANA” OU “ARTISTA LATINO-AMERICANO” PODEM SER UTILIZADAS COMO MEROS DESCRITIVOS, MAS CARREGAM ENVIESAMENTOS IDEOLÓGICOS NA MEDIDA EM QUE PRESSUPÕEM UMA SÉRIE DE EXPERIÊNCIAS E MODOS DE OPERAR DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA DA REGIÃO. Obras de forte apelo cromático e sensual, uma inteligência surgida da precariedade, a tema-

tização do tropical, da penúria econômica e da violência estão entre os assuntos comuns aos países da América Latina. Se este quadro de questões descreve um fato social, acaba também sendo um conjunto de clichês reiterado em textos críticos, projetos curatoriais e na produção artística. No texto Notas Sobre Historicidade, Arte Contemporânea, Arte Brasileira (2012), a crítica e professora Sônia Salzstein questiona como, desde os anos 1980, a expressão “arte brasileira” aparecia em textos de curadores não apenas de modo descritivo, “mas também como signo de uma forte experiência local de modernidade, cultivada em condições históricas e culturais peculiares, como condição alternativa ao modernismo europeu e norte-americano do pós-Guerra”. Este diagnóstico pode ser aplicado de modo análogo para a discussão sobre arte latino-americana no contexto atual, na medida em que a encenação de uma identidade latina se tornou assunto da produção de diversos artistas em atividade. As identidades latinas ainda são discutidas em diversas exposições e produções, seja pela reiteração, seja pela desconstrução, inclusive problematizando o complexo e assimétrico jogo de expectativas de representação e autorrepresentação da arte produzida em países não hegemônicos. Em meio aos essencialismos de todos os tipos que voltam a assolar o campo político e social, vale a pergunta: o que significa produzir ou discutir arte a partir de um viés de identidades regionais neste momento?

FOTOS: CORTESIA FOTO: MENDES STUDIO HANS WOODWILSCHUT DM, BRUNO / CORTESIA LEÃO/ PATRICIA DA ARTISTA LEITE

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Na instalação El Patio (2018-2019), Sol Calero (Venezuela, 1982) reproduz um quintal interno no Museum Boijmans van Beuningen, em Roterdã. O quintal, como construção na arquitetura, é resultado de uma experiência colonial, pois era o espaço recluso para a produção doméstica e de escravos apartados do mundo público. À intervenção arquitetônica Calero aplica uma série de padrões decorativos que fazem referência à pintura cusquenha, na qual pinturas clássicas europeias eram produzidas a partir de sua tradução em gravura. Além da tradução do colorido para o preto e branco e para o colorido novamente, eram introduzidos elementos da fauna e flora locais, assim como descrições racializadas dos personagens, climatizando a narrativa. Ao reproduzir um espaço privado, resultado de uma construção colonial, dentro do museu, Calero cria um lugar de descanso para olhos e corpos, ainda que a violência daquela história esteja no lastro da construção e das imagens. Os elementos em sua obra são encenações críticas de uma identidade latina. Da biografia da artista vale destacar que se mudou com a família para a Europa aos 17 anos, onde completou sua formação e vive atualmente. Sua experiência com a Venezuela, portanto, é interpretada com distância. Frutas tropicais, cadeiras de praia e casas de câmbio informais são representadas junto a padrões decorativos multiplica-

IRONIA, EXCESSO, REITERAÇÃO

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dos por revestimentos para pisos, cortinas floridas e esculturas planas, indicando um gosto pelo excesso e ampliando o pensamento sobre a pintura. A paleta de tons pastel e a reprodução ou apropriação teatral de experiências “típicas” da América Latina geram um espaço imersivo, ao mesmo tempo irônico e reflexivo sobre seus contextos e sobre a própria linguagem. Operações parecidas são encontradas na produção do artista Radamés Juni Figueroa (Porto Rico, 1982), cuja produção é outro exemplo sintomático para esta discussão. Figueroa produz pinturas, objetos e instalações nos quais cenas cotidianas são deslocadas para o contexto da arte, reforçando os improvisos das roupas penduradas nas janelas, o empilhamento dos cocos verdes nas tendas ou a sensualidade das pessoas nas praias. A descontextualização dessas situações a cada nova exposição, no entanto, não chega a problematizar os estereótipos de uma América Latina ou provocar discussões mais aprofundadas sobre as experiências às quais o trabalho se endereça para além de uma ironia inicial. Plantas locais, camisas floridas e papagaios são usados como signos genéricos de uma experiência latino-americana que não põe em xeque a sua autoexotização diante de um sistema de arte globalizado fascinado com as formas e as cores “tropicais”.

Camisa Florifundia y Alacrán (2016), pintura sobre tela e madeira, de Radamés Juni Figueroa; na pág. ao lado, Shorts (2016)

FOTOS: KEVIN FRANK, CORTESIA BERGAMIN & GOMIDE, SP, E PROYECTOS ULTRAVIOLETA, GUATEMALA CITY, GUATEMALA

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Na contramão do excesso, Engel Leonardo (República Dominicana, 1977) produz esculturas e instalações de extrema concisão. Leonardo aplica as cores da arquitetura popular caribenha em formas ligadas ao modernismo ou usa o suco da casca de banana – um produto fundamental na economia da ilha – na produção de tinta que fabricará pinturas quase abstratas. O que poderia ser lido como experimentação formalista é o resultado de articulações entre a história das cores e formas de sua terra natal e sua intervenção nos contextos onde as obras são apresentadas. No projeto Moderno Tropical (2013), o artista instala elementos vindos da arquitetura popular caribenha em espaços de arquitetura modernista, que tendem à assepsia formal e às cores “neutras”. O projeto parte da catalogação de tijolos vazados, grades e cores locais e da percepção de que muitas instituições de arte na ilha implementam a arquitetura moderna de estilo internacional, sem incorporar os conhecimentos e a sabedoria das construções locais sobre o clima ou a incidência de luz. Leonardo confronta essas duas experiências nos levando a ver seus pontos de contato e diferenças. Outro artista que lida com a cor como núcleo de sua produção é Federico Herrero (Costa Rica, 1978).

CONTENÇÃO E DESCONSTRUÇÃO

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Herrero parte da pintura para cobrir as paredes do espaço expositivo, praças e prédios com sua paleta saturada e formas abstratas, entre o orgânico e o geométrico. A aplicação da cor em objetos e no espaço vem de uma tradição local, pois na Costa Rica as pessoas pintam suas casas, as ruas e até mesmo as pedras com cores vibrantes. Seus trabalhos mais interessantes, no entanto, são aqueles nos quais o artista estabelece contatos entre experiências de diferentes tradições para além de um uso puramente afetivo da cor. Na série de pinturas chamada Pan de Azúcar, Herrero produz uma grande área de cor na parte central da tela, com algumas linhas horizontais ao fundo, como uma paisagem simplificada. A forma que alude ao cartão-postal carioca ora é percebida como volume, ora como depressão, levando adiante uma discussão interna da pintura sobre as relações entre figura e fundo. O trabalho evoca o vocabulário dos campos de cor da arte norte-americana, embaralhando identidades, já que Herrero é um costa-riquenho abordando a paisagem brasileira de modo lúdico e reflexivo.

Acima, Piso (2018), de Engel Leonardo, obra realizada com azulejos hidráulicos; à dir., Faro (2018) e vista da instalação Piso com pedra proveniente da Praça Cerimonial Yuboa, da República Dominicana FOTOS: BRUNO LOPES, CORTESIA KUNSTHALLE LISSABON


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A

MA N UTEN ÇÃO

E S T E R E ÓT IPO S

D E SSE S

TALVEZ

SE JA

R ES U LTA DO DE UM A PERM AN Ê N C IA DO COLONIAL ISMO QUE SUBME T E A P R ODU ÇÃ O ARTÍSTICA DE RE GIÕE S NÃ O HE GE MÔ N ICAS AO S LIMIT E S DE

U MA

EXPERIÊN CIA

Pan de Azúcar (2014), óleo sobre tela de Federico Herrero, mostra a paisagem brasileira vista pelo artista costa-riquenho SELECT.ART.BR

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“LOC AL”


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TROPICALIZAR

A discussão sobre experiências artísticas vindas de regiões não hegemônicas foi o gatilho de propostas radicais entre os anos 1960 e 1970, sendo o próprio movimento da Tropicália um exemplo de peso no debate cultural do período. Tradições cultas e populares, vernaculares e de massa eram materialmente fundidas e confundidas, estabelecendo trânsitos entre o local e o global, o íntimo e o público, entre experiências eróticas – cromáticas, táteis, sonoras – e a dimensão reflexiva da obra de arte. Essa postura hoje, no entanto, parece um reflexo pálido e já esperado de um modo de fazer arte na América Latina. A manutenção desses estereótipos talvez ainda seja resultado de uma história presente do colonialismo que submete a maior parte das produções artísticas e culturais do mundo aos limites de uma experiência “local”, enquanto os países historicamente dominantes ainda são vistos como “universais”, em uma manutenção de posições de poder. Há que se pensar outras estratégias de produção, circulação e discussão que nos levem a ver o universal que há fora dos eixos dominantes, assim como o específico e o local nos centros hegemônicos. CORTESIA GALERIA LUISA STRINA


R E P O R TA G E M

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Fachada do complexo ex-Rotaprint, onde a 11º Bienal de Berlim iniciou seus programas públicos com a exp. nº 1: Os Ossos do Mundo

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DANIELA LABRA

BIENAL PROCESSUAL: PISTAS DE UMA DISCUSSÃO EM ANDAMENTO Cole t ivo t e m porár i o ib e ro-am e ri can o, b ranco, t ransg e raci o n al e fe m inin o l an ça um a prop os t a proce ssu al inusit ada p ara a 11ª B ie n al de B e rlim , t raz e n do b ag ag e ns s u re ñ as e e vocando as e xpe riê nc i as do m ode rn i s t a Flávio de Carvalh o

A BIENAL DE BERLIM É CONHECIDA COMO A MAIS EXPERIMENTAL E DE ORÇAMENTO MAIS MODESTO ENTRE AS MEGAEXPOSIÇÕES EM CAPITAIS MUNDIAIS RICAS. Seu projeto, fundado em 1998 por

Eberhard Mayntz e Klaus Biesenbach, é organizado desde 2004 no Instituto KW de arte contemporânea. O evento apresenta-se como espaço para o exame dos movimentos artísticos-culturais atuais e o conselho diretivo costuma escolher propostas curatoriais que arrisquem no formato e na visualidade, comprometidas com discursos políticos e históricos. Para 2020, a 11ª Bienal tem projeto de María Berríos, Renata Cervetto, Lisette Lagnado e Augustín Pérez Rubio, um coletivo temporário ibero-americano, branco, transgeracional e feminino, que une expertises sem ocultar a autoria das vozes que o conformam. Entre o grupo há conhecimentos em produção editorial, gestão institucional, catalogação de acervos, coordenação de plataformas pedagógicas, escrita historiográfica, crítica, docência e muitas exposições. Lançando uma proposta processual inusitada para um grande evento internacional, o corpo curatorial trabalha alternando-se, por ora, em dois espaços: o Instituto KW, onde ficam os escritórios, e no complexo Ex-Rotaprint, um parque gráfico dos anos 1950 ocupado, desde 2004, por iniciativas criativas e sociais no bairro de Wedding. Ali o grupo começou os programas públicos numa espécie de soft opening de uma Bienal estendida em três momentos sequenciais: exp. 1, exp. 2 e exp. 3, desenvolvidos entre setembro de 2019 e maio de 2020, antes da mostra conclusiva, que será aberta em junho de 2020. As exp(eriências) evocam ações do controverso e inquieto modernista Flávio de Carvalho (1899–1973), sendo a primeira delas, já finalizada, chamada Os Ossos do Mundo. Este é também o título do diário de viagem do artista e arquiteto na Europa, nos anos 1930, lido curatorialmente como uma etnografia reversa do Velho Mundo. “Os Ossos do Mundo é um ponto de partida inicial consciente da crueza do tempo e das suas promessas quebradas. Ao mesmo tempo, é um alegre reconhecimento da vida que ocorre em meio, contra e apesar dos estados gerais de fratura à nossa volta. Daqui nós nos movemos”, diz o texto curatorial de apresentação. FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO FOTO: LEÃO/ MATHIAS PATRICIA VOELZKE LEITE

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Abaixo, oficina manual que integrou a programação pública na exp 1 da BB11; na pág. ao lado, instalação de obras em suportes precários inclui fotografia de New Look de Flávio de Carvalho, o inspirador das experiências

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No espaço-workshop processual da exp.1, obras em suportes precários foram instaladas. Uma programação pública de oficinas manuais, ações teatrais, palestras, performances, poesia, encontros e visitas guiadas juntava adultos e menores, estrangeiros, alemães, moradores do bairro ou não. Na chegada, o visitante encontrava um ambiente escolar de mesas com livros didáticos recortados e material à disposição, como tesouras, lápis de cor e cola, além de um quadro-negro, uma estante com mais livros e uma rádio antiga que transmitia vozes infantis entrevistando berlinenses nas ruas sobre a cidade após a Queda do Muro. A instalação-oficina, desenvolvida e ativada com crianças, foi conduzida pelo coletivo Die Remise, que investiga em Berlim políticas de imigração alemãs e transformações na sociedade desde a Segunda Guerra Mundial. Após esse preâmbulo, havia a sala maior com a exposição de originais ou reproduções de artistas-pacientes psiquiátricos, livros infantis sobre prisão política, fotografias e impressos de Flávio de Carvalho, pôsteres do Museo de la Solidariedad chileno, imagens de ativistas vivos e mortos, de corpos queer, uma fotografia do sobrevivente Meteorito de Bendegó entre as cinzas do Museu Nacional no Rio de Janeiro, vídeos de cenas teatrais e outros. Eis as pistas de uma discussão em andamento acerca de necessidades de existência, linguagens silenciadas, poéticas da resiliência, práticas de cuidados, escutas e indagações diante da onda de violência planetária. No entanto, mais do que representar um estado de indagação, o grupo, residindo temporariamente em

EXPOSIÇÃO-ESCOLA

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Te n do co m o p re m i s s a a e l aboração de re l açõe s s u s t e n t áve i s, p art e de s t a B i e n al p ro ce s s u al f u n da-s e e m m o de l o s de con h e ci m e n t o e m re de, com u m n as s i t u açõe s de col e t i v i dade e adve rs i dade e co n ôm i ca

Berlim, a vive de fato. À parte a infraestrutura institucional, eles se lançam ao risco e ao erro, estimulando a convivência entre comunidades numa curadoria do relacional e da transferência de saberes, de dinâmica um tanto performática. A exp. 1 foi “uma tentativa de se agarrar à beleza complicada da vida quando o fogo já eclodiu”, e observa os escombros do projeto modernista colonial menos como um fracasso e mais como uma possibilidade de reconstrução – daí talvez a relevante participação infantil na primeira etapa. Em novembro, a exp.2 trouxe a baiana Virginia de Medeiros em residência artística por três meses. Com ideias, desejos e perguntas, ela veio sem um projeto ou roteiro definido para uma imersão na cidade, nas suas histórias e comunidades. O processo como pesquisa ganhará forma na 4ª e última experiência curatorial. FOTOS: MATHIAS VOELZKE


A e quipe de cu radori a t raz i de n t i dade s e bag ag e ns sure ñas, c o m at u açõ e s na E uropa e em ce nários cult urais pot e nt e s e adve rsos no Sul

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Tendo como uma das premissas a elaboração de relações sustentáveis e o que aprender com elas, parte desta Bienal processual funda-se em modelos de conhecimento em rede, comuns nas situações de coletividade e adversidade econômica. As decisões artísticas e de conteúdo são aprovadas por unanimidade na equipe, entre trocas e escutas sobre vidas e movimentos de gentrificação que atingem a cidade e com os quais, involuntariamente, o evento colabora. Na chave da escuta e transformação deu-se a participação da poetisa, pintora e escritora chilena Cecilia Vicuña, com uma leitura performática política. Artista e ativista, desenvolveu nos anos 1970 o projeto Ar-

RELAÇÕES SUSTENTÁVEIS

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Apresentação teatral durante a exp. 1, Os Ossos do Mundo integrou programação pública da fase de pesquisas da BB11

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tistas por la Democracia, que consistia em ações públicas solidárias contra o autoritarismo dos regimes militares na América Latina. Na sua performance em Berlim, falou emocionada do esquecimento da noção de solidariedade hoje e de sua importância para o resgate da empatia, fundamental à restauração das políticas humanitárias em crise. O site da 11ª Bienal de Berlim é mais uma plataforma de pesquisa partilhada, e algumas referências dão o tom das discussões em curso: Maternidades Subversivas, da feminista, teórica pós-pornô e mãe María Llopis; Género y Colonialidad en Busca de Claves de Lectura y de un Vocabulario Estratégico Descolonial, da antropóloga feminista argentina-brasileira Rita Segato; Expresiones de la Locura: El Arte de los Enfermos Mentales, do psiquiatra alemão Hans Prinzhorn, pioneiro no estudo da arte de pacientes psiquiátricos; Touching Feeling. Affect, Pedagogy, Performativity, da acadêmica americana em estudos de gênero, teoria queer e teoria crítica Eve Kosofsky Sedgwick, entre outros materiais. A equipe de curadoria traz identidades e bagagens sureñas, com atuações na Europa e em cenários culturais potentes e adversos no Sul. A abordagem crítica e prática, de certa forma, indica como a precariedade endêmica, que faz escola com o improviso, o acaso e orçamentos imprevisíveis, pode configurar uma expertise para sobreviver a tempos que exalam a exaustão do capitalismo. Muito conteúdo ainda será gerado até a última experiência do projeto, em junho de 2020, quando diferentes espaços na cidade serão ocupados por uma programação dinâmica e inclusiva, ao que parece. Contudo, a inauguração oficial da Bienal também poderá ser lida como um grand finale, encerrando uma obra curatorial coletiva, processual e aberta. FOTO: MATHIAS VOELZKE


PORTFÓLIO

XIMENA GARRIDO-LECCA MEMÓRIAS DO COBRE E DA TERRA

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ARTISTA PERUAN A IN AUGURA O C IC LO D E E X POSIÇ ÕES DA 34ª B IEN AL DE S ÃO PAULO. C OM UM T RABALHO QUE CO N FRO N TA TÉCN I C AS AN C E ST RAIS C OM A PROD UÇ ÃO I NDUSTRIAL, EL A E LABORA C RÍT IC A AOS PROC E SSOS E XTRATIVISTAS, EX PLORAT ÓRIOS E C OLON IALISTAS

PAU L A A L Z U G A R AY

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FOTO: JUAN PABLO MURRUGARRA


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Na dupla anterior, o trabalho Planta - Composición II (2018). Acima, Transmutaciones - Composición II (2018) e still do vídeo Líneas de Divergencia (2018), em exibição na 21 a Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil até 2/2/2020

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FOTOS: DIVULGAÇÃO


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Na pág. ao lado, Realíneamiento III (2018) mostra uma trama feita com cubos de cobre. Abaixo, Red Atarraya (2017), trabalho da série Aleaciones Con Memoria De Forma que rememora manifestações culturais ancestrais do Peru

FOTOS: DIVULGAÇÃO

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NOS DEBATES SOBRE A EXISTÊNCIA DE UMA ESPECIFICIDADE AOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS, A DESIGUALDADE É O QUE NOS APROXIMA. Além de obtusos índices

de desigualdade, compartilhamos processos acelerados de modernização econômica, planos de crescimento não sustentáveis, sonhos fracassados de “progresso e desenvolvimento” e concentração de poder político e econômico no âmbito das elites. Entre os três projetos inaugurais da 34ª Bienal de São Paulo, em fevereiro de 2020, a exposição individual de Ximena Garrido-Lecca é uma ocasião para meditar sobre esse estado das coisas. Nascida em Lima, no Peru, em 1980, Ximena Garrido-Lecca vive entre Lima e a Cidade do México. Sua obra instalativa, escultórica e audiovisual defende o uso de técnicas ancestrais (como a cerâmica e a tecelagem) como forma de resistência a uma abstração civilizatória que a tudo uniformiza. O cobre é meio e mensagem de seu trabalho. O mais precioso asset da economia peruana é cooptado pela obra da artista a promover uma reflexão acerca da precarização do trabalho em contraste aos processos de modernização do país e da subtração da pluralidade de existências e hábitos das populações locais. O metal insere-se ainda em uma discussão sobre o colonialismo econômico a que o Peru permanece submetido, na medida em que exporta matéria-prima para depois importar o produto de consumo industrializado. A obra de Ximena discute esses estados da matéria. Na instalação Estados Nativos (2017), ela promove o retorno do cobre industrializado ao seu estado orgânico, em um ato de reapropriação da riqueza natural e também em crítica às mineradoras que se multiplicaram em toda a América Latina, a partir dos anos 1990, gerando crimes ambientais que conhecemos tão bem no Brasil. Na mais recente série de trabalhos, Reverberaciones/ Intersecciones/ Transmutaciones (2018-2019), a artista apresenta uma coleção de objetos híbridos, em que tubos e chapas de cobre industrializado são articulados a esculturas de cobre fundido e outras matérias processadas artesanalmente. Às vezes intitulados “organismos”, esses objetos gerados a partir do embate entre dois impulsos contrários poderiam estar associados ainda a forças divergentes de caos e ordem, ou apolíneas e dionisíacas. O tensionamento entre os diferentes estados da matéria é um procedimento que se renova no trabalho da artista desde que ela começou a trabalhar com o cobre, em 2013, construindo instalações em forma de tramas ou sistemas. SELECT.ART.BR

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No trabalho Reverberación #1 (2018), Ximena Garrido-Lecca apresenta objeto híbrido, feito de cobre e cerâmica

A série Aleaciones Con Memoria De Forma (2014-2019), por exemplo, é uma espécie de memorial das manifestações culturais ancestrais e de formas tradicionais de trabalho no Peru. A partir de uma investigação sobre uma mina de cobre e as tradições tecelãs da cidade de Cerro de Pasco, nas encostas andinas, a artista desenvolveu uma coleção de itens com cabos, tubos e arames de cobre tecidos. O mesmo princípio das redes tramadas no embate entre


forças divergentes também se aplica a Destilaciones (2014), instalação formada por um conjunto de vasos conectados por tubulação metálica. O trabalho, que evoca o desenho de um purificador de óleo, foi realizado como um comentário crítico ao processo exploratório e extrativista de petróleo na cidade litorânea de Lobitos, no norte do Peru.

O C OB R E É MEI O E MEN S AGEM NA OBR A D E X I MEN A GAR R I D O -LECCA, Q U E R E F L E T E SO BR E A PR ECAR I ZAÇÃO DO

TR A B A LH O

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EM

C ON T R A S TE CO M A MO D ER N I ZA ÇÃO E S U B TR A Ç Ã O DE P LUR A LI D AD E N O PAÍS

DEVOLVER TERRA À TERRA

Para quem não é familiar ao corpo de pesquisa de Ximena Garrido-Lecca, o olhar mecânico produzido pelo voo aéreo no vídeo Líneas de Divergencia (2018) parece documentar uma intervenção artística sobre terreno desértico. Mas, ao contrário do que poderia ser interpretado como uma herança da land art, o trabalho que está em exibição na 21ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc Videobrasil, até

2/2/20, é fruto da observação e do registro de um processo de ocupação de terras na periferia da cidade de Lima, por camponeses da região andina. Trata-se aqui de outro efeito de um processo de modernização tipicamente latino-americano, que priorizou as cidades e as indústrias em detrimento da agricultura familiar. Em dinâmicas similares às que levaram famílias do Nordeste do Brasil às periferias de São Paulo e do Rio ao longo da segunda metade do século 20, o fluxo migratório dos Andes para o litoral peruano acontece desde os anos 1950. “Levando em consideração as diferentes formas de colonialismo que afetam essa região, as ‘invasões’ de terras ainda representam uma potente força de oposição, desejando abrir novos espaços de integração e caminhos potenciais para a democracia. No entanto, esse processo permanece incipiente e incerto, mesmo após seis anos de luta”, afirma Ximena. O vídeo documenta a última fase de invasões de terras desérticas do município de Pucusana, no litoral. As marcas de cal demarcam as terras já registradas. Ao longo do tempo, essas estruturas adquirem formas mais permanentes, com cercas de bambu, madeira, tijolo ou concreto. Referindo-se a esses outros estágios da posse da terra, a série Líneas de Divergencia elabora também esculturas de cobre fundido que remetem às cercas; e tapetes tecidos com fitas de cobre, que reelaboram as tradições esquecidas. Se buscarmos parentescos em outras regiões do continente, mais que dialogar com uma herança do minimalismo norte-americano, travando uma relação com o ambiente natural, percebe-se nessa obra a qualidade de um engajamento com movimentos de transformação social. Nesse sentido, ela opera em dimensões mais próximas às conceituações da arte ambiental praticada por Hélio Oiticica, nos EUA e no Brasil, nos anos 1970. Um salto temporal e geográfico aproximaria obras como Líneas de Divergencia e Estados Nativos ao Contra Bólide Devolver Terra à Terra (1979), que deslocava terra preta de um lugar para outro, colocando-a numa fôrma sem fundo, em gesto que demarcava a oposição de HO aos earth works norte-americanos. Em rituais de reconduzir o cobre industrial ao cobre natural, a obra de Ximena Garrido-Lecca também vem devolver a terra à terra. FOTO: DIVULGAÇÃO

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ENSAIO

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QUANDO FALAMOS NO DIABO B E AT R I Z L E M O S

N e s t e l u gar con t i n e n t al , o n de s ão t e s t e m u n h ados

Tentador, demônio, satã, serpente, anjo mau, cornudo, maligno, mau, chifrudo, malvado, tinhoso, cão, tendeiro, demônio, satanás, príncipe das trevas (...)

o s m ai o re s í n di ce s de f e m i n i cí di o do m u n do, co m o os art i s t as e as co s m ov i s õ e s i n dí ge n as n o s

O Inominável (2017), obra de Jonas van Holanda, traz o nome do diabo em repetição contínua como um processo de invocação divina, pois toda vez que não podemos falar seu nome, é uma ferida que infecciona, um corpo que desaparece. Trata-se de uma tática de rompimento das fantasias coloniais que moldaram nossas subjetividades e desejos baseados na captura, que, pela ausência de repertório, priva corpos ao Sul na elaboração de desvios. Se em nome de um deus a máquina colonial ganha eterna autorização para sua missão etnocida, é em nome do diabo que o artista transmuta sua existência, assume a captura e a transforma, autorizando o que é não dito, proibido, execrado. A evocação acompanha um longo processo de mudança de voz e transição de gênero, denunciando um corpo que carrega em si a quebra. A obra em áudio, realizada em residência na Bolívia, torna-se uma cacofonia, overdose de palavras em distintos idiomas e mitologias que fazem referência ao conceito de personificação do mal – nossa herança do invasor – numa visão euro-cristã binária e de juízo entre bem e mal; palavras que tensionam racismo, misoginia e, principalmente, o recorte da monstruosidade. Assim, o diabo representaria o acesso a uma autonomia da subjetividade e a falha da colonialidade corpórea, dispositivos operados pela dissidência e por corpos lidos

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aju dam n a e l abo ração e re s s i gn i f i cação das raci al i dad es e p e rf o rm at i v i dade s de gê n e ro

socialmente como mulheres. Como um conjuro, trago o trabalho de Jonas ao lado das entidades femininas da pombajira, da cigana, das sereias e iaras para nos acompanhar nestas notas de reflexão sobre aqueles que negociam trânsitos nas encruzilhadas. PARA PENSAR FEMINISMOS

No decorrer das experiências dos grupos de estudos e das residências realizadas pela plataforma Lastro – Intercâmbios Livres em Arte, entendemos que imaginar feminismos hoje, na América Latina, torna-se impossível se não há a elaboração de um pensamento sistêmico e radical de rompimento com padrões universais de conhecimento e existência, em uma perspectiva que articule raça, etnia, gênero, classe, sexualidade, capacidade e geopolítica como pilares centrais de definição. As insurgências que se manifestam na


O Inominável (2017), obra em áudio de Jonas van Holanda, evoca o diabo para contestar a privação de elaborações de desvios imposta a corpos do sul

FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO FOTO: CORTESIA LEÃO/ PATRICIA DO ARTISTA LEITE

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Atravessia (2018), de Fernanda Porto e Laura Berbert, justapõe fotografias do percurso realizado durante estada na Ilha do Sol, no Lago Titicaca

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FOTOS: FERNANDA PORTO, LAURA BERBERT


O b ordado é u m a

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ling uag e m q u e,

descolonização dos corpos Para nós, fez pare do inconsciente configute imprescindível da junt o ao si s t e m a ram-se na única saída poselaboração desses sível para a reconstrução de feminismos, que exipat riarcal , f o rjo u uma genealogia comum engem epistemologias o corpo fe m i n i n o tre diferentes tempos-espanão hegemônicas, duas ços. É necessário, assim, um concepções de exise m corpo dóci l , feminismo plural que recotências: o gênero munheça singularidades e que, lher enquanto conceito cont rib ui n do p ara segundo a filósofa feminista forjado em vias de um dominicana Yuderkys Espicontrole social e relia dom e st i cação nosa, no texto De Por Qué Es gioso, tendo em vista Necesario un Feminismo Descosmologias ameríndias dos corp o s colonial: Diferenciación, Doque não fazem distinção minación Co-constitutiva de la entre noção de tempo Modernidad Occidental y el Fin circular, natureza e sede la Política de Identidad, “se res vivos; e a identidade faça cúmplice (...) e que pontue afro-indígena enquanto a possibilidade de outros signiprocesso político identificados da vida em comunidade tário a ser vivenciado em e reelabore os horizontes de utosua completude contipia conhecidos universalmente”. nental, ao reconhecer anFoi no trânsito dos corpos nescestralidades fluidas e as te território de Abya Yala (Terra vivências da encruzilhada Madura, ou Terra em Florescitão sabiamente descritas mento, na língua do povo Kuna, por Gloria Anzalduá, teórica e também sinônimo de América) norte-americana de origem que entendemos na pele os dispositivos imprescindíveis chicana , em Como Domar uma Língua Selvagem, como para a retomada de histórias ainda não contadas que posidentidades fronteiriças que “superam a tradição do silêncio”. sibilitem a reinvenção de epistemologias e uma nova cartografia priorizando biomas naturais e contextos especíEM VIAGEM ficos, em vez de mapas e fronteiras demarcadas. Com os As residências Lastro compartilham processos coletivos corpos atravessados pelas peculiaridades locais, acessamos de pesquisa e estudo, dispondo-se à porosidade dos corum lugar de questionamento incisivo sobre procedimentos pos ao contexto e ao cotidiano de viagem. Tendo em vista coloniais de coerção e apagamento, o que nos aportou em esse território inventado, delineado por parâmetros coloestratégias radicais de aprendizado que possam vir a romniais, onde o patriarcado se faz presente na constituição per com o binarismo cognitivo entre teoria e prática. Tal do sujeito, as identidades que fogem do aprisionamento quebra de paradigma tem início com a invalidação de um da normatividade se veem incisivamente violentadas por feminismo único, de concepção universalista, estabelecido inúmeras formas de aversões como misoginia, lesbofobia, em bases brancas-cis-europeias, para a legitimação de inisapatãofobia, transfobia, travestifobia, que nada mais são ciativas de/para/por mulheres que há tempos fomentam a que mecanismos de medo empregados em nome de uma política da autonomia em territórios do Sul global, criando pretensa ordem e controle, regidos pela heteronormatioutras concepções de movimento e luta, epistemologias e vidade e heterossexualidade. Neste lugar continental, metodologias de reivindicação. são testemunhados altos índices de feminicídio, silencia-

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mentos e impedimentos às identidades que performam o aprisionamento dos lugares pretensamente destinados à feminilidades e aos corpos dissidentes. Encarados como mulher – a casa e o privado –, que tragam possibilidades de corpos de descarte, tendo os tensionamentos entre raça, deslocamento e não se vinculem às narrativas de opressão. classe e gênero, nos provocamos com o questionamento: O bordado é uma linguagem que, junto ao sistema patriarcal, como produzir, em meio ao vórtice, narrativas de vida, de forjou o corpo feminino em corpo dócil, contribuindo para a cura e cuidado, acessando a inteligentibilidade ancestral domesticação dos corpos. Na Guatemala, a contradição que do corpo que vislumbre caminhos de fugitividades? habita essa cultura é uma estética presente em todo o país, Ao trazer à discussão as experiências vividas na Bolívia e na muito conectada com a cosmovisão maia, mas que encoberta Guatemala – países que possuem populações majoritariamenum dos maiores índices de feminicídio do mundo. E, como te indígenas e, não por acaso, também enfrentam os maiores numa metáfora milenar do silenciamento e da submissão, índices de precariedade do continente –, o pensamento e as são as mulheres, que tradicionalmente exercem essa prática, cosmovisões indígenas tornam-se condutores do trajeto e nos as mais violentadas. Dessa forma, a obra, que se materializa ajudam na elaboração e na ressignificação das racialidades e enquanto instalação de um grande livro bordado, carrega o performatividades de gênero. Os trabalhos desenvolvidos desafio de denúncia do cotidiano. durante essas residências ou como desdobramentos desses Em Atravessia (2018), Fernanda Porto e Laura Berbert proprocessos muito nos dizem sobre as contradições inerentes porcionam um percurso infinito a partir da justaposição de às obsessões coloniais que subjugam subjetividades, fazendo imagens fotográficas de um caminho percorrido por elas refletir sobre as existências que quebram a norma e aquedurante a estada na Ilha do Sol, no Lago Titicaca. No prilas não autorizadas ao gozo da autonomia e da liberdade. meiro dia do ano de 2017, as artistas cruzaram a Rota SagraA invocação ao diabo da da Eternidade do de Jonas van Holanda Sol – caminho que liga é parte desse desvio, o norte e o sul da ilha que se manifesta como –, numa experimentaafirmação à monstruoção de limite do corpo, sidade em diálogo com do tempo e da intuição, instâncias possíveis de exercitando polaridarelação ao nível corpódes inerentes aos conreo com o divino. flitos de alteridade. A Como Transpor Abismos (2016), de Mariana Guimarães, tensiona Em Como Transpor Abissoma dessas imagens da relações entre tradição e autonomia na prática do bordado indígena mos (2016), de Mariana ilha produz um caminho Guimarães, os tensionasem pontos fixos de parmentos entre tradição e tida e chegada. autonomia se fazem reais As residências em circuno discurso de mulhelares constantes produzires indígenas que têm a ram reflexões a respeito prática do bordado como das negociações forçosas única alternativa, e que, a determinados corpos em assim, são marcadas pelos movimento, negociatas que limites da violência e da se iniciam muitas vezes forviolação. A artista pesquiçosamente e em alturas desa o bordado em diferensiguais. E, embora díspares, tes países com o intuito ainda como estratégias de de criar outras abordagens fuga ou pertencimento, seàs práticas têxteis que não guimos em trânsito.

FOTO: PEDRO VICTOR BRANDÃO


HERANÇAS

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GENEALOGIA DA ABSTRAÇÃO E

FIGURAÇÃO

DA

THIAGO M A RTINS DE ME LO E A MA L IA PICA ATUAL I Z AM D ISC USSÕE S LEVANTADAS NO SÉCULO 20 PEL O REALISMO SOC IAL E O

N EOC ON C RE T ISMO L UA N A F O R T E S

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As formas geométricas da instalação de Amalia Pica A B C (2013) são as mesmas usadas pelo método de ensino Diagramas de Venn, que foi proibido durante a ditadura militar argentina

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O REALISMO SOCIAL, O CONCRETISMO E O NEOCONCRETISMO ESTÃO ENTRE OS GRANDES LEGADOS QUE A AMÉRICA LATINA DEIXOU PARA A HISTÓRIA DA ARTE OCIDENTAL, DESCONSIDERADOS AQUELES QUE POSSAM TER SIDO OFUSCADOS POR PROCESSOS DE INVISIBILIZAÇÃO. O século 20 foi marcado

pelo enfrentamento entre abstracionistas e figurativistas, assim como por discussões acerca do caráter político dessas correntes. O realismo social nasceu comprometido com a preocupação social da classe trabalhadora, vinculado a uma ideologia comunista revolucionária anti-imperialista. A abstração do período pós-Segunda Guerra Mundial foi teorizada tanto como uma investigação formalista sobre a arte autônoma e de forma pura, representando um distanciamento de condições históricas, quanto como uma alegoria da crise das artes comprometidas com ideologias. Diante do contexto da Guerra Fria e da polarização global entre capitalismo e comunismo, essas duas esferas acabaram submetidas a representações ideológicas de cada lado do conflito,

FOTO: CORTESIA STIGTER VAN DOESBURG


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independentemente do alinhamento político de seus expoentes. Enquanto a abstração foi associada à retórica anticomunista, o realismo social muito sucumbiu a ações propagandísticas de governos de linhas marxistas. Com a soberania dos Estados Unidos, as manifestações associadas ao figurativismo foram qualificadas como demasiadamente narrativas, demagógicas, nacionalistas ou de pouca qualidade. Passados 30 anos da queda do Muro de Berlim, a retomada da figuração e a problematização das questões levantadas pela abstração geométrica repercutem na obra de artistas contemporâneos como Thiago Martins de Melo e Amalia Pica. O FILHO PERDIDO DO MURALISMO

Convidado a realizar residências artísticas pelo México, o artista maranhense Thiago Martins de Melo tem viajado muito ao país nos últimos dois anos e é comum que os mexicanos relacionem seu trabalho ao Muralismo, um dos braços do Realismo Social na América Latina. “É uma relação de pintura, política, história e colonialismo. Eles fazem essa associação como se eu fosse o filho perdido do Muralismo no Brasil”, conta Martins de Melo à seLecT. Apesar de essa associação não ser direta e intencional, entre seus artistas preferidos estão os mexicanos José Clemente Orozco (1883-1949) e David Alfaro Siqueiros (1896-1974). “Meu pai é pintor e sempre gostou muito desses artistas. Quando aprendi a pintar, lembro que conheci os muralistas mexicanos justamente pela temática social e todo o engajamento que eles tinham com o Partido Comunista.” Os elos que ligam a obra do maranhense com o Muralismo mexicano são vistos na predominância da pintura entre as linguagens com as quais trabalha; na larga escala; no aspecto realista e expressionista de suas imagens e na dimensão política dos signos que reúne. Diferentemente do Realismo Social, seus trabalhos partem de seu universo pessoal e dizem muito sobre suas relações de intimidade. Porém, nas pinturas disruptivas e altamente simbólicas de Thiago Martins de Melo encontram-se denúncias e posicionamentos políticos assertivos. Diante da abundância e da justaposição de imagens, as mensagens políticas sobressaltam em camadas que explicitam a mixórdia que é a identidade brasileira, latino-americana e ameríndia.

O ovo da serpente e o crepúsculo da demofobia (2016), de Thiago Martins de Melo

CONSPIRAÇÃO PELA ABSTRAÇÃO

A produção abstrata ganhou força na América Latina inicialmente pelas mãos do concretismo, na metade do século 20, tendo forjado na geometria um de seus principais pilares. O concretismo latino teve importantes textos e manifestos em Buenos Aires, Montevidéu, Santiago, São Paulo e Rio de Janeiro, embebidos de um ânimo de desenvolvimento e futuro, aliados a ideias de modernidade e industrialização. Apesar de existirem diferentes compreensões acerca da definição conceitual do movimento, sua produção era considerada demasiadamente racionalista. Daí surgiu o neoconcretismo, que teve seu SELECT.ART.BR

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FOTO: CORTESIA DO ARTISTA


O S AR T IS TAS CON T EM PORÂNE OS THIAGO MARTINS DE ME L O E AMALIA PICA MOS TRAM Q U E O P O TE NCIAL POLÍT IC O DA ARTE NÃO RECAI N A PRE S E NÇA OU N A FALTA DE F IG URAS

esplendor entre artistas residentes no Rio de Janeiro. O Manifesto Neoconcreto, assinado em 1959, diz: “Não concebemos a obra de arte nem como ‘máquina’ nem como ‘objeto’, mas como um quasi-corpus, isto é, um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em parte pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica”. O trabalho da argentina Amalia Pica é um grande exemplo de como esse pensamento permanece vivo e relevante até hoje. A artista tem uma gama de trabalhos que tratam dos Diagramas de Venn, método de ensino matemático usado para simbolizar graficamente a teoria dos conjuntos, que foi abolido durante a ditadura civil-militar da Argentina (1976-1983). O governo militar temia que ensinar nas escolas a representação do conceito de interseção poderia levar à união de cidadãos e a uma conspiração antiditadura. Vista de relance, a instalação A B C (lê-se A interseção B interseção C), de 2013, poderia ser interpretada como uma abstração geométrica formalista, levada ao espaço em forma de instalação. Porém, além da questão conceitual do trabalho, que referencia o passado de repressão de liberdades, as geometrias coloridas e transparentes, posicionadas nas paredes, são frequentemente usadas como objetos de cena em ações. Pica convida um grupo de performers a caminhar pelo espaço, segurando essas formas, provocando a temida interseção de corpos e configurando diferentes formas de comunidade. A instalação é um desdobramento da obra Venn Diagrams (Under The Spotlight), 2011, que traz dois círculos intersecionados, projetados por refletores de luz em uma parede de acordo com um sensor de movimento. O primeiro círculo, azul, acende quando uma única pessoa se aproxima do objeto. O segundo, vermelho, quando mais corpos ocupam o mesmo espaço. A obra de Amalia Pica acaba por confirmar o que a ditadura argentina enxergava como perigoso e potencialmente subversivo. A artista aponta para a beleza e eficácia da união na luta contra as tentativas de cerceamento da liberdade. Se a rixa entre figurativismo e abstracionismo do século 20 levou a associações ideológicas fáceis, a produção contemporânea mostra que o potencial político da arte não recai na presença ou na falta de figuras. A exemplo da obra de Thiago Martins de Melo e de Amalia Pica, a arte é muito mais heterogênea e instigante do que já foi presumido.

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HISTÓRIA

HISTÓRIA DAS EXPOSIÇÕES DA LATIN AMERICAN ART À ARTE DO SUL PLANETÁRIO

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Es t e con ci s o re co rt e de col e t i vas co m a rt i s t as e q u e s t õe s l at i n o -am e ri can as, o corri das e n t re 193 9 e 20 18, aju da a DA N I E L A L A B R A

co m p re e n de r a h i s t ori ograf i a de u m a m ode rn i dade e s cri t a n as re l açõ e s n e oco l o n i ai s e de s col on i ai s entr e p aí s e s da Am ér ica Lat i n a e C ari b e, E u rop a e E UA

Participação dos argentinos Grupo de los Trece na 1 a Bienal Latino-Americana de São Paulo, em 1978 FOTO: ARQUIVO HISTÓRICO WANDA SVEVO, FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO

FOTOS: NONONONONO

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A EMANCIPAÇÃO DE UMA FALA CRÍTICA NAS ARTES DO SUL PLANETÁRIO É UM PROCESSO AINDA EM CURSO. Ela sucede a busca, no século 20, de uma identidade comum a uma “arte latino-americana”, engendrada

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concomitantemente em países da América Latina, onde escolas modernas defendiam vanguardas próprias e a elaboração de um projeto estético latino-americano crítico, e em uma sucessão de exposições em centros hegemônicos. Em Paris de 1923, modernistas latinos seriam expostos com mais frequência após a criação da Maison de L’Amérique Latine e da inauguração, em 1924, da Exposition D’Art Américain-Latin. A ideia de Latinamerican Art institucionaliza-se, contudo, nos Estados Unidos, com as Latin American Art Exhibitions, no Riverside Museum, em Nova York, em 1939 e 1940. Reunindo a produção de nações situadas entre o México e o Chile, além do Caribe, foi a primeira grande mostra de arte contemporânea da região no país, junto às programações da New York World’s Fair. Foram apresentadas mais de 575 pinturas, esculturas, estampas e têxteis de dez países, selecionadas por uma comissão alinhada aos propósitos políticos, diplomáticos e comerciais da World’s Fair. Já em 1942, ocorreu no MoMA The Latin-American Collection of the Museum of Modern Art, com obras da coleção do museu fundado em 1929. O acervo começou, em 1935, com uma doação de John D. Rockefeller, embora o interesse nessa produção artística tenha se intensificado após a individual de Diego Rivera, em 1931. Outras mostras importantes do MoMA foram: Arte Inca, Maya e Azteca, 1933; Vinte Séculos de Arte Mexicana, e Portinari do Brasil, em 1940; Brazil Builds, 1943. Em 1949, em Paris, a Exposition d’Ouvres d’Artistes Latino-Américains, promovida pela Unesco, exibiu outro grupo representativo de artistas latinos modernos, mas ainda como miscelânea, comum até então, com trabalhos de várias tendências e períodos agrupados sob um termo genérico. Vista da exposição Princípio Potosí ¿Cómo Podemos Cantar el Canto del Señor en Tierra Ajena?, Apesar da pluralidade de estilos desapresentada no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía em 2010 sas mostras, críticos e autoridades do Norte hegemônico valorizavam menos a diversidade e mais os estereótipos latino-americanos de temas pitorescos e cores, condenando derivações de modelos artísticos europeus acadêmicos ou contemporâneos. Já na América Latina, cenas artísticas amadureciam e escolas modernas defendiam vanguardas próprias. Em 1951, é inaugurada a Bienal Internacional de São Paulo – primeira exposição das Américas e a segunda do mundo nos moldes de Veneza. Fundada por críticos e artistas ligados ao MAM de São Paulo e financiada por Francisco Matarazzo Sobrinho, promoveu a formação de olhares, a profissionalização do meio de arte, e a internacionalização que iria reverberar na criação artística local. SELECT.ART.BR

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No m e i o do s é cu l o 20 , cu rado re s, in s t i t u i çõe s e au t o ri dade s do N ort e he ge m ô n i co val ori z avam m e n o s a d i ve rs i dade do q u e e s t e re ó t i p os l at i n oam e ri can os de t e m as p i t o re s co s e co re s v i vas

INSTRUMENTOS DE PROJEÇÃO DE DISCURSOS

No fim da década de 1950, há uma tomada de consciência crítica da representação da identidade latino-americana com Mário Pedrosa, Aníbal Quijano, Juan Acha ou Ferreira Gullar, seguidos por Damián Bayon, Aracy Amaral, Marta Traba, Frederico Morais e outros. Nas décadas seguintes, revoluções nos campos cultural e político afetariam os modos de expor e de fazer arte, e exposições tornam-se também instrumentos de projeção de discursos. Teorias culturais dos anos 1970-80 aprofundam debates sobre a noção da identidade moderna, homogeneizante, colonial, incentivando um projeto estético latino-americano crítico, experimental e emancipador. Assim surgem a Bienal Latino-Americana de São Paulo, no Pavilhão da Bienal, em 1978, e a Bienal de Havana, em 1984. A primeira, fruto de discussões de críticos como Aracy Amaral e Juan Acha sobre o lugar da América Latina nas Bienais de São Paulo, teve só uma edição. Os participantes, indicados por órgãos diplomáticos que os financiavam, formaram um conjunto artístico pouco representativo e muito oficial, decepcionando a crítica latina. A Fundação Bienal de São Paulo então se comprometeria em mais representações de artistas latino-americanos. Alguns críticos e autoridades, temendo um evento regionalista precário isolado do cenário internacional, opuseram-se à sua continuidade. Já a Bienal de FOTO: ARQUIVO MUSEO REINA SOFÍA

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Havana inovou, apresentando apenas artistas do bloco latino-americano e do Caribe. Promovida pelo Centro de Arte Contemporânea Wifredo Lam e o Ministério de Cultura de Cuba, em 1986 passa a incluir regiões do Sul Global, como Ásia, África, Oriente Médio e Oceania, sendo até hoje uma alternativa ao modelo das megabienais. Nos anos 1990-2000, um cenário de internacionalização estimularia a fundação de mais bienais e a expansão do mercado de arte contemporânea com inúmeras feiras, enquanto os museus se temporalizaram com programações curtas e diversas, para grandes públicos. Em 1998, a 24ª Bienal de São Paulo, curada por Paulo Herkenhoff, tornou-se um marco ao tomar o conceito de Antropofagia em suas múltiplas significações como ponto de partida crítico, estético e histórico para forjar um discurso não eurocêntrico de articulação dos conteúdos. Foi uma Bienal interdisciplinar que propôs um novo paradigma para a escritura da história da arte. Criada em Porto Alegre, em 1997, a Bienal do Mercosul foi motivada pelo projeto de união comercial dos países do Cone Sul, e também Chile e Bolívia, juntando interesses de mercado a projetos culturais, artísticos, educacionais e sociais. A primeira edição, elaborada por Frederico Morais, repensava a história da arte de um ponto de vista latino-americano contraposto à visão euro-americana. Em 2020, a curadoria geral é de Andrea Giunta, que em 2018 realizou com Cecilia Fajardo-Hill Radical Women: Latin American Art, 1960-1985, reunindo obras de 120 mulheres artistas e coletivas, ativas na América Latina e nos EUA, a partir da noção de corpo político.

REVERSO DO MUNDO HEGEMÔNICO

Para Silvia Rivera Cusicanqui, socióloga boliviana e ativista de origem aymara, “o Sul é o reverso do mundo hegemônico; o olhar do Sul é também um olhar planetário”. Uma das salas da exposição coletiva Radical Women: Latin American Art, 1960-1985 em Hoje, a América Latina possui hismontagem no Brooklyn Museum, em Nova York toriografias, instituições, mercados e um corpo de autores que analisam o contexto e suas precariedades crônicas em movimentos disruptivos e reinventivos. Mas, durante esse processo ainda em curso de emancipação da fala crítica nas artes do Sul planetário sobre o Sul colonizado, instituições europeias ainda mantêm um discurso muitas vezes calcado em modelos hegemônicos. Caso de Art D’Amérique Latine 1911-1968 (Centre Pompidou, Paris, 1992), concebida para a Exposição Universal de 1992, em Sevilha, que chegou em Paris pelas celebrações dos 500 anos do “Descobrimento”. Curada por Waldo Rassmussen, chefe do Programa Internacional do MoMA, apresentava meio séSELECT.ART.BR

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“o Su l é o re ve rs o do m u n do h e ge m ô nico ; o ol h ar do Su l é t am bé m u m o l h ar p l an e t ári o ”, co n s i de ra a s o ci ól oga b o l i v i an a e at i v i s t a de o ri ge m ay m ara Si l v i a Ri ve ra C u s i can q u i

culo de história da arte de 12 países. Foi criticada por reduzir a produção artística latino-americana a uma arte feita de influências, numa visão ainda colonialista, além do fato de a maioria dos artistas selecionados estarem no mercado de arte norte-americano. Com a participação de Silvia Rivera Cusicanqui na curadoria, a mostra Princípio Potosí ¿Cómo Podemos Cantar el Canto del Señor en Tierra Ajena? (Museu Nacional Centro de Artes Reina Sofía, Madri, 2010) situava a colonização da América Latina como ponto de origem da globalização e do capitalismo moderno, repensando a origem e a expansão da modernidade a partir da pintura colonial barroca. Propôs um diálogo de obras de artistas internacionais com arte barroca dos séculos 16 a 18, procedente principalmente de conventos, igrejas, arquivos e museus da Bolívia e da Espanha. Buscando o reverso do mundo hegemônico, Perder la Forma Humana (Museu Nacional Centro de Artes Reina Sofía, Madri, 2012) apontou para o surgimento simultâneo de novas formas de fazer arte e política na América Latina na década de 1980. Resultado de uma pesquisa da Rede de Conceptualismos do Sul, focou no período histórico entre 1973, ano do golpe de Estado de Augusto Pinochet no Chile, até 1994, quando o Zapatismo inaugurou um novo ciclo de protestos refundando o ativismo internacional. FOTO: JONATHAN DORADO, BROOKLYN MUSEUM

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ARTE E POLÍTICA

PAU L A A L Z U G A R AY

A ALMA COLETIVA DAS REVISTAS

Além d e opera r c omo espaço s am pliado s de e x po sição, per iódicos a rt íst ic os t êm pape l ce n tr al n a cir cu lação de ideias ent re p aíses la t inoa mer icanos e no estr eitament o dos vínc ul os entr e a art e e a ação p ol ít ic a

Capa da edição 26 da Amauta, realizada pelo pintor José Sabogal, que era diretor de arte da revista. Na pág. ao lado, índice da edição 01. Revista peruana foi tema da exposição Redes de Vanguardia: Amauta y America Latina, 1926-1930, no Museu Reina Sofía, em Madri SELECT.ART.BR

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O QUÉCHUA, IDIOMA MILENAR DOS INCAS, É UMA LÍNGUA VIVA, FALADA HOJE POR CERCA DE 8 MILHÕES DE HABITANTES ANDINOS, DA ARGENTINA ATÉ A COLÔMBIA. Além de estar entre

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as línguas oficiais do Peru, da Bolívia e do Equador, estima-se que seja o terceiro idioma mais falado na América do Sul, antes do Guarani, que tem estimados 5 milhões de falantes. A maneira com que se distribui pela América do Sul, conectando povos de latitudes tão distintas, não deixa de ser sintomática da maneira com que uma publicação de nome quéchua se espalhou pelo continente. A revista Amauta – que significa sábio, mestre –, fundada em setembro de 1926, em Lima, Peru, afirmava a ideia de uma América Latina com laços culturais e projetos políticos compartilhados. Colocava em pauta discussões de gravitação continental, como as vanguardas, o anti-imperialismo e os vínculos entre a arte e a ação política. Englobando literatura, artes visuais, política e economia, a revista tornou-se um modelo para o pensamento decolonial, a elaboração de novas cartografias transnacionais e também para as publicações artísticas socialmente engajadas e voltadas a uma comunicação inter-regional, que viriam a surgir entre hispano-americanos e brasileiros.

Assim como não se ouve nem se fala a língua quéchua no Brasil – a Cordilheira dos Andes não passa por aqui, afinal –, tampouco se reconhecem colaboradores brasileiros entre os artistas e escritores que fizeram a Amauta. Artistas e intelectuais latino-americanos como Xul Solar, Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, Tristán Marof, Diego Rivera, Gabriela Mistral, Julio Antonio Mella e Alfredo Palacios, entre outros, colaboraram com a revista que foi editada pelo escritor e jornalista peruano José Carlos Mariátegui até 1930. O fato é que a recepção de Mariátegui se deu tardia e timidamente no Brasil, e as comunicações do diretor de Amauta com brasileiros foram escassas. As primeiras referências registradas de algum contato datam de 1928, quando o jornalista e teórico peruano trocou correspondência com o intelectual paulista Álvaro Soares Brandão, que tinha interesse em publicar um de seus textos na Amauta. Mas as tratativas parecem não ter avançado. Barreira linguística ou não, o fato é que nos anos 1920 o Brasil buscava redefinir sua linguagem artística voltando-se para o próprio umbigo. Enquanto Mariátegui fundava o Partido Socialista do Peru, tecia elos entre vizinhos e colocava sua revista a serviço de “uma renovação social e REVISTA MENSAL DE DOUTRINA, LITERATURA, ARTE, POLÊMICA

FOTOS: CORTESIA MUSEO NACIONAL CENTRO DE ARTE REINA SOFIA


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política” – o autor é considerado o “pai” do marxismo latino-americano –, a buzina da revista Klaxon não era ouvida além do perímetro urbano de uma São Paulo industrializada e inflada por movimentos migratórios maciços (lembrando que o primeiro periódico modernista brasileiro elegeu como título uma palavra usada para designar a buzina externa dos automóveis). Mas, se o grupo modernista brasileiro inventava uma linguagem própria a partir da assimilação crítica dos modelos europeus, o grupo em torno da Amauta – embora heterogêneo e longe de se caracterizar como movimento – também buscava uma vanguarda para chamar de sua. E foi encontrá-la em uma receita que misturava o arcabouço teórico marxista com o indigenismo – essa vanguarda essencialmente latino-americana. O indígena, colocado na posição de sábio, é assumido como eixo programático da revista e tema da capa do nº 01 da revista, em ilustração do pintor argentino José Sabogal. Questões indígenas foram pautadas desde diversas óticas na revista, embora cedo artistas e críticos associados à abstração tenham assumido questionamentos locais que caracterizavam o indigenismo como um movimento pitoresco e explorador de certo exotismo do tema.

As revistas Hexágono’71, nesta pág., e OVUM 10, na pág. ao lado, reuniam folhas soltas em um envelope, com textos, poesias e projetos de artistas SELECT.ART.BR

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LIBRES O MUERTOS, JAMÁS ESCLAVOS

Os esforços por irromper os instrumentos de dominação ideológica dos países que concentram o poder e a riqueza mundial permaneceram no lastro de projetos editoriais de artistas latino-americanos ao longo de todo o século 20. Especialmente na safra experimental e conceitual, emergente de contextos repressivos das ditaduras militares, nos anos 1960 e 1970. Nesse caso, a barreira linguística não foi um impeditivo para a colaboração sul-americana. O crítico e artista conceitual arA ba rre ira gentino Jorge Glusberg referiu-se a esses esforços como “estratégias li nguíst ica de liberação”, em artigo da revista nã o foi um Hexágono’71 (1971 e 1975). Publicada pelo artista e poeta Edgardo Antonio i m ped i ti vo para Vigo, na cidade de La Plata, Argentina, a Hexágono’71 tomava para si o a cola boração desafio de integrar “possibilidades latino-americanas de certas comunis ul-a mericana cações chamadas marginais”. Editada em forma de envelope, ou assemn o s a nos 1 960 e bling, a publicação trimestral reunia 19 70 . Esforços em folhas soltas poesias, projetos e textos enviados por vários artistas por r ompe r a ou produzidos pelo próprio Vigo. Antes, o artista havia editado Diagodomi na çã o ide ológ ica pe rm ane ce m nal Cero (1962-1968), comprometida com arte argentina de vanguarda, e a n o la str o de proje t os e dit oriai s de WC (1958), que facilitou a aproximação de Vigo com os poetas editores a r tist as lat ino-am e ric an o s da Noigandres (1952), especialmente com Augusto de Campos. Enquanto isso, no Uruguai, Clemente Padim realizava a Ovum 10 (19691975), “revista trimestral de investigação poética e difusão de correntes de nova poesia”. Também na forma de envelopes, tinha a colaboração assídua de Vigo – que fez a capa da nº 04, em setembro de 1970 –, e de integrantes do grupo Poema/Processo, como Dailor Varela, Wlademir Dias-Pino e Paulo Bruscky, do qual o poeta, artista visual, performer e artista gráfico uruguaio Clemente Padim participava. Embora a Ovum 10 não tivesse a orientação temática ou curatorial de Padim, a nona edição, de dezembro de 1971, foi particularmente política, ao comemorar três anos do evento Tucumán Arde, “uma das ações mais importantes e explosivas realizadas FOTOS: CORTESIA COLEÇÃO MIGUEL MESQUITA GUIMARÃES

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pela vanguarda artística latino-americana”, segundo o editorial. Além disso, a revista propunha-se a formar uma rede de colaboração editorial sul-americana que incluiu revistas brasileiras que praticamente não deixaram rastros, como Perspectiva Levante (Campina Grande, PB, Bra), SLD (Cataguases, MG, Bra) e Etapa (Pirapora, MG, Bra). No Brasil, a revista Ponto (1968) foi literalmente um ponto de partida do Poema/Processo, mas teve só dois números, sendo os trabalhos reunidos no envelope da Ponto nº 2 orientados contra a ditadura. Do artista paraibano Unhandejara Lisboa, o envelope Karimbada 1 trazia trabalhos enviados por colaboradores como o mexicano Ulisses Carrión, o germano-brasileiro Leonhard Frank Duch e o brasileiro Falves Silva, configurando um fórum de práticas com uso de carimbo. Também a artista Regina Silveira elaborou um envelope, intitulado On/Off (1974), com montagens fotográficas de cunho surrealista, de Ubirajara Ribeiro, Amelia Toledo e Julio Plaza, entre outros.

E vocando a alm a cole t iva da re vist a Amauta, a Plat aform a L ast ro, criada por B e at ri z L e m os e m 2 005 , ab re last ros ao s sab e re s indíg e nas e afro-b ras i l e i ros, p e n s an do as Am é ri cas n o p an o ram a do m u n do

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No mesmo espírito colaborativo, a revista Cenizas foi criada em 1979 pelo costa-riquenho Rolando Castellón, o primeiro curador latino-americano do MoMA de São Francisco. Após interrupção em 1987, permanece ativa até hoje. Em novembro de 2019 foi lançada em Lisboa a Cenizas 45, assinada pela fotógrafa brasileira Renata Siqueira Bueno. CRIAR LASTROS E ENTENDER A CENA COMO CIRCUITO

Cem anos separam a revista Amauta da Plataforma Lastro, de Beatriz Lemos, mas ambos os projetos se alinham ao promover redes de circulação da arte na América Latina. A Plataforma Lastro surgiu em 2005, em Buenos Aires, como uma iniciativa de intercâmbio de portfólios entre A fotógrafa brasileira Renata Siqueira Bueno assina a edição artistas cariocas e portenhos. Ao lon45 da revista Cenizas, criada em 1979 por Rolando Castelón e go dos dez primeiros anos, voltou-se ativa até hoje à catalogação de agentes e espaços de arte latino-americanos, tendo realizado 17 residências e se desdobrado em uma plataforma digital, entre 2010 e 2015, que funcionou como um fórum de debates com cerca de 2 mil usuários, entre artistas, curadores, pesquisadores, espaços de arte, galerias, instituições e outros projetos. O site está sendo atualizado e reativado, com previsão de relançamento em fevereiro de 2020. Recentemente, a Plataforma Lastro inaugurou uma fase de viagens coletivas por Bolívia e América Central. O projeto percorreu Panamá, Costa Rica, Guatemala e México com 15 artistas e curadores brasileiros, elaborando pesquisas sobre povos originários e circuitos ancestrais no cotidiano contemporâneo. Um dos resultados desses processos, a mostra Lastro em Campo – Percursos Ancestrais e Cotidianos (2016), no Sesc Consolação, tomou como símbolo a obsidiana, pedra vulcânica utilizada pelos Astecas como “espelho do futuro”. Evocando a alma coletiva da Amauta, o projeto abre lastros aos saberes indígenas e afro-brasileiros, pensando as Américas no panorama do mundo. FOTOS: RENATA SIQUEIRA BUENO

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E N T R E V I S TA / A N D R E A G I U N TA

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UMA E X P O S IÇ ÃO É U M T O R N A D O

DA N I E L A L A B R A E PA U L A A L Z U G A R AY

A C U R A D O R A- G E R A L D A 1 2 ª B I E N A L DO

M E R C O S U L,

ANDREA

G I U N TA ,

ARTICULA UMA EXPOSIÇÃO LIVRE E DESAFIADORA, O

CONCEITO

CONSTRUÍDA DE

SOBRE

DIFERENÇA

E

M U LT I P L I C I D A D E D O ( S ) F E M I N I N O ( S )

A ESCRITORA, PROFESSORA E PESQUISADORA ARGENTINA ANDREA GIUNTA ESTEVE EM SÃO PAULO EM 2018 PARA A MONTAGEM DA EXPOSIÇÃO MULHERES RADICAIS: ARTE LATINO-AMERICANA, 1960-1985, FRUTO DE LONGA PESQUISA REALIZADA EM PARCERIA COM A HISTORIADORA DA ARTE CECILIA FAJARDO-HILL. No Brasil, constatou um mundo da arte branco, patriar-

cal e classista, que repete uma estrutura em vigor em toda a América Latina. De volta ao país como curadora-geral da 12ª Bienal do Mercosul, que acontece de 16/4 a 5/6/2020, em Porto Alegre, Giunta pesquisa “uma transformação radical no contemporâneo” a partir da atuação de outras identidades no campo da arte. Com o título Feminino(s). Visualidades, Ações e Afetos, a mostra interroga o lugar social do feSELECT.ART.BR

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minino a partir de propostas de artistas mulheres e de sensibilidades não binárias, fluidas e não normativas. Com sua equipe curatorial formada por Dorota Biczel, Fabiana Lipes e Igor Simões, Giunta busca construir espaços de expressões e escutas, que problematizem os sistemas excludentes da arte e da sociedade. Em entrevista concedida à seLecT por Skype, desde Buenos Aires, ela fala sobre o poder convulsivo da arte e os desafios de fazer uma Bienal quando as sociedades estão em crise e as políticas inclusivas estão em perigo.


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Paula Alzugaray: Em entrevista à seLecT, durante a montagem de Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985, na Pinacoteca de São Paulo, você me disse que, se a exposição abordasse o contexto contemporâneo, seria difícil incluir apenas mulheres. Nesse sentido, a mostra Feminino(s) abordará a complexidade atual dos problemas feministas, como sensibilidades não binárias e não normativas?

Andrea Giunta: Sim, de fato, quando fui convidada a apresentar um projeto, estava finalizando Mulheres Radicais e vi uma possibilidade de continuar pensando sobre esse problema, mas não só no terreno da discussão sobre o binário. Talvez o capítulo mais interessante que se abriu para mim ao montar Mulheres Radicais no contexto brasileiro – e ver como o mundo da arte no Brasil é um mundo branco, patriarcal e classista, como também é na América Latina, mas no Brasil é muito mais evidente – foi investigar o que realmente implicava uma transformação radical no contemporâneo. Quando trabalhamos Mulheres Radicais, praticamente não conseguimos localizar artistas afro-latino-americanas que tivessem tido inserção no mundo das artes. Estávamos trabalhando com esse parâmetro: artistas reconhecidas pela mídia por participarem de exposições, serem premiadas... mas isso não acontecia com as artistas afro-latino-americanas, pois elas estavam ausentes do mundo da arte. Isso foi particularmente impressionante e fiquei muito preocupada porque era muito difícil fazer uma exposição de mulheres brancas no contexto brasileiro. Penso que poderíamos ter incluído Maria Auxiliadora. Mas o mundo da arte não a havia

incluído. Esse panorama mudou radicalmente no Brasil porque as universidades, por meio de cotas, tiveram de levar adiante políticas inclusivas, que deram participação em outras identidades. Hoje há muitas artistas incríveis afro-brasileiras e afro-latino-americanas, e isso foi um ponto realmente deslumbrante para mim, pois acedi a poéticas que eu não esperava. Então, sim, a exposição está considerando outras identidades, mesmo em termos de sexualidade. Mas não vamos lidar com porcentagens porque também discutimos o quanto elas estigmatizam. Incluímos identidades fluidas, artistas trans, mas não vamos dizer quem é quem. É um trabalho da crítica investigar isso. Mas, para mim, foi uma transformação completa dos meus parâmetros e essas artistas estarão muito bem representadas na Bienal. PA: No statement curatorial, você afirma que, dentro do amplo espectro da bienal Feminino(s), deseja “ouvir em detalhes e abordar seriamente todos os estereótipos marginalizados”. Como será feita essa escuta? Como a pesquisa está sendo feita?

É uma investigação de radar aberto. A diferença entre Mulheres Radicais e uma bienal é que, em uma bienal, não é preciso cobrir tudo; não é como uma exposição histórica, onde é preciso fazer uma investigação completa. As bienais enfrentam desafios inesperados, há muitos trabalhos que serão produzidos, por isso é uma metodologia completamente diferente. Não sei, na verdade é a primeira vez que curo uma bienal, sempre faço exposições que criam um compromisso extremamente alto com a história, explicando claramente o que está na exposição e quais são os parâmetros. A bienal é mais livre e desafiadora. Acredito que gerará muita atenção em relação ao poder da arte para tratar questões estético-políticas em contextos difíceis, como o que o Brasil está passando. Nesse sentido, meu conhecimento de toda a arte desenvolvida em ditaduras e contextos repressivos também é uma formação para entender que existem trabalhos extraordinariamente políticos, mas não necessariamente óbvios. Daniela Labra: Como falar sobre questões de raça, etnia e empatia, sobretudo no contexto de uma bienal no Sul do Brasil, que é uma região que apoia fortemente a narrativa que agora está no poder. Como conversar com um público que geralmente rejeita essas ideias?

Bem, a sociedade brasileira é como todas as sociedades latino-americanas. Quantas vezes ouvimos em nossos países que na Argentina não há racismo, que no Brasil não há racismo, que não há racismo em lugar algum? E, no entanto, existem muitas pessoas que não estão em posições de poder e, coincidentemente, quem está são pessoas brancas, que pertencem a certos setores sociais. Parece-me que essas produções artísticas não estão sendo incluídas, não porque o sujeito criativo seja FOTO: ROB VERF


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um afrodescendente, mas porque estão apresentando poéticas extraordinariamente sofisticadas, que não tiveram espaço no mundo da arte. Esta é a decisão política como curadora: dizer que vozes eu gostaria de proporcionar ao público. Porque, assim como um artista foi apagado, o público também foi prejudicado por um sistema de arte excludente. Existe um tipo de censura sistêmica no mundo da arte que exclui muitas vozes representadas na sociedade e que o público não pode ver. Acho que o problema é duplo. Por um lado, vozes silenciadas que não podem se expressar e, por outro, vozes silenciadas que não podem ser ouvidas. Assim, uma exposição que propõe como agenda política e estética essa necessidade de levar o público sem discriminação a produções com alta densidade, complexidade estética e sofisticação da linguagem também dá lugar a um direito do público e da cidadania, que é conhecer mais. O mundo da arte é muito exclusivista, acaba trabalhando em torno de vários artistas repetidos, repetidos e repetidos. Mas é um campo extraordinário que deve ser trabalhado de maneira mais abrangente, com o objetivo de criar contextos de conhecimento. Por outro lado, você menciona empatia e isso me parece importante porque em muitos casos os artistas falam em nome de outros. Por exemplo, Claudia Andujar, cujo trabalho fotográfico político e de militância em relação aos Yanomâmi é extraordinário. Ela não é uma pessoa que se aproxima com um olhar exótico, mas com um olhar empático... mas a gente também se pergunta: o que dizem os Yanomâmi? Porque nós os vemos representados. Nesse sentido, tratamos, na Bienal, de tornar a primeira pessoa vibrante. O sujeito empoderado.

No meu trabalho, estou revertendo muitos desses regulamentos canônicos. Por que temos de pensar na regulamentação centralizada entre o cubismo e a arte africana e não podemos pensar no cubismo como uma periferia da arte africana? Temos uma maneira muito estabelecida de pensar o relato canônico da modernidade. Estou mais interessada neste momento em pensar de outra maneira. PA: E como você vê no contexto contemporâneo o indigenismo, uma vanguarda histórica propriamente latino-americana? Seu paternalismo está em revisão?

Sim, o paternalismo é certo, as elites falavam “em nome de”. O programa muralista da revolução mexicana reduziu o indígena a uma iconografia, enquanto o sistema pós-revolucionário, desde as articulações do Estado, mantinha o indígena submetido. Além disso, falava-se de um indígena idealizado, não do indígena real. Parece-me que na arte contemporânea essa questão ainda é muito forte. O mundo da

DL: Como você situa o legado das vanguardas modernas latino-americanas, pensadas como movimentos emancipadores, como projeto político? Você consegue perceber algo desse legado ainda hoje ou as discussões mudaram bastante?

O horizonte utópico das vanguardas é uma dívida emancipatória pendente. A emancipação nunca está completa, seus horizontes mudam. Portanto, o impulso da vanguarda como capacidade de imaginar um futuro diferente continua presente. Também é certo que muitos artistas trabalham com citações da vanguarda histórica, Jovem da etnia Catrimani, em Roraima, fotografado por Claudia Andujar com em movimentos neovanguardistas. Não podemos penfilme infravermelho, em 1976 sar em minimalismo sem Malevich. Não podemos pensar em Rauschenberg, ou em artistas dos anos 1960, sem arte contemporânea também coleciona exotismos e o futurismo, ou sem a conexão de Duchamp com o dadaísmo. Isso é cla“fala em nome de”. Temos de nos perguntar quais ro. Agora, talvez neste momento eu também sinta mais fortemente tudo o que esse mundo deixou de fora. Quando se pensa no cânone da arte são os deslocamentos e as operações de empoderamento, que têm sido muito recentes. A partir do e no discurso da vanguarda histórica tanto quanto na vanguarda latino-americana, muitas exposições recentes revelaram até que ponto esses momento em que a comunidade afro-latino-americana tem inserção na universidade, também quer horizontes emancipadores estavam trabalhando dentro de uma elite e participar, expor e ser reproduzida em catálogos, dentro de um mundo branco. Eu acho que a exposição de Tarsila do Amaral no MoMA foi tão controversa, por causa da maneira de conceexibições individuais e entrar no mundo do poder da arte. Este não é um processo concluído, estamos ber a montagem, a curadoria. Questiono também por que aprendemos a história da arte tão centrada em basicamente cinco cidades do mundo. no meio desse processo. Na medida em que socieSELECT.ART.BR

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dades como a brasileira estão em crise, essas utopias e políticas inclusivas também são um processo em plena combustão, também em perigo. PA: Que críticas você faz à curadoria de Tarsila no MoMA?

A curadoria de Tarsila no MoMA era hiperproblemática, porque não se pode, neste momento em que trabalhamos a partir de perspectivas pós-coloniais, em que nos perguntamos quais são as matrizes excludentes ou racistas em nossas sociedades, exibir em um museu como o MoMA A Negra, de Tarsila do Amaral, com uma naturalidade sem contextualização, em que você não percebe o que isso significa. A própria Tarsila não tinha muita consciência, nem podemos pedir a uma pessoa que pertence a um setor sociocultural para desenvolver as diferentes matrizes de pensamento que temos hoje. Sobre isso havia muitos artigos no The New York Times, no Hyperallergic, no Art Newspaper, com a participação de artistas afro-brasileiros que perguntavam, bem,

“CLAUDIA TRABALHO

ANDUJAR

TEM

UM

FOTOGRÁFICO

E

POLÍTICO

EXTRAORDINÁRIO.

ELA NÃO SE APROXIMA COM UM OLHAR EXÓTICO, MAS COM UM OLHAR EMPÁTICO. MAS A GENTE TAMBEM SE PERGUNTA: O QUE DIZEM

OS

YANOMÂMI?”

onde estão as vozes que falam de toda essa problemática? Por que os problemas da escravidão ou da afro-brasilidade entram em uma exposição sempre pelos mesmos mecanismos? Até que ponto a história da arte está realmente ecoando um debate político, filosófico e, acima de tudo, uma transformação na qual os sujeitos que estavam em uma situação cultural exclusiva estão tendo novas ferramentas e se capacitando? Não posso falar em nome do outro, porque é exatamente o que estou questionando,

mas posso questionar o que estou vendo e o que não estou vendo. Uma exposição tem um poder extraordinário, porque coloca diante de nossos olhos uma relação sem precedentes entre as obras. Em uma sala de exposição acontece muito mais do que simplesmente trabalhos pendurados lado a lado. A narrativa das obras cria uma espécie de tornado dentro de um espaço expositivo. DL: Nos últimos cinco anos, tivemos duas presidentes no Brasil e no Chile, Dilma Rousseff e Michelle Bachelet, eleitas em 2014 por segunda vez, retiradas pela mão forte do neoliberalismo com forças do poder político. Em resposta, penso que nos últimos cinco anos também aumentaram os coletivos, curadores e artistas que partiram para práticas estético-ativistas.

O Chile é um país importante representado na Bienal, precisamente porque nessa conjuntura e ante tantos anos de ditadura, a arte chilena conseguiu desenvolver uma enorme consciência crítica e estética em torno dos limites da palavra e da imagem: como dizer quando você não pode dizer... e estamos em um contexto em que a liberdade das imagens e das palavras é restrita. Estamos sob uma vigilância que escapa ao mundo da arte ou de agentes políticos específicos, estamos diante de uma sociedade que está disposta a denunciar, filmar... uma quantidade de coisas novas e que a arte não tem todas as ferramentas para levar adiante uma política de dizer “apesar de” ..., como Didi-Huberman diz, “imagens, apesar de tudo”. Quando os conceitos parecem completamente opostos e contraproducentes, no entanto, eles continuam sendo articulados. Acho que a arte chilena tem uma tradição complexa de trabalhar sobre dobras, deslizes. Estamos diante de um desafio. Temos de estar muito conscientes de que há uma vigilância extrema. E a questão é como continuar criando sinais que suscitam afeto, pensamento e crítica, mesmo quando há dificuldade em dizer, colocar imagens, porque existem métodos de controle inéditos. É um desafio fazer uma Bienal em um contexto como o contemporâneo. DL: A rede Conceptualismos del Sur lançou uma chamada para projetos gráficos de apoio à causa política do Chile agora. Isso chama para um diálogo com uma produção ativista que se fortalece há cinco anos no Chile e no Brasil...

Bem, acho que a Conceptualismos del Sur está muito associada a um museu que depende da monarquia e do Estado espanhóis, não é? Não podemos esquecer isso. Existem muitas resistências locais que trabalham com pôsteres nas ruas, com ativismo feminista, criação de objetos, bandeiras, conferências, ou seja, de forma muito mais rica que uma iniciativa centralizada que constrói uma plataforma de centralidade. Há uma textura incessante. DL: Sim, estamos vivendo momentos de convulsão, e a arte responde.

A arte não apenas responde, como também gera a convulsão. Pude observar tantas vezes que a arte produz e funda debates inéditos... uma exposição é um tornado. É uma convulsão de ideias, é uma linguagem que tem especificidade e pode se comunicar e atravessar tensões de maneira única.

se L ec T expandida : leia entrevista na íntegra em bit . ly / andrea - giunta

FOTO: CLAUDIA ANDUJAR

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PERFIL

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MODERNISMOS

TEREZA COSTA RÊGO PINTURA ESCRITA EM VERMELHO

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A artista Tereza Costa Rêgo diante do mural Tejucupapo (2015), interpretação do mito popular em que mulheres lideram brigada comunitária contra exército; abaixo, Pecado Original (2012)

TEREZA COSTA RÊGO PINTA COM O CORPO. “VOU ATÉ NÃO AGUENTAR. DÓI. DEITO ATÉ PASSAR E COMEÇO DE NOVO”, diz a artista de 90 anos que

há quatro realizou aquele que considera seu último grande painel. “Há anos a história martelava minha cabeça. Havia chegado a hora de vomitá-la”, diz ela, sobre a versão do episódio das Heroínas de Tejucupapo pintada sobre a grande superfície de 8 x 2 metros. Com cores trágicas como numa guerra de Goya, Tereza confirma ser o principal nome do modernismo pernambucano ao reler o mito popular de Tejucupapo: quatro mulheres, quatro marias, acuadas, teriam liderado uma brigada comunitária contra o exército holandês nesse vilarejo ao norte do Recife. “Se a batalha aconteceu, não importa. Importa que o mito ficou”, diz ela, ciente de ter impresso a sua Guernica particular. “Continuo pintando, mas sei: jamais voltarei a fazer algo tão grande.” Tejucupapo (2015) é um dos destaques da panorâmica de seus 90 anos, prevista para a segunda semana de dezembro, no Museu Cais do Sertão, no casco histórico do Recife Antigo. Com curadoria do carioca Marcus Lontra, obras recentes serão exibidas ao lado de mais de cinco décadas de pintura. “Achei que, na idade em que estou, estaria descendo, mas sinto que há muitos degraus a subir”, diz a artista, diariamente, depois de uma xícara de café, dedicada aos cavaletes no ateliê de sua residência em Olinda. Tereza vai se fazendo contemporânea sem nunca ter deixado de ser conscientemente moderna: “Sim, sou cria do modernismo”. Filha de uma família da já decadente aristocracia do açúcar, bisneta do Conde da Boa Vista, que batiza a principal avenida do Centro do Recife, a pequena Terezinha Barros Costa Rêgo seguia a agenda das meninas de sua classe social. Tocava piano e aprendia pintura. Aos 15, estava matriculada na Escola de Belas Artes do Recife. “Minha família tinha uma formação muito pesada judaico-cristã. Tudo era pecado, não podia assistir às aulas de modelos nu”, ela ri. Na escola, travaria amizade com alunos que, como ela, se tornariam verbetes fundamentais do Modernismo Pernambucano. Entre os colegas, os jovens Francisco Brennand, Aloísio Magalhães e Reynaldo Fonseca. Professores, Vicente do Rêgo Monteiro e Lula Cardoso Ayres incentivavam a assimilar cores e elementos da paisagem popular pernambucana. Tereza era estimulada a abandonar dogmas acadêmicos, como dividir o espaçamento em três para garantir harmonia com o objeto principal numa das interseções. “Lula Cardoso Ayres começou a soltar meus traços, foi a porta para a minha abertura.”

FOTOS: CORTESIA

FOTOS: DIVULGAÇÃO

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À dir., Jambo (2012); na página ao lado, A Gênese ou Massacre dos Índios (1997), episódio da série Sete Luas de Sangue (19972000), que narra episódios da história brasileira

V

Sua pintura confirmaria a principal característica do modernismo de sotaque pernambucano, escola que não se deixaria afetar pelo ideário abstratificante concreto e neoconcreto dos anos 1950. Tereza seguiria uma convicta figurativista. Na paleta, a confirmação da hipótese de críticos como Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz para o fato de que o Modernismo Pernambucano, afetado pelas cores locais e pela insolação tropical, seria eminentemente mais saturado em relação à arte moderna de matriz paulistana. Sua pintura se escreve em vermelho. “Sim, eu acho que essa luz regional influencia. Não me pergunte por que, não sei pintar em azul, nem em tons cálidos.” Desde sempre, sua pintura se mistura à vida. A artista gosta de dizer que foi educada para “enfeitar o piano da sala”. Mãe de duas filhas e casada com uma proeminente figura do meio jurídico, conhece, na sala do casarão em que vivia e por onde gravitava parte da sociedade local, o dirigente de esquerda Diógenes Arruda. Preso e torturado pela ditadura Vargas, Arruda era uma espécie de mito vivo. Ali, ela diz, “o piano se quebrou de vez”: Tereza larga o casamento, sofre toda a má sorte de preconceitos patriarcais e, com o companheiro, amarga 12 anos de exílio entre o Chile, Lisboa e Paris, onde finalmente se radica. Mas o acaso, se o acaso existe, escreveria um novo capítulo para a sua arte. Com a anistia, o casal volta ao Brasil. Como não suportasse a emoção da volta, num dos primeiros atos públicos no fim da ditadura, Arruda é fulminado por um infarto numa via pública de São Paulo. Tereza enxuga as lágrimas com uma decisão: “Ali, ele morto, nos meus braços, decidi, seria Tereza Costa Rêgo, uma mulher e sua pintura”. A pintora muda-se com seu luto para Olinda, cidade onde uma entusiasmada comunidade de artistas transforma antigos sobrados em ateliês. “Sou uma filha de Olinda. Aqui, de fato, me fiz artista.” Consagrada localmente, chegou a ser convidada para uma panorâmica de sua obra, uma década atrás, na Pinacoteca de São Paulo. Após acenar positivamente ao diretor Emanuel Araujo, declinou. “Acho que, no íntimo, não estava preparada. Talvez quisesse continuar me afirmando em Olinda. Esta cidade é a minha pátria.” Sobre a cabeceira da cama, a artista mantém a principal recordação do parto existencial a que se viu obrigada. No quadro A Partida (1981), uma mulher de cabelos lânguidos debruça-se sobre o corpo morto de um homem grisalho. Ao fundo da tela estão colados os bilhetes escritos em filtros de cigarro Minister com os quais, preso novamente pelo governo Médici, Arruda escrevia recados trazidos por Tereza nas voltas do cabelo a cada visita ao companheiro na prisão. “Pintei depois que me vi numa foto de jornal sobre Diógenes morto. É uma espécie de Pietá particular.”

INSOLAÇÃO E SATURAÇÃO

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Venus of Vlacke Bos

Sozinha e em renascimento, Tereza passaria a compor a grande comunidade de mulheres despidas que morariam em seus quadros – mulheres de uma nudez altiva quebrando o discurso predominantemente masculino da pintura moderna de Pernambuco. O primeiro deles, literalmente batizado de Primeiro Nu (1983), traz a vulva afirmativa de uma personagem monumentalmente desproporcional, os joelhos e as pernas agigantados. “A pintura de Tereza é também a pintura da libertação da mulher”, confirma Marcus Lontra. “Tereza é essa mulher do domínio do corpo, não é mais a fêmea submissa, mas a mulher do orgasmo conquistado.” Ter vivido a história do século 20 não lhe passaria incólume. Uma de suas séries mais contundentes, Sete Luas de Sangue (2000) traz, como marca de sua poética, episódios da história brasileira teatralizados em cores épicas. A série é um discurso caleidoscópico sobre fatos – da Batalha dos Guararapes a Palmares, de Canudos a Vargas – definidores da brasilidade. “Como Portinari, Tereza tem a dimensão do épico”, comenta Lontra, também diretor à frente do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães quando a instituição recifense expôs, no ano 2000, os sete grandes painéis. A partir da redemocratização do País, a pintura de Tereza se agigantaria. Inspirada pelo muralismo mexicano, saía, ao lado de colegas pernambucanos, pintando paredes e muros. Chamado de Brigada Portinari, o movimento tinha não apenas o objetivo de contribuir para a eleição de Miguel Arraes para governador de Pernambuco, também de volta do exílio, como também democratizar a arte além do circuito de galerias e museus. “Dali meus gestos foram se ampliando, até nunca mais encurtarem. Meus quadros passaram a ter tamanhos cada vez maiores.” Com nove décadas de vida em plena atividade, Tereza continua usando, além das tintas e da biografia pouco comum tatuada nas memórias, a própria saliva para reler o mundo. “A saliva dá uma textura que não se consegue de outra forma. Quando começo a pintar e menos espero, estou com o pincel na boca. E é perigoso, porque posso me envenenar né?”, ela diz. Se esse é o risco, ela segue. “Pintar, em alguma medida, é sempre se envenenar.”

NUDEZ E ENVENENAMENTO

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Em sentido horário, still de Spaghetti Blockchain (2019), de Mika Rottenberg, Untitled (America) e Untitled (31 Mart 2019), de Glenn Ligon, e Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É? (1977), do brasileiro Glauco Rodrigues

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CRÍTICA

ISTAMBUL

COISAS QUE RECONHECEMOS E COISAS QUE NÃO RECONHECEMOS, MAS CUJAS VOZES ASSOMBRAM BERNARDO JOSÉ DE SOUZA

Com curadoria de Nicolas Bourriaud, a 16a Bienal de Istambul investiga universos de ficção e transformações ambientais que põem em risco a vida sobre o planeta, mas não aprofunda a reflexão sobre o mundo político experimentado hoje como a mais pura realidade Toda forma de contato entre a humanidade e o mundo dá-se mediante seus cinco sentidos ou por meio das muitas linguagens articuladas no curso do pleno exercício de sua inteligência, à medida que vai depreendendo SELECT.ART.BR

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sentido das coisas que reconhece – e as quais, somente ao longo deste processo de reconhecimento, passam de fato a “existir”. Como reconhecer e explorar de forma crítica um universo de coisas que somente parece “existir” quando mediado pelas linguagens da ciência e da (auto)ficção? Esta constitui uma das questões que subjazem à investigação promovida por Nicolas Bourriaud em O Sétimo Continente, mas também, possivelmente, a grande crítica a ser feita a esta 16a edição da Bienal de Istambul. O ponto de partida para a construção da mostra (que inclui mais de 220 obras, de 56 artistas, reunidas em somente três localizações) seria a existência de um novo continente, resultado da acumulação sobre os oceanos de uma tal quantidade de detritos plásticos capaz de conformar, em seu conjunto, um espaço cinco vezes maior que o território da Turquia. Efeito da ação do homem sobre o planeta – fenômeno que deu origem ao termo Antropoceno, usado para descrever o atual período geológico da Terra –, esse acúmulo de lixo funciona como plataforma a um só tempo real e alegórica para tratar de questões fundamentalmente relacionadas às transformações ambientais que põem em risco toda espécie de vida sobre o planeta. Sem dúvida, trata-se de uma reflexão de fundo científico, embora essencialmente política, pois bem conhecemos as origens econômicas do desastre que se avizinha: a sanha ensandecida do Capital, que não conhece fronteiras, nem limites, nem democracia, nem aquecimento global. Mas até que ponto, e com quais ferramentas, a presente Bienal enfrenta a realidade política que fomenta esse cenário catastrófico que a todos afeta em uma ou outra medida? No mais relevante espaço expositivo da Bienal, MSFAU, onde o statement curatorial se torna evidente, somos levados a entrar e sair de pequenas salas que exibem, via de regra, apenas uma obra ou um conjunto de obras desenvolvidas por um único artista. Cada uma dessas salas


– compartimentos isolados, autônomos – nos apresenta um mundo particular, dotado de lógica e dinâmica próprias, o qual deriva de pesquisas artísticas e científicas que trazem a público informações e cenários investidos de alta carga de artificialidade. Espécies de laboratórios privados, esses recintos constituem mundos cujo acesso se dá mediante o uso de linguagem científica (ou cientificizada) ou através de repertórios artísticos que tendem a remeter ao campo da ficção (científica) e a universos de pesquisa altamente subjetivos, ou a questões genéricas e universais sobre o nosso tempo e os rumos da humanidade no século 21. Em meio a tanta artificialidade, uma das obras que se destacam é o vídeo da argentina Mika Rottenberg, no qual uma série de experimentos com antimatéria é realizada de maneira caleidoscópica; são tecnologias que parecem desnaturalizar o mundo em que vivemos, dotadas de uma serialidade tão assombrosa e inumana quanto burocrática. Já no Pera Museu, um espaço que, a rigor, apresenta mundos distópicos ou heterotópicos, duas obras me parecem relevantes: a tela do gaúcho Glauco Rodrigues (Visão da Terra, Lenda do Coati Puro Que Porventura É?, 1977) de um rei-fanfarrão, carnavalesco, pintada nas cores do Brasil, e um filme silencioso de Paul Sietsema (Anticultural Positions, 2009), no qual se lê a seguinte passagem: “...coisas que reconhecemos como pertencentes a um entorno familiar, e outras que não reconhecemos, cujas vozes espantam e assombram” – excerto de um ensaio de Jean Dubuffet, cuja autoria, entretanto, Sietsema atribiu a si mesmo. Estaríamos nós incapacitados de lidar com nossa própria realidade, nos refugiando em universos aparentemente fechados, ambientes controlados como os da ciência e da ficção? Ou, quem sabe, justamente por essa razão não seríamos mais capazes de compreender a nossa realidade?

16a Bienal de Istambul, de 14/9 a 10/11/19, bienal.iksv.org

Epicentro de manifestações Nos dias em que me encontrava em Istambul, o país vivia um conturbado momento de sua guerra travada na Síria, ao desafiar os comandos dos EUA e seguir sua ofensiva militar –, justo quando me dirigia ao aeroporto, acessos foram fechados devido a uma ameaça de bomba que acabou por se revelar inócua. Impossível deixar de pensar sobre os últimos anos experimentados pela Turquia sob o comando do presidente Erdogan, sobre a repressão da sociedade civil e sobre as consequentes prisões de jornalistas críticos a seu governo linha-dura. Entretanto, nesta Bienal, poucas são as reflexões sobre o mundo político (e local) experimentado como a mais pura realidade, sem repertórios codificados, cientificizados ou ficcionais. Na ilha de Buyukada, último destino antes de partir, deparei-me com o artista que apresentou o conjunto de obras, possivelmente, mais significativo nesta Bienal: Glenn Ligon. Em uma casa abandonada, encontramos dois vídeos feitos na Praça Taksim – epicentro das revoltas e manifestações populares –; um filme de 1970, From Another Place, realizado por Sedat Pakay, sobre o escritor e ativista James Baldwin, negro e gay, que viveu em Istambul por alguns anos (e pela primeira vez legendado em turco); um luminoso onde se lê a palavra America e, finalmente, dois néons: um deles aceso, marcando a data do processo eleitoral que levou ao poder o atual prefeito social-democrata de Istambul, Ekrem Imamoglu (19 de março de 2019); o outro, ainda apagado, apontando a data em que a República da Turquia comemorará seus 100 anos de existência (29 de outubro de 2023).

FOTOS: CORTESIA MIKA ROTTEMBERG, HAUSER & WIRTH/ CORTESIA GLENN LIGON/ CORTESIA VINCENT WIERIK


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R E V I E WS

BRUMADINHO E ÁGUA PRETA

INSTITUIÇÕES EM CONTEXTOS DE PRECARIEDADE SOCIAL LEANDRO MUNIZ

Inhotim e Usina de Arte tornaramse fundamentais para a economia de suas comunidades locais O Inhotim e a Usina de Arte são instituições instaladas em contextos de vulnerabilidade social que foram transformados econômica e culturalmente após a implementação desses projetos. Ambas compartilham de um passado colonial e de seus resquícios no presente – o nome Inhotim é derivado de “nhô Tim”, um antigo proprietário inglês das fazendas da região, e a própria arquitetura das casas na Usina de Arte são indícios dessa história. O museu e jardim botânico em Minas Gerais, desde 2002, aposta na coleção de grandes instalações com forte apelo fenomenológico, enquanto o projeto em Pernambuco, desde 2015, investe no fomento principalmente de artistas nordestinos, ainda que esteja se abrindo para um diálogo internacional. No início de 2019, o rompimento de uma barragem de mineração na região de Brumadinho deixou cerca de 300 mortos e feridos. SELECT.ART.BR

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Os atingidos pela tragédia estão sendo indenizados em dinheiro pela mineradora Vale S.A., sem um apoio social ou psicológico mais detido. Entre as ações assumidas em resposta pelo Inhotim está a gratuidade para os moradores locais, permitindo o uso do museu como parque público, uma iniciativa tomada pela nova diretora-executiva da instituição, Renata Bittencourt. Como forma de manter um posicionamento otimista diante das tragédias recentes, o Inhotim também inaugurou novas obras, em novembro, além de uma exposição coletiva sobre a escultura contemporânea e a reabertura de pavilhões que estavam em restauro. Sem Título (2019), do californiano Robert Irwin, foi adquirida há cerca de cinco anos, ainda na forma de projeto, e só agora sua construção foi viabilizada. O trabalho é uma espécie de catedral moderna aberta, na qual estruturas com portas e janelas de concreto terminam em triângulos de vidro apontando para o céu. “É um trabalho símbolo de Inhotim, porque é sobre percepção. Ele costura algumas premissas de arte como experiência, que é a linha mestra da coleção”, diz o curador Douglas de Freitas à seLecT. A obra de Irwin está situada no ponto mais alto do terreno, alguns metros acima de Beam Drop (1984-2015), do norte-americano Chris Burden, na qual uma série de vigas de metal foi lançada por guindastes em uma poça de


À esq., Sem Título (2019) de Robert Irwin, abaixo, Átrio (2017) de Marcelo Silveira 103

cimento. No texto A Invenção de Inhotim: Uma Paragem Para A Arte Contemporânea, a pesquisadora Maria Angélica Melendi analisa este trabalho que foi feito em Nova York nos anos 1980 em uma região de especulação imobiliária, e depois destruído. Refeita em Inhotim, a obra funciona como uma “ruína de nada”, segundo a autora. Obras comissionadas para um jardim botânico também estão na base do projeto da Usina de Arte. Assim como em Inhotim, a Usina de Arte também distribui bancos do artista Hugo França pela instituição. Mas entre as diferenças entre os projetos podemos pautar como a história do lugar está materialmente presente no esqueleto da antiga usina de açúcar, hoje desativada por obsolescência. Na Usina de Arte não há limites claros entre o que é a instituição e a cidade, já que a programação acontece na paisagem e nos estabelecimentos comerciais do município. O trabalho Átrio (2017), de Marcelo Silveira, por exemplo, é uma reprodução em escala 1x1 do pátio interno da “casa-grande” dos proprietários da Usina em uma das colinas

Inhotim Rua B, 20 Brumadinho | inhotim. org.br Usina de Arte Rodovia PE 99, km 10 | Água Preta

do terreno. O espaço privado é reproduzido no espaço público, problematizando as ambiguidades que a centralização de poder pode exercer em uma comunidade. Além das obras que se tornam atrativo para turistas, a Usina de Arte promove um festival anual, com curadoria dos artistas José Rufino e Fábio Delduque, residências, shows e oficinas. Na quarta edição do festival, realizada em novembro de 2019, a programação de shows contou com nomes como Arnaldo Antunes, Santanna, o Cantador e outros iniciantes, como Thiago Martins. Entre as oficinas com convidados estavam a artista Leda Catunda e o estilista Dudu Bertholini, que trabalharam com as crianças e adultos do lugar. O pesquisador Nei Vargas investiga instituições de arte contemporânea no Brasil que foram formadas a partir de coleções privadas. Para ele, o Inhotim e a Usina de Arte podem ser descritos como “museus de territórios”, por suas dimensões e influência na comunidade local. “Ninguém cria instituições como estas sem um desejo genuíno de construir algo importante e inovador, mas as políticas de implantação e funcionamento nem sempre se revelam profícuas, gerando certo desconforto em suas comunidades”, diz em entrevista à seLecT. Inhotim e Usina de Arte tornaram-se fundamentais na economia local, por fomentar o turismo, a geração de renda, empregos e intercâmbios culturais. As dimensões espetaculares de Inhotim possibilitam a produção e manutenção de obras de grande escala em condições ideais. A Usina gera intercâmbios e mobiliza uma comunidade que passa a encontrar alternativas econômicas. Ambas se tornaram fundamentais na reativação econômica e cultural de seus contextos. Que o debate crítico e público torne cada vez mais qualificadas suas relações com as pessoas que vivem diretamente os impactos de sua atuação.

se L ec T expandida : leia entrevista com nei vargas em : bit . ly / entrevista - nei - vargas

FOTOS: WILLIAM GOMES/ ANDRÉA RÊGO BARROS


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À esq., No Inicio Era o Verbo e no Fim o Mundo Sem Fim (2019), de Julia Debasse ; na pág. ao lado, Invocado os Anjos, o Dragão e a Serpente (1997) de Francisco de Almeida; e, abaixo, Citações (2019) de José Guedes

FORTALEZA

MÚLTIPLOS CEARÁS LEANDRO MUNIZ

Na 20a Unifor Plástica, artistas que nasceram ou vivem no Ceará apresentam múltiplas manifestações de uma experiência local A 20ª Unifor Plástica: Simultaneidades – A Arte Com A Palavra parte do uso da palavra na arte produzida na região, a fim de explorar relações entre a arte moderna de vanguarda, o artesanato e as diversas manifestações contemporâneas. Com curadoria de Denise Mattar e assistência de curadoria de Cecília Bedê, cerca de 25 artistas de diferentes gerações foram selecionados por meio de um mapeamento realizado com a colaboração de curadores como Bitu Cassundé, do SELECT.ART.BR

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Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. “Acho um projeto válido, pois somos carentes de espaços que possam abrir as portas para os artistas daqui. Essa possibilidade é interessante e ter uma curadora que vem de fora e visita os artistas, fazendo uma seleção dentro de um tema, é muito importante”, diz o artista Mario Sanders, que participa da exposição. Na entrada, um painel com os nomes de todos os participantes nas edições anteriores está plotado na parede, oferecendo um panorama dos trânsitos culturais que foram estabelecidos através do projeto, que em suas primeiras edições funcionava como um salão, selecionando artistas por meio de editais. Reproduções dos cartazes e outros materiais gráficos também dão a dimensão da continuidade e relevância da Unifor Plástica para o fomento da arte contemporânea no Ceará. “Há ao mesmo tempo um imaginário coletivo rico e mítico que permeia as obras dos artistas. O contato com o Ceará me fez compreender, por exemplo, o quanto a obra de Leonilson é cearense”, diz a curadora Denise Mattar. Podemos perceber que a linguagem simplificada para a construção de figuras nos bordados e a associação entre textos e imagens, praticada pelo artista da Geração 80, é, na verdade, uma ação comum na cultura cearense, fruto de uma experiência arraigada na vida social. Esses estilemas encontram reflexo na produção de diversos artistas atuantes na região, como Mario Sanders e Leo Ferreira. “Tenho uma aproximação com bordados, costureiras, porque sou de Aquiraz, uma região praiana que é um polo de rendeiras.


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Isso faz parte da cultura das famílias. Cresci nesse universo, mas demorei a fazer um trabalho com essa linguagem, porque sempre quis estar ligado a uma linguagem mais cosmopolita. Criei uma fusão entre a minha prática com o desenho e o bordado, depois de dar um curso para bordadeiras que tinham dificuldade com o desenho”, diz Sanders. O artista Francisco de Almeida recebeu uma sala especial, na qual suas gravuras de grandes dimensões são apresentadas junto a matrizes que ganham o estatuto de obra, recebendo novas intervenções de cor após a impressão. Xilogravuras, transferências e intervenções com spray são recursos utilizados para discutir um imaginário religioso que aparece em uma fusão de múltiplas referências, do barroco ao grafite. Almeida produz pequenas matrizes que são repetidas em diversos trabalhos de formas diferentes, ora como personagens que mudam o estatuto das narrativas de acordo com o contexto, ora como módulos que são reproduzidos formando massas de cores e imagens de atmosfera soturna e dramática. No vídeo Na Medida Em Que Caminho (Ou Notas Sobre Um Nome), Haroldo Saboia registra o deslocamento de uma região de semiárido para a serra, em ritmo dilatado, com textos de reflexão existencial, inseridos como legendas. Histórias esquecidas e ficções também são parte da exposição nos

20a Unifor Plástica: Simultaneidades - A Arte com a Palavra, até 1º/3/2020, Espaço Cultural Unifor, Fundação Edson Queiroz, Av. Washington Soares, 1.321, Fortaleza, unifor.br/fundacaoedson-queiroz

trabalhos de Virgínia Pinho, que apresenta fotografias e áudios que narram histórias de pessoas com hanseníase, que nos anos 1940 foram isoladas em campos de concentração. Na pintura No Início Era O Verbo E No Fim O Mundo Sem Fim (2019), Julia Debasse cria um mapa ficcional que relaciona lendas e mitos da região, com muito bom humor. Em tempos de essencialismos identitários no campo político e social, chama atenção que o projeto parta de um recorte local, para propor uma ideia de multiplicidade. “Temos uma situação inédita nas artes plásticas, na qual, ao mesmo tempo que existe uma intensa globalização, há uma valorização dos aspectos característicos das diferentes culturas”, diz a curadora Denise Mattar. “O Ceará é um estado que tem uma produção de arte contemporânea relativamente pequena, mas, em contrapartida, há uma coesão e uma comunicação entre os artistas muito maior do que a de São Paulo ou Rio.” FOTOS: ARES SOARES, CORTESIA FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ / LEANDRO MUNIZ


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LIVROS

SOBREVIVER NA ROÇA Projeto de Maria Thereza Alves, com micro-histórias e fotografias da vida no interior do Brasil, é pura literatura Em 1964, Antonio Candido publicou Os Parceiros do Rio Bonito: Estudo Sobre o Caipira Paulista e a Transformação de Seus Meios de Vida, sua tese de doutorado em Ciências Sociais, defendida na USP, em 1954. O estudo partiu de pesquisa de campo em agrupamento rural perto de Botucatu, no interior de São Paulo, onde o autor observou o processo de decadência e depauperamento da vida de populações caipiras, voltadas à agricultura de subsistência e a um sistema de cooperação entre vizinhos e familiares, à margem dos latifúndios. Em 1983, quando era estudante de fotografia na Cooper Union, em Nova York, Maria Thereza Alves viajou para os vilarejos nativos de seu pai, no interior do Paraná, e de sua mãe, no interior de São Paulo. Na viagem feita aos 21 anos, produziu um riquíssimo material, em fotografia e textos, hoje publicado em Recipes for Survival. Ao olhar para tradições e problemas vividos no meio rural, o livro é, por um lado, uma contribuição aos estudos sobre a formação social do brasileiro e para o entendimento da história do País. De outro, é pura literatura. Teria sido de grande interesse ao jovem sociólogo Antonio Candido, que se tornou o maior crítico literário do Brasil. Recipes for Survival é composto de historietas sobre personagens da região, retratados em diferentes episódios da vida na roça: conflitos de terra, visita de políticos em campanha, cultivo de mandioca, casos de violência doméstica e memórias da escravidão que deixou marcas profundas nas pessoas e nas terras. Casos prosaicos, como SELECT.ART.BR

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Uma das fotografias que integram o livro de Maria Thereza Alves

Recipes for Survival, de Maria Thereza Alves, University of Texas Press, Austin, 2018, preço US$ 45

quando Rui foi picado por uma jaracuçu, levado ao hospital e obrigado a passar a noite no setor de distúrbios mentais, por ter se recusado a tirar seu short e vestir um avental. Ou a prosa poética que narra a vida de 13 famílias afundadas no barro, carregando bananas e caminhando 17 quilômetros para chegar até a venda mais próxima. Os textos incluem, ainda, conteúdos como receitas de biscoito, doce de abóbora e listas de pássaros, bichos e plantas da região. As fotografias são um capítulo à parte. De uma potência avassaladora, são comparadas por Michael Taussig, no prólogo da edição, com nada menos que a série American Classics, de Walker Evans. Pela intensidade expressiva das personagens retratadas – flagradas em sua mais comovente e constrangedora vulnerabilidade –, o trabalho poderia remeter ainda aos pacientes psiquiátricos de Diane Arbus, transferidos ao contexto das roças do Sul. Maria Thereza Alves nasceu em São Paulo, mas reside nos EUA, onde desenvolve um corpo de pesquisa voltada a criar espaços de agenciamento e visibilidade para culturas oprimidas, por meio de práticas relacionais. PA


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ONLINE

AAREA: UMA INSTITUIÇÃO DIGITAL Programa sistemático de produção de trabalhos em uma página na internet amplia a noção de instituição de arte em tempos de comunicação digital Mensalmente, o aarea (aarea.co), idealizado por Livia Benedetti e Marcela Vieira, apresenta um trabalho em sua página na internet. Sem menus, botões ou qualquer informação que não seja a obra em exibição, o projeto nos leva a repensar a arte e suas instituições em um momento em que a circulação de imagens e a comunicação ocorrem mediadas por telas digitais. O “a” no título pode ser lido como um prefixo de negação ou como um artigo definido, sintetizando a ambivalência do projeto de não possuir uma sede ao mesmo tempo que é um campo de trabalho com regras fixas. Os artistas convidados em geral não trabalham com o digital, transpondo seus modus operandi para o mundo virtual. Entre os convidados estão artistas que lidam com meios analógicos, como Ana Prata, Flora Leite, Mayana Redin ou Nuno Ramos, até veteranos nas discussões sobre o digital e suas implicações na prática artística, como Kenneth Goldsmith. “O aarea sempre teve periodicidade, um artista convidado por vez, não há nenhuma mediação além do trabalho e a obra sempre é feita para o site, não para o Instagram, por exemplo”, conta Livia Benedetti à seLecT. “Ainda que tudo isso ocorra na internet, não é um programa maleável e temos operações próximas de uma instituição, como a criação de um acervo, estratégias de comunicação e um projeto sistemático. É uma instituição livre.”

Projeto de Alejandra Jaramillo no site do aarea e do Salón Nacional de Artistas de Bogotá

O aarea também realiza diversas parcerias com a SP-Arte, a Bienal de Arquitetura, entre outros que acabam repensando seus modelos de atuação a partir do contato com as propostas de Benedetti, Vieira e seus convidados. “Essas instituições lidam com o site como plataforma puramente informativa. A parceria com o aarea amplia suas programações e faz pensar o site como um espaço de experimentação.” Em 2019, o aarea realizou uma curadoria dentro do 45º Salón Nacional de Artistas de Bogotá, em parceria com a artista Ana Maria Montenegro. Os artistas selecionados exibiam projetos na página do aarea e no site do salão. “O Wallace Masuko fez uma intervenção de 45 minutos uma única vez, algo quase performático. O trabalho de Débora Bolsoni era uma aparição aleatória, como uma contaminação dos outros trabalhos, o que exigiu negociações com os outros artistas, como em qualquer exposição coletiva. Seguimos o mesmo critério de escolhas: artistas que nunca fizeram nenhum trabalho na internet, mas que poderiam deslocar o pensamento de suas práticas para esse campo de um modo interessante”, complementa Benedetti. LM FOTOS: MARIA THEREZA ALVES/ DIVULGAÇÃO


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RIO DE JANEIRO

O LUGAR DA CONSTRUÇÃO DA IMAGEM Em individual no Museu de Arte do Rio, Maxwell Alexandre manipula narrativas de modo a retificar a história e construir seu lugar de poder Pardo É Papel, a individual do artista Maxwell Alexandre no Museu de Arte do Rio (MAR), ocupa duas salas com dezenas de pinturas suspensas numa espécie de instalação pictórica imersiva. A precariedade dos materiais utilizados – graxa, betume e tintas sobre papel de embrulho – tem significação-chave na obra. “Para mim, isso não é só pintura”, diz Maxwell Alexandre à seLecT. “É importante que você sinta a presença do papel, que consiga ver a fragilidade, o rasgo do papel. A poética do trabalho está muito nessa relação de fragilidade do suporte.” A fragilidade está diretamente ligada ao contexto social e pessoal do artista, nascido, criado e residente na Rocinha, onde “ser artista plástico não é uma opção”. A série Pardo É Papel é um questionamento desse lugar. Maxwell Alexandre faz pintura na primeira pessoa. “Antes, quem construía a imagem do negro? Como o negro era retratado? Num lugar de subserviência e subordinação. É preciso começar a criar a imagem do negro como o centro de sua história”, diz. Se a série Reprovados, apresentada em individual na galeria A Gentil Carioca, em 2018, tinha como tema a dizimação da população negra pela polícia nos morros cariocas, o atual trabalho infere contra o desígnio racista do uso do termo “pardo”, a fim de ofuscar a identidade negra. Aqui, Alexandre usa o papel pardo como estratégia de afirmação e empoderamento da negritude. Retrata o negro ocuSELECT.ART.BR

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Detalhe de O Mundo É Nosso (2018), da série Pardo É Papel, de Maxwell Alexandre. O primeiro trabalho da nova série representa pessoas negras como público de exposições de arte

Pardo É papel – Maxwell Alexandre, até março de 2020, Museu de Arte do Rio, Praça Mauá, 5, museudeartedorio.org.br

pando espaços de poder, autoestima, bonança, vitória, e traduz versos de rap em pintura, com o intuito de diminuir abismos entre as comunidades periféricas e a arte contemporânea. A escolha da cor dourada tingindo o ícone aquático que preenche os fundos das pinturas parece corroborar para a realidade luminosa que ele quer projetar. “A arte contemporânea não é um valor da minha comunidade, mas esse é o lugar do novo poder, onde o capital, sobretudo o intelectual, está concentrado”, diz. E esse é o lugar em que Maxwell está hoje. A primeira vez que expôs foi no complexo esportivo da Rocinha, “sem holofote e sem instituição”. Mas, desta vez, seus papéis pardos chegam ao Rio vindos do Museu de Arte Contemporânea de Lyon, na França, onde foi convidado para expor após seu trabalho ganhar visibilidade em residência em Londres, pelo Instituto Inclusartiz. Em junho de 2020, ele deverá expor no Palais de Tokyo, em Paris. No MAR, um painel inédito de dimensões ainda mais ampliadas que de costume, que o artista terminou de pintar na véspera do vernissage, aponta nova direção. Trata-se da primeira obra de uma subsérie chamada Novo Poder, que representa negros, dentro do espaço expositivo, contemplando arte contemporânea. “Esse lugar de construir a imagem é que é o lugar do poder”, diz. Maxwell Alexandre encontrou no MAR esse lugar de construção e afirmação da própria imagem. Por outro lado, um projeto como Pardo É Papel, que foi viabilizado pela iniciativa privada e corresponde ao programa institucional do MAR, baseado em diálogos francos com as histórias e as comunidades do Rio, pode ser muito benéfico para o museu nessa etapa em que está em busca de caminhos para a superação dos obstáculos que a ausência de uma política cultural lhe trazem. PA


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LIVROS

URBES DO SUL LUANA FORTES

Compilação de artigos reflete sobre história urbana das cidades sul-americanas, a partir de suas manifestações culturais Em 1982, o historiador norte-americano Richard Morse (1922-2001), especializado em América Latina, publicou As Cidades “Periféricas” Como Arenas Culturais. O autor encontrou na chamada periferia do mundo (no título do livro, entre aspas) cidades mais intensas e interessantes do que no centro. A coleção de artigos Cidades Sul-americanas Como Arenas Culturais, recém-lançada no Brasil pela Edições Sesc São Paulo, tem como ponto de partida a sofisticada compreensão de Morse a respeito das urbes da América do Sul, que enxerga na cultura a possibilidade de abertura para um entendimento mais complexo sobre espaços urbanos. Organizada por Adrián Gorelik e Fernanda Arêas Peixoto, a publicação reúne textos de 25 autores de diferentes áreas, com abordagens e linguagens diversas. O leitor pode facilmente impressionar-se com um artigo e deixar que outro passe batido. O interesse é maior conforme a relação de familiaridade que se tem com a cidade analisada. Independentemente disso, a compilação é bastante bem-sucedida ao apontar para as interlocuções entre cultura e urbanismo. A coletânea é dividida cronologicamente entre cinco capítulos e traz dez textos dedicados ao Brasil. Há também um sensível ensaio de Eduardo Kingman Garcés sobre Quito, capital do Equador, além de abordagens sobre Bogotá, Buenos Aires, Caracas, Córdoba, La Plata, Lima, Montevidéu e Santiago. Ao ler os quatro artigos que se debruçam sobre São Paulo, chama atenção o contraste entre o primeiro e

Interior do Teatro Oficina de acordo com o projeto de Lina Bo Bardi e Edson Elito

Cidades SulAmericanas Como Arenas Culturais, org. Adrián Gorelik e Fernanda Arêas Peixoto, Edições Sesc São Paulo, 2019, R$ 85

o último deles. Enquanto um trata sobre um grande símbolo de modernidade do País, a Avenida Paulista, o outro destaca a relevância de uma companhia de teatro para a revitalização de um espaço marginalizado. Paulo César Garcez Marins fala sobre a disputa das elites cafeeiras e imigrantes pelo controle da primeira via paulistana a ganhar a nomenclatura das avenues parisienses. E quem encerra o livro é Guilherme Wisnik com Oficina: Um Teatro Atravessado Pela Rua, que atenta para o resgate da vitalidade cultural do bairro do Bexiga propiciado pelo Teatro Oficina, depois da construção do Minhocão, entre 1960 e 1970. “É na esguia porção de sertão da Rua Jaceguai, 520, que a cidade-empresa neoliberal dos nossos dias encontra, em São Paulo, o seu lugar de maior contestação. Ela é o seu Waterloo, ou melhor, o seu Canudos”, escreve Wisnik. FOTOS: PAULA ALZUGARAY/ TUCA VIEIRA


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PARATY

IDENTIDADES TURVAS Em trabalhos instalativos, Sonia Guggisberg aborda o desmanche de identidades nos campos de refugiados nas portas fechadas da Europa A pesquisa com as águas subterrâneas da cidade de São Paulo e com a contenção de rios e canais urbanos acabou conduzindo a artista Sonia Guggisberg aos campos de refugiados dos arquipélagos de Malta e Lampedusa, na Itália, onde as travessias das águas mediterrâneas são abruptamente interrompidas. Há três anos, a artista empreende uma pesquisa de campo nessas portas fechadas da Europa. Do contato com famílias abandonadas, em compasso de espera nos campos de detenção, ela elabora um depoimento pessoal e subjetivo sobre o processo de esvaziamento de identidades a que essas pessoas são submetidas. Composta de fotografias, fotoinstalações, uma videoinstalação e um projeto sonoro, SELECT.ART.BR

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Fotografia que integra a exposição Silêncio, de Sonia Guggisberg

Silêncio – Sonia Guggisberg, encerrada, Casa da Cultura de Paraty

a exposição Silêncio funciona como uma só instalação. A soma dos trabalhos e a sobreposição de muitas vozes em uma mesma sala, no segundo andar da Casa de Cultura de Paraty, acabam por remeter ao estatuto turvo e incerto dessas identidades perdidas. O projeto sonoro, por exemplo, é formado pela sobreposição de seis grupos sonoros – água, motores de barcos, corpo humano, rezas e orações, crianças brincado e cantos festivos. Além disso, a opção pela fotografia impressa em diferentes camadas de voile vem acentuar a opacidade da imagem, contribuindo para a assertividade da mensagem. A exposição foi realizada com o apoio dos consulados gerais da Suíça em São Paulo e no Rio de Janeiro, por ocasião do 15º Festival Paraty em Foco, sintomaticamente no ano em que se comemoram os 200 anos da imigração suíça no Brasil. PA


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SÃO PAULO

A URGÊNCIA DA

A Bigger Splash (2018), fotografia de Paulo D’Alessandro

VIDA BREVE Na era da selfie, Paulo D’Alessandro afirma que o que fala mais alto é mesmo a imagem não oficial Paulo D’Alessandro é um fotógrafo da vida urbana. Começou a carreira nos anos 1990, como repórter fotográfico policial do jornal Notícias Populares e, no início dos anos 2000, desenvolveu um trabalho de decomposição formal da arquitetura paulistana. Sete dessas imagens da cidade concreta integram a coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Quando montou sua empresa de fotos de festas e casamentos, D’Alessandro levou para o registro das noites borbulhantes da alta burguesia paulistana o olhar enviesado e o clique indiscreto de quem trabalhou na noite dos excluídos. Essa urgência da vida breve é a tônica das imagens selecionadas pelos curadores Henrique Siquei-

Não Oficial, Paulo D’Alessandro, até 15/3/20, Museu da Cidade de São Paulo – Casa da Imagem, Rua Roberto Simonsen, 136, Centro

ra e Monica Caldiron para a mostra Não Oficial, na Casa da Imagem, em São Paulo. A exposição atravessa quase 30 anos de fotografia em 40 imagens. Trata-se de uma mostra de retratos em que a pose está desconstruída, ou captada alguns segundos antes de sua formação. O momento clássico em que o retratado constrói a identidade que deseja imortalizar não interessa ao fotógrafo. O que fica plasmado é uma espécie de anti-imagem, ou anticlímax, em que o sujeito fotografado se despe da imagem socialmente conhecida, para tornar-se um gesto, um movimento transitório. Por esse motivo, o rosto e o olhar não são sempre os elementos centrais da imagem e as mãos ganham acentuado protagonismo, seja na recusa da câmera, como na foto “Por favor!” (1992), seja portando telefones celulares, copos de uísque ou taças de champanhe. O corpo em trânsito também é protagonista das atenções do fotógrafo, como no mergulho para um lugar um Sol, em A Bigger Splash (2018). Na era da selfie, Paulo D’Alessandro afirma que o que fala mais alto é mesmo a imagem não oficial. LM FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA/ PAULO D’ALESSANDRO


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SÃO PAULO

URUBUS EM TEMPO REAL Mostra no CCSP coloca em cena desfile paradigmático de escola de samba para pensar a cultura e a política brasileiras Do dia 9 para 10 de novembro de 1989, as populações de Berlim Oriental e Ocidental derrubaram o muro que as manteve privadas do convívio por 28 anos. Nove meses antes do evento que redefiniu a ordem mundial, o Brasil assistiu pela televisão aberta a um acontecimento de magnitude nada desprezível, que derrubou as fronteiras entre a arte, a política e a cultura popular. Os 30 anos do desfile Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia (1989), da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, concebido pelo carnavalesco Joãosinho Trinta, ganham hoje uma homenagem da arte contemporânea, com a exposição Ratos e Urubus, no Centro Cultural São Paulo. Joãosinho Trinta concebia o desfile como uma ópera capaz de juntar todas as artes. A curadoria de Thais Rivitti e Carlos Eduardo Riccioppo assume o partido do carnavalesco, incorporando várias linguagens. A exposição é composta de música (Arnaldo Antunes realizou obra sonora a partir do samba-enredo da Beija-Flor e de texto de Trinta); poesia (o poema Lixo Luxo, 1965, de Augusto de Campos, é incorporado); cenografia (o mobiliário expositivo, a cargo de Edu Marin, inteiramente realizado a partir de painéis encontrados no espaço, abole o cubo branco e promove uma exposição-barracão). Um dos pontos altos é a arquibancada posicionada dentro da Sala Tarsila do Amaral, mirando para o exterior. A instalação de Edu Marin é o elemento mais forte do espaço, devido ao seu potencial de transformar o ambiente em praça, na medida em que possa ser usado pelos dançarinos que ocupam os SELECT.ART.BR

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Instalação de Edu Marin transforma ambiente em praça com arquibancada

Ratos e Urubus, até 1º/3/2020, Centro Cultural São Paulo, Sala Tarsila do Amaral, Rua Vergueiro, 100 | centrocultural.paginaoficial.ws

corredores do CCSP. A linguagem da performance, central ao Carnaval, tem, portanto, a chance de acontecer espontaneamente aqui. Embora o registro da performance Pancake (2001), de Marcia X, seja uma presença icônica que remete aos estados alterados do Carnaval, o trabalho afirmativamente performático da exposição é Os Pássaros (2019), concebido por Nuno Ramos especialmente para a ocasião. Disruptivo de paradigmas, o trabalho é um circuito de instalações construído para atrair os urubus da cidade, que, uma vez cooptados, se tornam correalizadores da obra. Nove anos após a polêmica em torno dos urubus mantidos na instalação-cativeiro da 29ª Bienal de São Paulo, Ramos trabalha com a possibilidade de comunicação com os pássaros, oferecendo-lhes comida, objetos, livros e discos a serem devorados em uma plataforma instalada no jardim contíguo ao espaço expositivo. Outro elemento da oferenda é um remix do clássico Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, que também é brindado à visão do público da exposição. Os banquetes das aves são transmitidos em tempo real dentro da instalação. Com as alegorias de Brasil ofertadas por Nuno Ramos ao público e aos urubus, efetiva-se o ciclo crítico da curadoria, que pretende pontuar a atualidade dos problemas brasileiros enumerados, em 1989, na avenida – a saber: a fome, o lixo, o desperdício – e exaltar a eterna utopia de uma sociabilidade coletiva. PA FOTO: DIVULGAÇÃO



EM CONSTRUÇÃO

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FAIXA PROTESTA: A PINTURA E A URGÊNCIA nente construção e processo, levada a cabo por artistas, curadores e ativistas do Rio. Funciona como uma espécie de zona autônoma temporária, com formação flutuante e ações engendradas em resposta às urgências ao momento político do País. Em 2019, o grupo lançou-se quatro vezes às ruas, a última delas em novembro, em ato em defesa do Museu de Arte do Rio de Janeiro, que passa por uma indefinição de seu futuro. As ações são detonadas por convocaRegistro de ação artística e política Faixa Protesta, organizada por artistas, curadores e ativistas no Rio de Janeiro tórias abertas pelas mídias sociais para pintar as faixas no Atelier Sanitário, de EM MAIO DE 2019, O GOVERNO BOLSONARO ENFRENTOU AS Daniel Murgel e Leandro Barboza, localizado na Zona PorPRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES DE GRANDES PROPORÇÕES. tuária do Rio. Gustavo Speridião, cujo trabalho pictórico deMilhares de pessoas foram às ruas em 250 cidades brasileisenvolve tensões e negociações entre o discurso político e ras para protestar contra os cortes orçamentários na área as instituições de arte, e que é o autor de muitas das faixas da Educação, que afetaram principalmente as universidades do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), públicas federais. No Rio de Janeiro, o Faixa Protesta alçou no Rio, é um articulador-chave do projeto. “A produção das aos céus bandeiras que ampliavam o coro “Fora Bolsonaro”, faixas, assim como toda a performatividade e negociação com dizeres que escapavam à gramática comum das faixas de envolvidas em sua colocação nas ruas, vem agregando as manifestações. De poética haikai, textos como “Marighella, pessoas e mobilizando sua colaboração cotidiana”, afirma a Marielle, quanto Mar” sintetizavam a indignação geral com a crítica e curadora Izabela Pucu à seLecT. “Ao mesmo temcensura anunciada ao filme de Wagner Moura sobre o guerpo, é interessante pensarmos essa ação enquanto confronto rilheiro Carlos Marighella, a indefinição dos mandantes do da pintura com a estética e a escala da rua, com sua polifoassassinato da vereadora Marielle Franco e as dificuldades nia e seus conflitos; interessante, sobretudo, como forma de extremas vividas pelas instituições culturais no Rio. colocar em crise também a posição e os lugares tradicionais Faixa Protesta é uma ação artística e política em permado artista e do trabalho de arte”, afirma ela. PA FOTO: DIVULGAÇÃO

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