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A exposição reflete sobre a noção de “arte moderna” no Brasil para além da década de 1920 e do protagonismo muitas vezes atribuído pela história da arte a São Paulo

RAIO

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2022

FICÇÕES DO MODERNO Visitação de terça VOL. 10 / N. 49 JAN/FEV/MAR 2021a sábado, das 10h às 20h. Domingos e feriados, das 10h às 18h.


Curadoria-geral: Raphael Fonseca. Curadoria: Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos. Consultoria: Fernanda Pitta.

QUE O PARTA 16.02 a 07.08

Sesc 24 de Maio

NO BRASIL Sesc 24 de Maio R. 24 de Maio, 109

sescsp.org.br/24demaio

3


4

VOL. 10 / N. 49

JAN/FEV/MAR 2021


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32

48

CURADORIA

PORTFÓLIO

DESMONUMENTO

ALINE MOTTA

Em oposição à narrativa

Artista mobiliza repertório

hegemônica, artistas projetam

biográfico e ficcional em contra-

novos sentidos simbólicos

ataque às operações coloniais

a marcos históricos

62 / 90

64

PROJETO

LITERATURA

#FLORESTAPROTESTA

POESIA ANCESTRAL

Pedro Andrada e Marcos Chaves

Pesquisadora indígena Julie

elaboram cartazes para projeto de

Dorrico desmonta obras e

gráfica ativista da seLecT

construções coloniais endossadas pela Semana de 22

118 ARQUIVO

DOCUMENTOS DESCOLONIAIS P r i m e i ra p a r te d e s é r i e d e p ro j e tos e d i to r i a i s e l i te r á r i os q u e q u e st i o n a m a h e ge m o n i a d a n a r ra t i va o c i d e n t a l

VOL. 10 / N. 50

ABR/MAI/JUN 2021


70

92

REPORTAGEM

DIÁLOGOS

DESCOLONIZAR O MUSEU

DESCONSTRUIR O MUNDO

Direções de instituições artísticas

O redirecionamento da leitura

apresentam suas estratégias

das obras de Bispo do Rosário e

descoloniais de gestão

Leonora Carrington, homenageada na Bienal de Veneza

100

112

ENTREVISTA

ESTUDO DE CASO

FLAVYA MUTRAN

ALEX ČCERVENÝ

A artista e curadora fala sobre

Artista apresenta na Bienal de

os elementos físicos e afetivos

Sydney trabalhos que navegam

que permeiam o cenário da

por ecossistemas aquáticos

^

Bienal das Amazônias

52 REPORTAGEM

ARTE E ANCESTRALIDADE Gê Viana e Gustavo Caboco partem de suas histórias e raízes para agir no presente

SEÇÕES

+ EXPANDIDAS

FOGO CRUZADO O artista e curador Leandro Muniz conduz mesaredonda live e presencial sobre estratégias de descolonização dos monumentos

ENTREVISTAS Leia as entrevistas completas com os artistas Giselle Beiguelman e Mario Ramiro

8 14 21 22 24 28 138 154

Editorial Da Hora Livros Acervos Itaú Cultural Coluna Móvel Mundo Codificado Crítica Em Construção

FOTO: TARTARUGA (SÉRIE YÃMIY/HOMEM-ESPÍRITO), 2019, SUELI MAXAKALI


E D I TO R I A L

ARTE E POLÍTICA: MANIFESTO 1 8

Descolonizar é romper os limites da linguagem;

Descolonizar é recapitular os parâmetros para a formação de coleções públicas e privadas;

Descolonizar é desconstruir termos e modos de Descolonizar é posicionar duas entidades-cobras diante de uma estátua

fazer e operar;

de Pedro Álvares Cabral; Descolonizar é insurgir sobre marcos históricos, alegorias do trauma colonial, que perpetuam o

Descolonizar é conhecer “uma infinidade de Amazônias incalculáveis”, diz a

imaginário do poder ocidental no espaço urbano;

artista Flavya Mutran em entrevista;

Descolonizar

históricos

Descolonizar é reconectar as formas tradicionais de cura ao corpo feminino,

de um processo colonial predador, elaborando

os rituais, os direitos à terra e as comunidades autossustentáveis, como fazem

limites jurídicos para o diálogo com comunidades

coletivos de mulheres e movimentos anarcofeministas da América Latina;

é

recuperar

aspectos

espoliadas, diz Mirtes Marins de Oliveira na Coluna Móvel sobre o papel colonialista dos museus;

Descolonizar é fomentar a formação de novos corpos políticos;

Descolonizar é derreter delírios autoritários e

Descolonizar é despersonalizar;

tensionar hegemonias; Descolonizar é tensionar as políticas da memória, dizem os integrantes do Descolonizar é um processo no qual indígenas se

projeto demonumenta;

veem imersos desde 1492, marco zero da história oficial eurocêntrica, escreve a pesquisadora macuxi

Descolonizar é ocupar palcos, festas, salas de leitura e pistas de dança,

Julie Dorrico;

espaços potenciais para revoluções do pensamento;

Descolonizar é olhar para os apagamentos da

Descolonizar é proteger os Direitos Humanos e Não Humanos e operar pela

produção de mulheres, artistas pertencentes a povos

lógica da confluência, não da competição, entendendo que estamos todos

originários, afrodescendentes e não ocidentais,

– humanos, plantas, animais e minerais – conectados;

grupos não inseridos na normatividade hegemônica; Descolonizar é devolver o pertencimento de Macunaíma “de Mario de Andrade” aos povos que habitam o Monte Roraima (Macuxi, Taurepang,

Descolonizar é reantropofagizar;

Wapichana, entre outros), e seu nome à grafia Makunaima ou Makunaimî; Descolonizar é entender que a antropofagia, celebrada enquanto

elemento

estético

do

Modernismo,

foi usada como retórica para a apropriação dos

Descolonizar é fazer gráfica ativista e dar continuidade ao projeto Floresta Protesta, iniciado em 2021;

territórios indígenas e para a “integração” de suas identidades, continua Julie Dorrico;

Descolonizar é a primeira das quatro edições da seLecT dedicadas à Arte e Política, em 2022, que vão buscar responder uma série de questões que

Descolonizar é entender os rios como sedimentos

confluem em uma: qual é o papel de uma revista de arte no contexto da

de cultura e favorecer a leitura de ecossistemas

crise política, humanitária e ambiental de hoje?

aquáticos como seres individuais, como propõem as diretrizes curatoriais da 23a Bienal de Sydney;

Paula Alzugaray Diretora de Redação

VOL. 11 / N. 53

MAR/ABR/MAI 2022



EXPEDIENTE

10

EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY

DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY REDATORA-CHEFE: JULIANA MONACHESI DIREÇÃO DE ARTE: NINA LINS REPÓRTER: CRIS AMBROSIO REPÓRTER JÚNIOR: LUANA ROSIELLO PROJETO GRÁFICO ORIGINAL: RICARDO VAN STEEN E CÁSSIO LEITÃO

COLABORADORES

Carla de Albuquerque, Catarina Duncan, José Bento Ferreira, Julie Dorrico, Leandro Muniz, Marcos Chaves, Mateus Nunes, Mirtes Marins de Oliveira, Pedro Andrada

SECRETÁRIA FINANCEIRA

Cristina Dias

ESTÁGIÁRIA FINANCEIRA

Yara Céu

COPY-DESK E REVISÃO

CONTATO

PUBLICIDADE

ATENDIMENTO AO ASSINANTE

Hassan Ayoub

faleconosco@select.art.br

ACROBÁTICA EDITORA LTDA. Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320

Pelo e-mail assinaturas.select@gmail.com ou (11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 OUTRAS CAPITAIS: 4002.7334 DEMAIS LOCALIDADES: 0800-888 2111 (EXCETO LIGAÇÕES DE CELULARES)

WWW.SELECT.ART.BR

SELECT (ISSN 2675-8296) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320 / Nossa Redação está situada na Travessa Dona Paula 112, CEP 01239-050, São Paulo, SP

A P O I O C U LT U RA L :

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MAR/ABR/MAI 2022


Ministério do Turismo, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura apresentam

ELEONORE KOCH ESPAÇO ABERTO

curadoria: Fernanda Pitta realização: Casa Stefan Zweig / Telenews parceria: Almeida & Dale Galeria de Arte

MAR - Museu de Arte do Rio 12 março a 1 de maio sem título, 1959

Quinta a domingo, 11h - 18h Praça Mauá, 5 - Centro, Rio de Janeiro


COLABORADORES

LEANDRO MUNIZ Artista e curador. Formado em artes plásticas pela USP, é assistente curatorial no Masp. Foi repórter na revista seLecT e ministra regularmente cursos e conferências em espaços como Masp, Pinacoteca, Zait_seLecT e Ebac. FOGO CRUZADO SELECT EXPANDIDA

JULIE DORRICO Pertence ao povo Macuxi. É doutora em Teoria da Literatura pela PUC/ RS, é uma das administradoras do perfil @leiamulheresindigenas do Instagram e coordena o Grupo de Estudo em Memória e Teoria Indígena (GEMTI). TERRITÓRIOS 64

MIRTES MARINS DE OLIVEIRA Mestre e doutora em Educação: História e Filosofia e Pós-Doutora pela FE-USP. É docente e pesquisadora na Pós-Graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi. COLUNA MÓVEL 26

MATEUS NUNES Arquiteto e curador. Doutorando em História da Arte pela Universidade de Lisboa, com período na USP, onde é professor convidado. É pesquisador integrado do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa e professor do Masp. ESTUDO DE CASO 112 CRÍTICA 138

CATARINA DUNCAN Curadora, formada em Culturas Visuais e História da Arte pelo Goldsmiths College, University of London. Atualmente é curadora do Solar dos Abacaxis. COLUNA MÓVEL 24

PEDRO ANDRADA Pedro Andrada é artista. Graduado em Ciências Sociais na USP e Universidade do Minho, em Portugal, e doutorando em Poéticas Visuais na ECA-USP #FLORESTAPROTESTA 90

CARLA DE ALBUQUERQUE Mestranda pelo Programa de PósGraduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP, na área de pesquisa de produção e circulação da arte com foco na história das galerias de arte no Brasil. CRÍTICA 151

MARCOS CHAVES

JOSÉ BENTO FERREIRA Crítico de arte, professor de Filosofia e doutor em Artes pela Universidade de São Paulo. PORTFÓLIO 48

Artista atuante desde os anos 1980, transita livremente por técnicas e mídias e trabalha sobre os parâmetros da apropriação e intervenção. #FLORESTAPROTESTA 62



S Ã O PA U L O

MASP RENNER 2022 Previsão de lançamento e exposição em junho de 2022 14Inspirado na Coleção Masp-Rhodia, formada por pe-

ças criadas na década de 1960, a partir do diálogo entre artistas e estilistas, o Museu de Arte de São Paulo realiza a terceira edição do projeto, com previsão de lançamento em junho. A curadoria de Hanayrá Negreiros, curadora-adjunta de moda do Masp, com assistência curatorial de Leandro Muniz, reúne dez duplas formadas por nomes de diferentes regiões do país. As misturas são potentes. Entre elas, Aline Bispo e Flavia Aranha, Criola e Luiz Claudio Silva, Panmela Castro e Walério Araújo, Randolpho Lamonier e Vicenta Perrotta. Na primeira temporada, a dupla Ibã Huni Kuin, artista do Movimento de Arte Huni Kuin, do Acre, criou uma túnica bordada com motivos da jiboia, o animal da cosmogonia Huni Kuin, em parceria com o estilista mineiro Ronaldo Fraga; na segunda, a mineira Sonia Gomes encontrou no estilista Gustavo Silvestre o caminho para que os retalhos que compõem seus objetos artísticos voltassem a ganhar a forma de vestuário.

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FOTOS: CORTESIA CENTRAL GALERIA


VENEZA

59ª BIENAL DE VENEZA De 23/4 a 27/11 | labiennale.org/en/art/2022 Com curadoria de Cecilia Alemani, a primeira mulher italiana a ocupar essa posição, a 59ª Biennale Arte 2022, intitulada The Milk

of Dreams (O Leite dos Sonhos), conta 213 artistas, sendo cinco nomes brasileiros em sua mostra principal: Jaider Esbell, com a pintura Amamentação (2021), Lenora de Barros, com Poema (1979-2014), Rosana Paulino, com a série Jatobá (2019), Solange Pessoa, com Sonhíferas (2020-2021) e Luiz Roque. Esta é a maior participação de brasileiros na mostra principal, nos últimos anos. O pavilhão brasileiro apresenta instalação inédita do artista Jonathas de Andrade, que representa o país sob curadoria de Jacopo Crivelli Visconti. O trabalho do alagoano dialoga com o tema do evento, que homenageia a artista surrealista Leonora Carrington. Eduardo Kac e João Angelini são outros artistas brasileiros que participam da Bienal de Veneza, no pavilhão da República de Camarões. Com curadoria de Sandro Orlandi Stagl e Paul Emmanuel Loga Mahop, a 1st Edition Global Crypto Art Exhibition reúne um conjunto de artistas de nacionalidades diferentes que trabalham com arte digital, crypto, NFT e metaverso.

FOTOS: CASSIA TABATINI / DIVULGAÇÃO; BRUNO LEÃO / CORTESIA DA ARTISTA E GALERIA MENDES WOOD DM © ROSANA PAULINO


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RIO DE JANEIRO

MOVIMENTO ARMORIAL: 50 ANOS De 29/3 a 27/6, Centro Cultural Banco do Brasil, Rua Primeiro de Março, 66 | ccbb.com.br/rio-de-janeiro/ Música e artes plásticas encontram-se na mostra que homenageia a Arte Armorial, introduzida pelo BRASÍLIA

dramaturgo e escritor paraibano Ariano Suassuna.

XINGU 57: VIAGEM AO BRASIL CENTRAL

Com curadoria de Denise Mattar, obras de Fran-

Até 22/5, Museu Nacional da República, Setor Cultural Sul, Lote 2 | cultura.df.gov.br/

cisco Brennand, Antônio Carlos Nóbrega, Gilvan

museu-nacional-republica/

Samico [Pe. Cícero Romão (1974)] e Aluísio Braga,

Composta de mais de 100 fotografias, objetos etnográficos e extensa

entre outros, ilustram a produção do movimento

documentação bibliográfica, a exibição é resultado da descoberta do pesquisador

artístico lançado no Recife em 1970. A exposição é

Oto Reifschneider, neto do biólogo Domiciano Dias, dos negativos feitos pelo avô

organizada em núcleos, trazendo à tona a diversi-

em expedição ao Alto Xingu, em 1957. As fotografias são um diário visual da

dade, tradições e as mais representativas raízes da

fauna/flora e dos povos da floresta, retratando o cacique Bibina, o sertanista

cultura popular nordestina.

Orlando Villas Bôas e cenas do cotidiano das aldeias Xavante, Mehinako, Kuikuro, Aweti, Txucarramãe, Juruna e Yawalapiti.

MARICÁ

EU CANTO PORQUE RESISTO A partir de 21/4, Casa de Cultura de Maricá, Rua Álvares de Castro, 154, Centro A cidade de Maricá, no estado do Rio de Janeiro, recebe a mostra que inaugura um espaço cultural na região, a Casa de Cultura de Maricá. Além de Edmilson Nunes, Jarbas Lopes, Marcos Cardoso e Regina Vater, o artista estadunidense Bill Lundberg (Pit [Cova], 2020), pioneiro da videoinstalação nos anos 1970, apresenta instalação fílmica, produzida durante a pandemia, que expressa sua visão sobre a crise social e política no Brasil. O vídeo é projetado sobre o chão do espaço, revelando um homem cavando um buraco; o trabalho segue até ele sumir de cena. Sua produção investiga a relação entre arte e natureza, pensando a interação da luz na vegetação e sua relação afetiva com o Brasil. A curadoria é de Luiz Guilherme Vergara e o espaço funciona num edifício histórico recém-restaurado, que já abrigou uma Cadeia Pública, a Casa de Câmara e a Prefeitura Municipal.

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FOTOS: ZILMARC PAULINO; ARQUIVO NACIONAL; CORTESIA SIMÕES DE ASSIS; FORTES D’ALOIA & GABRIEL, LUISA STRINA E SÉ GALERIA


S Ã O PA U L O

INTIMIDADES RADICAIS Até 3/4, Instituto Tomie Ohtake, Rua Coropés, 88 | institutotomieohtake.org.br/ Parte do programa We Are Here, parceria entre o instituto, o British Council e o Lux, a mostra discute interseções entre afetos, desejos e questões de gênero. O núcleo europeu reúne uma compilação de filmes de Beatrice Gibson, Rehana Zaman e Stephen Sutcliffe. Já os trabalhos selecionados pela curadoria brasileira, que inclui vídeos de Sara Ramos, Renan de Cillo e Ode em parceria com Vitor Duarte, apresentam questões que concernem aos papéis de gênero socialmente construídos, violências sofridas e reivindicações ainda necessárias. Além dos três vídeos apresentados, AVAF ocupa o espaço expositivo, transformando a ambiência da sala expositiva com um conjunto de papéis de parede e intervenções luminosas. A mostra Tunga: Conjunções Magnéticas, uma parceria com o Itaú Cultural, reúne momentos significativos do processo e da carreira do artista e segue em cartaz até 11/4.

FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA / CORTESIA E-FLUX FOTOS: OSCAR BASTOS / DIVULGAÇÃO / VICTOR PASTANA / EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO / ANDREAS VALENTIM FOTOS: DOMICIANO DIAS / DIVULGAÇÃO; FOTO DIEGO ROCHA / ACERVO UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO; DIVULGAÇÃO; E CORTESIA DO ARTISTA (BILL LUNDBERG)


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S Ã O PA U L O

VUADORA, DE PAULO NAZARETH RIO DE JANEIRO

De 26/3 a 28/5, Pivô Arte e Pesquisa, Av. Ipiranga, 200 |

ELEONORE KOCH: ESPAÇO ABERTO

pivo.org.br/exposicoes/

Até 1º/5, Museu de Arte do Rio, Praça Mauá, 5 |

Dando a largada da programação do ano do Pivô, a mostra ocupa seus

museudeartedorio.org.br/en/home/

dois espaços expositivos e será o fio condutor para os projetos indivi-

A retrospectiva delineia a trajetória da alemã Eleonore

duais e coletivos que a sucedem. Com curadoria de Fernanda Brenner

Koch por meio de 150 obras, ressaltando seu interesse

e Diane Lima, a individual de Paulo Nazareth apresenta um conjunto

por paisagens e a conexão com o Rio de Janeiro. Pintu-

de trabalhos do artista mineiro das últimas duas décadas – como as

ras em têmpera, desenhos em pastel, carvão e guache,

séries Cadernos de África e a coleção Produtos do Genocídio – e obras

apresentam os processos estéticos, formais e afetivos

comissionadas para a ocasião, que questionam ideias de origem, iden-

da produção da artista. Organizada por núcleos – Rio de

tidade e pertencimento.

Janeiro, Paisagem, Interiores e Natureza-Morta –, a exposição propõe aos visitantes experimentar o processo criativo da artista, as transformações de sua poética, bem como sua sensibilidade para a cor.

CAMPINAS

SOB ATAQUE De 18/3 a 1º/5, Instituto Pavão Cultural, Rua Maria Tereza Dias da Silva, 708 | pavaocultural.org.br/ O coletivo Garapa ilumina, em mostra no Instituto Pavão Cultural, os efeitos que a Revolução Paulista na capital do estado tiveram para o surgimento da Cracolândia. O projeto mapeia, a partir da fotografia de um imóvel bombardeado da Rua Helvétia nº 2 (atual local da concentração de viciados em crack e outras drogas), episódios de violência ocorridos no lugar desde então. A mostra reúne iconografia colhida em diferentes acervos documentais, como o Instituto Moreira Salles, a Fundação Energia e Saneamento e a Casa da Imagem, além de registros fotojornalísticos contemporâneos. ”A proposta é fazer uma leitura transversal dessas tensões, desde a formação do bairro dos Campos Elíseos até a atualidade”, dizem os idealizadores Rodrigo Marcondes e Paulo Fehlauer.

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S Ã O PA U L O

ADRIANA VAREJÃO: SUTURAS, FISSURAS, RUÍNAS De 26/3 a 1º/8, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Praça da Luz, 2 | pinacoteca.org.br/ Com mais de 60 obras produzidas entre 1985 e 2022, a mostra traça a trajetória de produção da artista carioca, pautando sua investigação sobre a história visual e as tradições iconográficas europeias. A superfície da tela é um elemento essencial da sua produção, acompanhado do corte, da rachadura e da fissura. Com curadoria de Jochen Volz, a retrospectiva ocupa sete salas da Pinacoteca, assim como o Octógono. SYDNEY

RIVUS − 23ª BIENAL DE SYDNEY Até 13/6 | biennaleofsydney.art/ Caio Reisewitz trabalha nos limites da visão. Na colagem em grande escala comissionada pela 23ª Bienal de Sydney, o artista constrói uma paisagem imaginária das águas subterrâneas. O seu Mundus Subterraneus (2022) é uma metáfora da realidade nacional. Acumula recortes de suas fotografias de florestas e rios e fragmentos de imagens documentais de obras faraônicas de exploração da natureza e militares exercendo seus podres poderes. A obra toma emprestado o título de um livro do século 17 do jesuíta alemão Athanasius Kircher, que escreveu sobre sistemas subterrâneos interconectados sob a superfície do planeta. Reisewitz propõe um discernimento sobre os jogos dissimulados de poder da política nacional e as disputas macroeconômicas pela água e as riquezas minerais. Outras sete fotografias, colagens e aquarelas integram a mostra Rivus, com curadoria de José Roca, dedicada a “sistemas vivos dinâmicos com variados graus de agenciamentos políticos”.

FOTOS: INDIARA DUARTE/SESC SOROCABA; FUNDAÇÃO PIERRE VERGER; SEBASTIAN BOLESCH/CCSP; CORTESIA BRIGIDA BALTAR, MAM-SP/DIVULGAÇÃO; CASA DE CULTURA DO PARQUE/DIVULGAÇÃO


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RIO DE JANEIRO

TEIMOSIA AMAZÔNIDA De 19/3 a 23/4, Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, Rua Luís de Camões, Praça Tiradentes , 68 | @cma.heliooiticica A mostra individual de Denilson Baniwa marca a reabertura do segundo andar do H.O. , no Rio de Janeiro. Teimosia Amazônida reúne obras inéditas do artista amazonense, um dos nomes mais importantes da arte hoje, pelo engajamento na descolonização dos museus e instituições culturais e pela teimosa defesa do protagonismo dos povos indígenas. De acordo com Baniwa, ˜Teimosia Amazônida é sobre o Brasil tardio˜, sobre ser este um território de floresta num país de bandeirantes. “Bandeirantes são sinônimos de predadores de floresta”, argumenta. A exposição, repleta de esculturas-cocares de luta pela floresta, é, finalmente, “sobre a última possibilidade de civilização florestal num nacionalismo de concreto”.

S A L VA D O R

ENCRUZILHADA De 22/3 a 16/7, Museu de Arte Moderna da Bahia, Av. Lafayete Coutinho, s/n | bahiamam.org/ Com curadoria de Ayrson Heráclito e Daniel Rangel, a mostra promove diálogo entre o acervo do MAM e a coleção de Arte Africana do Solar Ferrão da Diretoria de Museus, apresentando obras icônicas do artista Rubem Valentim. Destaque para Experiência Concreta #6 (Triângulo Atlântico) (2019), série de Jaime Lauriano que busca traçar relações entre trabalhos e ações desenvolvidos por artistas dos movimentos brasileiros de arte concreta e neoconcreta, e a violência contida na história do Brasil.

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ARTE E REVOLTA Fernand Pelloutier, Tenda de Livros, 32 págs., R$ 20 A editora independente responsável pelo Jornal de Borda e Sou Aquela Mulher do

Canto Esquerdo do Quadro lança agora a transcrição de uma fala do sindicalista, anarquista e jornalista Fernand Pelloutier (1867-1901), na Bibliothèque de L’Art Social, no fim do século 19, em ocasião do nascimento do grupo de mesmo nome, L’art Social, que defendia a arte como instrumento de ação direta. Pelloutier defendeu uma arte social que se contrapunha à arte burguesa ou diletante, articulando ética,

FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE: ITINERÁRIOS GLOBAIS, ESTÉTICAS EM TRANSFORMAÇÃO

estética e política à forma e conteúdo.

Org. Iatã Cannabrava e José Antonio Navarrete, Almeida & Dale, 257 págs Publicação acompanha a exposição de mesmo nome da Almeida & Dale

Susie Hodge, Editora Olhares, 224 págs., R$ 99

PAX NEOLIBERALIA : MULHERES E REORGANIZAÇÃO GLOBAL DA VIOLÊNCIA

O guia de bolso elaborado pela artista e autora britânica

Jules Falquet, sobinfluencia edições, 180 págs., R$ 65

de 2022, sobre as transformações es-

Susie Hodge oferece um ponto de partida didático e conciso

Ancorado em reflexões feministas sobre a globalização

téticas na produção do Foto Cine Clube

sobre trabalhos de arte feitos por mulheres, com ênfase no

e a dinâmica das relações sociais de sexo, raça e classe,

Bandeirante, fundado em 1939 em São

recorte estadunidense-europeu, desde o Renascimento. A

o livro é um ensaio sobre o uso da coerção como método

Paulo. Com um recorte cronológico de

organização e a distribuição de referências oferecem um

e sobre o rol da violência contra as mulheres. A autora

1940 a 1980 e 40 artistas, a edição bi-

entrecruzamento de assuntos que possibilitam uma leitura

apresenta diferentes perspectivas teórico-políticas

língue reúne artigos em inglês e por-

não linear.

sobre as violências misóginas e lógicas de gênero da

tuguês dos curadores Iatã Cannabrava

governança global, referidas por meio de uma ironia de

e José Antonio Navarrete, abordagens

Pax Neoliberalia.

historiográficas do FCCB e trabalhos

BREVE HISTÓRIA DAS ARTISTAS MULHERES

Galeria de Arte, inaugurada em janeiro

variados de membros do grupo.

LUCIO COSTA ERA RACISTA? Paulo Tavares, N-1 Edições, 128 págs., R$ 45 O ensaio inaugura uma série organizada pela editora, que se propõe a entender o espaço contemporâneo pela perspectiva descolonial. O autor acompanha, no conjunto da produção do arquiteto e urbanista, os desdobramentos do racismo associado, nos anos 1920, ao suposto “estilo nacional” no qual se manifestava a episteme racializada do pensamento ocidental. Tavares analisa como, influenciado pela visão culturalista de Gilberto Freyre, Lucio Costa fundamenta seus projetos arquitetônicos sob a égide do branqueamento e da eugenia.

TEO – TANTRISMO ESTÉTICO OCIDENTAL: ENSAIOS SOBRE A OBRA DE RES EM 3 PARTES

BOA FORMA GUTE FORM: DESIGN NO BRASIL 1947-1968

Anna Israel, edição da autora, 302 págs., R$ 150

Org. Livia Debbane, Fernando Ticoulat, João Paulo Siqueira Lopes, Art

O artista, pensador e pedagogo Rubens do

Consulting Tool, 224 págs., R$ 169

Espírito Santo ou apenas RES é fundador do

Doze ensaios inéditos, infográficos e uma pesquisa iconográfica compõem a

Ateliê do Centro, em São Paulo, espaço que

edição em português e inglês que traça vínculos entre a institucionalização

Anna Israel frequenta desde 2010. O livro

do design no Brasil, entre os anos 1950 e 1960, o movimento de arte concreta

reúne textos escritos pela artista entre 2016 e

e o ensino da Escola de Ulm, na Alemanha. A publicação, amplamente

2021, buscando investigar a natureza material,

ilustrada, conta ainda com um depoimento do designer de produtos e

conceitual, plástica e poética da obra de RES.

professor alemão Karl Heinz Bergmiller, e uma complexa linha do tempo, contextualizando artistas, obras, exposições e escolas de design entre o Brasil e a Alemanha.


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DESCOL O MU VOL. 11 / N. 53

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LONIZAR USEU

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R E P O R TAG E M

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É POSSÍVEL REFUNDAR A NARRATIVA HEGEMÔNICA DA ARTE BRASILEIRA?

J U L I A N A M O N AC H E S I

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AS DIREÇÕES DE INSTITUIÇÕES COMO PINACOTECA DE SÃO PAULO, MUSEU PARANAENSE E MAM RIO DE JANEIRO APRESENTAM SUAS ESTRATÉGIAS DESCOLONIAIS NA GESTÃO DE MUSEUS NO BRASIL

Okê Oxóssi (1970), de Abdias Nascimento; acervo Masp, doação Elisa Larkin Nascimento / Ipeafro, no contexto da mostra Histórias Afro-Atlânticas (2018); à esq., Xangô Sobre (1970), de Abdias; acervo Ipeafro, Rio de Janeiro

FOTOS: DIVULGAÇÃO


Carnaval (1952), de Elisa Martins da Silveira, pintura que foi exposta no MAM-Rio na curadoria A Memória É uma Invenção; coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

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NOITE DE QUINTA-FEIRA, 24 DE FEVEREIRO, EM SÃO PAULO. A AVENIDA PAULISTA FIGURA NOS NOTICIÁRIOS POR CAUSA DE UM INCÊNDIO QUE TOMOU O ÚLTIMO ANDAR DE UM EDIFÍCIO COMERCIAL AO LADO DA FIESP, NO INÍCIO DA TARDE.

Do outro lado da rua, é noite de vernissages: Volpi Popular e Abdias Nascimento: Um Artista Panamefricano abrem o programa anual do Museu de Arte de São Paulo, que se dedica, em 2022, a narrar Histórias Brasileiras. Como a Paulista havia estado interditada nos dois sentidos em decorrência do incêndio, decido ir a pé ao museu e caminho à noite pela avenida cartão-postal da cidade pela primeira vez, desde o início da pandemia. Dois anos depois da crise sanitária e da gestão desastrosa do cataclismo social que ela trouxe a reboque, mudanças se fazem sentir a cada metro do meu percurso: barracas de acampamento abrigando famílias em situação de rua e muita gente pedindo ajuda a quem passa dão contornos trágicos ao cartão-postal paulistano. Um homem me aborda no caminho, apresenta-se como Paulo Sebastião, 45 anos, e me conta, com forte sotaque carioca, que era jornalista no Rio de Janeiro. Pergunto se ele conhece o Masp. Ele diz que sim, que conhece o prédio. Mas você já esteve lá dentro?, devolvo. “Não, lá dentro eu nunca entrei.” Convido-o para me acompanhar até uma inauguração de mostras de pintura no museu, digo a ele que às terças a entrada no Masp é gratuita e que ele pode visitar as exposições toda semana, se gostar. Paulo Sebastião comenta que se envolveu numa briga e que rasgaram a calça dele, fica com vergonha de ir vestido assim a uma abertura. No caminho passamos por uma loja esportiva, onde o presenteio com uma calça nova. Meu colega jornalista pergunta se eu não lhe daria também uma camiseta vermelha, para combinar. Concordo. Chegamos ao Masp e meu colega é muito bem tratado, na entrada, pelos funcionários e, no espaço expositivo, por conhecidos que vêm me dar um alô. Na retrospectiva de Volpi, Paulo Sebastião comenta, observando as fachadas caiadas do pintor ítalo-brasileiro: “É tudo tão simples”. No subsolo, empolgado com as telas de Abdias Nascimento, observa: “Isto é muito moderno!” pergunto se gosta mais dessas pinturas do que das do primeiro andar: “É lógico, aquele cara está morto. Este está vivo”. VOL. 11 / N. 53

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O MODERNISMO É POP

A sequência de exposições no Masp que agregam o termo “popular” ao nome de artistas modernistas (se for mulher, o primeiro nome; se for homem, o sobrenome), denotando a democratização do acesso e popularização da obra dos cânones brasileiros – Portinari Popular, Tarsila Popular, Volpi Popular –, é uma das estratégias que a instituição paulistana adota para ampliar a diversidade demográfica de quem gosta de chamar de seu o imponente Museu de Arte de São Paulo. À luz da desconstrução de Lina Bo Bardi empreendida na corajosa Des-Habitat, de Paulo Tavares, que comprova a matriz neocolonial do projeto moderno de Lina, cabe a pergunta: é


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possível descolonizar o museu modernista-colonial de Bardi? A exposição de Abdias Nascimento, na esteira das tantas mostras que o museu realizou a partir de Histórias Afro-Atlânticas (2018), que visam ampliar a narrativa sobre as histórias da arte no Brasil, trazendo para o debate produções marginalizadas de artistas mulheres, afrodescendentes, indígenas e de outros corpos dissidentes, parece indicar que sim. Nas salas do Masp, na noite de inauguração, é evidente que nestes seis anos da gestão de Adriano Pedrosa e equipe, a demografia do museu se diversificou. Entre os convidados da retrospectiva de Abdias Nascimento estão Douglas de

Freitas e Deri Andrade, respectivamente, curador-geral e curador-assistente de Inhotim; Elisa Larkin Nascimento, co-fundadora do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro); Julio Menezes Filho, coordenador do projeto Museu de Arte Negra do Ipeafro no ambiente virtual; Igi Ayedun, artista e fundadora da Galeria HOA. Para Elisa Larkin, viúva de Abdias Nascimento, a exposição no Masp, assim como a parceria entre o Ipeafro e o Inhotim para um programa de dois anos de ações de difusão das pesquisas do intelectual carioca no museu mineiro, é uma estratégia de visibilidade para sua obra e legado, com vistas a “atender FOTO: FABIO SOUZA / CORTESIA MAM-RIO


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às necessidades de vida de uma população”. Em entrevista à seLecT, Larkin defende que a aproximação com as instituições avalizadoras da arte no Brasil envolve sempre uma “discussão para que os projetos não fiquem como benefício apenas para o mundo da arte, mas, sim, da população preta”. ABALAR AS ESTRUTURAS

Todas as instituições ouvidas pela reportagem foram unânimes em afirmar que não se desconstrói a narrativa hegemônica da arte apenas com exposições que revisitem ouVOL. 11 / N. 53

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tras historiografias, ou mesmo que as reescrevam. É necessário “construir e reforçar a institucionalidade para garantir que os programas de revisão de narrativas possam acontecer”, defende Pablo Lafuente, um dos diretores artísticos do MAM-Rio. “Um processo de descolonização poderia ser um processo de despersonalização — prossegue — porque o mundo da arte tende a ser ocupado por individualidades fortes que ‘garantem’ as transformações, quando deveria estar atrelado a processos de reforço das estruturas, um processo de institucionalização que trabalhe estruturas mais estáveis,


Vista da primeira sala da exposição Acervo Pinacoteca, dedicada a retratos e autorretratos de artistas , em cartaz na Pina Luz, em São Paulo

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mais capazes de se repensar, sem depender de individualidades fortes, visando processos de justiça social.” Na trajetória do curador e pesquisador espanhol, um marco descolonial destaca-se: a série Afterall Books, sobre histórias das exposições, que ajudou a conceber. “Foi uma resposta imediata a uma irritação que sentíamos na (revista inglesa) Afterall”, na era dos supercuradores dos anos 1990 e 2000, quando a globalização e o multiculturalismo elevaram gestos individuais à condição romântica de transfiguradores da história. “Como pode ser que a gente esteja

pensando em produção cultural a partir de gestos individuais? A história da arte já passou por essas brigas, tem tido construções que favorecem biografias individuais, depois têm aparecido movimentos de história social da arte que querem entender como as coisas acontecem sem eliminar a individualidade. A questão não é eliminar as individualidades, mas entender como a individualidade se constitui dentro de processos que são maiores, porque, senão, como produtores, como pessoas engajadas nesse processo, as individualidades são impossíveis de garantir, e a continuidade, a sustentabilidade, os efeitos, a médio e longo prazo, não se garantem, é impossível. Então essa irritação com narrativas românticas de indivíduos que mudaram a história da arte, assim, uma pessoa pode realmente fazer isso?”, questiona Lafuente. Para o curador, o sistema da arte contemporânea confia muito em narrativas de indivíduos e os processos precisam ser outros. Ele menciona um artigo de Bonaventure Ndikung, em que o teórico português afirma que, para que a instituição de arte mude, precisa mudar três “Pês”, palavras que começam com P: pessoas, públicos e programas. Pessoas sendo as que trabalham no museu; público, as pessoas que visitam os museus; e programas, os conteúdos. “Isso faz muito sentido aqui no MAM, e é a forma como estamos trabalhando. Mas tem outra coisa também: tem as portas, tem o teto, tem o piso. Onde estão as janelas? São grandes ou pequenas? Porque, se você muda essas coisas e não interfere na construção… Construção são muitas coisas, pode ser a construção dos conhecimentos, dos acessos, pode ser a articulação das estruturas que nos permitem trabalhar, as relações trabalhistas, como a gente trata os nossos colegas e os colaboradores. Então, essa outra palavra, que não começa com P, também é muito importante, eu encaixaria esse argumento sobre a institucionalidade nesse quarto departamento. Isto é ainda mais urgente no Brasil, porque, se me permite usar um clichê, os museus pegam fogo aqui”, afirma o curador, referindo-se aos incêndios no próprio MAM-Rio, em 1978, no Museu Nacional do Rio (setembro/2018), e no Museu da Língua Portuguesa (dezembro/2015). Para Lafuente, este é o exemplo extremo, uma vez que existem museus que não conseguem levar adiante seus projetos com autonomia, perdem o financiamento e acabam ficando apagados, “sem conseguir mobilizar a cultura no tempo próprio”. FOTO: CORTESIA PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO


Detalhe da instalação Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste (2013), de Jonathas de Andrade, com pintura Caipira Picando Fumo (1893), de Almeida Júnior, ao fundo; vista da mostra de longa duração da Pinacoteca do Estado de São Paulo 78

INCÔMODO NA PINACOTECA

Em 2018, outra instituição de São Paulo definiu como missão pensar a arte brasileira em diálogo com outras culturas, o que implicou uma transformação estrutural profunda. Valéria Piccoli, curadora-chefe da Pinacoteca do Estado, conta que o problema central neste momento de repensar o museu era como lidar com o seu acervo histórico. “A Pinacoteca é uma instituição de 116 anos, criada pelo (e pertencente ao) governo do estado. Não há como ser mais oficial do que isso. Nós temos no acervo, por exemplo, o retrato oficial do imperador Dom Pedro II, o que fazer com ele? Vamos esconder? Não precisamos mostrar como parte da história oficial, mas podemos trazer outras histórias em torno dele”, explica Piccoli, referindo-se à nova configuração do acervo, na mostra de longa duração, em que o referido retrato é exibido ao lado de uma pintura de Benedito Calixto, Proclamação da República (1893), e de um conjunto de desenhos do artista Sidney Amaral, Incômodo (2014). Comissionada para a exposição Histórias Mestiças (2014), no Instituto Tomie Ohtake, para integrar o núcleo Cosmologias e Emblemas Nacionais, a obra do artista paulistano narra a história da abolição da escravidão no Brasil “a partir da ação e agência dos próprios negros, utilizando referências contemporâneas e históricas, como Christiano Júnior. Em vez da ideologia da dependência e da gratidão, no políptico em aquarela de Amaral os negros são agentes do ato e verdadeiros responsáveis pela libertação”, anotam os curadores Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz no texto do catálogo. Ainda de acordo com Valéria Piccoli, a representatividade de artistas mulheres, afro-brasileiras, indígenas e queer que se vê hoje na exposição de longa duração é fruto de um trabalho de anos: “Fizemos uma pesquisa para entender a percepção que o público tinha da Pinacoteca e a maior parte das respostas apontou para uma visão de um museu do século 19, com muitos visitantes se referindo à instituição como ‘o museu do Almeida Júnior’, por exemplo, e isso nos levou a questionar por que a coleção não se fazia mais evidente na mostra de longa duração; afinal, o projeto da Pina Contemporânea existe desde 2006, e as aquisições de arte contemporânea por dotação dos patronos do museu completa dez anos em 2022”, conta a curadora-chefe. Ou seja, as obras que hoje tensionam os 116 anos de tradição da Pina estão no acervo desde antes da definição do conjunto exposto no segundo piso do museu. VOL. 11 / N. 53

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COMO DESSACRALIZAR O MUSEU?

As instituições representam uma estrutura de poder. Questionar essa estrutura, na Pinacoteca, não começou com a teoria descolonial, mas com projetos educativos e programas que vão para além dos muros: “Como desfazer a escadaria gigante na mente das pessoas, a entrada imponente que separa o mundo supostamente sagrado do mundo lá fora? A gente entende que esse é um processo com ações educativas que começou há muitas décadas e, antes mesmo dos arte-educadores, foram os artistas que começaram isso, aqueles artistas que tentam aproximar a arte da vida desde os anos 1960 fazem parte desse processo, tentando


Ensacamento (1979), de 3NÓS3;. Na pág. à esq.,repercussão do evento na imprensa e coluna Noite Ilustrada (1998), de Erika Palomino

fazer o museu ser o que ele não é”, exemplifica Jochen Volz, diretor-geral da Pina, que também defende que não é possível mexer na estrutura sem mexer na programação e vice-versa. “Ambos são processos que envolvem todos no museu. A instituição em si é o abstrato, mas ela é uma construção coletiva, composta dos funcionários, da direção, do público, do não público. Se a gente quer mudar algo, precisamos envolver todos”, continua Volz. Isso acontece, portanto, na programação, assim como em projetos internos, como colaborações feitas com uma ONG para contratação de pessoas trans e com uma instituição que dá apoio ao pri-

meiro emprego de imigrantes. “Foram processos internos de pensar aos poucos outras formas de contratação, de colaboração, ao mesmo tempo que estávamos empenhados em repensar a forma de expor o acervo. Uma política de diversidade é o próximo passo. Entendo que a gente criou uma certa reflexão crítica institucional, promovendo um certo letramento; não é apenas questão de alguns núcleos pensando e outros fazendo, isso envolve todo mundo.” As experiências de exposições como Véxoa, Enciclopédia Negra, e a nova exposição do acervo são exemplos importantes de quebra do cânone de diferenciações entre arte popular e erudita. Segundo ele, “agora estamos prontos FOTO: CORTESIA PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

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para o próximo passo, de pensar uma política mais ampla”. Volz conta que esses projetos demandaram tempo e fizeram todo mundo parar e refletir. “É importante viver isso e não só palestrar. A partir dessa reflexão de toda a equipe, a Pìnacoteca mudou seu plano museológico, reformulou o acervo.” Ele cita como exemplos projetos que levaram a instituição a questionamentos profundos sobre a sua missão: as exposições de Grada Kilomba, Somos Muitxs e OsGêmeos. Esta última foi uma exposição que trouxe para a Pina um público que nunca tinha pisado no museu. “É uma exposição que oferece pontos de contato para públicos mais diversos. Trouxe pessoas com muita curiosidade e que também se interessaram em visitar o acervo. Podemos dizer que a coleção tem se tornado de novo um destino com a reconfiguração. A exposição da Grada Kilomba, que estava espalhada pelas salas do acervo, trouxe um público que talvez nunca teria achado que a coleção tinha alguma relevância, porque a mostra anterior não pensava na representatividade de artistas afrodescendentes, tinha um número menor de artistas mulheres etc., foi muito importante para pensar como a coleção precisava mudar. Quando vimos as obras da Grada com aquele recorte do acervo, a exposição de longa duração virou pauta: ‘A gente precisa repensar tudo’, dissemos.” Outro marco foi um experimento sobre a coletividade, que já estava expresso desde o título, Somos Muitxs: a ideia do museu sendo vários formatos ao mesmo tempo. A obra do Rirkrit Tiravanija, no Octógono, foi uma programação que envolveu mais de mil pessoas. “Do Legítima Defesa ao coral evangélico, ao teatro Capoeira, performance, leitura, dança, campeonato de beatbox, bloco de Carnaval, essas mil pessoas que se apresentaram, muitos deles não necessariamente frequentadores do museu, trouxeram a família, então virou um museu de muitos. Isso foi possível porque não foi pensado por um curador, foi pensado a partir de VOL. 11 / N. 53

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uma inquietação institucional, que demandou que todos os atendentes embarcassem nesse experimento.” “É uma questão de engajamento institucional”, defende Lafuente. Um elemento fulcral que resulta desse comprometimento é que o museu não pode se autocelebrar porque está trabalhando com arte indígena, por exemplo, vaticina. “Nós estamos, sim, trabalhando com pessoas indígenas, tem uma exposição da Sallisa Rosa que abriu recentemente, convidamos o Denilson Baniwa para fazer a curadoria de uma exposição que vai lidar com referências do moderno, com inauguração em julho. É uma exposição que, de certo modo, é uma resposta à Semana de Arte Moderna, mas não é direta, nem queríamos que fosse direta. O que é importante é a relação que a gente estabelece nesse processo e não cabe ao museu celebrar porque convidou Denilson Baniwa. Esse engajamento é uma responsabilidade e ninguém deveria se autocelebrar por estar cumprindo a sua responsabilidade.” TÁ MODERNISTA, TÁ FAVORÁVEL?

Da centena de eventos que comemoraram e/ou revisaram a Semana de 22 na ocasião de seu centenário, a exposição que mais longe projetou a necessária crítica ao “marco inaugural” do modernismo entre “nós” aconteceu… longe de um museu. Intitulada Raio-Que-o-Parta: Ficções do Moderno no Brasil, a mostra, com curadoria-geral de Raphael Fonseca e cocuradoria de Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos e Paula Ramos, segue em cartaz no Sesc 24 de Maio, em São Paulo (leia mais na seção Críticas). Partindo da premissa de que os modernismos no Brasil são muitos, o curador-geral da mostra convidou colegas de profissão baseados nos quatro cantos do país, todos com formação em história, para que propusessem um levantamento de nomes e movimentos longe do eixo Rio-São Paulo de atitudes modernas concomitantes ou anteriores à Semana.


“UM PROCESSO DE DESCOLONIZAÇÃO PODERIA SER UM PROCESSO DE DESPERSONALIZAÇÃO”, DIZ PABLO LAFUENTE, UM DOS DIRETORES ARTÍSTICOS DO MAM-RIO 81

À esq., intervenção sobre a estátua de Anhanguera, em São Paulo, de autoria do Grupo de Ação, em 2020; abaixo, Refazendo Mitos (201920) e Invocar/Evocar (2020), de Helô Sanvoy

FOTOS: CORTESIA IMS (ALICE BRILL) E EVELSON DE FREITAS / DIVULGAÇÃO FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS


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Abertura da exposição Retomada da Imagem (2021), no Museu Paranaense, em Curitiba; nas páginas anteriores, vista da mostra Raio-Que-o-Parta, no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, e a obra Protesto contra a Remoção de Favelas - Câmara dos Vereadores, Cinelândia, Rio de Janeiro (c. 1965), de Alice Brill, na mesma exposição 83

“É fácil colocar um Denilson Baniwa do lado de um Victor Meirelles e dizer que é descolonial. Quero ver descolonizar mostrando como os próprios agentes modernos já tinham em si uma posição descolonial de mundo”, diz Raphael Fonseca. Raio-Que-o-Parta apresenta essa pesquisa a 12 mãos e resulta incontornável: apresenta ao público paulistano um Brasil desconhecido, de artistas modernos do início do século 20 que forjaram a identidade descolonial longe dos holofotes do Theatro Municipal. O que nos leva de volta ao Masp, que em 2022, sobretudo por causa do bicentenário da Independência do Brasil, elege como eixo central da programação anual do museu contar as Histórias Brasileiras da Arte. “A instituição reconhece a complexidade e a relevância dessa celebração e apresenta, ao longo do ano, uma série de exposições, cursos, palestras, oficinas e publicações em que irá abordar o conceito de brasilidade de uma forma mais ampla – explorando conceitos sociais, antropológicos e históricos”, informa o texto de divulgação. Procurado pela reportagem da seLecT, o Masp preferiu não opinar sobre a pauta “como descolonizar o museu?”. Na noite de aberturas, após um mês de tentativas de agendar entrevista com algum dos curadores, sem sucesso, a reportagem abordou o curador-chefe, Adriano Pedrosa, explicando que não gostaria de deixar de fora da presente matéria uma instituição que parece trabalhar nesse sentido desde a mudança na direção, seis anos atrás. Pedrosa respondeu que não poderia conceder entrevista na ocasião e sugeriu que a revista procurasse a assessoria de imprensa. Após ser informado de que isso estava acontecendo havia um mês, limitou-se a reafirmar que não podia falar sobre o tema “no momento”. Mas, afinal, é impreterível ouvir o que Adriano Pedrosa tem a dizer? Após a condução de muitas entrevistas para escrever este texto, tendo aprendido que descolonizar é despersonalizar, que nenhum museu deveria se autocongratular por não fazer mais que a obrigação, e, sobretudo, depois de ter a companhia de Paulo Sebastião nas mostras de Volpi e Abdias Nascimento, a resposta à pergunta é óbvia. O Masp são todas as pessoas que ali trabalham, que visitam o museu e todos os potenciais visitantes futuros. As individualidades heroicas não garantem nada. O que importa são todas as individualidades que os museus aprendem (ou não) a acolher. FOTO: KRAW PENAS / SECC


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IMAGENS EM DISPUTA ARTISTAS E LIDERANÇAS INDÍGENAS REIVINDICAM AGENCIAMENTO SOBRE AS IMAGENS DE SEUS ANCESTRAIS NO MUSEU PARANAENSE

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Denilson Baniwa e Gustavo Caboco encontram-se em Curitiba, no fim de 2021, para organizar um assalto simbólico a um museu histórico. Nos meses anteriores haviam feito, por chamadas de vídeo, diversas reuniões com a equipe do Museu Paranaense, o Mupa, que os convidou para pensar um projeto a partir do acervo de fotografias etnográficas deste que é o terceiro museu mais antigo do Brasil. A pesquisa desta parte da coleção, inteiramente digitalizada, composta de cerca de mil fotografias, diapositivos, negativos fotográficos e em vidro, e fotopinturas, disparou na dupla de artistas indígenas questionamentos sobre captura, representação e agenciamento. Como transformar essas imagens por meio de narrativas que contemplem mais os retratados e menos os autores das fotografias? Estamos falando de fotos realizadas predominantemente em expedições etnográficas pelo Brasil em meados do século 20. Este material traz a marca neocolonial da catalogação por autor da fotografia, localização geográfica e identificação do “objeto fotografado”. Trata-se da perspectiva “científica” do homem branco formado nos bancos acadêmicos eurocêntricos de nossas universidades fundadas por missões francesas, holandesas e que tais. Também por estrangeiros que imigraram para o Brasil no período das duas guerras mundiais, caso de Vladimir Kozák, engenheiro e pesquisador tcheco que chegou ao Brasil em 1923 e viveu em Curitiba do início dos anos 1930 até 1979, ano de sua morte. Convidado para dirigir o departamento de fotografia e audiovisual do Mupa, Kozák foi o grande responsável pela implementação de registros sistemáticos de povos indígenas do Paraná. De acordo com a pesquisadora da Universidade Federal do Paraná Rosalice Carriel Benetti, entre os anos 1940 e 1960, “o ambiente do Museu Paranaense transformou-se, configurando-se como um local de efervescência cultural, envolvido em discussões científicas e voltado a pesquisas em diversos campos da ciência. Nesse momento, o Museu ocupou um lugar de destaque na comunidade científica que foi muito além dos limites locais. A ligação com o Smithsonian Institute nos Estados Unidos é um exemplo, espécimes coletados em expedições organizadas pelo Museu foram utilizados por aquela instituição por intermédio da Universidade de São Paulo, USP. (...) O

início da fase científica do Museu consolida-se quando a instituição lança sua primeira publicação. Em vez de uma acanhada revista de divulgação que se esperaria de um museu provincial, os Arquivos do Museu Paranaense surpreenderiam pela sua qualidade editorial ao abordar, com ares de grande centro, temas de interesse das mais prestigiosas instituições científicas do país”, escreve Benetti em sua dissertação de mestrado “Vladimir Kozák: Sentimentos e Ressentimentos de um ‘Lobo Solitário’” (2015). O encontro que o museu promoveu em 2021 entre o acervo legado por Kozák, que constitui a Coleção Vladimir Kozák do Museu Paranaense e integra o programa Memória do Mundo da Unesco − Brasil, e a dupla Denilson Baniwa e Gustavo Caboco resultou num diálogo de alta complexidade. Sob a ótica do protagonismo indígena que na atualidade firma-se e fortalece exponencialmente no campo das artes visuais (e em tantos outros), a coleção de fotografias deve ser problematizada. As pessoas retratadas estão muitas vezes identificadas apenas como “índios”, sem nome, sem individualidade. Além disso, as cenas fotografadas frequentemente são construídas em evidentes pedidos aos indígenas que se portassem como “índios”, reforçando a exotização dos povos autóctones ou, ainda, promovendo “contrastes” sob legendas preconceituosas que ironizam a adoção de hábitos não indígenas, destinadas a evidenciar a aculturação compulsória à época. Por outro lado, a violência desse encontro com as representações dos povos indígenas possibilitou aos artistas promover uma acareação entre os retratos e os descendentes dos retratados. Baniwa e Caboco convidaram amigos dos povos Kanhgág, Xetá e Mbyá-Guarani para uma imersão coletiva no museu-tornado-ateliê, em novembro de 2021. Aí começa o assalto. Instituição de 145 anos de existência e 800 mil itens em sua coleção, o Mupa era tido pela comunidade artística de Curitiba, até muito recentemente, como o bom e velho museu histórico da cidade. Seu acervo e programas de pesquisa nas áreas de arqueologia, antropologia e história brasileira e latino-americana costumavam atrair estudantes universitários e um público interessado mais difuso, mantendo a cena da arte atual circulando longe dele, em museus como o MAC Curitiba ou o MON. “A partir da atual gestão, que está entrando em seu quarto ano, o museu reformulou sua própria FOTO: KRAW PENAS / SECC


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vocação e passou a ser um espaço vinculado à contemporaneidade, colocando áreas como o design, a arte contemporânea e a arquitetura em diálogo com o acervo através de novas perspectivas − todas alinhadas aos nossos atuais questionamentos e problemáticas mais latentes. O projeto Retomada da Imagem, com certeza, é um dos maiores e mais simbólicos projetos desta gestão do Museu Paranaense, pois desenvolve novas narrativas focadas em reversões de protagonismos, revisões historiográficas e curadoria compartilhada com os artistas indígenas contemporâneos convidados”, escrevem Gabriela Bettega e Richard Romanini, respectivamente, diretora e diretor artístico do Mupa. DIREITOS DE RESPOSTA

O projeto em si não tinha como objetivo uma exposição, pois era um projeto de pesquisa para propor alguma atualização do acervo. No meio do percurso é que se foi construindo uma

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ideia de que o resultado da imersão e da residência pudesse se transformar numa exposição, segundo Denilson Baniwa. “O caráter do trabalho é mais subjetivo do que objetivo; é mais um aspecto imaterial da coisa, mais um pensamento, que, inclusive, está em construção ainda. Apesar de já estarmos pensando a questão da retomada da imagem, cada um do seu lugar e à sua maneira, este foi um primeiro teste que fizemos juntos, Gustavo, eu e as pessoas que convidamos”, explica o artista. “Algumas coisas foram fundamentais na proposição de uma nova expografia ou modo de exibição desse material, por exemplo, quando Indiamara (Paraná, do povo Xetá) identifica as pessoas fotografadas e a gente agrega novas informações à antiga ficha técnica, isso é interessante para pensar quantos outros acervos são insuficientes em suas informações e como trariam uma riqueza maior se fossem observados por pessoas indígenas”, conclui. Caboco e Denilson, dos povos Wapichana e Baniwa, ques-


tionaram-se sobre como construir paralelos ou “direitos de resposta” da imagem construída que encontraram no Mupa. “Hoje é possível construir um díptico, um espelho, um paralelo, onde se contam outras narrativas. Isso foi uma das experiências que a gente fez, em que algumas fotografias foram remontadas e refotografadas, como a caçada, o guerreiro caçador, os rituais”, contam, referindo-se às novas imagens que fizeram com Juliana Kerexu, Elida Yry (ambas do povo Mbyá-Guarani) e Caboco protagonizando as cenas a partir da releitura crítica. “Existe a ‘imagem original’ do Kozák e um díptico moderno representando uma narrativa parecida, mas diferente politicamente”, afirma Baniwa. Sobre o título da mostra, a dupla defende que o termo “retomada” carrega um sentido estratégico-político do movimento indígena, que envolve a observação do terreno, o entendimento do contexto, dos perigos, da geografia local, de quem é inimigo e de quem é amigo, de parcerias e possibilidades

FOTO: KRAW PENAS / SECC

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de negociação, e na coleta de todos esses dados, encontrar meios de enfrentamento, de retomada, “já sabendo onde são os flancos e onde tem os pontos cegos, onde há risco de vida ou não”, define Denilson. “Retomar é tomar de volta em uma ação rápida e certeira. Não foi aleatória a escolha das imagens com que trabalhamos, as pessoas que convidamos nem o local. Tudo foi pensado como estratégia política de assalto, uma ação direta incisiva e também de fuga depois, caso desse errado”, diverte-se. Em entrevista à seLecT, Gabriela Bettega aponta a necessidade de construir lugares sensíveis aos silenciamentos e violências que foram naturalizados no contexto acadêmico das áreas de pesquisa que o museu envolve. “A interdisciplinaridade promove um espaço de negociação das diferenças. Desde que assumimos a direção do Mupa, no início de 2019, estamos empenhados em colocar em diálogo os diferentes acervos do museu e, sobretudo, envolver agentes da comunidade que estão representados na coleção e, muitas vezes, não têm conhecimento desse fato. Um dos caminhos para fazer isso é convidar os artistas contemporâneos, muitos dos quais lidam também com os mecanismos científicos da arqueologia e da antropologia, porque entendemos que a arte é um importante instrumento gerador de narrativas”, afirma. A diretora é muito enfática ao problematizar como uma instituição com 145 anos de história, fundada a partir de uma perspectiva eurocêntrica, espelha a sociedade racista em que vivemos e que ainda exclui muitas populações. “A metodologia de extroversão do campo científico e de revisão histórica no Mupa é um processo de longo prazo, do qual as exposições são apenas um de muitos aspectos, mas é importante perceber como ela já vem contaminando a estrutura do museu. Essas disciplinas têm suas rotinas de indexação, catalogação e conservação, mas o diálogo com a comunidade acaba dissolvendo o dogmatismo de cada área de pesquisa, levando a revisões das próprias metodologias”, conta. Richard Romanini destaca a importância de biografar o máximo possível cada

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item do acervo, com o auxílio dos agentes das histórias mobilizadas em cada retrato ou artefato. “O museu vem, sistematicamente, procurando pessoas que possam ter vínculos afetivos com esses materiais, convidando a comunidade para contar histórias mais justas e representativas. Isso possibilita que os pontos de vista sobre uma mesma história se multipliquem”, explica, como ocorreu na mostra Retomada da Imagem. “Estamos testemunhando uma apropriação pela comunidade do espaço do museu. O Mupa é um espaço público, que é e sempre foi de cada cidadão, mas, a partir dessa apropriação, de um sentimento de pertencimento, o museu torna-se também responsabilidade dos cidadãos”, completa Bettega. No encerramento da Retomada da Imagem, dia 15 de janeiro deste ano, com ação de integrantes do grande coletivo que terminou por assinar a obra-instalação-assalto nas salas do Mupa, Camila dos Santos (Kanhgág) diz que a retomada, para ser bem-feita, demandaria a destruição do museu, o que nos leva de volta à pergunta que dá título ao presente texto: é possível refundar a narrativa hegemônica da arte brasileira? De acordo com Denilson Baniwa, a fala de Camila dos Santos “é um sentimento partilhado entre povos do mundo inteiro. Reconstrução dos acervos a partir, inclusive, da presença de indígenas pressupõe construir como era antes, ou seja, não muda muita coisa. O nosso pensamento sempre foi de refundar essas instituições, o que pressupõe colocar abaixo o prédio e reconstruir desde a fundação. Só com a refundação é que se poderia criar uma estrutura sociopolítica ou etnopolítica favorável à presença indígena. Sem isso, não é possível ‘refundar’. O que estamos fazendo com a não destruição do museu (porque derrubar é usado aqui, logicamente, mais no sentido metafórico) é ‘derrubar para reconstruir do zero’ metaforicamente, ou seja, agora com a nossa presença e olhar juntos. Botar abaixo é encontrar juntos o que sobra dessa ruína e pensar o que serve e o que não serve numa relação institucional que atende e respeita a memória dos povos originários”.


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