território / informal
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pode ser urbano ou rural, sendo esse status geralmente herdado da mãe. Esse sistema de registro, explica Wu, é o que transforma os migrantes em uma classe de subalternos, excluídos de qualquer forma de representação nos lugares em que vivem. “Sem hukou, os migrantes rurais têm pouco ou nenhum acesso ao bem-estar social, incluindo subsídios habitacionais. Por isso, os migrantes têm, necessariamente, desenvolvido hábitats não convencionais. Na ausência de espaço oficialmente sancionado, procuram abrigo nas rachaduras e fissuras do sistema formal e moldam, em paralelo à cidade modelada pelo fluxo de capital, uma geografia urbana alternativa que é em grande parte invisível”, comenta a arquiteta. Localizados em vários bairros, os subterrâneos foram construídos nos anos 1950, no contexto de enfrentamentos entre a China e a União Soviética, e faziam parte do plano de defesa epitomizado na chamada de Mao Tsé-tung à nação: “Cavem túneis profundos, armazenem comida e preparem-se para a guerra” (深挖洞, 廣積糧, 不稱霸, shenwadong, guangjiliang, buchengba). Nesses albergues subterrâneos de Pequim, o espaço de moradia é de 4 metros quadrados por habitante. Para acomodar a atual população migrante da cidade nesses espaços ínfimos, seriam necessários 16 milhões de metros quadrados, algo equivalente a 36 sedes da Televisão Central da China (CCTV), um arranha-céu de 234 metros de altura e 44 andares construído por Rem Koolhas, em 2008, no centro financeiro da capital chinesa. O fenômeno de ocupação de subterrâneos não se restringe a Pequim. Em Hong Kong, a população pobre vive em porões, onde se alugam gaiolas de menos de 2 metros quadrados, ao preço de cerca de R$ 325 por mês. Mais de 10 mil pessoas vivem nessas condições. Outras dezenas de milhares espalham-se em cubículos de menos de 10 metros quadrados no topo dos prédios. Em uma pesquisa posterior ao seu mestrado, a arquiteta Rufina Wu juntou-se com o fotógrafo alemão Setephan Cahan, para estudar esse modelo ocupacional. A pesquisa resultou no livro Portraits From Above: Hong Kong’s informal rooftop communities (Peperoni, 2009). Os edifícios que têm essa ocupação informal no teto são antigos e não possuem eleva-
dores. Nos telhados imensos vivem, em média, de 30 a 40 famílias, em um misto de labirinto e aldeia. Repõem-se aqui as dinâmicas de visibilidade/invisibilidade da pobreza e da informalidade que Wu detectara em Pequim. Contemplando os telhados de um arranha-céu, ela conclui: “Do lado de fora, é impossível adivinhar o que se vê do interior”. Difícil não concordar com a arquiteta quando ela diz que essas habitações renderiam uma reedição do clássico Architecture Without Architects (1964), de Bernard Rudovsky, dedicado à arquitetura “sem pedigree” pré-moderna. As técnicas de construção informal, defende ela, são extremamente responsivas às urgências políticas e econômicas. Seus resultados mostram que se criam soluções inteligentes que “transformam os desafios em catalisadores construtivos”. Para o editor da revista Urban China, Jiang Jun, essa estratégia tem dimensões políticas profundas. O informal não é apenas um aspecto do processo de urbanização chinesa. É uma força que desafia a cultura do controle que está, segundo ele, milenarmente entranhada na história no país. Visto desse ponto de vista, torna-se um dispositivo da dialética entre o controle e o fora de controle, afirma. A grande questão por isso, diz, é: “Se o controle constitui um dos aspectos da China, como as forças informais constituem o outro aspecto dela?”
Para Jiang Jun, editor da revista Urban China, o informal não é apenas um aspecto do processo de urbanização chinesa. É uma força que desafia a cultura do controle que está milenarmente entranhada na história no país