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AU TO C R Í T I CA / Q U E E R M U S E U

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O DEBATE PELA LIBERDADE DE EXPRESSÃO GAUDÊNCIO FIDELIS

Queermuseu foi criada como plataforma transmuseológica de debate acerca de questões de expressão e identidade de gênero, incluindo também a diversidade da forma artística e sua impenetrabilidade no cânone da história da arte

O autoritário fechamento da exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira pelo Banco Santander, seu patrocinador, promotor e realizador, depois de uma campanha difamatória de criminalização da arte iniciada pelo Movimento Brasil Livre (MBL), colocou-nos um extraordinário dilema: como falar, debater ou dialogar sobre uma exposição a que apenas um número restrito de pessoas teve acesso, cujo catálogo não está disponível em larga escala, pois se esgotou rapidamente, e nem sequer imagens da exposição existem em circulação para ser analisadas? Como, ainda, discutir uma exposição dessa grandiosidade, com 263 obras de 85 artistas, que foi censurada, criando impossibilidade de acesso, considerando-se que a Constituição brasileira caracteriza censura como o impedimento por quaisquer meios ao conhecimento, o que sabemos que a arte em essência produz? Além disso, como lidar com esse precedente que se abriu diante da nossa jovem democracia, em que um conjunto de ações colocadas em movimento por grupos e organizações obscurantistas tomou de assalto a arte e a cultura brasileiras, da mesma forma que já estavam fazendo com a educação, por meio de ataques promovidos pelos movimentos e SELECT.ART.BR

ações como a Escola sem Partido, em curso desde 2004? Ainda hoje muitos pensam que os incidentes e ataques são localizados, mas eles estão acontecendo em todas as esferas da vida brasileira, corroendo ao poucos os direitos, a democracia e a possibilidade de um futuro melhor para o País. Há muito caracterizei a censura da Queermuseu como um crime contra o patrimônio artístico, porque, se já não vemos agora, teremos certeza em pouco tempo de que os efeitos pervasivos para a cultura serão sentidos por todos. Não é difícil imaginar que a censura da Queermuseu não foi exatamente o que ocasionou sua repercussão mundial. Se fosse, o debate teria arrefecido em algumas semanas. Embora não tenhamos precedente de uma exposição dessa escala sendo fechada, o “fenômeno” de repercussão mundial que se sucedeu não se justifica somente pelo seu encerramento. O que, em essência, de fato diferencia Queermuseu da maioria das outras exposições - e que talvez tenha feito com que ela ganhasse uma plataforma internacional de debate, quando tantas outras, realizadas em grandes centros, com muito mais investimento de mídia, e organizadas por curadores cuja rede profissional se mostra muito mais extensa e de maior penetração? A resposta a esta pergunta talvez esteja na combinação de diversos fatores que são possíveis de constatar, mas que, quando colocados em conjunto, produziram uma confluência de forças capazes de impulsionar a plataforma curatorial da Queermuseu, não só em direção a um alcance global, mas que fizeram com que um debate duradouro na arena pública ainda persista, já passados agora três meses do trágico incidente que foi o seu fechamento. Queermuseu foi criada como uma plataforma transmuseológica de debate e diálogo acerca de questões de expressão e identidade de gênero, diversidade e diferença, incluindo também a diversidade da forma artística e sua impenetrabilidade no cânone da história da arte. Ela partiu do pressuposto de que a história da arte − e, por consequência, o cânone artístico que ela produz juntamente com o museu − é excludente e discricionária. Essa confluência entre questões de gênero e as irredutíveis prerrogativas do cânone geraram ramificações cuja capilaridade é imensa. Além disso, Queermuseu, como poucas, constrói sua

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