Nelson Cavaquinho & Cartola & Carlos Cachaça - Caminho da existência
Nelson CAVAQUINHO& CARTOLA& Carlos CACHAÇA
Caminho da existência
Eliete Eça Negreiros
Neste livro, Eliete Eça Negreiros torna ainda mais complexo um mistério central da cultura brasileira: afinal, somos um país triste ou alegre? Essa pergunta nos atormenta há muito tempo, bem antes da polarização maluca que hoje domina as tais redes sociais. Paulo Prado, em 1928 (ano também de Macunaíma), iniciava seu Retrato do Brasil com declaração arrebatadora e convicta: “Numa terra radiosa vive um povo triste”. Depois, nos acostumamos a pensar esta nossa terra sob a radiação de uma alegria poderosa, capaz até de atravessar mares e ancorar em passarelas carnavalescas. Como conviver com essa contradição de sentimentos extremistas? Onde andará nossa verdade nacional? Bom remédio ou conselho, como sempre: vá escutar samba! Foi o que Eliete Eça Negreiros fez, escutando atentamente a obra de três dos nossos melhores sambistas: Nelson Cavaquinho, Cartola e Carlos Cachaça.
Hermano Vianna
ISBN 978-85-9493-324-9
[ este texto começa na contracapa]
E foi adiante: usou as ferramentas seculares de sua formação em filosofia, da grega até a contemporânea, para tornar essa escuta mais reveladora e original. Aqui, o pensamento do samba aparece lado a lado com os de Montaigne, Aristóteles, Benjamin e também Shakespeare e Cervantes (acostumados com esse tipo de companhia “nobre”).
E ainda: Eliete Eça Negreiros ouve essa tradição inovadora do samba também como pessoa da música, produtora de um dos trabalhos mais importantes em nossos discos e palcos, onde o consagrado sempre conviveu bem com a vanguarda. No seu primeiro disco, vestida de astronauta romântica na capa, com produção de Arrigo Barnabé (tenho esse LP, comprado na época do seu lançamento, entesourado na minha estante de vinis), ela já cantava “A felicidade perdeu meu endereço”, aquele choro-canção da “festa na sala modesta do meu coração” sem a presença da alegria.
A ideia deste livro surgiu a partir da iluminação que a filósofa/cantora/autora teve com a audição de “Caminho da existência”, de Carlos Cachaça, a quem o resultado é dedicado. Depois, anda na corda bamba (“bamba” no sentido
de excelência) que liga melodias maravilhosas e reflexões profundas como as de “Luz negra” (“destino cruel”, “teatro sem cor”, “estou chegando ao fim”), de Nelson Cavaquinho, àquelas de “O sol nascerá” (“a sorrir pretendo levar a vida”), de Cartola.
Cada samba tem sua análise cuidadosa, como pequenos tratados da condição humana, como estrelas em torno das quais toda a diversidade da filosofia passa a girar. Não como satélites periféricos, mas como centros de matéria densa pensante, com ressonâncias universais.
Então: triste ou alegre? Sem querer atrapalhar a leitura com spoilers, posso adiantar que esta é mesmo uma obra em aberto, como o país e sua música sofisticada/popular. Talvez o que osamba nos ensine seja a inevitabilidade de experimentação de modos de convivência, sempre surpreendentes em suas – também simultâneas – levezas e tragicidades, entre a tristeza e a alegria. Como indica Olgária Matos, em texto que é referência fundamental para este trabalho de Eliete Eça Negreiros, talvez a história de nossa canção popular tenha inventado aqui uma outra “medicina da alma”, um outro tipo de estoicismo (estoicismo tropical?) que nos ensina a seguir em frente, a fugir para frente. Nação e música estoicas: certamente uma intensa sina. Muito complexo destino.
Hermano Vianna
Nelson CAVAQUINHO& CARTOLA& Carlos CACHAÇA
Caminho da existência
Eliete Eça
Negreiros
Se eu for pensar muito na vida, morro cedo, amor / Meu peito é forte / nele tenho acumulado tanta dor
Nelson CAVAQUINHO com
Augusto Garcez e Ary Monteiro
Acontece que meu coração ficou frio /
E o nosso ninho de amor está vazio / Se eu ainda pudesse fingir que te amo /
Ah, se eu pudesse
Já não existe pra mim / uma palavra de perdão /
Pedi o lenitivo / a quem podia dar-me / Sorriu-me, / respondeu que não
preparação Tulio Kawata revisão Sílvia Balderama Nara, Maiara Gouveia projeto gráfico e diagramação Werner Schulz ilustrações Loredano
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
N3317Negreiros, Eliete Eça
Nelson Cavaquinho & Cartola & Carlos Cachaça: caminho da existência / Eliete Eça Negreiros. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2025. –212 p. il.
Discografia
Bibliografia
ISBN 978-85-9493-324-9
1. Música brasileira. 2. Música Popular Brasileira. 3. Canção popular brasileira. 4. Samba. 5. Mangueira. 6. Poesia. 7. Filosofia. I. Título. II. Cavaquinho, Nelson. III. Cartola. IV. Angenor de Oliveira. V. Cachaça, Carlos. VI. Caminho da existência.
CDD 780.981
Elaborada por Maria Delcina Feitosa CRB/8-6187
Edições Sesc São Paulo
Rua Serra da Bocaina, 570 – 11º andar 03174-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2607-9400 edicoes@sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp
A Danilo Santos de Miranda, a Maria Luiza Kfouri e a João Carlos Botezelli, o Pelão.
In memoriam
AGRADECIMENTOS
Estevão Eça Negreiros
Paula Negreiros Abbud Mellilo
Cristiane Negreiros Abbud Ayub
Euthymia de Almeida Prado
Rumos Itaú Cultural 2019-2020
Este trabalho foi inspirado pela canção “Caminho da existência”, de Carlos Cachaça.
SUMÁRIO
O canto da razão
Constituído a partir de tradições africanas do Recôncavo Baiano, foi no Rio de Janeiro, no início do século XX, que o samba se moldou da forma como é predominantemente reconhecido. Forjado nos terreiros das “tias” – matriarcas que aglutinavam ao seu redor pessoas negras organizadas por laços de solidariedade e religiosidade –, o gênero se desenvolveu como uma das mais notórias expressões de um universo sociocultural. Nesse contexto comunitário foi criada a Estação Primeira de Mangueira, escola de samba que reuniu dentre seus precursores aqueles que seriam relevantes expoentes da música brasileira: Carlos Cachaça, Cartola e Nelson Cavaquinho.
Os músicos têm em comum, além da agremiação e das trajetórias que deflagram os resquícios da escravização da população africana e negra no Brasil – sobretudo no sequente período pós-abolição –, produções artísticas singulares, cada qual a sua maneira. São essas características que Eliete Eça Negreiros aborda neste presente ensaio, analisando as canções dos compositores ante reflexões filosóficas e artísticas.
A autora, que concilia sua carreira de cantora com a de pesquisadora musical, esmiuça os temas presentes nas composições dos mangueirenses – artistas profundamente identificados com o território carioca e, simultaneamente, pensadores das grandes questões humanas. Negreiros apresenta, assim, elementos em suas obras estabelecendo conexões que vão do estoicismo grego à literatura francesa e ao Cinema Novo, demonstrando a abrangência dos fundamentos dos sambistas.
Amor, morte e o sentido da existência são algumas das principais temáticas que, além de ilustrarem poeticamente as canções, elaboram uma cosmovisão de vida fundamentada nas experiências de seus autores. Ao destacar a produção
de conhecimento imanente às músicas de Carlos Cachaça, Cartola e Nelson Cavaquinho, Eliete Eça Negreiros colabora com a valorização da sabedoria cotidiana e não acadêmica. E, assim, explicita um dos legados menos propalados do samba para a cultura brasileira: difundir, em forma de arte, a diversidade de contribuições sociofilosóficas geradas em contextos populares.
Luiz Deoclecio Massaro Galina
Diretor do Sesc São Paulo
A filosofia sobe o morro
O ensaísmo de Eliete Eça Negreiros floresce no país em que compositores populares citam Pascal (“o coração tem razões que a própria razão desconhece”, em “Aos pés da cruz”, de Marino Pinto e Zé Gonçalves), afirmam que “a filosofia hoje me auxilia a viver indiferente assim” (“Filosofia”, de Noel Rosa e André Filho) e também pedem “basta de filosofia” (“Ele me deu um beijo na boca”, de Caetano Veloso). O impulso ensaístico de vertentes modernas da canção brasileira, com citações a autores e ideias e questionamentos das convenções sociais, sem dúvida fecunda o projeto de Eliete de pensar o mundo a partir de meditações inoculadas na música de massa. Ela atenta, porém, para a renovação e a virtuosidade poética fora dos movimentos de vanguarda. O livro Nelson Cavaquinho & Cartola & Carlos Cachaça: caminho da existência reconhece as reflexões da condição humana entranhadas na tradição do samba, em cujo seio brotam imagens com lastro na arte poética e temas filosóficos de longa história, como o transitório, a vacuidade, o desejo do absoluto, o mito do amor romântico, a mortalidade, o luto, o perdão, a velhice. Eliete percorre esses caminhos com tranquila erudição, indo dos filósofos da Grécia aos estoicos da Mangueira, e mobiliza um repertório musical condensado em três sambistas: Nelson, Cartola e Carlos Cachaça. O morro da Mangueira imantou esses três expoentes do samba. De início, um espanto recorrente em estudos da música popular brasileira não deixa de comparecer aos ensaios de Eliete coligidos neste volume. Temos um abalo na relação de causalidade entre estudos formais e sofisticação cultural. O letramento parco e misterioso desses três compositores, além de confirmar o vaticínio de que samba não se aprende no colégio, revela a vivência como matriz do pensamento de homens cultos de si mesmos, possuídos por invenções melódicas incomuns, forjados nos caminhos da existência. Nelson Cavaquinho abandonou
Pessoas simples, com grande sabedoria, com um olhar profundo sobre a condição humana, sabedoria forjada na existência, na escola da vida. Mestres que com seus sambas iluminaram e iluminam a vida de tantos brasileiros. Sambas que falam direto ao coração. Como escreveu Drummond: “Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. [...] O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada”315 .
Nuno Ramos, em seu ensaio “Rugas”, escreve sobre Nelson Cavaquinho e Cartola e suas considerações podem se estender também, penso, a Carlos Cachaça. Aponta três traços que caracterizam a poética desses sambistas: a abstração, a sobriedade e a velhice.
Abstração: os sambas nascem, muitas vezes, de uma situação concreta, de algo que aconteceu, mas se movem para “um ponto de vista distanciado, moral ou cósmico”316. Dizendo de outro modo, ele vai do concreto ao abstrato. Distancia-se. Nuno cita um samba de Cartola que fala da traição a um amigo – “fui trair meu grande amigo” –, e que conduz a uma máxima moral – “faço tudo pra evitar o mal/ sou pelo mal perseguido”317. O morro, lugar de onde o sambista olha o mundo, passa a ser, principalmente, “um lugar alto, distante, isolado. Instalado ali, o compositor, sozinho, é soberano”318 .
A sobriedade é uma “espécie de nitidez formal, singela ou solene, que cria distância ao mesmo tempo que compensa o indefinido do assunto. O compositor não ginga, não desvia, não malicia, nada tem do malandro”319 .
A terceira característica comum aos três é a velhice: “o ponto de vista de quem já viveu”320 .
São pessoas humildes, que estudaram pouco e que são filósofos populares, que dão conselhos: “O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria”, ensina o filósofo Walter Benjamin321. Diz Nuno Ramos:
315 Carlos Drummond de Andrade, “Cartola: no moinho do mundo”, op. cit., pp. 10-1.
316 Nuno Ramos, “Rugas: sobre Nelson Cavaquinho”, op. cit., p. 13.
317 Ibidem, pp. 13-4.
318 Ibidem, p. 14.
319 Ibidem.
320 Ibidem.
321 Walter Benjamin, op. cit.
“Em Cartola, o cantor, antes de mais nada, dá conselhos. Aquele que já viveu sopra aos ouvidos de quem escuta: ‘o mundo é um moinho’ ou ‘acontece, acontece’”322. Conselhos, ensinamentos, máximas morais. Carlos Cachaça ensina que a verdadeira beleza é interior: “É a beleza da alma/ Que alimenta e acalma/ Beleza que se chama: poesia”. Nelson ensina o desapego; “Eu me considero rico em ser pobre/ Faça como eu, que sempre soube ser nobre”. Poetas, sábios populares, sambistas de sofisticada invenção melódica e poética, como explicar a obra desses grandes sambistas, dessas grandes almas brasileiras? Não sei. Só sei que graças a eles nossa vida fica mais bela e melhor e, assim, podemos entender melhor nossa condição humana e a vida, esse eterno mistério.
322 Nuno Ramos, “Rugas: sobre Nelson Cavaquinho”, op. cit., p. 14.
SOBRE A AUTORA
De longa carreira como cantora, Eliete Eça Negreiros é uma das fundadoras do movimento que ficou conhecido como vanguarda paulista, ao lado de nomes como Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e Ná Ozzetti. Formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), tem publicadas sobre produção musical as adequações de sua dissertação de mestrado, Ensaiando a canção: Paulinho da Viola e outros escritos (Ateliê, 2011), e de sua tese de doutorado, Paulinho da Viola e o elogio do amor (Ateliê, 2016), além de Amor à mú sica: de Cartola, Paulinho da Viola, Cortázar, Nara Leão, Rogério Sganzerla... (Edições Sesc São Paulo, 2022), coletânea de artigos publicados.