Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico

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vida sem sofreguidão, sem histeria. Sou uma privilegiada.

Em primeiro lugar, por estar vivendo há tantos anos com essa energia e ter achado as pessoas com quem atravessei uma vida. Não vejo meu passado com dor, com dificuldade... e houve. Eu não sei o que aconteceu na minha trajetória que me botou aqui, só sei que trabalhei muito. Eu nunca fugi.

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FERNANDA MONTENEGRO

E

u posso dizer que não tive tempos mortos.Usufruí a minha

FERNANDA MONTENEGRO Itinerário fotobiográfico

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FERNANDA MONTENEGRO


SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO

Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman

Diretor Regional

Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini

Joel Naimayer Padula

Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli

Edições Sesc São Paulo

Gerente Marcos Lepiscopo

Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre

Coordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha, Francis Manzoni Produção editorial Maria Elaine Andreoti Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti

Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel


FERNANDA MONTENEGRO Itinerรกrio fotobiogrรกfico


© Fernanda Montenegro, 2018

© Edições Sesc São Paulo, 2018 Todos os direitos reservados

Coordenação de pesquisa Fernanda Montenegro Este projeto foi possível graças à união de esforços das equipes: Edições Sesc São Paulo

Preparação Maria Elaine Andreoti Revisão André Albert

Diagramação Fabio Pinotti com colaboração de Claudio Boguma

Pesquisa iconográfica e licenciamento Memórias Assessoria e Projetos, Animus Consultoria & Gestão

Trígonos Produções Culturais (Rio de Janeiro) Coordenação de produção Carmen Mello

Design gráfico Daniel Pinha com colaboração de Fabio Pinotti Assistência de design gráfico Julia Berry, Nicolle Meirelles Leal Assistência de produção/controller Ricardo Rodrigues Assistência Fernanda Montenegro Jadir Ferreira Assistência administrativa Elinete Barcellos Foto de capa Silvio Pozatto

Foto de quarta capa Claudio Torres

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) F3911 Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico / Organização de Fernanda Montenegro. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018. – 500 p. il.: Fotografias.

ISBN 978-85-9493-081-1

1. Biografia. 2. Biografia de atriz. 3. Montenegro, Fernanda. 4. Teatro brasileiro. 5. Fotobiografia. 6. Memórias. I. Título. II. Torres, Arlette Pinheiro Monteiro. CDD 927

Edições Sesc São Paulo Rua Cantagalo, 74 – 13º/14º andar 03319-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2227-6500 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp


Imagens que valem... palavras que valem... Danilo Santos de Miranda

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Infância e juventude

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Família Torres

25

Meu companheiro de vida

41

Teatro 53 A arte de ensinar: aulas, palestras e leituras

197

Cinema 211 Teleteatro 277 Novelas 345 Séries e outras participações

381

Outras memórias afetivas

403

“Não sou ativista, sou atuante”

477

Civilizada e civilizadora

488

Nota editorial

490

Prêmios, comendas e homenagens

491

Créditos de imagens e documentos

496

Caetano Veloso

Referências 498 Agradecimentos 500



Imagens que valem... palavras que valem...

P

alavras e imagens costumam protagonizar, à revelia delas, comparações de importância que, no final das contas, não nos levam a lugar algum. Se uma imagem vale por mil palavras, o seu oposto assim se mostra também contundente, não podemos acentuar nem um nem outro como uma verdade – ou melhor, a partir do ponto de vista, a verdade salta com as querências de quem a reclama – qualquer escolha que se faça. Imagens suscitam palavras, assim como estas desvelam aquelas. Universos que compõem um único universo humano e que nos proporcionam caminhos diversos de nos expressarmos e entendermos a existência. Tanto uma quanto outra podem nos afetar e nos pertencer em significados ora subjetivos e intimistas, ora abrangentes e arquetípicos. Na presente fotobiografia de Fernanda Montenegro, imagens significativas da vida de uma das mais admiráveis atrizes brasileiras se dispõem em ordens mais que cronológicas, mas, sobretudo, carregadas de impressões pessoais que muito podem revelar do trabalho nos palcos, nas telas e salas de aula desta artista já consagrada no rol de nossa grandeza cultural. Com a bela trajetória de sua carreira, Fernanda põe a público muito de sua vida privada, que se confunde com a efervescente e perene vida profissional que a acompanha desde a mais tenra idade. Sua experiência se agiganta quando de seu corpo uma personagem ganha vida. Ali, nos palcos e telas, as palavras pronunciadas recebem tonalidades de imagens indizíveis, compondo um caleidoscópio entre corpo e mente próprio das expressões artísticas de relevância atemporal. O que fazer? Absorver como produto científico um curso profissional tão magistral como o de Fernanda Montenegro? Deter-se nas situações cotidianas de uma vida comum, seus amores, famílias e colegas de trabalho? Tentar entender a história de um país em interstícios imagéticos que possivelmente podem escapar de nossa segurança psicológica? Em Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico, podemos encontrar frutos de uma árvore que floresce e que tende, pelo poder da memória que se inscreve no tempo, a se tornar uma sequoia de tronco volumoso, de raízes fincadas no subsolo da alma humana e cuja copa nos fornece alimento, seiva e sombra para nossa própria continuidade. Um livro que é uma homenagem a esta atriz de vertentes diversas e que ocupa grande parte do imaginário brasileiro, contribuindo com o que há de mais valioso para um povo: sua cultura. É uma homenagem também ao leitor, que terá em mãos as fotografias de uma vida que representa um legado de dedicação ao amor pela arte de atuar. Danilo Santos de Miranda

Diretor Regional do Sesc São Paulo


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São 88 anos de vida e quase 75 de vida pública, nos palcos, no cinema, na TV, no rádio. São datas que fortificam e fragilizam ao mesmo tempo. Essa dualidade de sentimentos, que exalta e deprecia, me levou a tomar coragem e enfrentar essa egotrip, não tão ego. Todos esses anos, convivi com mais de mil colegas, personalidades relacionadas à cultura brasileira em diversos campos: literatura, artes plásticas, rádio, jornalismo, televisão, publicidade, cinema e teatro. Antes de tudo o teatro. Assim sendo, divido com tantos companheiros de vida artística essas duas datas mágicas para qualquer ser humano sobrevivente e com isso me alivio do orgulho da solitária exaltação, bem como do desconforto neurótico da autodepreciação. Revendo o material que conseguimos recuperar sobre esses anos (na verdade, metade desse material está perdida), vejo que todos nós nos entrelaçamos através de, pelo menos, cinco gerações. Recebemos e passamos influências. Somos uma tribo de mil ou mais de um milhão de membros, se contarmos com aqueles que me viram ou que nos viram. É um grande, imenso álbum de família se nos subdividirmos. Toda essa galeria de criadores contém os artistas mais presentes e creditados, com identificação no imaginário cultural do Brasil. Meu Deus, somos parte dessa resistência e dessa sobrevivência. E nesse entrelaçamento, através de tantos anos, eles estão na minha vida como eu estou na deles. Fernanda Montenegro

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O primeiro roubo

F

ernanda, Fernandinha, Fernandíssima. Fernanda, quando a conheci; Fernandinha, quando ficamos amigos pelo trabalho (ela me chamava de “senhor”); Fernandíssima, depois de ter deslanchado numa carreira segura e luminosa como o rastro de um engenho interespacial. Um dia, recentemente, com certa malícia que lhe é simpaticamente peculiar, afirmou que, sem bons diretores, não há bons espetáculos, ao que, obviamente, respondi que, sem bons atores, não há bons diretores. Fernanda é hoje, talvez, a única atriz que a cultura, filtrada por sua sensibilidade, torna independente de influências ou teorias transitórias, situando-a num plano completamente à parte no campo das grandes intérpretes-criadoras. Não se trata aqui de estabelecer se ela é a maior ou a melhor; isso não vem ao caso. O que eu quero dizer é que a Fernanda é realmente um fenômeno a ser considerado isoladamente mais do que no contexto geral da arte teatral. A sólida estruturação moral, a noção crítica que ela tem de seu trabalho na perspectiva histórica de suas origens e do mundo ao qual pertence e que ela mesma criou para si, emprestam ao seu trabalho o cunho de severo e implacável profissionalismo de um artista da Renascença. Trabalhamos sete anos juntos na busca de uma perfeição que redundou num círculo vicioso, mas também na conclusão de um importante ciclo experimental. Quando a conheci, já era potencialmente uma grande atriz. Hoje ela carrega o fardo do monstro sagrado: o esplendor do arcanjo da espada flamejante. Fernanda, uma e cem mil, polivalente, multiforme, proteica, virtuose e intérprete como somente sabem ser os grandes músicos solistas. Neste artigo, não deveria faltar o lado anedótico, mas acho que seria desmerecer o maravilhoso talento de Fernanda narrar pequenos episódios circunstanciais. Prefiro lembrar o esplêndido inesquecível momento em que, na peça Eurídice, de Anouilh, ela passava no fundo do palco, alterando todo o clima dramático, com uma simples parada e um olhar. Era sua única aparição no espetáculo e ficou gravada para sempre. Depoimento de Gianni Ratto para o catálogo

da exposição Fernanda EnCena: retrospectiva 50 anos.

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Infância e juventude

Infância e juventude  13


Com um ano

Aos dois anos

No subúrbio da minha infância sobrava espaço. Era rural, bucólico, descontraído, verde e azul, casarões e casinhas, bondes pacientes, ótimas escolas públicas, brincadeiras de roda, berlinda, amarelinha, paróquias com mês de festas em louvor a Maria, grandes famílias, parentes se visitando, sorvete de coco e casquinhas crocantes, prestamistas vendendo joias boas a perder de vista, romances em fascículos vendidos nas portas, e que a melhor voz da família lia em voz alta pra todas as primas e tias. Discussões familiares. Reconciliações entre lágrimas. Mistérios familiares que só os velhos sabiam. Quadros de Jesus e Maria. O bisavô dando corda no relógio de parede. E a grande esperança de que tudo daria certo. Graças a Deus. O subúrbio da minha meninice era de brasileiros mesclados com italianos, portugueses, alemães e a definitiva presença de descendentes de escravos. Os quintais tinham lugar para morar um agregado, que cuidava da horta, dos animais, limpava os jardins. Havia engomadeiras, lavadeiras. Perus eram criados para os Natais, cabritinhos para a Páscoa. O subúrbio de hoje continua sendo a alma da cidade. Por ele se conhece até o que o Estado faz ou não faz com a cidadania. Nosso subúrbio, hoje, é maltratado, preconceituado. Abandonado. Ele se espraia doidamente pela periferia do grande centro, e o que o alimenta é esse humor inexplicável, dando-lhe, por incrível que pareça, um particular sentido de resistência, organização e sobrevivência. As dezenas de escolas de samba são a prova do que uma sociedade jogada à própria sorte pode transcender e se fazer civilizada. Depoimento a Lucia Ritto (org.).

Território da alma carioca: Zona Norte. Rio de Janeiro: Norte Shopping, 2001, p. 42.

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Infância e juventude  15


Minha avó Maria Francisca aos 50 anos

Eu pertencia a uma comunidade familiar. Minha avó – só hoje vejo isso – significava um pouco de aventura para mim. [...] Era uma mulher que contava muita coisa de sua vida, de seu passado, da travessia de navio, da ilha onde nasceu, com suas fantasias. Ela significava a estrada. Era uma mulher vital. Analfabeta, portanto com uma memória fantástica. Depoimento. A vida de Fernanda Montenegro.

Rio de Janeiro: Rio Cultura, Faculdades Integradas Estácio de Sá, s.d., p. 17.

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Meu avô italiano, como estucador, fez parte da equipe de pedreiros que construiu o Theatro Municipal, no Rio de Janeiro, inaugurado em 1909. Em 1959, na celebração do cinquentenário desse histórico teatro, estreamos o espetáculo O mambembe.

Meus avós maternos recém-casados: Maria Francisca Pinna Nieddu e Pedro Nieddu

Meus bisavós maternos: Joana Piras Pinna e Francisco José Pinna (naturais da Sardenha)

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Minha mãe. Ela foi o elo direto entre mim e minha raiz italiana. Quem não é do ramo, ou melhor, dessa raiz, não vai entender nada. Minha mãe fez-se matriarca absoluta apesar do medo e da coragem que sempre a acompanharam. Como explicar a voluptuosidade com que ia da risada à lágrima? Da paixão à raiva? Do rancor ao perdão? Da paulada ao afago? Minha mãe tinha crenças absolutas sobre tudo. Sempre educou seriamente as três filhas para que jamais verbalizassem seus sonhos, pois se falasse acontecia exatamente o oposto. É claro que ela não sabia que esse exorcismo é uma herança mediterrânea de crenças e cultos a deuses aparentemente mortos. Era uma mulher violenta e amorosa, que amparava e agasalhava. Era nosso canal direto com Deus. Sempre pedindo e exorcizando em silêncio ou em voz alta proteção para os seus. “Os seus”, “o nosso sangue”, “só nós”. O vizinho, até prova em contrário, era inimigo. Diante de uma notícia feliz ela sempre ia contraponteando com “graças a Deus”, “ainda bem”, “minha Nossa Senhora”, “meu Deus, valei-me”, “Deus nos proteja”. Quem não sabia pensava que só estávamos comunicando desgraça. É que ela intuía, por herança cultural, as faces de Jano: se há um bem, o oposto, em algum momento, deverá se apresentar. A cada 31 de dezembro, sempre repetia: “apesar de tudo, graças a Deus, estamos todos vivos”. Fera e anjo, jamais se ausentava diante de qualquer crise. Sempre aglutinando, socorrendo com seu olhar de loba amorosa, suportando o sofrimento físico e as vicissitudes da vida como uma mulher medieval, reta, justiceira e provedora. Quando ela se foi, a âncora daquele navio de imigrantes foi definitivamente jogada ao mar, e eu, finalmente, fiquei solta e espiritualmente desamparada, largada. Sem o seu manto pesado e protetor. Mas ela ainda existe. Ocupa os espaços, e nós a reverenciamos. O que ela nos deixou? O sentimento de fidelidade, de que se pode sobreviver ao grande medo. Fé absoluta na vida. E, apesar dos homens, de muita fé no próprio homem.

Retratos de meus pais, Carmen e Victorino, ainda jovens

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Herdei de meu pai a alma do artesão que ele foi. Uma visão clara do que o ofício é. Não é “trabalho”. É ser um oficiante no trabalho. É um sentimento medieval. Tenho que relembrar que meus avós maternos e paternos vieram da lavoura e do pastoreio. Do fundo de seus países. De aldeias transmontanas e sardas. De meus avós portugueses não tenho nem uma foto. Sei que a vida de minha avó galega não foi fácil. Ana Albina Esteves Capela da Silva, viúva aos 25 anos (com a morte de meu avô José Pinheiro da Silva), viu-se sem nada além de quatro filhos, que logo foram internados em colégios de órfãos. Meu pai entrou no Instituto Profissionalizante João Alfredo aos 7 anos e saiu de lá doze anos depois. Aos 19 anos, tinha o ginásio completo e a profissão de modelador mecânico. Logo se fez funcionário da Light, onde permaneceu por 35 anos. Foi chefe do departamento de desenhos e modelagem industrial. Conhecia e amava a madeira como metal precioso. Sabia cuidar e venerar a Natureza objetivamente. Seu amor à vida lhe deu forças imensas para suportar, sem queixas, as sequelas de uma paralisia infantil. Entre ele e minha mãe sempre existiu uma profunda, persistente e sagrada ligação matrimonial. Deixou-nos aos 92 anos de idade, e minha mãe o seguiu pouco tempo depois. Devo a ele não ter medo dos homens e olhá-los como iguais. Como criaturas que somos. Amava as três filhas como um namorado. Jamais se apresentava como um “superior” em nossa casa – lógico! Era uma casa de mulheres. E, acima de tudo, era um artesão arrebatado, obstinado. O fazer é um ato sagrado. Essa visão de ofício ele me passou de uma forma inquestionável. Meu pai é só vida na memória. Com essa afirmação eu nasci, me criei e envelheci.

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Com minhas irmãs, Aída e Áurea

As três irmãs na praia: Arlette, Aída e Áurea

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Aos 17 anos, na varanda da casa da tia Valentina, usando um dos muitos vestidos que costurei

Com a tia Valentina, irmã de mamãe, em Belo Horizonte (MG), onde se fixou parte de minha família sarda

Poema dos meus 17 anos (o único que fiz na vida)

Dizer o que se quer dizer... e há tanta coisa. Vontade de chorar... chorar pelo sofrimento de querer todas as coisas, de viver todas as vidas... e não poder. Sonhar. Viver acima de tudo. Viver como se um sopro eterno suspendesse minha alma e a deixasse aí – no perigo de cair... mas, na ânsia de subir, mais e mais. Chora-se pelo que não se tem... Chora-se pelo sonho que nunca é realidade... Choro por alguém que nem mesmo conheço, nem sei como é seu rosto, sua voz, suas mãos... Sei somente que sem ele nunca viverei, nunca serei completa.

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Nos primeiros anos de minha vida, ainda não havia rádio na casa das pessoas. No subúrbio do Rio, assim como nos bairros mais nobres, sempre se tocou um instrumento. Minha tia Valentina, irmã da minha mãe, passou sete anos interna num colégio de irmãs e aprendeu piano. Por isso tínhamos um piano em casa. Com o rádio, a música entrou por um botão. Lá em casa, a italianada toda adorava música, ouvia muita ópera, cantava modinhas de Francisco Alves, de Orlando Silva, Carmen Miranda, irmãs Batista, Noel, Lamartine, Ary Barroso, toda essa gente. E ouvia-se muito a Rádio Ministério da Educação e Cultura por causa da programação de ópera e opereta, além de música clássica e folclórica. A rádio foi oferecida pelo Roquette Pinto a esse ministério, que era um só naquela época. O slogan era: “pelos que vivem em nossa terra e pelo progresso do Brasil”. Aos 15 anos, soube que estavam organizando um concurso para admitir jovens radialistas – redatores, locutores, radioatores – e fui ao Campo de Santana, onde ficava o estúdio, junto à sede do Cinema Nacional. Fiz um teste, muito tímida... me deram um poeminha para ler. Dois meses depois recebi um telegrama pedindo que eu me apresentasse, junto com outros jovens. Nós teríamos aulas de português, declamação, noções de logopedia, uma discoteca muito grande e uma boa biblioteca, além de uma frente de redatores, professores e grandes jornalistas que formavam um centro de preparo cultural. Meu primeiro trabalho como radioatriz foi aos 16 anos, uma peça do Fornari, um autor gaúcho, Sinhá moça chorou. Tivemos aulas sobre a Guerra dos Farrapos, o Garibaldi, o Bento Gonçalves. E também conhecemos o tipo de música, a poesia da época. Era lindo! E isso veio pela vida afora. Qualquer autor clássico que se encenasse era o mesmo preparo. Enfim, é a universidade que eu não tive, muito dirigida para a comunicação humana. Quando estreei, em 1950, com Altitude 3.200 (Alegres canções nas montanhas), também estrearam dois ou três colegas da rádio. Lá na rádio eu fiquei dez anos. Além de radioatriz, fui locutora e tive o programa Passeio literário, que me proporcionou um convívio imenso com a literatura, com o valor das palavras.

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vida sem sofreguidão, sem histeria. Sou uma privilegiada.

Em primeiro lugar, por estar vivendo há tantos anos com essa energia e ter achado as pessoas com quem atravessei uma vida. Não vejo meu passado com dor, com dificuldade... e houve. Eu não sei o que aconteceu na minha trajetória que me botou aqui, só sei que trabalhei muito. Eu nunca fugi.

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