FOCUSSOCIAL 23 | junho 2023

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DOSSIÊ TEMÁTICO

JOVENS

emprego e precariedade

TERRITÓRIO LEIRIA

F OCUS SOCIAL 23

JUNHO 2023 semes tr al REVISTA DE ECONOMIA SOCIAL

Em Focus: Jovens - Emprego e precaridade

• Boas Práticas: a História de Elisa e do El Corte Inglês........... 4

• NEET quando os jovens não estudam, nem trabalham ........... 8

# A voz de quem vive | EMPREGO, HABITAÇÃO, PRECARIEDADE: A Vida dos Jovens no Limbo ........... 12

# A voz de quem vive | O Desemprego e a Empregabilidade Jovem 16

# Outras vozes | Associativismo juvenil e a emancipação jovem ........... 18

# O nosso lado | É urgente combater a pobreza no mundo laboral Rede Europeia Anti-Pobreza promove Seminário sobre a Agenda do Trabalho Digno ........... 20

Leiria

• BI Distrital ........... 28

• Projeto Redes na Quint@ E8G: “Somos um porto de abrigo, um local onde as pessoas sabem que podem vir pedir ajuda”........... 30

• “O sem-abrigo é invisível na sociedade” A história de Pedro, da rua para uma Morada Certa ........... 34

• Fora do bairro, dentro do bairro e a ponte criada para unir os dois lados ......... 38

Estante Social 42

• Opinião | Empregabilidade na deficiência e incapacidade ........... 46

• 7ª edição d’O Futuro Começa Agora! reflete sobre o mundo atual com mais de 80 jovens ......... 50

• Interculturalidade foi celebrada em abril com mais de 150 atividades por todo o país ........... 56

• Estratégia Europeia de Prestação de Cuidados ........... 60

• A abordagem preventiva e a participação ativa como pilares essenciais da intervenção ........... 64

• Cimeira das Pessoas: Não há Europa Social sem Direitos Sociais - Colocar as pessoas no centro .......... 68

• O Futuro tem de ser Social ........... 72

• A aposta na Garantia para a Infância - uma aposta da União Europeia que Portugal não pode desperdiçar......... 76

Última Hora 80

A edição nº23 da FOCUSSOCIAL marca um novo capítulo na comunicação da EAPN Portugal. Esta nossa revista semestral foi sempre um ponto fundamental para comunicarmos com o exterior, para elencarmos projetos e iniciativas nacionais e europeus de interesse sobre os temas da pobreza e exclusão social.

Queremos continuar a fazê-lo. Porém, queremos reforçar a missão da nossa organização e promover a voz das pessoas em situação de pobreza e/ou exclusão social. Assim, esta edição marca uma nova era que conta com um design mais acessível e apelativo, para podermos chegar de forma mais fácil a todas as pessoas que nos leem. Contudo, o ponto fundamental está na participação das pessoas em situação de vulnerabilidade. Não queremos que sejam esquecidas, mas sim ouvidas e lidas. Seja através das suas próprias palavras, com artigos de opinião, seja através das nossas, ao contar as suas histórias de vida e as suas perspetivas relativamente às políticas sociais das quais são beneficiárias. Queremos que a FOCUSSOCIAL seja a voz das pessoas e das organizações que lutam por um mundo melhor. Neste sentido, no dossier temático da presente edição damos visibilidade aos jovens de hoje. Às suas emoções, sonhos, perspetivas futuras, mas também às suas angústias, às suas preocupações e necessidades numa sociedade cada vez mais exigente e castradora dos seus sonhos. Prolongamento do percurso escolar; adiamento da entrada no mercado de trabalho, precariedade associada a salários baixos e a saída tardia da casa dos pais devido ao aumento do custo de vida, fazem parte de uma realidade cada vez mais presente nesta franja da sociedade. É através de testemunhos diretos que pretendemos sensibilizar e alertar todos os cidadãos para esta situação.

Relativamente à rubrica Território destacamos o Distrito de Leiria apresentando de uma forma infográfica uma caracterização do distrito que nos permite conhecer de forma objetiva a realidade local. Paralelamente, apresentamos o trabalho desenvolvido por algumas entidades locais, colocando o ónus não só nos atores socioinstitucionais, mas também nas pessoas que beneficiam dos projetos em curso, como por exemplo o Projeto Redes na Quint@ E8G, direcionado para crianças e jovens em contextos de vulnerabilidade, e o Projeto Morada Certa, que tem como públicoalvo pessoas em situação de sem-abrigo. Ambos os projetos são dinamizados pela Associação InPulsar. Referimos igualmente o Projeto 3ESC.E8G promovido pela Câmara Municipal de Pombal com o objetivo de promover a interculturalidade.

Na rubrica a EAPN em Rede damos a conhecer o trabalho desenvolvido pela organização, mas também projetos inovadores promovidos por entidades parceiras como é o caso do CESIS que expõe a metodologia do projeto HOOD – Homeless’s Open Dialogue no âmbito do Programa Erasmus+ da Comissão Europeia, que aposta numa mudança de paradigma na intervenção social junto de pessoas em situação de sem-abrigo.

Por fim, na rubrica EAPN na Europa enfatizamos a Cimeira das Pessoas, uma iniciativa desenvolvida pela EAPN Portugal e EAPN Europa em parceria com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Esta iniciativa constituiu-se como uma oportunidade de refletir sobre as conquistas do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, sobre a forma como, em cada Estado membro, estão a ser atingidos os objetivos em áreas tão cruciais como a proteção social, o acesso aos serviços essenciais, o emprego, a prestação de cuidados, entre outros. Uma reflexão com a participação direta dos cidadãos sobre a atual situação e sobretudo o que pode ser feito para garantir os direitos sociais na defesa da pessoa. Este encontro, assim como o Fórum Social do Porto, contou com a participação de elementos que integram os Conselhos Locais de Cidadãos promovidos pela EAPN Portugal que apresentaram os desafios que vivenciam diariamente.

Abordamos ainda a Garantia Europeia para a Infância que é uma das prioridades do Plano de Ação para a implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais que estabeleceu como objetivo reduzir, até 2030, em cinco milhões o número de crianças em risco de pobreza.

Temos agora novos objetivos e precisamos de os cumprir. Para tal, defendemos hoje a necessidade de um novo paradigma – “Lutar contra a Pobreza é lutar pelo desenvolvimento integral de todo o ser humano”.

Transversal a toda a publicação, a voz das pessoas é uma constante e apelamos a todos os nossos leitores que o combate à pobreza seja efetivamente um desígnio nacional!

EDI TO RIAL
23 Índice
NA EUROPA ESPAÇO ASSOCIADO
DOSSIÊ TEMÁTICO
TERRITÓRIO
EAPN EM REDE

Dossiê Temático

EM FOCUS

Jovens: Emprego e Precariedade

BOAS PRÁTICAS

a história de Elisa

Por Inês Duarte

Veio de Angola com duas filhas pequenas. Sem emprego, sem apoios, sem chão. Foi o El Corte Inglés, com as suas políticas de empregabilidade e inclusão, que lhe abriu portas para um trabalho, mas, sobretudo, para a felicidade.

Elisa, como é que chegou ao El Corte Inglés?

Como é que foi este processo?

A minha entrada no El Corte Inglés começou por uma fase difícil. Estava a passar por um desemprego prolongado e, entretanto, fui inserida no projeto Click [da EAPN Portugal] para fazer a formação e depois o estágio. Escolhi o El Corte Inglês porque é uma empresa que já está em Portugal há muitos anos e tem sido tudo muito produtivo.

O projeto Click lançou me no mercado de trabalho, uma vez que eu estava desempregada a longo prazo. Para mim, foi uma mais-valia ter feito parte desse projeto que ajuda socialmente várias faixas etárias, de pessoas com 18 até aos 50, 60 anos. Engloba toda a gente, o que é muito bom para as pessoas entrarem no mercado de trabalho, sentirem-se enquadradas. Porqueapessoa,quandoestánodesemprego,desvincula-sedetudo: o meio social, os amigos, os familiares e surgem outros problemas psicológicos e sociais.

A Elisa, então, já sentia esse deslocamento do resto das pessoas. Há quanto tempo é que estava desempregada?

Eu estava desempregada desde 2019. Vim de Angola nesse ano, procurei emprego, e em 2020 apareceu a COVID-19. Foi uma fase muito difícil, 2021, 2022… Não conseguia ter aquela vida com os amigos, tomar café com eles. Às vezes também satisfazer as necessidades básicas da família, não é? As meninas pedem uma coisa, “olha, não dá agora”. Então, isso tudo mexe, mexe com a estrutura do agregado familiar e para mim o projeto foi, sem dúvida, importante na minha vida.

Antes disso, não tinha qualquer tipo de apoio para aplicação no emprego?

Eu inscrevi-me no Centro de Emprego, só que a área da restauração tem horários complicados. Tenho duas meninas pequenitas ainda e não tinha como conciliar esses horários. Então fui sempre procurando um horário em que conseguisse equilibrar o apoio às meninas e todo o trabalho.

Já sabia que o El Corte Inglés trabalhava mais ou menos assim, para mim era vantajoso a nível dos horários, que eu consigo conciliar com as meninas. Já acompanho a escola e as reuniões, e consigo trocar as folgas com as colegas. Há empresas em que eu não conseguia.

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Então esteve mais ou menos três anos até entrar no projeto Click. Depois do projeto, de fazer as ações de capacitação, o currículo, etc, como é que chegou ao El Corte Inglês? Como é que foi todo esse processo?

Numa primeira fase, a pessoa estando desempregada, estar mais de oito horas em pé foi fisicamente complicado. Depois também a parte psicológica, no bom sentido, que é entrar numa equipa que já está formada. Claro que pensei qual era o meu papel, o meu lugar, não porque tivesse medo de enfrentar o trabalho, mas porque há questões que, inconscientemente, colocamos. Temos aqui uma equipa fabulosa, fui muito bem recebida, adaptei-me. Cada um tem a sua personalidade, mas adaptei-me. Também foi muito bom para mim aquela fase do estágio, e não ser chegar e começar logo a trabalhar.

O projeto trabalha bem todas as fases, a captação, o estágio, ver se a pessoa se adapta ou não, isso é fundamental. Não mandam a pessoa logo para o mercado de trabalho. E eles também fazem o acompanhamento durante a formação. Durante e depois, porque mesmo depois de ter assinado contrato, ainda continuam a querer saber como é que estou, se preciso de alguma coisa. Ou seja, não entro no mercado sozinha e abandonada. Não há um contacto muito frequente, mas a pessoa não se sente desamparada.

E da parte do El Corte Inglés, como é que decorreu tudo isto, como é que foi o processo de entrada? Sentiu que foi trabalhada esta questão da inclusão?

Senti e continuo a sentir que o El Corte Inglés é uma empresa que se preocupa em incluir um indivíduo. Na sociedade e ao nível do local de trabalho. Falo por experiência própria, fui muito bem recebida. Não sofri qualquer pressão nem senti exclusão por parte dos colegas por ser nova. É uma família, há uma união. Acho que isso é fundamental para que a pessoa siga. Entrar numa empresa e sentir que tem apoio, de várias camadas, tanto lá em cima, até chegarmos à nossa equipa. O El Corte Inglés é um espetáculo!

Boas Práticas: a dometodologia El Corte Inglés

Depois das palavras de Elisa, fomos conhecer as boas práticas realizadas pelo El Corte Inglés. João de Oliveira, coordenador do Programa Diversidade | Inclusão | Parcerias Institucionais, conta-nos como trabalham a inclusão desde o primeiro dia.

Em que consiste o Programa Diversidade | Inclusão | Parcerias Institucionais?

Trabalhamos desde sempre com ideias bem definidas em relação à integração de pessoas que, por diferentes motivos, possam ter mais dificuldade no acesso a oportunidades de emprego. Com o foco na colocação profissional de pessoas com deficiências ou em situação de vulnerabilidade, procuramos ter uma relação próxima com as instituições do setor social, nossas parceiras, de modo a facilitar essas integrações, bem como o seu acompanhamento após a colocação.

Este trabalho de anos permitiu-nos criar e solidificar relações com os nossos parceiros nesta área e, em 2017, fomos a primeira empresa privada a receber o selo Entidade Empregadora Inclusiva. Selo que temos renovado a cada edição e que mereceu já uma menção de excelência.

A nível de empregabilidade, quais são as políticas de inclusão de jovens do ECI?

No âmbito da integração profissional de jovens em risco, colaboramos com várias entidades parceiras que os preparam e apoiam na procura de saídas para o mercado de trabalho. Normalmente estes públicos integram um programa interno de capacitação profissional, com a duração de três meses, antes do compromisso com um contrato de trabalho, mas também pode haver contratação direta, depende do contexto.

Este processo engloba formação em sala e no posto de trabalho, acompanhamento de um tutor na área, da instituição e do departamento de D&I, Diversidade e Inclusão. O programa visa, assim, ajudar estes jovens a adquirirem competências e a ganharem autonomia nas tarefas diárias, contribuindo para a sua empregabilidade.

Quantas pessoas integram? E qual o feedback, dos diferentes departamentos em relação ao trabalho que é desenvolvido por estas pessoas?

Em Portugal, o El Corte Inglés emprega mais de 3000 colaboradores. A proximidade e o acompanhamento são fundamentais para o sucesso da integração destes jovens. Acreditamos que a integração de pessoas com deficiência ou em situação de vulnerabilidade é positiva, não só para a pessoa em questão como também para os departamentos onde estão inseridas.

Existem projetos para inclusão de pessoas em situação de vulnerabilidade? Se sim, quais?

Como referi, trabalhamos com diferentes instituições e projetos, celebrando protocolos para o acolhimento de pessoas de diferentes contextos, sejam refugiados, minorias, pessoas mais velhas ou jovens em situação de vulnerabilidade social. Isto acontece nas nossas lojas de Norte a Sul do País. Temos, a título de exemplo, um projeto denominado PESCA, dedicado à integração de pessoas migrantes e em situações de vulnerabilidade. Através deste programa, procuramos dotar todos os participantes de competências técnicas para trabalharem na área da peixaria, podendo mesmo, no final do programa, integrar as nossas equipas. Este programa tem na sua base o mote “Mais do que dar o peixe, ensinamos a pescar”, pois consideramos que além de dar o emprego, estamos a ensinar uma profissão.

Como é que, na prática, incluem pessoas em situação de vulnerabilidade/exclusão social?

O processo é simples e, por isso mesmo, facilmente replicável a diferentes públicos vulneráveis. Há um protocolo com o parceiro social, entrevistas de seleção para aferir os perfis e definir áreas de colocação. A duração do programa de capacitação (estágio) pode ser de dois ou três meses. No terreno estão previamente identificados

tutores (com formação) para o acompanhamento e asseguramos também que há acompanhamento durante esse período por parte do parceiro. No final desse período, e havendo uma avaliação positiva do desempenho, poderá ser efetuado um contrato de trabalho.

O que querem alcançar no futuro, nesta área?

O nosso objetivo é continuar a trabalhar em prol de uma sociedade mais inclusiva e plural; reduzindo as diferenças, assegurando a igualdade de oportunidades e proporcionando condições dignas de trabalho. Somos uma empresa com uma cultura de não exclusão e é sob este princípio que orientamos a nossa conduta. Somos associados da Carta Portuguesa para a Diversidade e comprometemo-nos com ações no âmbito da promoção da diversidade e inclusão, pois acreditamos que só uma sociedade que todos inclui, consegue realizar o seu verdadeiro potencial.

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DOSSIÊ TEMÁTICO ▪

Fábio Gomes sentia-se preso na sua cabeça. É assim que descreve a altura em que esteve em situação NEET. A sigla significa “neither in employment nor in education or training”. Em português, podemos traduzir para jovens que não se encontram a trabalhar, nem a estudar, nem em formação. E essa era a situação de Fábio.

O jovem, hoje com 23 anos, esteve em contexto de NEET “cerca de três ou quatro anos”, quando tinha 20. “Estava a tirar o 12º quando decidi que não queria estudar mais, queria trabalhar, por isso fiquei apenas com o 9º ano. Arranjei um trabalho como jardineiro. Depois, por cabeça minha, vim-me embora desse trabalho. E depois nunca mais tive interesse em arranjar trabalho nenhum”, conta.

A partir daí, a sua vida era rotineira. Passava os dias em casa, “preso na própria cabeça”, fechado no quarto. “Saía apenas para almoçar e ia para o quarto outra vez”, conta. Do quarto para a sala. Da sala para a cozinha. Da cozinha de volta para o quarto. E os dias passavam. Transformaram-se em semanas, meses, anos. Psicologicamente, sentia-se “mal”. “Era eu que sentia que não conseguia mudar. Ponderei voltar a estudar, mas não voltei, porque nunca saía do pensamento” para a ação, explica.

Nessa altura, Fábio não tinha quaisquer rendimentos. Apenas os que a mãe ganhava. O que significa que estavam numa “situação apertada”. Para a família, foi uma altura difícil. “A minha mãe dava-me sempre motivação. Era mesmo qualquer coisa de mim que me fazia continuar no meu canto”, conta. “Dos meus amigos também tinha apoio, mas eu próprio é que me excluía. Estavam todos a conviver e eu fugia dali para ir para o meu canto”.

Na Faculdade de Psicologia e Ciência das Educação do Porto (FPCEUP) está a ser realizado um estudo sobre jovens NEET. “O nosso objetivo é caracterizar psicologicamente estes jovens. Vamos tentar identificar o perfil psicológico, ou perfis, de jovens e as suas histórias de vida, numa amostra representativa de jovens NEET da Área Metropolitana do Porto, dos 17 concelhos que a constituem”, explica Maria Helena Pimentel, investigadora, responsável pelo estudo e doutoranda na FPCEUP.

NEET quando os jovens não estudam, nem trabalham Por Inês Duarte ▪ DOSSIÊ TEMÁTICO 9

“É um estudo comparativo em que, na amostra, vamos tentar comparar os jovens NEET com jovens EET [ndr: jovens que se encontram a trabalhar, estudar ou em formação] e temos uma série de objetivos específicos, por etapas, que queremos explorar, começando pela caracterização psicológica e histórias de vida, para identificar padrões, ver se encontramos alguma coincidência de permanência em acolhimento residencial nestas histórias de vida. Para, por fim, chegarmos aos fatores preditores, de proteção de risco do estatuto NEET. Queremos produzir evidência científica que permita apoiar a definição de políticas sociais para prevenir que jovens entrem e fiquem em situação NEET, sobretudo aqueles que viveram experiências de acolhimento residencial”, conta a investigadora.

“Ainda estamos na fase de recolha de dados contudo, os dados preliminares do estudo piloto, mostram que os jovens NEET são menos resilientes, têm uma menor qualidade de vida, uma menor perceção de suporte social e também uma maior externalização”. Ou seja, para a investigadora, denotam-se alguns problemas de autorregulação comportamental e emocional, com menor controle de impulsos.

Depois, a própria literatura científica já existente enumera múltiplos fatores de risco para um jovem se tornar NEET. “A baixa escolaridade, o histórico de migração, pais desempregados e com baixa escolaridade, residirem em zonas isoladas, agregado com baixos rendimentos, baixo desempenho escolar. Também há uma associação a um baixo bem-estar pessoal, maior probabilidade de depressão e baixa saúde mental, maior insatisfação com a vida, menor tendência para planear futuro... “, sublinha Maria Helena Pimentel.

Portanto, “os NEET são particularmente vulneráveis a situações de pobreza e de exclusão social. Não é algo determinante não é exclusivo, mas existe”. Este conhecimento já existente levanta naturais questões a quem se dedica a investigar o tema. Para Maria Helena Pimentel, é lógico perguntar “até que ponto o sistema educativo português está adaptado a estes diferentes perfis psicológicos presentes em alguns jovens?”.

“A saída do estatuto NEET é muito mais difícil do que a prevenção. Portanto, a ideia é ter evidência que permita dar ferramentas a quem está no terreno, para estarem atentos à conjugação de fatores que leve a uma situação NEET.”, conclui a investigadora da FPCEUP.

Porém, Fábio conseguiu. Hoje trabalha, a tempo inteiro, numa grande superfície, há já um ano. Graças ao Projeto Click, da EAPN Portugal, que promove competências e a entrada no mercado de trabalho de pessoas em situação de pobreza e/ou exclusão social. Fábio sublinha que foi a experiência Click que mudou a sua vida.

“Entrei para o Click através da Segurança Social. Pensei: estou em casa o dia todo, ao menos vou ver no que isto vai dar. Confesso que quando fui para lá não tinha motivação, não tinha esperança nenhuma, pensei se calhar vou, e ao fim volto para casa. Mas foi completamente o oposto. Ajudaram tanto a nível pessoal – falei-lhes de coisas que nunca tinha partilhado com ninguém -, como em relação a posturas que tinha de ter no local de trabalho”.

Depois deste processo, Fábio foi chamado a uma entrevista e, desde aí, continua a trabalhar no mesmo local e a gostar. O sentimento de estar preso na própria cabeça não existe por agora. Neste momento, quando os amigos o convidam, a resposta é rápida: “vou logo”. “Às vezes até sou eu a combinar com eles”, conta.

“Quando trabalhamos numa coisa que gostamos, não trabalhamos por obrigação, trabalhamos por gosto. Que é o que estou a fazer”, refere. “Hoje em dia há cada vez mais jovens da minha idade ou mais novos que eu que não trabalham. E os que trabalham ou são mal pagos, ou são maltratados. Já vi um bocado de tudo. E qualquer coisa são logo despedidos. É preciso ter mais consideração pelas pessoas. O local de trabalho precisa de nós e nós precisamos dele. É preciso haver mais respeito entre ambas as partes”, explica Fábio.

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E O QUE DIRIA FÁBIO A JOVENS QUE PASSARAM PELO MESMO?
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“Procurem sempre ajuda de alguém, como psicólogos, para deitarem cá para fora aquilo que não conseguem dizer a outras pessoas. E para encontrarem, acima de tudo, um trabalho que gostem. Que não sejam obrigados a trabalhar em algo que não gostem só pela obrigação. E que esse trabalho tenha, sobretudo, condições”.

EMPREGO, HABITAÇÃO, PRECARIEDADE

Quando nasci, em 1995, o prognóstico era ótimo. Os meus pais tinham reunido todas as condições para me darem tudo (o que pudessem) e eu, como terceira filha, tinha tudo reunido para lhes dar o que eles sempre quiseram: que eu conseguisse tudo. Mas algo aconteceu que fez com que o prognóstico mudasse e até hoje não sei o que foi.

Vi o analógico passar para digital. E isso era tão promissor quanto o meu futuro. As oportunidades daí advindas, o avanço tecnológico, na educação, na saúde, … Foi tão rápido que aprendi a fazer contas de cabeça na primária e hoje em dia tenho de pegar numa calculadora para ter a certeza de quanto é 2 + 3. Foi tão rápido que, de repente, deixei de ter um leitor de cassetes para ter um MP4. Foi tão rápido que não consegui aproveitar. Como dizia o Sérgio Godinho, “soube-me a tanto, portanto, soube-me a pouco”.

E soube a tanto porque os meus pais me disseram, desde que me lembro, que se eu estudasse muito e me esforçasse para ir além das minhas capacidades, chegaria onde quisesse. Seria a melhor – o que não era mais do que a minha obrigação. “Vocês hoje em dia têm acesso a tudo, é só ir à internet!”. E, assim, a minha geração cresceu com a obrigação de ser a melhor. A mais inteligente, a mais formada, a mais aware e, ultimamente, a mais realizada e feliz. Já disse que o prognóstico mudou?

Sempre fiz tudo como mandam nos livros. Estudei, esforcei-me imenso. Era boa aluna, “mas muito faladora”. Nunca uma classificação me custou tanto como aquela primeira negativa num teste surpresa de matemática, no 6º ano: “falhei, nunca vou ser ninguém”. Os meus pais só vão saber desta negativa se lerem este texto. É uma boa metáfora para a vida, não é? Que nos traz surpresas desagradáveis e nos deixa sozinhos a resolvê-las. E eu até conseguia. Portanto, cresci numa utopia: consegues e podes ser o que quiseres. Vá, talvez não tenha sido uma utopia no verdadeiro sentido da palavra, mas também não fui avisada que, para chegar onde eu queria, tinha de tomar tantas decisões importantes e definitivas, sem conhecimentos para tal. Ninguém me disse que, quando eu chegasse onde queria, ia continuar sem me sentir realizada, porque nunca é suficiente. Ninguém me contou como era o mundo dos adultos. Sou a única que pensava que era mais fácil?

Fui para o Curso de Línguas e Humanidades, no secundário, porque queria ser escritora. E fui tão bem preparada, porque a minha obrigação era conseguir tudo o que quisesse, que pensava que acabava a Universidade e era logo escritora. Agora tem a sua piada irónica, mas quando me apercebi deste facto, não achei muito engraçado. Decidi que ia acabar o 12º neste Curso e depois ficava um ano a estudar Biologia e Geologia, para poder fazer o exame e entrar em Enfermagem. Nunca nada estava bem ou era suficiente: “falhei”, porque nenhum Curso de Línguas dava “emprego bom” e fazer Biologia foi “perder um ano da minha vida”. Mas fiz Biologia e fui para Enfermagem.

Vida dos Jovens no Limbo ▪ DOSSIÊ TEMÁTICO 13
A

Tirei o Curso de Licenciatura, nunca reprovei a nenhuma cadeira e terminei com média de 15. Péssimo! Horrível! Falhei! Tinham-me dito que ia ser a melhor e só tive 15? Que vergonha. Onde é que vou arranjar emprego na área com esta média? A melhor ideia é mesmo seguir já para Mestrado, não perder tempo nem andamento. Conseguirei tudo o que quero! Licenciatura terminada, Mestrado em curso. “Lamento, Senhora Enfermeira, mas não lhe podemos dar emprego porque está a tirar Mestrado e depois vem pedir dias e não podemos dar”. Desculpe? “Lamento, Senhora Enfermeira, mas, com o Mestrado, parece-me que a sua disponibilidade seria reduzida para o local de trabalho”. Esperem, não era suposto ser bom eu estar a investir na minha formação? “Lamento, Senhora Enfermeira, mas não nos dá jeito”.

Licenciada, a tirar o Mestrado em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica. Futuro ideal: trabalho especializado numa instituição. Realidade: arranjei um part-time numa loja de roupa. Porque era demasiado qualificada, “ia pedir dinheiro e condições melhores”, o que é considerado, pela maioria das entidades patronais, como exigência e não como justiça. E a isto chama-se precariedade, fragilidade, insegurança. Não era este o prognóstico, lembram-se?

Depois de entregar mais de 50 currículos e cartas de motivação, de gastar dezenas de euros em combustível para os entregar em mão e de ser recusada entrevista após entrevista, por estar a tirar o Mestrado, contactaram-me às 23H de um dia a pedir que começasse a trabalhar num lar no dia a seguir. “Precisamos mesmo de alguém o mais rápido possível”. Ainda assim, o desespero deles não era maior do que o meu. Somos tão bem informados acerca do mercado de trabalho que, em todo o tempo que trabalhei nesse local, não recebi subsídios de férias e nem sabia que estava algo mal. Precário.

Decidi que não ia trabalhar mais em lares: eu merecia melhores condições. Disseram-me que ia ser a melhor e conseguir tudo! Ups… Olá, COVID! Lá fui eu para a trincheira de Lisboa. Fui educada para ajudar os outros e instruída para atuar quando as pessoas precisam. Dei o corpo às balas e a alma ao destino. Praticamente não vi os meus entes queridos durante 2 meses. Precário. Voltei para a minha cidade e comecei a trabalhar no Hospital. Contrato de 4 meses para COVID: precário, mas está bem, são tempos difíceis. Seguemse mais dois contratos de 4 meses para COVID. Mas isto já não

estava a acalmar? Já estava na altura de deixar de utilizar esse pretexto para fazer contratos precários. Ok, então toma lá um contrato de substituição durante os próximos 2 anos. Contenta-te por teres trabalho e a sorte de até encontrares lá pessoas-casa, porque de resto podes contar com pouco mais do que o salário mínimo nacional e poucas ou nenhumas progressões na carreira.

“A vossa geração não sabe é poupar. Gastam tudo em saídas à noite, drogas e álcool”. Onde é que sobra dinheiro para isso, depois de pagar tudo (inflacionado, ainda por cima): é a comida, a luz, a água, o gás, a gasolina, as peças quando o carro tem problemas, as despesas de saúde, as despesas académicas, …? Se calhar, mais vale mesmo sair do país e ir pagar impostos para outro lado, que me valorize mais e à minha formação. Como…quantos já o fizeram? 2 milhões de portugueses?

Após tanto esforço, tanto gasto de energia… O prognóstico a esta altura, para a minha geração, não seria, pelo menos, ter uma casa, um carro e um emprego estável, com sentimento de realização? Talvez, mas mudou. O que eu tinha era o trabalho a tempo inteiro e dois part-times, porque eu vou ser a melhor, vou conseguir tudo e, mais importante ainda, vou ter dinheiro para lazer. Não posso ter uma folga, porque é um dia inteiro em que podia estar a fazer dinheiro (para aproveitar não sei quando). Não posso dormir nos turnos da noite, porque é tempo que posso aproveitar para fazer trabalhos académicos. Não posso sair com os meus amigos, porque tenho de descansar o que não dormi de noite. Não posso aproveitar a vida, porque não posso gastar dinheiro.

Após 27 anos a investir em mim, só tenho como retorno um Síndrome de Burnout e uns míseros 900€ na conta poupança. Não tenho casa própria, preciso de arrendar. Não posso pedir empréstimos, porque estou a contrato de substituição. Não consigo poupar para a entrada de uma casa, porque a inflação não acontece nos salários. Não vou para lado nenhum de férias e, ainda assim, ando para comprar um sofá há mais de meio ano. Não posso gastar o que tenho na poupança, porque pode ser preciso para uma emergência.

Vivemos com medo de ser felizes, porque satisfazermo-nos nesse momento pode significar sofrermos num futuro. Tudo nos leva a acreditar que é impossível vir algo bom sem ter algo mau associado. Não era este o prognóstico quando nasci. Eu podia ser o que queria, porque tinha tudo ao meu alcance. Ia conseguir tudo! Esqueceram-se de me informar que esse “tudo” não incluía saúde mental.

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E assim segue a minha geração e as seguintes, a viver no limbo, com medo de cair para o lado errado sem querer.
Eu pensava que nunca ia sequer conhecer o que significa o limbo. O prognóstico mudou e ainda hoje não sei o que é que se passou.
Por Mariana Albino, Mestre em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica

O Desemprego e a Empregabilidade Jovem

Por

Conselho Nacional de Cidadãos* da EAPN Portugal

Em 2019 resolvi integrar o Conselho Local de Cidadãos do Distrito de Portalegre, pois considerei que esta seria uma forma interessante de “ter voz” e poder contribuir para uma reflexão sobre temas relacionados com a pobreza e a exclusão social.

Sou um jovem de 26 anos, detentor de uma incapacidade e que diariamente convive com a multiplicidade de obstáculos, que praticamente todos os jovens, nestas circunstâncias, atravessam.

A questão mais premente é, sem dúvida a questão da empregabilidade dos jovens, especialmente acentuada com o agravamento da crise pandémica e, posteriormente, com a guerra na Ucrânia.

O desemprego jovem é um desafio que começa logo com a entrada dos jovens no mercado de trabalho. Independentemente da sua qualificação, os jovens confrontam-se com um mercado “bastante fechado”, principalmente quando falamos do primeiro emprego. A maioria dos anúncios de emprego faz referência à necessidade de os candidatos apresentarem, pelo menos, dois anos de experiência efetiva, o que limita, desde logo, o acesso dos jovens ao mercado de trabalho. Na realidade, “ninguém nasce ensinado”, pelo que deveria existir uma maior flexibilidade na integração de jovens que querem ingressar no mercado de trabalho.

O trabalho é, para muitos jovens, o passaporte para a sua independência em relação à sua família. Se alguns jovens optam por não avançar para estudos superiores, os que optam por fazê-lo ficam, mais uma vez, dependentes da

sua família, pois poucos conseguem conciliar os estudos com o trabalho. E os trabalhos que encontram são, na maior parte das vezes, de carácter temporário e em regime de part-time, uma vez que não existe flexibilidade das entidades empregadoras na cedência do estatuto de trabalhador-estudante que permitiria, assim, fazer a conciliação entre o trabalho e os estudos.

Muito destes trabalhos, na maioria dos casos, são em hipermercados ou em restaurantes fast-food, entidades que renumeram precariamente estes jovens que, por sua vez, se sentem explorados e mal renumerados, tornando difícil e sendo desmotivador a prosseguição dos estudos. Por outro lado, a política de baixos salários, especialmente sentidos no primeiro emprego, não constitui um incentivo à continuidade da escolarização por parte dos jovens. Um estudo recentemente publicado, demostra que o salário dos jovens licenciados se aproxima muito dos salários dos jovens que optaram por não estudar, para além da escolaridade obrigatória.

Além desta disparidade, poucos são os jovens que não iniciam a sua vida profissional auferindo o salário mínimo, consideravelmente mais baixo em Portugal do que em países próximos, como a Espanha, onde este ano o salário mínimo aumentou 8%, subindo assim dos 1000€ para os 1080€.

Esta política de baixos salários, conduz ainda à permanência dos filhos no seio familiar, pois o problema de acesso a uma habitação condigna atinge especialmente os jovens, que, tendo em conta os baixos salários, não conseguem fazer face às despesas intrínsecas à sustentabilidade

de uma casa, como o pagamento da renda, assim como a manutenção da mesma, perpetuando-se assim a sua dependência em relação à família.

É certo que existem apoios aos jovens, como o IRS jovem e algumas medidas de apoio ao arrendamento jovem, mas claramente não são suficientes para a emancipação dos mesmos e criar “asas para voar”. O incentivo do IRS Jovem é manifestamente pequeno em termos temporais, o que não se reflete no dia a dia dos jovens, sobretudo se a isso juntarmos o facto de os primeiros anos de salário ser próximo do salário mínimo, logo com pouco impacto

ao nível do IRS. Apenas faz sentido em jovens que venham a auferir um primeiro salário alto, o que não acontece, na grande maioria dos casos.

Muito pelo contrário, cada vez mais esta circunstância conduz a uma constante saída dos jovens de Portugal para países estrangeiros, que oferecem melhores condições remuneratórias, logo melhores perspetivas de vida.

Esta fuga de jovens para o estrangeiro irá refletir-se no aumento, ainda mais expressivo, do envelhecimento de Portugal, com repercussões ao nível social, económico, demográfico e, portanto, a uma estagnação do nosso país. A última questão a abordar e algo que me toca particularmente é o reduzido apoio do estado social à empregabilidade de pessoas com incapacidade ou deficiência. Embora existam programas que incentivam a inserção de pessoas com deficiência em empresas e instituições, públicas e/ou privadas, este apoio tem um carácter temporário, o que limita a empregabilidade de pessoas com estas características.

Luto diariamente para que estas e outras situações sejam esbatidas e para que o futuro traga mais e melhor emprego para os jovens, mas também para os mais velhos que, pelas mais diversas circunstâncias, tenham perdido o seu emprego e, assim, se sintam fora do mercado de trabalho.

*Conselhos Locais de Cidadãos e Conselho Nacional de Cidadãos:

A EAPN Portugal tem vindo a promover a cidadania e a participação das pessoas que vivenciam ou já vivenciaram situações de pobreza e/ou exclusão social através de movimentos de cidadania, quer a nível distrital –Conselhos Locais – quer a nível nacional – Conselho Nacional. Integram os Conselhos Locais cidadãos que vivenciaram ou vivem em situação de desfavorecimento social e que se identifiquem com os objetivos da EAPN Portugal e que desejam contribuir voluntariamente para o combate da pobreza e da exclusão social. Integra o Conselho Nacional de Cidadãos um representante nomeado de cada Conselho Local.

Ricardo Chambel, membro do
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ASSOCIATIVISMO JUVENIL E A EMANCIPAÇÃO JOVEM

Aparticipação e iniciativa jovem materializa uma atitude proativa que concede à juventude um papel determinante no apoio às suas comunidades por meio do associativismo e do voluntariado jovem. De geração em geração, o associativismo juvenil reinventa-se para dar resposta às necessidades, aspirações, interesses e causas que os e as jovens consideram mais prementes. Atualmente, nas mais de mil associações juvenis que compõem o tecido associativo em Portugal, o desafio da igualdade de oportunidades, das alterações climáticas e da era digital, são o motor da ação de uma juventude preocupada com as políticas que vão definir o seu futuro.

Fazendo um balanço dos últimos 10 anos, é notório algum alheamento jovem face às formas tradicionais de participação e dos partidos políticos, mais do que ideologias os jovens identificam-se cada vez mais com causas, com o agir no imediato para resolver os problemas que os afetam nas suas comunidades e na luta por um mundo melhor e que garanta o seu futuro.

Tendo em conta os números de participação do movimento associativo juvenil, em cada dez jovens, apenas cerca de dois estão envolvidos numa associação e é necessário perceber o que leva oito em cada dez jovens a estarem excluídos de qualquer movimento associativo, cabe aos agentes políticos não defraudarem as expectativas dos e das jovens, pois, da nossa perceção no terreno, a desilusão com os partidos políticos afasta muitos jovens de movimentos de cidadania. Sentimos que vivemos momentos de bastante ativismo das novas gerações perante causas e valores, como o ambiente, a defesa dos direitos dos animais, a igualdade e não discriminação, entre outros, e é necessário combater a incapacidade dos agentes políticos em perceber e valorizar toda uma geração e as suas motivações, necessidades e objetivos.

Se for o Estado o primeiro a falhar, torna-se difícil continuar a pedir a estes jovens que continuem a confiar e a acreditar na democracia e no sistema e a serem interventivos.

Para desenvolver políticas sustentáveis e voltadas para o futuro é essencial que todos participem e é fulcral envolver e dar voz aos jovens neste processo, contando com os seus conhecimentos, criatividade e ousadia, sendo estes os protagonistas da sociedade do futuro.

Para capacitar e envolver os jovens em formas de participação cidadã é essencial colocar os mesmos no centro dos processos de auscultação, de construção e de execução dos programas e projetos para jovens. Esta tem sido a aposta da FNAJ em todas as sua iniciativas e projetos, colocar os e as jovens como protagonistas e numa verdadeira base de diálogo estruturado com os agentes políticos.

Os/as jovens devem ser envolvidos tanto na discussão, como na definição e execução das Políticas de Juventude. A prática de encarar os/as jovens como meros consumidores tem que dar lugar a políticas para jovens que praticam uma cidadania plena.

Atualmente, somos 1,647 milhões de jovens que estão inquietos relativamente ao seu futuro! São essencialmente as novas gerações que veem as suas oportunidades de emancipação diminuírem, dia após dia, ora pela crise na habitação, ora pela precarização do emprego jovem, ora pelo desemprego e pela falta de oportunidades e esperança. Os e as jovens veem o seu futuro, e o futuro de Portugal, ser muitas vezes definido sem que lhes seja dada voz e a oportunidade de participarem na construção do seu futuro.

Para a FNAJ, a voz tem que ser dada aos/às jovens e é imperativo que participem na construção das políticas que vão afetar essencialmente o seu futuro e as associações juvenis têm um papel fulcral na participação cidadã e na promoção da auscultação de jovens.

Uma das reivindicações plasmadas nos 25 objetivos da Juventude Portuguesa da FNAJ, resultante de um processo de auscultação a nível nacional, é a obtenção de emprego digno e acesso à habitação.

A FNAJ tem estado empenhada em ser a porta-voz dos anseios da população jovem e das associações juvenis junto dos poderes públicos e políticos, apresentando soluções e propostas em linha com a visão dos/as jovens e de auscultação ao associativismo juvenil. A FNAJ tem abordado a questão do emprego e habitação jovem com preocupação e trazido para o debate diferentes propostas de solução que efetivem condições para que cada jovem possa iniciar dignamente a sua vida adulta, adquirindo independência e o direito a constituir família. Investir na Juventude é um investimento necessário para o desenvolvimento estrutural e a longo prazo de Portugal, sob pena de se incentivar à migração e à gentrificação das cidades portuguesas.

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▪ DOSSIÊ TEMÁTICO
Por Marco Santos, Presidente da FNAJ - Federação Nacional das Associações Juvenis

É

a pobreza no mundo laboral

EAPN Potugal promove Seminário sobre a Agenda do Trabalho Digno

Por Júlio Paiva, Departamento de Desenvolvimento e Formação

O Presidente da República promulgou recentemente a Agenda do Trabalho Digno e de Valorização dos Jovens no Mercado de Trabalho. Trata-se de um conjunto de medidas que se destinam a melhorar as condições de trabalho e a conciliação entre a vida pessoal, familiar e profissional.

Tendo em conta o impacto deste documento, a EAPN Portugal organizou um seminário no passado dia 20 de junho, cujo objetivo foi promover alguma reflexão por parte dos vários agentes económicos e outras entidades relacionadas com a esfera laboral e da sociedade civil, sobre os principais contributos e eventuais constrangimentos que a promulgação deste importante documento trará nos próximos anos no mundo do trabalho.

Intitulado: “A Agenda do Trabalho Digno: as pessoas no centro” decorreu nas instalações da Atmosfera M no Porto e contámos com a presença, entre outras entidades, do Secretário de Estado do Trabalho, Miguel Fontes, e com a Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, Sandra Araújo.

Num país onde o número de trabalhadores pobres é significativo e onde os jovens se confrontam com uma precariedade laboral que – em muitos casos – os leva à emigração, ou ao adiamento de “projetos de vida”, onde os salários, para uma parte significativa da população, não são suficientes para conseguir uma vida digna, a Agenda constitui um “ponto de partida” para uma reflexão mais ampla sobre o futuro do modelo económico em Portugal e o combate à pobreza e à precariedade no trabalho.

Para a EAPN Portugal este é um assunto crucial ao nível do contributo para o combate à pobreza no mundo laboral e merece alguma reflexão e um amplo debate entre os parceiros sociais e institucionais, que sirva para superar as diferenças de pontos de vista, patentes nas várias intervenções do seminário. Entre alguns dos qualificativos sobre a “insuficiência”, “as lacunas”; a “dificuldade de aplicabilidade”, a “mera demonstração de boas intenções” e a “falta de diálogo com os parceiros”, fica claro que a Agenda do Trabalho Digno terá de percorrer um caminho longo para se chegar a acordos mais amplos sobre a sua aplicabilidade por parte das entidades que representam empregadores e de trabalhadores.

Da constatação do parágrafo anterior partimos para algumas reflexões sobre o trabalho digno, de qualidade e sobretudo para uma visão mais abrangente que o assunto nos merece.

O emprego é um conceito que detém um duplo valor nas nossas sociedades. Por um lado, é um recurso económico, proporcionando à economia uma força de trabalho capaz e sustentável e, por outro lado, é um veículo para inclusão e integração, por romper o isolamento e proporcionar às pessoas o rendimento necessário para viver. Acresce a estes fatores uma função social ao atribuir ao trabalho uma “relevância social”. Assim, o trabalho/emprego é um direito humano e social, que consiste na aspiração a uma vida digna, livre de pobreza e exclusão.

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urgente combater
▪ DOSSIÊ TEMÁTICO

Nas últimas décadas, os responsáveis pelas decisões na UE e pelos governos nacionais, parecem ter abraçado um mantra que diz que “o emprego é o melhor caminho para sair da pobreza”. No entanto, as evidências demonstraram repetidamente que isso está longe de ser verdade para qualquer tipo de emprego. Um trabalho que é pouco remunerado, em condições precárias, sem direitos, e que não assegura satisfação e uma contribuição significativa, realmente condena as pessoas à pobreza e prejudica o bem-estar. Para cumprir a sua missão como veículo de inclusão e garantia de qualidade de vida, um trabalho precisa cumprir certos padrões mínimos. Os países tendem a quantificar a situação do mercado de trabalho por indicadores estritamente numéricos, que mostram apenas quantas pessoas são consideradas empregadas, mas sem considerar o tipo de empregos de que estamos a falar e se – esse mesmo emprego - torna a vida das pessoas melhor ou pior.

Assegurar que existe uma oferta suficiente de trabalho é muito importante, porque todos os que são capazes e estão dispostos a trabalhar devem ter a oportunidade de fazêlo. No entanto, a distinção entre quantidade e qualidade é fundamental para a discussão sobre o tipo de mercado de trabalho que temos. O facto de uma comunidade ou sociedade ter uma quantidade suficiente de empregos para os recursos disponíveis (isto é: pleno emprego) não implica que esses sejam totalmente considerados empregos de qualidade, ou que todos os empregos sejam considerados “dignos”. Muitas pessoas encontram-se numa situação que os obriga a fazer qualquer trabalho, porque não têm

outra solução: tem filhos para cuidar e outros membros do agregado familiar que não trabalham.

A quantidade de empregos por si só não é suficiente. A forma como as pessoas encontram empregos e interagem com os empregadores e com o Estado em matéria de emprego também é um fator crucial para garantir o bem-estar em conexão com a realização de um emprego. Um mercado de trabalho inclusivo é aquele em que os candidatos a emprego são apoiados através de serviços holísticos e abordagens que permitam um acesso a empregos sustentáveis, que melhor se adaptem às suas capacidades, situação pessoal e interesses. Isso inclui conceitos como: legislação de emprego adequada e sistemas de proteção social; esforços de criação de emprego; disponibilidade de informações sobre empregos; fornecimento de serviços de acompanhamento necessários para que uma pessoa possa ter acesso ao emprego certo e abordagens para o envolvimento das pessoas com o mercado de trabalho em geral, em todo o ciclo de vida.

Com a crise financeira a maioria dos Estados-Membros da UE implementou várias medidas para alcançar o pleno emprego, resultado das taxas de desemprego elevadas. A luta contra o desemprego tornou-se assim a principal preocupação de muitos destes estados. Na época, várias redes nacionais da EAPN assinalam que esse “emprego a qualquer custo” parecia uma absoluta prioridade, mesmo que a baixa qualidade desses empregos não “liberte” uma parte significativa dos trabalhadores da pobreza e da exclusão social.

A EAPN tem desenvolvido nos últimos anos alguns documentoschave no quadro desta temática e promovido reflexões com base em eventos onde o tema tem sido amplamente discutido. Um destes eventos têm sido os Encontro Europeus de Pessoas em Situação de Pobreza e igualmente ao nível Nacional os Fóruns Nacionais de Combate à Pobreza e à Exclusão Social. As sucessivas crises desde 2007/2008 despoletaram, ao nível do discurso político, uma generalização de opiniões sobre esta temática, particularmente assente na ideia de que: o quadro de promoção de empregos de qualidade perdeu impulso, à custa da crise económica, financeira e pandémica. Em diversos momentos a EAPN Portugal chamou a atenção para que, era exatamente no momento das crises, o momento ideal para esclarecer questões de relevância estratégica como a dimensão de qualidade do emprego e do trabalho. Para tomar apenas um exemplo: o apoio ao acesso a empregos que proporcionam salários adequados e contratos mais estáveis, que podem ajudar as famílias a aumentar seus rendimentos, é fundamental para aumentar o poder de compra e relançar as economias, bem como para o aumento de alguns impostos. Por último, mas não menos importante, o acesso a um emprego digno efetivamente protege as pessoas de dificuldades e exclusões.

Sem acesso ao emprego, os riscos de pobreza, exclusão social, problemas de saúde (incluindo problemas mentais, por exemplo depressão) e outros, aumentam consideravelmente. Um sistema de segurança social considerado eficaz pode contrariar essas tendências, mas o emprego dignamente remunerado continua a desempenhar um papel fundamental na luta contra a pobreza e a exclusão social. Mas para que o emprego atue eficazmente como uma salvaguarda, ele precisa de satisfazer critérios de qualidade, para não alcançar o resultado oposto, ou seja, gerando mais privação e dificuldades.

A crise económica e os subsequentes pacotes de recuperação, nos quais os governos priorizaram medidas severas de austeridade e aumentos de competitividade, tiveram um forte impacto na qualidade dos empregos e no emprego em geral. Os salários foram cortados, os contratos tornaram-se mais precários e instáveis, os direitos laborais diminuíram e as condições de trabalho pioraram, enquanto muitos empregos desapareceram completamente. Num momento em que o relançamento da economia e a melhoria das despesas nacionais são a

principal preocupação dos governos, a inclusão social e a dimensão da pobreza das pessoas com emprego são passadas para segundo plano ou pura e simplesmente esquecidas. Mais do que nunca, é urgente um debate sobre o que constitui trabalho de qualidade e emprego e como implementá-lo para garantir a qualidade de vida das pessoas. Neste sentido a promulgação da Agenda do Trabalho Digno constitui um momento crucial, independentemente das posições – por vezes antagónicas – dos diversos parceiros sociais, defendemos que esta é una oportunidade para a discussão a erradicação da pobreza laboral, da precariedade nas gerações mais jovens e mesmo, na discussão sobre a sustentabilidade da segurança social.

É igualmente importante referir o longo “caminho” anterior à elaboração desta Agenda. O conceito não está claramente definido ou está longe de ser um importante objetivo político para a maioria dos governos nacionais, uma grande parte está definida nos Códigos de trabalho ou em legislação especifica sobre o trabalho através de acordos com os parceiros sociais ou mediante a ratificação de convenções internacionais sobre o assunto.

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Em 2007, a Confederação Europeia de sindicatos destacou cinco princípios que sustentam o conceito de “trabalho decente” (abrangendo a questão da qualidade do trabalho mais do que o conceito da qualidade dos empregos):

# Fim dos empregos precários, que não só são maus para os trabalhadores, mas também prejudicam o mercado de trabalho e a economia. Este tipo de empregos, prejudicam as condições de trabalho, de saúde e segurança e geram salários de pobreza e prejudicam a coesão social;

# Melhor organização do trabalho, de forma a criar ambiente onde os trabalhadores sejam plenamente informados e consultados, capazes de equilibrar o trabalho e a vida familiar e ter oportunidades de aprendizagem ao longo da vida, de forma a aumentar as habilitações e qualificações;

# Existência de forte legislação de proteção ao emprego, que longe de ser um obstáculo para um mercado de trabalho dinâmico, pode promover investimentos em capital humano e inovação;

# Sistemas de segurança social que oferecem segurança aos 14 milhões de europeus que mudam de emprego a cada ano;

# O diálogo social e a negociação coletiva e o pleno envolvimento dos parceiros sociais nas decisões sobre a reforma do mercado de trabalho.

A União Europeia comprometeu-se, através do seu Tratado, a combater a exclusão social e a discriminação e a promover a justiça e a proteção social, bem como a coesão económica e social e a solidariedade económica (artigo 3º). De igual modo, comprometeu-se com a Carta dos Direitos Fundamentais, à qual atribuiu igual valor jurídico ao Tratado (artigo 6º). Esta Carta identifica claramente o emprego como um direito (Artigo 15) e reconhece vários direitos subjacentes ao conceito de trabalho de qualidade e emprego:

- O direito à consulta e informação dos trabalhadores (artigo 27);

- O direito à negociação coletiva e ação (artigo 28);

- O direito de acesso aos serviços de colocação (artigo 29);

- O direito à proteção em caso de despedimento injustificada (artigo 30);

- O direito a condições de trabalho justas e justas (artigo 31);

- O direito à proteção no trabalho para os jovens (artigo 32º);

- O direito à reconciliação entre vida privada e profissional (artigo 33);

- O direito à segurança social e à assistência social (artigo 34º).

Organismos internacionais e governos nacionais vêm definindo padrões mínimos de qualidade no trabalho há muitas décadas, sob forte influência dos sindicatos e dos movimentos da classe trabalhadora, às vezes com o apoio dos empregadores. Essas normas mínimas estão escritas na legislação laboral internacional e nacional e na lei de segurança social e estão presentes em acordos de negociação coletiva ao nível europeu e nacional.

O conceito de empregos de qualidade é apoiado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) na sua agenda sobre o Trabalho Digno. A definição da OIT enfatiza os valores humanos fundamentais, juntamente com as dimensões económicas, que se baseiam em quatro princípios gerais: criação de emprego e meios de subsistência sustentáveis; garantir o reconhecimento e o respeito pelos direitos dos trabalhadores, em particular dos grupos vulneráveis; proteção social adequada, incluindo boas condições de trabalho, conciliação com a vida privada, direitos laborais; promover o diálogo social.

Finalmente vale a pena referimo-nos à posição da EAPN Portugal que define dez princípios sobre o trabalho de qualidade:

1. Salários adequados e compatíveis com um nível de vida decente. Baseados numa hierarquia positiva, que inclua um rendimento mínimo adequado como ponto de referência (pelo menos no nível da linha de pobreza). As armadilhas das pobrezas devem ser evitadas, bem como as transições entre trabalho/desemprego e regresso o mercado de trabalho.

2. Proporcionar um contrato sustentável e direitos laborais adequados, assegurando a proteção contra a demissão arbitrária e indemnizações adequadas, a fim de combater a crescente precariedade e segmentação do mercado de trabalho.

3. Permitir ao trabalhador a proteção adequada da segurança social, como seguro de saúde, férias pagas, subsídio de desemprego, direitos de pensão, etc., e prevê a portabilidade transfronteiriça destes direitos.

4. Garantir condições e ambiente de trabalho de qualidade. Isso inclui a implementação de medidas de saúde e segurança, ambientes de trabalho adaptados para grupos-alvo, tempo de trabalho razoável e organização de turnos - particularmente em relação a empregos pouco qualificados.

5. Permitir a reconciliação da vida privada e profissional, incluindo a criação de oportunidades para arranjos flexíveis de horário de trabalho.

6. Respeitar o direito de participar na negociação coletiva e do diálogo social, e os trabalhadores terem voz ativa nas mudanças de políticas e práticas que os afetam e garantir a participação significativa e transparência na governança.

7. Proteger o trabalhador contra a discriminação por todos os motivos, tanto na obtenção de emprego como no local de trabalho, lutando contra as disparidades salariais étnicas e de género e outras desigualdades.

8. Garantir o acesso à formação e ao desenvolvimento pessoal, valorizando as competências existentes e proporcionando aos trabalhadores oportunidades para continuar a desenvolver as suas competências pessoais e profissionais, bem como as competências sociais.

9. Permitir a progressão na carreira e ter oportunidades de progressão.

10. Promover a satisfação no trabalho como um componente essencial do bem-estar das pessoas.

Os próximos tempos serão certamente de abertura a uma ampla discussão e aplicação da Agenda do Trabalho Digno no nosso país, essa implementação não será alheia à evolução económica e social que ditará a evolução desta importante Agenda. A EAPN Portugal compromete-se desde logo a acompanhar todo este processo, no quadro mais abrangente da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e no Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

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DOSSIÊ TEMÁTICO ▪

TERRI TÓRIO LEIRIA

Projeto Redes na Quint@ E8G

financiado pelo Programa Escolhas

Por Inês Duarte

Redes na Quinta E8G é um projeto da Associação InPulsar, em Leiria. Apoia crianças desde os seis anos até jovens de 25. Uma malha cultural, com participantes de várias nacionalidades, mas também com pessoas em situação de vulnerabilidade. Falámos com Sónia Agostinho, coordenadora do Projeto, e com André e Emily, participantes do mesmo.

Há quanto tempo existe o projeto?

Sónia - O projeto começou na Quinta do Alçada em 2016, para responder a necessidades de crianças que ficavam sem supervisão porque os pais tinham de trabalhar. Hoje sabemos que, por vezes, nem é só um emprego, são dois. Também há muitas famílias monoparentais e acabava por haver crianças que ficavam em autogestão.

As crianças que estão envolvidas no projeto vêm, então, de alguma situação de vulnerabilidade?

Sónia - Um dos critérios do Programa Escolhas é que os nossos participantes diretos tenham algum fator de vulnerabilidade, mas isso é muito abrangente. Inclui situações de negligência ou de maus-tratos - crianças ou famílias que estejam sinalizadas na CPCJ, por exemplo -, crianças em situação de absentismo ou abandono escolar, crianças e jovens em situação de alguma criminalidade, crianças e jovens que apresentem alguma vulnerabilidade a nível económico. Abrange aqui quase todas as crianças, não há praticamente ninguém que não tenha alguma fragilidade a nível social ou económico.

Nesta urbanização há muitos migrantes. Há várias comunidades dentro da mesma comunidade. E o que o Redes pretende é que as crianças que o frequentam se vejam como um grupo, como um todo, quase como uma família, embora cada uma delas tenha as suas crenças, os seus valores, a sua língua. Queremos que isso não seja fator de desunião, mas sim de riqueza em termos comunitários.

Que feedback têm das crianças/participantes que têm beneficiado do projeto?

Sónia - Em termos de feedback, as crianças estão felizes com as atividades que vamos propondo. Na adolescência começamos a ter algum afastamento, pelo que a grande procura que temos é mesmo para crianças que não podem, de facto, ficar sozinhas. O André, que está aqui connosco, já consegue apanhar transportes, ir para a dança sozinho ou para as suas atividades extracurriculares. Não é que os mais velhos deixem de vir, mas vêm com menos regularidade. Houve uma altura em que havia outro projeto agregado, que era o “Sob o mesmo céu”, e que fazia oficinas artísticas e de audiovisual, e que inclusive funcionava ao sábado de manhã. E esse projeto conseguiu cativar essa faixa etária, mas não tinha financiamento só do Programa Escolhas. Nas condições atuais, deixou de ser possível poder pagar aos artistas para desenvolverem esses ateliers. Esperamos, numa nona geração, poder voltar a criar aqui algum incentivo artístico ou desportivo.

Em termos de primeiro ou segundo ciclo, tentamos apostar no desenvolvimento escolar, com apoio ao estudo, mas desenvolvendo outras competências, com outro tipo de atividades. A cada dia da semana há uma atividade diferente, um dia de arte e cultura, outro de debate e pensamento sobre o mundo, um dia de jogos de tabuleiro, um dia de movimento e atividades desportivas. Temos também outras atividades, como dinamização de recreios na própria escola, uma vez por semana - é a escola que pede e este ano o pedido foi para nos centrarmos nos meninos de primeiro ano, que vinham

com alguma dificuldade na gestão de conflitos, a parte emocional. Há sempre uma articulação com a escola e com todos os parceiros que estejam disponíveis para nos apoiar nessas atividades.

Considera que este é um projeto que ajuda a combater esta série de fragilidades que existem na comunidade?

Sónia - Ajuda a combater, temos é uma lista de espera muito grande. Sentimos que é cada vez maior, e este ano em especial com o boom da migração... Não é que não existam projetos deste género, ou até melhores, mas são coisas muito caras. Um simples ATL ou centro de estudos pode implicar mensalidades na ordem dos 150, 180 euros. Este ano já começam a existir creches gratuitas, mas até este ano não era assim - só para uma criança antes dos três anos eram precisos, se calhar, uns 200 euros por mês. Os ordenados são baixinhos, isso não é novidade para ninguém. As rendas de casa aumentaram de uma forma exponencial. E, portanto, até uma família dita de classe média vê-se, neste momento, atrapalhada, e não está a conseguir pagar as despesas básicas. E um ATL é uma despesa básica, ter onde deixar o seu filho para poder trabalhar é uma despesa básica que o Ministério da Educação não assegura. A procura é grande e tenho a certeza que contribuímos para minimizar algumas fragilidades, mas não conseguimos suprir todas. E custa-nos muito porque as pessoas, quando se vêm inscrever, não preenchem apenas a ficha de inscrição, contam-nos um bocadinho da sua história e, obviamente, é impossível não nos sensibilizarmos. Mas efetivamente, em termos de recursos humanos e físicos, estamos no limite. Às vezes costumo dizer que já não tenho cadeiras onde sentar

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“Somos um porto de abrigo, um local onde as pessoas sabem que podem vir pedir ajudal”
▪ TERRITÓRIO TERRITÓRIO ▪

tantas crianças. Portanto, era fundamental que houvesse aqui respostas intermédias.

Que objetivos têm para o futuro do projeto?

Sónia - Independentemente do histórico do Redes na Quinta, que está aqui há sete anos, quando se faz uma nova candidatura ela é avaliada como se fosse a primeira vez que a entidade se candidata. Por isso temos de fazer um novo diagnóstico, apresentar novamente uma rede de consórcio e isso significa que podemos começar tudo do zero. Não há uma garantia, apesar de estarmos aqui há muito tempo e termos tido uma avaliação muito boa no último relatório, de que a candidatura seja aprovada. Isso causa muita instabilidade a vários níveis, quer nos recursos humanos quer nas pessoas, porque embora digamos que vai correr tudo bem e vai haver nona geração, na verdade não sabemos. Essa instabilidade que caracteriza estes projetos é a maior fragilidade de todas. E estas instituições mereciam que houvesse outro tipo de respostas sociais, porque há projetos que duram desde o início do Programa Escolhas, há 20 anos. Já não é um projeto, já deveria ser uma resposta social. Por inúmeros motivos, não é assim.

Quais são os nossos planos? Continuar a apoiar o melhor possível a comunidade, promover o diálogo intercultural, os direitos humanos e da criança, abranger cada vez mais pessoas - interessa-nos a qualidade do apoio prestado, mas também a quantidade, e há cada vez mais pessoas a precisar. Às vezes, embora não possamos resolver aqui as questões diretamente,

Penso que esta é a grande mais-valia do trabalho comunitário, estarmos sempre com a porta aberta para receber as pessoas, independentemente de estarem ou não inscritas. Este é o nosso plano para o futuro, continuar a ajudar, a ser úteis e a ter uma boa relação com todos dentro da comunidade. Por exemplo, temos aulas de português, nada de sofisticado, e a grande parte das pessoas que as frequenta são senhoras marroquinas.

André e Emily, de 16 e 10 anos respetivamente, são participantesdoRedesnaQuintaE8Gháváriosanos.Abriram oseucoraçãocomumenormesorrisoecontaram-nosum poucodasuahistóriaeoquesignificaviveremcomunidade.

Podem contar-me um pouco da vossa história?

André - Tenho 15 anos, vou fazer 16 daqui a um mês. Vim de Santarém há quase nove anos e estou no Redes desde 2016, desde que abriu. Tenho uma história um pouco difícil, vim para o Redes porque a minha mãe trabalhava muito. Agora já não trabalha tanto, tem uma vida melhor. O meu pai separou-se da minha mãe quando eu tinha quatro anos e ela teve de fazer de mãe e pai, pôr comida na mesa com grande esforço. Para além disso, fiz dança durante 13 anos, sempre foi uma coisa que gostei bastante, e ainda gosto, mas desisti porque neste momento há coisas novas.

Emily - Tenho dez anos, vou fazer 11 dia 24 de outubro. Nasci no Brasil, em Mato Grosso do Sul. Estou no Redes há três anos, desde 2020. Vim para o Redes porque os meus pais estavam a arranjar trabalho, então algumas vezes eles não estavam em casa e não tinha ninguém para estar comigo. Gosto de fazer ginástica acrobática e de dormir e comer [risos].

E o que costumam fazer agora no Redes na Quinta?

André - Muitas coisas. Como a Sónia já tinha dito, temos ajuda a fazer os nossos trabalhos de casa, quando temos testes estudamos cá e também temos ajuda. Depois temos várias atividades que fazemos ao longo do dia...

E o que melhorou na vossa vida desde que entraram para o Redes?

André - Melhorou muita coisa. Muito mesmo. Consegui melhorar muito a nível escolar, mudar o meu estilo de vida, fazer o que queria, com a ajuda do Redes.

Emily - Quando vim aqui comecei a ter mais amigos. Aprendi novas brincadeiras também. E quando eu ia para os computadores não sabia mexer muito bem e então aqui eu aprendi a mexer.

Que impacto é que este projeto teve na vossa vida?

André - Teve um grande impacto. Vi este projeto a crescer desde 2016 e fiz muitos amigos.

Estamos a viver um momento de crise mundial, com cada vez mais pessoas em situação de pobreza. Como é que vocês, o André com 16 anos e a Emily com dez, veem o mundo neste momento?

André - Para mim, pelo menos em Portugal, há muitas pessoas a dormir na rua. Já vi em vídeos e vejo quando vou a Lisboa. Porque não têm casa, não têm condições. E o Estado também não ajuda muito, diz que ajuda, mas não, e penso que isso é uma coisa que devia melhorar globalmente. Na minha visão, as pessoas em situação de pobreza deviam ter direito a uma casa sem renda e que pudessem conviver mais, talvez várias pessoas na mesma casa.

Emily - Penso que ainda há um pouco de guerra. Há pessoas na rua, outras sem dinheiro para comprar comida, sem uma casa, um abrigo.

Quando vieram de outra cidade e de outro país, sentiram alguma dificuldade em integrar-se na vossa nova cidade?

A Sónia disse que em Leiria as pessoas que estão envolvidas no Redes fazem parte de uma comunidade diversa, diferente, com pessoas de outros países, muitas pessoas em situações mais frágeis. O que é que gostavam que soubessem, não só sobre vocês, mas também sobre os participantes deste projeto? Que mensagem gostavam de deixar à sociedade?

André - Para mim, independentemente da diversidade, somos todos pessoas, temos os mesmos direitos e podemos fazer as mesmas coisas. Mesmo não havendo apoio do Estado a nível económico ou social, todos merecemos as mesmas coisas.

Emily - Não importa se a pessoa é diferente de nós. Temos de adaptar essa pessoa como adaptamos os nossos amigos, a nossa família.

Temos, pelo menos, essa capacidade de perceber a problemática, porque há pessoas que não falam português, vão à Segurança Social ou vão ao SEF, não são esclarecidas. São um bocadinho “despachadas” porque há muita gente para atender. Não há tempo nem disponibilidade para ouvir a pessoa, nos sensibilizarmos com a sua história, percebermos efetivamente do que ela necessita.

Sónia - O Programa Escolhas também incentiva muito o desenvolvimento de competências digitais, as competências TIC. E temos aqui uma sala com sete computadores em que eles podem fazer pesquisa, trabalhos, jogar, sempre acompanhados por uma monitora... Tudo o que sirva para desenvolver as competências TIC.

André - Jogamos jogos de tabuleiro e também vamos para o pátio da igreja fazer jogos, saltar à corda, coisas que todos já fizeram quando eram mais novos [risos].

André - Foi um pouco difícil durante uns meses, mas depois habituei-me, criei amizades. Como tinha seis, sete anos, senti uma grande dificuldade em fazer amigos, mas ao entrar no Redes consegui criar amizades. E foi algo que me ajudou, a sair para a rua para brincar com os meus amigos.

Emily - A primeira dificuldade que senti quando cheguei aqui foram as palavras. Lá no Brasil tem palavras que não são iguais aqui em Portugal.

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somos um porto de
abrigo, um local onde as pessoas sabem que podem vir pedir ajuda e que encaminhamos para outros serviços.
▪ TERRITÓRIO TERRITÓRIO ▪

Oano era 2019. Depois de quase quatro anos de pandemia, parece uma realidade distante para a maioria das pessoas. Porém, para Pedro, foi o pior período da sua vida. Pedro Martinho, de 50 anos, esteve durante quatro anos em situação de sem-abrigo. Esta é a sua história, da rua para uma morada, e para uma estrada com caminhos ainda por trilhar.

A sua história começa, então, em 2019. “Estava a viver numa casa que aluguei quando estava a trabalhar, só que fiquei desempregado. Depois de ser despedido ainda consegui arrendar um quarto, mas depois perdi o rendimento mínimo, por situações do sistema, porque é mesmo assim. No fundo, tudo me aconteceu”, explica Pedro.

Durante o tempo que esteve em situação de sem-abrigo, Pedro sentiu o seu mundo a desmoronar. “Vivia num anexo sem condições, uma oficina, sem água, eletricidade, com ratos por todo o lado. Houve uma altura em que não tinha como tomar banho, tinha de ser com garrafões de água que enchia. Uma casa cheia de ratos e pulgas”.

Hoje, já está numa situação melhor. No entanto, é quando o sol desce, e se aproxima a hora do sono, que as memórias o continuam a atormentar. “Ainda tenho dificuldade em dormir. O meu horário durante quatro anos era completamente diferente. Tinha de dormir das seis às 11 da manhã porque era a altura em que as pulgas não atacavam”.

E durante o dia? “O resto do dia estava acordado, ia para os caixotes, para a má vida e só vinha para casa de manhãzinha cedo”, conta.

“O sem-abrigo é invisível na sociedade”

Quando questionado como vê a situação das pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal, Pedro reflete. “Nunca me tinha visto nesta situação. Uma pessoa pensa que só acontece aos outros. Isto dos sem-abrigo é um problema do mundo, não é só de Leiria nem de Portugal”.

E, sendo um problema de todos, de toda a sociedade, o que é que diria às pessoas sobre quem já esteve a viver na mesma situação? Pedro faz uma longa pausa. Respira profundamente. E só depois responde. “Isso é uma pergunta muito complicada. O semabrigo é invisível nesta sociedade. As pessoas fazem de tudo para não o ver. Eu próprio, quando era sem-abrigo... E agora, que estou do outro lado, vejo. É complicado. Penso que as pessoas têm de se pôr no lugar do outro”.

Sentiu discriminação? “Não é uma questão de discriminação, é uma questão de as pessoas não me quererem ver, virarem a cara para o lado”, descreve.

Para além de mais empatia e capacidade de nos colocarmos nos sapatos do outro, Pedro acredita também que é preciso olhar para cada pessoa de forma individual. Olhar e dar respostas individualizadas. A mudança só começa por aí.

“O sem-abrigo é invisível na sociedade”
A história de Pedro, da rua para uma Morada Certa
Por Inês Duarte
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“Cada ser humano é um ser individual. E acho que deve ser uma resposta personalizada, o que é bom para mim pode não ser bom para o outro, não é? Posso dar-me bem naquele sítio, mas outras pessoas não”. Afirma ainda que as respostas que existem atualmente para as pessoas em situação de sem-abrigo “podem sempre melhorar, há sempre espaço para isso”.

“A situação das pessoas em situação de sem-abrigo é uma questão transversal, mas temos de individualizar. Cada semabrigo é um sem-abrigo, é aquele sem-abrigo específico, que está na porta do supermercado X a pedir, que está na esquina do metro, que está na paragem do autocarro”, afirma Pedro, quando questionado sobre que mensagem deixaria ao Governo e o que gostaria de ver ser feito.

Uma mudança, uma mão que ajuda

Durante quatro anos esta foi a vida de Pedro. Foi apenas em 2023 que a sua vida começou a mudar. Que o seu mundo se começou a expandir. De uma maneira tão grande que Pedro refere que só agora se consegue atualizar sobre o resto do mundo. “Agora sou uma pessoa informada, vejo as notícias, leio sobre isso. Agora, que durante quatro anos não consegui fazer. Nem sabia que havia guerra na Ucrânia”.

A equipa do Morada Certa, um projeto da Associação InPulsar, começou a acompanhar Pedro no seu dia a dia, a partir de janeiro. “Esta equipa começou a dar-me apoio alimentar e depois surgiu a hipótese de me arranjarem uma casa”, conta.

“Em Leiria chamamos-lhe Morada Certa, o Leiria Housing First. É um projeto de intervenção em pessoas que estavam em situação de sem-abrigo e de integração em casas individuais e dispersas pela cidade. Portanto, segue o modelo Housing First, que defende uma intervenção não em escada, mas primeiro casa, e depois é que trabalhamos as outras áreas de intervenção”, explica a Diretora Geral da Associação InPulsar, Lisete Cordeiro. A InPulsar, uma IPSS de Leiria que tem como visão “consolidar o seu papel de Instituição de referência no âmbito da intervenção social criando respostas sociais inovadoras junto da comunidade local”, é a dinamizadora deste projeto.

O projeto Morada Certa começou em 2010, com a integração de três pessoas. Dez anos depois, já apoia 15. Lisete Cordeiro explica que o projeto quer “erradicar as principais situações de sem-abrigo, principalmente crónico”. “O objetivo principal é começarmos pelas pessoas que estão há mais tempo na rua, que não se identificaram com nenhum tipo de resposta

existente, melhorando a sua qualidade de vida e integrando-as na comunidade”, explica.

“O foco é mais do que criar uma resposta, é mobilizar as respostas que existem em termos comunitários. Por exemplo, se a pessoa necessita de apoio psicológico, é mobilizar recursos que já existam. Se a pessoa quiser fazer voluntariado numa associação, vamos mobilizar esse recurso. E daí que a casa seja basilar, a pessoa poder inserir-se no espaço onde está, integrando-se primeiro em termos de vizinhança e depois em termos da cidade, do que é que pretende fazer”.

Para a Diretora Geral, “é um projeto que não é fácil, tem avanços e recuos, que às vezes não é um processo linear, que depende de cada caso, em que o foco é sempre a pessoa. É diferente, mas em termos de cuidado do espaço das casas temos tido uma boa experiência, em que as pessoas cuidam do seu espaço, não criam problemas com a vizinhança. Já tivemos situações pontuais de problemas, mas isso faz parte, nem todos são iguais”.

Indo ao encontro do que Pedro afirma sobre respostas individualizadas, o Morada Certa faz isso mesmo. “Em termos gerais, a experiência é muito boa, há uma grande compreensão dos objetivos e daquilo que se pretende com o projeto. O que temos verificado, em relação às pessoas que temos integrado, é uma evolução, cada um com o seu percurso mais individualizado, e esse é o caminho. Cada pessoa tem as suas necessidades, a sua história de vida e temos de tentar definir, com cada uma, aquilo que é mais importante para si, no futuro”, explica Lisete Cordeiro.

E para o futuro? “Temos o sonho de ser resposta social. Neste momento, apesar de ser muito inovador, temos apenas três financiadores. E a qualquer altura, se um cai ficamos com o projeto comprometido. Esse é o nosso maior risco”.

Não podemos falar em riscos, sem considerar a situação que vivemos a nível nacional, relacionada com a inflação, que gera cada vez mais pedidos de ajuda.

“Em termos nacionais, a ideia que tenho é que tem estado a aumentar, o que também vemos localmente. A situação económica do país tem vindo a agravar-se e, de facto, isso reflete-se nas pessoas em situação de maior vulnerabilidade e leva a que, muitas vezes, não consigam pagar uma casa, um quarto. Neste momento, aqui em Leiria, os valores que me estão a pedir para arrendar um quarto são elevadíssimos. Pessoas que recebem o rendimento social de inserção têm grandes dificuldades em garantir a sua sustentabilidade e o seu bem-estar”, refere.

Apesar do aumento de situações de sem-abrigo no distrito, Lisete Cordeiro explica que “ainda não é significativo comparativamente ao passado”, porque existem respostas como o Morada Certa. Porém, há algo que continua a causar apreensão: “O que nos tem aparecido muito são jovens em situação de sem-abrigo, o que também nos preocupa porque são outro perfil, muitas vezes oriundos de instituições. Jovens com 20, 25 anos”.

Pedro, já com uma Morada Certa. E hoje?

“Já me sinto melhor, mas ainda não me sinto bem. Entretanto apanhei uma data de doenças, ainda estou a tentar levantar-me. Mas espero conseguir”.

A juntar a uma saúde debilitada, Pedro ainda procura um emprego. Até lá, já está a receber o Rendimento Social de Inserção. “Pelo menos já tenho alguma estabilidade. Este projeto também me vai ajudando a voltar ao ativo, tem-me dado bastante apoio”.

“Normalmente levanto-me sempre cedo, às seis da manhã. Costumo ir dar uma volta com o meu cão, que felizmente é o meu companheiro de há dez anos. Vou passeá-lo, e vou tomar a medicação aqui à associação. Depois vou para casa, ou vou dar mais uma volta, ou vou pintar. Eu pinto, tenho uma veia artística. Tanto pinto aguarela como pastel, depende das fases. Há alturas que me apetece pintar aguarela, é conforme. É um estilo mais surrealista, misturado com cubismo. Não gosto muito do mundo real, faço mais surrealismo. E o dia é passado assim. Vejo televisão, vejo notícias”.

Como é que o Pedro, agora, se vê a si próprio? “Temos de nos ver de forma diferente para os outros também repararem que estamos diferentes. Porque senão a coisa não funciona. Mas noto... Só o facto de poder tomar banho, andar sempre limpo. Quando caía qualquer coisa nas calças, passava um pano com água e pronto, as calças estavam sem ser lavadas para aí um mês e tal ou dois, que era quando tivesse dinheiro para as lavar. Parecendo que não, isso faz diferença”.

E a sociedade, vê-o de forma diferente? A resposta é perentória: “Sem dúvida”.

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Hoje, o dia a dia de Pedro começa com o relógio ao contrário de quando vivia na rua.
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Por Inês Duarte

Em Pombal, existe um projeto que tem desconstruído estereótipos e preconceitos relativos à comunidade cigana. Tem, igualmente, feito crescer a escolaridade da comunidade, o sentimento de pertença e a união entre todos. Fomos conhecer a história de Rodrigo, facilitador desta iniciativa, e umas das forças motoras desta mudança.

Três. É o número de anos que Rodrigo Emídio conta enquanto facilitador do Projeto 3ESC.E8G, dinamizado no Município de Pombal. Porém, são muito mais o número de vezes que já ouviu o seu nome associado às palavras “referência”, “ponte”, “força” e à expressão “quero ser como tu”.

Rodrigo pertence à comunidade cigana e trabalha como facilitador, ou seja, atua como intermediário entre a comunidade cigana e a restante comunidade Pombalense. “O meu papel é fazer a ponte entre a comunidade e as várias instituições do concelho. Por exemplo, na escola, no tribunal, na Câmara”. Nesse trabalho, Rodrigo tenta “perceber algumas situações que acontecem e tentar resolver da melhor maneira”.

Trabalha com quatro escolas do município. Aí, dá apoio a crianças e jovens entre os seis e os 18 anos. Faz a ponte entre os professores e as comunidades ciganas quando não conseguem comunicar entre si. Por exemplo, “quando alguns meninos não apresentam a caderneta, ou algo do género. Tento resolver da melhor maneira. Tento ajudar o que puder na área da comunidade”, explica Rodrigo.

E como se sente Rodrigo neste papel que implica tanta responsabilidade? Rodrigo sorri. “Para ser sincero, sintome importante. Sinto-me uma referência. Ao longo do meu tempo estudei, fiz o meu curso, o meu currículo e posso transmitir e passar esse testemunho às crianças. Elas olham para mim e pensam “quero ser como o Rodrigo. Quero ter um trabalho, em que recebo um ordenado, em que me sinto bem”.

Rodrigo sente que pertence a este papel e profissão por já ter visto e vivido na pele os dois lados da sua comunidade. “Sou cigano. Pertenço à comunidade cigana, tenho pai e mãe ciganos. Fui crescido e criado numa casa fora do bairro. Depois, mudámos para um bairro e consegui ter as duas visões: dentro do bairro e fora do bairro”, conta.

Rodrigo elabora: no início, os pais tinham melhores condições de vida e conseguiram viver fora do bairro. Essa altura permitiu-lhe ter uma perspetiva de fora, de como as pessoas trabalhavam até conquistar. Depois, foi viver para dentro do bairro. Aí percebeu que há outra perspetiva – a de quem olha de fora para dentro. “As pessoas pensam: eles moram num

bairro, são ciganos, não têm futuro…” Mas Rodrigo dá o seu próprio exemplo e explica que esse pensamento é apenas um estereótipo. “Eu trabalho, tenho um bom currículo e sou de dentro do bairro”.

“Os meus pais sempre me ensinaram que a prioridade era a educação, andar na escola, aprender, estudar. Se não fizesse isso, não podia ser nada. Tirei um curso de Restauração e Bar, tive boas notas e a minha média final foi de 17”, conta.

Já antes de entrar no Projeto 3ESC.E8G, Rodrigo quebrava estereótipos por onde passava. Conta que quando realizou os seus estágios do curso, num restaurante conceituado em Pombal, os donos do mesmo comentaram com ele: “Rodrigo, nunca pensámos que um cigano trabalhasse como tu trabalhas, és assíduo, pontual, sempre respeitador”. “Senti sempre que tinha de dar o meu melhor, mas a tentar ser o que sou”, explica.

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Fora do bairro, dentro do bairro e a ponte criada para unir os dois lados
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Também de dentro para fora, a comunidade vê com muitos bons olhos o papel de Rodrigo. “O Rodrigo consegue ajudar-nos” e “se o Rodrigo consegue, nós também conseguimos” é algo que ouve com frequência. “Rodrigo, preciso da tua ajuda, como é que eu faço isto e aquilo?” – e eu explico, olha, tens de ir por este caminho, tens de falar com esta pessoa. Veem-me como um ponto de socorro. Até na escola os professores me pedem “Rodrigo, vê lá se consegues que este menino seja um pouco mais assíduo” e eu falo com os pais. E eles vêm a minha envolvência, e a minha intervenção e respeitam-me”. Para além disso, Rodrigo também conta com a ajuda dos mais velhos. “Eles ajudam-me, apoiam-me, aconselham-me e estão envolvidos” para que se consiga apoiar os mais novos.

E a sua intervenção está a gerar mudança. “Quando comecei, havia ainda pouca escolaridade dentro da comunidade. Hoje temos crianças que fazem o 12º ano, já há esse desejo ao longo tempo. Tudo foi progressivo, tentando mudar mentalidades, passando informação. Tudo cresceu”, explica. “As pessoas podem pensar que não tens futuro. Mas tens de tentar e dar o teu melhor”.

No próprio município vê mudança a acontecer. “Sinto-me apoiado pela comunidade cigana, mas também pelos Pombalenses. Já ajudam, já apoiam, dão essa força. Vejo que está a fluir”. Mas não só: “Antes olhavam para os ciganos como alguém que não tinha futuro, que são ladrões, mentirosos. Hoje, já existe confiança, apoio, mesmo por parte dos professores, por exemplo. Eu vejo essa força”.

Sobre o Projeto 3ESC.E8G

desafios e mudanças

De acordo com a organização, este projeto, criado ao abrigo do Programa Escolhas, “pretende intervir em três grandes áreas: Educação, Saúde e Cidadania”. O seu principal objetivo? “A integração e a inclusão da comunidade Cigana residente em habitação social, na Freguesia de Pombal, e a comunidade Migrante Brasileira que tem vindo a crescer no Concelho e a fixar-se, também, na Freguesia de Pombal, promovendo o sucesso escolar, a par com a capacitação para uma consciência cívica coletiva, participada e participativa do público-alvo, numa comunidade que se pretende inclusiva (pombalense) e onde a interculturalidade e tudo o que representa é já uma realidade incontornável”.

Esta integração e inclusão é realizada graças a uma “intervenção comunitária participada em que a equipa conta com os contributos dos facilitadores das duas comunidades, numa abordagem que ambiciona potenciar o sucesso educativo e a real inclusão e integração social”.

Rodrigo conta que um dos principais desafios foi exatamente a conjugação da comunidade cigana e da comunidade brasileira. “Costumava perguntar-me porque é que havia a mentalidade de que ambas as comunidades iam chocar. Eu tenho tanto amigos brasileiros, como ciganos. Trabalhámos, fizemos atividades em várias áreas, informática, saúde, cidadania, informação. Fomos envolvendo e conseguimos criar uma união entre todos”, que até culminou, como exemplo, numa Gala do Projeto onde todos estiveram envolvidos e participaram, unidos. Nessa Gala, Rodrigo sente que conseguiu desconstruir o estereótipo de que a comunidade cigana e a brasileira chocavam entre si.

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Estante Social

Por Armandina Heleno, Departamento de Comunicação, Informação e Documentação

A pandemia pela voz das crianças

Autoras: Cátia Santos, Elizabeth Santos, Fátima Veiga, Paula Cruz, Teresa Dias

Ed. EAPN Portugal, 2022

Em 2021 a EAPN Portugal procurou analisar o impacto da crise sanitária na vida das crianças, colocando o enfoque no impacto produzido nas suas vivências, em dimensões objetivas e subjetivas do seu bem-estar psicológico. Pretendeu-se compreender quais as dimensões da sua vida onde as crianças percecionam maior impacto negativo e maior impacto positivo; o grau de satisfação que sentem face às diferentes dimensões da vida; as alterações objetivas de vida individual e familiar que ocorreram durante este período e o grau de importância que atribuem a estas alterações para a sua perceção de bem-estar. O principal objetivo da presente publicação é, assim, o de dar a conhecer os principais resultados deste estudo.

Uma imensidão de vidas: dez anos de percursos de pobreza em Lisboa

– Barómetro do Observatório de Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa 2011-2021

Autoras: Sónia Costa (Coord.), Marta Santos, Isabel Guerra

Ed. EAPN Portugal, 2022

Estudo longitudinal qualitativo estruturado em quatro momentos de entrevistas - 2011, 2014, 2017 e 2021 – que possibilitou seguir ao longo de dez anos um conjunto de pessoas que se encontravam em situação de vulnerabilidade, contribuindo para uma compreensão aprofundada dos processos sociais em jogo, através da interpretação e (re) construção das trajetórias de vida destas pessoas.

Viver na pobreza é confrontar duas forças de sentido inverso: a necessidade de lutar constantemente para garantir a sobrevivência e a escassez de reais oportunidades capazes de reverter esta condição. É difícil alterar percursos de vida pautados por múltiplas vulnerabilidades, mas é possível evitar a sua perpetuação intergeracional através

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da ativação de medidas inovadoras, menos caritativas e mais geradoras de novas capacidades e oportunidades num renovado contexto de desenvolvimento social e económico que promova o emprego formal, justo e digno, qualificações e cuidados de saúde.

A Sociedade da Abundância

Autor: John Kenneth Galbraith

Ed. Actual Editora, 2023

Com clareza, eloquência e humor, o economista John Kenneth Galbraith fala sobre “segurança económica”. Adverte contra os perigos da complacência individual e social sobre a desigualdade económica e explora a verdadeira natureza da pobreza. Politicamente decisiva e notavelmente presciente, A Sociedade da Abundância é tão relevante hoje quanto era em 1958, quando a América ainda recuperava da Segunda Guerra Mundial.

Viver Só

Autora: Ana Margarida Carvalho

Ed. FFMS, 2023

Este livro é um retrato da solidão em Portugal em números, contexto e circunstâncias, mas também uma reflexão sobre o quanto viver sozinho é diferente de sentir-se sozinho. A experiência de solidão é tão individual e privada que se torna quase indefinível. Como se poderá ler em relatos de vidas solitárias expostas ao longo deste livro, viver só pode ser um privilégio, uma questão de liberdade irrenunciável ou uma dor profunda e irreversível. A solidão pode ser desde sempre ou para sempre. Acreditamos ser essencial a promoção do combate à pobreza e à exclusão social a nível escolar, de modo que os alunos e alunas possam crescer a aprender que devem respeitar o próximo, não discriminar, lutar por vidas mais dignas e ser tolerantes.

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O Trabalho Aqui e Agora

Autores: Renato Miguel Carmo, Isabel Roque, Jorge Caleiras, Rodrigo Vieira de Assis Ed. Tinta da China, 2021

O Trabalho aqui e agora olha de forma multidimensional para as dinâmicas do mercado laboral no presente, a partir dos percursos de 53 trabalhadores, propondo como contraponto os alicerces de uma política de reconquista do tempo vivido e do reforço da centralidade do trabalho. Ao questionar algumas narrativas preestabelecidas, o livro identifica o modo como os regimes de precariedade se vão formando e cristalizando, e mostra como muitas das situações laborais e vivenciais de agora remetem para temporalidades antigas e recônditas, que fazem lembrar o trabalho agrícola à jorna, destituído de direitos e de qualquer enquadramento formal.

6. Revista Rediteia no. 54

Tema de Capa: [In]Segurança alimentar

Colaboraram neste nº: Ana Arsénio, Ana Poeta, Filipa Guerreiro, Helena Leal, Helena Trigueiro, João Pedro Tavares, Nélia Catarina Neves, Paula Cruz, Sandra Pereira, Susana Brissos, Vânia Martins

Ed. EAPN Portugal, 2022

Este número da Rediteia pretende induzir os leitores a refletir sobre o tema da [In]Segurança Alimentar relacionada com as questões da pobreza, das desigualdades, dos sistemas alimentares localmente instituídos e o seu impacto no desenvolvimento local, social e ambiental dos territórios, não só nos grupos mais desfavorecidos, mas em toda a sociedade.

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Empregabilidade na deficiência e incapacidade

Épossível que estejamos todos a viver um momento de viragem nas políticas sociais de apoio a pessoas com deficiência e incapacidade. Nos últimos anos temos vindo a constatar a alteração de lógicas mais de âmbito institucional, assistencialista ou até mesmo paternalista, para respostas centradas na pessoa e apoios promotores da autodeterminação da pessoa e em comunidade. Estas alterações foram, de resto, bem notadas pelo surgimento de nova legislação, como serão exemplo a lei do ensino inclusivo, do maior acompanhado, da empregabilidade e o Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI). Um dos motivos apontados para o surgimento destas novas abordagens é a ratificação, por parte do nosso país, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2009. A evolução das políticas para a deficiência tem sido paulatina, mas tem ocorrido com particular efetividade, e nem sempre foi assim. A responsabilização dos estados de forma concertada e consensual surge insofismavelmente como motor essencial para a mudança e o cumprimento de direitos fundamentais.

A par, ou quase a par, destas mudanças dão-se outras também fundamentais e que se relacionam com preconceitos, estereótipos e estigmas que, ao longo dos tempos, se têm vindo a incrustar ao conceito de deficiência. Naturalmente que a compreensão que se tem da pessoa com deficiência e as representações que lhe estão associadas têm um impacto muito evidente na inclusão ou não destes cidadãos. Não é de difícil entendimento que se se conceptualiza a pessoa com deficiência como alguém diminuído, doente ou incapaz, dificilmente lhe serão dadas oportunidades ou ferramentas para se concretizar nos mais variados domínios que a vida vai assumindo. Felizmente, essas compreensões têm vindo a diluir-se e o que se vai constatando é a existência de uma crescente aceitação da diversidade humana e um respeito pela identidade e características da pessoa com deficiência e incapacidade. O foco está nas capacidades dos indivíduos e não nas suas incapacidades. Estes cidadãos “reapareceram”, portanto, como sujeitos da sua própria vida e decisores na execução da mesma, deixando de ser objetos de apoio decididos por terceiros. Nos dias que correm, é clara a consciência de que o verdadeiro especialista das necessidades da pessoa com deficiência e incapacidade é a própria. Importante também será referir que a compreensão de que a pessoa com deficiência e incapacidade enfrenta desafios acrescidos na sua interação com o meio e que, decorrente disso mesmo, necessita de ferramentas adicionais, tem favorecido a aplicação de apoios promotores de uma real inclusão na comunidade.

A APPACDM do Porto, dentro daquela que é a sua vocação histórica de prestação de apoio a pessoas com deficiência intelectual, tem assumido o desenvolvimento do seu trabalho de acordo com este norte e com uma crescente preocupação em encontrar soluções para inclusão destes cidadãos na comunidade onde se inserem ou poderão estar incluídos. Nesta dinâmica poderão ser destacados dois projetos que estão disponíveis na nossa instituição e que se têm revelado essenciais, nomeadamente na empregabilidade daqueles que apoiamos. São eles o Centro de Apoio à Vida Independente e o APPinclui.

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O primeiro está inserido dentro do MAVI, o projeto-piloto através do qual se testa a implementação do paradigma da Vida Independente no nosso país. Neste projeto inovador, através da figura do assistente pessoal, presta-se apoio à pessoa com deficiência e incapacidade nas tarefas que esta não consegue concretizar autonomamente. Para a prestação deste serviço de assistência pessoal a APPACDM do Porto constituiu o seu Centro de Apoio à Vida Independente (CAVI). As atividades previstas são de âmbito muito alargado, indo desde rotinas de higiene e cuidados pessoais a atividades de apoio na procura ativa de emprego e inclusivamente apoio em contexto laboral quando disso existe necessidade. Desde cedo, no decorrer dos trabalhos do CAVI, se constatou que a área laboral era de grande interesse para as pessoas com deficiência intelectual e com perturbação do espectro do autismo, mas também para as suas famílias e representantes legais, também eles cada vez mais orientados para a procura de apoios virados para a comunidade. De resto, a nossa atuação nesta área tão requisitada ajudou a fazer prova da importância deste novo paradigma de apoio, já que a sua lógica de apoio individualizado e dentro dos contextos de vida das pessoas, possibilitou a inclusão laboral de um número significativo de destinatários de assistência pessoal.

Já o APPinclui realiza um importante papel de ponte com a comunidade. Este projeto é transversal a todas as respostas da APPACDM do Porto e tem como objetivo encontrar soluções na comunidade para aqueles que manifestem esse desejo. Para se conseguirem bons resultados, o trabalho é naturalmente adaptado aos interesses e expectativas pessoais e é constituído por várias fases, respeitadoras do ritmo de cada um. Assim, poderão desenvolver-se esforços de capacitação (diminuir inseguranças associadas a padrões societais de incompetência e improdutividade e preparação para prováveis dificuldades na iniciação de uma vida ativa), elaboração de expectativas realistas e promoção de competências de relacionamento interpessoal e profissional. Outro domínio deste trabalho é estabelecer contactos junto da comunidade para a realização de atividades do interesse da pessoa, de voluntariado e ainda encontrar soluções de inclusão laboral junto de entidades empregadoras. Com estas últimas existe, no seu início, um trabalho importante de sensibilização para as características das pessoas que apoiamos e ainda para os métodos e estratégias que mais contribuem para o sucesso profissional deste grupo de cidadãos, como mais à frente iremos aflorar.

É certo que a já referida nova lei para a empregabilidade de pessoas com deficiência e incapacidade tem tido um impacto francamente positivo para o surgimento de novas oportunidades de emprego para a nossa população, com a obrigação do cumprimento de quotas. Efetivamente, mecanismos de discriminação positiva favorecem a inclusão de quem ainda vive situações de alguma desvantagem. Mas, por vezes, o seu mau planeamento traz desafios acrescidos. Para além disso, é importante que as entidades empregadoras não procurem apenas o cumprimento legal, tendo em vista estarem sujeitos a coima, não se importando com as devidas necessárias adequações.

Algo que infelizmente temos vindo a constatar é que esta nova lei da empregabilidade, ao basear-se na percentagem de 60% de incapacidade no atestado multiusos, não assegura uma situação equitativa para as pessoas com deficiência intelectual, já que estas obtêm percentagens mais baixas, apesar de algumas pessoas terem uma dependência muito significativa. Este facto decorre de estas avaliações serem muito orientadas para a motricidade e desempenho motor e, ainda, por serem baseadas em sinistrados do trabalho. Seria importante reformular a legislação pois esta realidade faz com que um importante grupo de pessoas com deficiência intelectual deixe simplesmente de interessar às entidades empregadoras. Uma lei cujo o objetivo será incluir, constata-se, na prática, que exclui ainda um conjunto significativo de portugueses.

Não é possível, atualmente, pensar o apoio e a inclusão das pessoas com deficiência intelectual ou com perturbação do espectro do autismo, sem a componente da empregabilidade pela centralidade que esta mesma assume na vida de qualquer indivíduo, mas também pelos seus efeitos e ganhos multiplicadores que assume particularmente neste grupo de cidadãos. Nas novas lógicas de apoio vemos defendidos conceitos como inclusão, participação e empoderamento. Os contextos laborais constituem-se como muitíssimo relevantes para o desenvolvimento de competências sociais, cognitivas e relacionais, para além de serem a garantia da sustentabilidade financeira que qualquer cidadão necessita para viver em liberdade, autonomia e com qualidade de vida.

A inclusão laboral traz benefícios que são transversais e observáveis na própria pessoa com deficiência e incapacidade (aumento da autonomia, responsabilidade, comunicação

e autoestima), no contexto laboral (melhor ambiente de trabalho, maior eficiência em tarefas específicas e melhor imagem corporativa) e, inclusivamente, na forma como a sociedade se constitui em torno de si mesma. No entanto, continua a não ser fácil concretizar esta inclusão laboral e as dificuldades não são apenas para conseguir ter uma oportunidade de emprego, mas também para a sua manutenção. Efetivamente, existem múltiplas variáveis a concorrer entre si para que assim seja e sobre isso importa refletir.

É facto que para a produtividade e sucesso profissional é fundamental a adequação à tarefa do trabalhador. A população com deficiência intelectual ou com perturbação do espectro do autismo tem sido historicamente votada a uma particular invisibilidade e o prejuízo dessa invisibilidade também se manifesta na empregabilidade, já que muitas vezes estas pessoas aparecem como desconhecidas e envoltas em estigmas que não existiriam se não tivessem sido tão excluídas e, por isso, tão invisibilizadas. Isto faz com que ocorram exclusões logo na fase inicial do recrutamento, mas também quando a pessoa é recrutada, a tarefa não se adequa ao indivíduo nem o contexto às suas características. Estes dois aspetos, importa sublinhar, são grandes preditores de sucesso laboral na nossa população. Diga-se que na adequação do contexto laboral importa fazer uma aposta séria, como tem vindo a acontecer em algumas grandes empresas, numa lógica de responsabilidade social além da empregabilidade, na capacitação de todos os trabalhadores sobre o que respeita à diversidade humana, eliminando barreiras e promovendo atitudes positivas face à deficiência e incapacidade, assim como o desenvolvimento de mecanismos ou programas de mentoria e acompanhamento entre colegas de trabalho. Outro aspeto relevante é a escolaridade que quanto mais baixa for mais aumenta a probabilidade de dificuldades na empregabilidade. Isto acontece com a população normativa mas muito mais afeta os cidadãos que vivem situações de exclusão e vulnerabilidade onde a escolaridade baixa é bastante prevalente.

Existe uma compreensão cada vez mais madura e humanista da pessoa com deficiência e incapacidade. Existem também todo um conjunto de apoios, mecanismos, conhecimento e legislação promotores da inclusão laboral. No entanto,

ainda não é possível dizermos que vivemos numa sociedade inclusiva. Se muita coisa melhorou, outras situações carecem ainda de concretização. É urgente melhorar porque a qualidade de vida de qualquer humano não é objeto descartável. A vida profissional é para qualquer humano uma extraordinária oportunidade de se desenvolver, construir a sua identidade, criar redes e relações sociais e ainda contribuir com relevância para a forma como vive e vê o mundo. Trata-se ainda de um aspeto com grande relevância para a autoestima e o autoconceito dos indivíduos. Falamos, portanto, de algo verdadeiramente essencial. Falta ainda, incondicionalmente, aceitar a diferença, incluir a diferença, adaptar à diferença.

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Porto, 7 de maio de 2023 Rui Machado
Psicólogo
ESPAÇO ASSOCIADO ▪
Diretor Técnico do CAVI da APPACDM do Porto

7ª edição

d’O Futuro Começa Agora!

reflete sobre o mundo atual com mais de 80 jovens

Por Joana Carvalho, Departamento de Investigação e Projetos

A iniciativa “O Futuro Começa Agora!”, desenvolvida desde 2017 pela EAPN Portugal, constrói-se com base no trabalho que a organização realiza em articulação e colaboração com as escolas, instituições e projetos de intervenção local e este ano vai na sua sétima edição. ▪

EAPN EM REDE 51

A iniciativa “O Futuro Começa Agora!”, desenvolvida desde 2017 pela EAPN Portugal, constrói-se com base no trabalho que a organização realiza em articulação e colaboração com as escolas, instituições e projetos de intervenção local e este ano vai na sua sétima edição.

O objetivo desta iniciativa dirigida aos jovens, feita com eles e para eles, passa pela promoção da reflexão sobre o futuro e sobre o seu lugar no mundo, e como as suas atitudes e comportamentos têm influência e impacto no seu percurso ao longo da vida e também na vida dos que os rodeiam.

Este ano, o evento teve lugar no Auditório da Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, no dia 24 de maio (das 10h30 às 16h30). Este momento foi o culminar de um trabalho prévio realizado pelos jovens, em conjunto com os seus professores e monitores, e este ano contou com a participação de mais de 80 jovens em representação de quatro escolas (EnsiGuarda

– Escola Profissional da Guarda; Escola Afonso Albuquerque, da Guarda; Escola Profissional Albicastrense; Agrupamento de Escolas Infante D. Henrique, de Viseu) e quatro projetos (Projeto “Novas Oportunidades” – E8G, de Portalegre; Projeto “Tu Decides” – E8G, da Guarda; Projeto “Sinergias”

– E8G, do Porto) e duas instituições (Asas de Santo Tirso; Instituto de Apoio à Criança, de Lisboa).

As temáticas propostas para este ano foram:

# Igualdade de oportunidades e de género

# Saúde

# Direitos humanos

# Interculturalidade

A sessão de boas-vindas contou com as palavras de Agostinho Jardim Moreira, Presidente da EAPN Portugal, Fernando Paulo, Vereador do Pelouro da Educação e Pelouro da Coesão Social da Câmara Municipal do Porto, e Rui Lima, da Direção-Geral da Educação. Agostinho Jardim Moreira partilhou as suas preocupações com as situações de exclusão na sociedade, os desafios que enfrentamos atualmente, num mundo em profunda mudança, salientando que é preciso “ultrapassar os desafios e construir o futuro… decidir o que é para manter e o que é para imaginar e construir de novo” e que importa, cada vez mais, “defender o ser humano na sua integralidade – como ser antropológico biopsicossocial”, destacando ainda que a presença destes jovens neste evento é um sinal de liberdade e de que se interessam por estes temas.

Fernando Paulo destacou também a importância de debater estes temas, de estimular o desenvolvimento de projeos e de reflexão, e o papel que é de todos – “Temos direitos, mas também o dever de co-criar, um papel e uma missão a cumprir”, no âmbito de uma preocupação também com as próximas gerações, acrescentando que “as escolas devem ser espaços de ajudar a ser, a fazer e a viver juntos, viver em comunidade”. Rui Lima destacou, de entre as várias áreas que carecem de atenção e de intervenção, a saúde, a literacia, a integração de imigrantes, a ligação destes temas com a pobreza e a necessidade de quebrar o ciclo intergeracional de pobreza, de vulnerabilidades e de desigualdades.

Este evento anual representa um momento de partilha do trabalho de reflexão através de metodologias e produtos (vídeos, cartazes, dança, teatro, música) desenvolvidos pelos jovens com o apoio dos seus professores e monitores. O tema preponderante e transversal desta edição foi a saúde mental – salientando-se como o mais presente entre as preocupações dos jovens participantes. Os outros temas abordados, e que se relacionam também com o anterior, passaram por: utilização segura das redes sociais, fakenews; bullying e cyberbullying, e a importância de pedir ajuda; inclusão /não discriminação, aceitação, solidariedade; a importância de agir, de contribuir de alguma forma para levar bons momentos a outros que possam estar em situações de sofrimento ou de vulnerabilidade; e a importância de cuidar da natureza e também dos espaços onde vivemos (o nosso bairro, por exemplo).

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Os momentos musicais foram de grande animação, com a participação da cantora Ana Love e de jovens das escolas e projetos já mencionados.

No final do evento, Maria José Vicente, Filipe Gaspar e Sandra Ladeiro realçaram a pertinência dos temas tratados, nomeadamente a questão da saúde mental. Sandra Ladeiro desafiou cada um dos presentes a pensar no contributo que pode dar na construção do futuro. Filipe Gaspar deixou-nos uma reflexão: “Quando nascemos, nascemos num mundo que não é o nosso. É dos nossos pais, dos nossos avós…. Está formatado. Mas vocês podem construir um novo mundo. Vocês podem melhorar este mundo, encontrar soluções.”

Maria José Vicente, remetendo para o tema da saúde mental, lembrou-nos a importância de cuidarmos de nós próprios, para podermos ajudar os outros. Salientou também a necessidade de cidadania ativa, de consciência crítica, de continuar a trabalhar para informar, consciencializar e sensibilizar os outros. Todos os participantes foram parabenizados pelos trabalhos apresentados, congratulações que se estendem a todos os professores e monitores que os apoiaram.

Este evento acontece desde 2017 e todos os anos vemos reforçada a convicção da importância destes momentos de reflexão sobre o futuro e sobre os desafios e preocupações dos jovens e também sobre os seus desejos e caminhos que querem percorrer. As respostas para as questões que nos inquietam a todos no presente são e serão construídas também por estes jovens, pelo que a sua consciencialização e participação é fundamental para a construção de um futuro melhor para todos.

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Interculturalidade foi celebrada em abril com mais de 150 atividades por todo o país

ASemana da Interculturalidade é uma iniciativa EAPN Portugal / Rede Europeia Anti-Pobreza desde 2014. O objetivo? Apostar na interculturalidade, pois fazê-lo “é acreditar que se pode aprender e enriquecer através do diálogo e da convivência com o outro”, refere a organização. A Semana da Interculturalidade decorreu de 3 a 16 de abril, por todo o país, com atividades diversas. Em 2023, contou com a parceria e apoio do Alto Comissariado para as Migrações e da Organização Internacional para as Migrações (OIM) Portugal. Com a Semana da Interculturalidade, a Rede Europeia Anti-Pobreza quis “estimular o diálogo e a relação entre culturas e sensibilizar os cidadãos para a necessidade de uma sociedade intercultural”.

Segundo a Coordenadora Nacional da EAPN Portugal, Maria José Vicente, pretendeu-se ainda “mostrar que a interculturalidade é, também, uma excelente forma de combater a exclusão social, prezando valores como respeito; solidariedade; igualdade; cidadania; não discriminação pela aparência, etnia, género ou nacionalidade; democracia na educação e direitos humanos”.

Também o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) referiu, em comunicado de imprensa lançado na altura, que esta é uma iniciativa que valoriza a diversidade. “A colaboração com a EAPN Portugal e a Semana da Interculturalidade são contributos essenciais para o sucesso das nossas atribuições, em particular, de valorização da diversidade entre culturas, de promoção da igualdade e de combate à discriminação sob todas as formas. Cumpre-nos abraçar e celebrar a Interculturalidade, todos os dias, contribuindo ativamente para a criação de sociedades mais coesas, justas e inclusivas”, afirmou o Vogal do Conselho Diretivo do ACM, José Reis.

“Num mundo globalizado como o nosso e onde só no ano passado a Organização Internacional para as Migrações –Agência das Nações Unidas estima a existência de cerca de 281 milhões de migrantes internacionais, é muito importante sublinhar a importância da interculturalidade, isto é, um espaço onde todas as culturas têm o seu espaço e se promovem políticas e práticas que estimulam a interação, compreensão e o respeito entre as diferentes culturas e grupos étnicos”, sublinhou o Chefe de Missão da OIM Portugal, Vasco Malta.

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“A interculturalidade pressupõe uma visão holística do ser humano, garantindo o bemestar e proximidade entre as pessoas”, recordou a Coordenadora Nacional da EAPN Portugal.

ATIVIDADES DIVERSAS PARA COMEMORAR A INTERCULTURALIDADE

Foram várias as iniciativas promovidas de norte a sul do país, incluindo a Região Autónoma da Madeira, com múltiplos parceiros – desde entidades do setor social, municípios e instituições de ensino. De um modo transversal, existiram duas atividades alargadas a todo o país. A primeira disse respeito à continuação da Campanha “O Discurso de Ódio Não É Argumento #daravoltaaotexto”, que em 2021 vestiu o país com mensagens que apelam à erradicação do discurso de ódio. Desta vez, foram vendidos sacos e t-shirts com as mensagens da campanha, para alcançar ainda mais pessoas. A segunda iniciativa, promovida pelo Observatório Nacional de Luta Contra a Pobreza, refere-se a uma infografia sobre Migrações: Factos & Números. De 3 a 16 de abril, realizaramse, ainda, diversas atividades nos vários distritos do país, desde uma exposição itinerante sobre campos de refugiados, atividades e jogos com as crianças sobre a interculturalidade ou Conversas Interculturais sobre a parentalidade nas diversas culturas.

A título de exemplo realizou-se, no Porto, um Pitch Intercultural “Como é que eu vivo a interculturalidade?” e um Sarau Intercultural. Este último celebrou a diversidade cultural com atuações de várias instituições associadas e parceiras da EAPN Portugal, numa tarde cheia de música, poesia, dança e gastronomia.

Promoveu-se, também, uma exposição sobre a interculturalidade pelas mãos das crianças e a divulgação pública do Manual de Acolhimento para alunos imigrantes.

Foram, assim, mais de 150 atividades, de norte a sul do país, para estimular o diálogo e a relação entre culturas e sensibilizar os cidadãos para a necessidade de uma sociedade intercultural.

A EAPN Portugal acredita que, com esta iniciativa, conseguiu reforçar uma importante mensagem: a interculturalidade pressupõe uma visão holística do ser humano, garantindo o bem-estar e proximidade entre as pessoas.

O QUE É A INTERCULTURALIDADE?

O que significa a interculturalidade para os parceiros da EAPN Portugal? Esta foi a pergunta que foi colocada pela organização, durante a Semana da Interculturalidade, aos seus vários promotores, durante diversas iniciativas.

“Mostrarmos ao outro culturas desconhecidas. Porque através do conhecimento,vemaaceitação.”

“Aceitar e valorizar a diferença para nos desenvolvermos enquanto seres humanos.”

“Encontro de várias culturas. Quais mais encontro houver, melhor!”

“Respeitoetolerância.”

Jorge, Conselho Local de Cidadãos do Núcleo Distrital de Leiria da EAPN Portugal

“Forma ativa de abrir os nossos corações a novas experiências e saberes,nummundoglobal.”

Íris, Projeto Bué D’Escolhas

“Retirar o preconceito do dicionário.”

Cristina, Conselho Local de Cidadãos do Núcleo Distrital de Leiria da EAPN Portugal

Cláudia, Associação Plano i

Liliana, Câmara Municipal de Paredes Isabel, Centro Social e Paroquial de S. Nicolau
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INTERCULTURALIDADE

Estratégia Europeia de Prestação de Cuidados

webinar

19 de janeiro 2023

Por Paula Cruz, Coordenação da Unidade dos Projetos e Políticas Europeias da EAPN Portugal

AEstratégia Europeia de Prestação de Cuidados (apresentada em setembro de 2022) visa a assegurar serviços de prestação de cuidados de qualidade, acessíveis e a preços comportáveis em toda a União Europeia e melhorar a situação tanto dos beneficiários de cuidados como das pessoas que lhes prestam cuidados, a título profissional ou informal. A Comunicação da Comissão é acompanhada por duas propostas de recomendação: uma sobre a revisão dos Objetivos de Barcelona e outra sobre o acesso a cuidados de longa duração acessíveis e de elevada qualidade. Ambas apresentam quadro/estruturas políticas para reformas e investimento a nível nacional, regional e local. Enquadrada no Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, a Estratégia Europeia de Prestação de Cuidados apresenta-se como um contributo para o cumprimento dos princípios 11 – acolhimento e apoio a crianças; 18 – Cuidados de longa duração e 9 –equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada, mas está também ligada a outras iniciativas da Comissão como, por exemplo, Estratégia sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a Garantia Europeia para a Infância, a Estratégia para a Igualdade de Género, entre outras.

A Estratégia apresentada não deixa de lado a dimensão das condições de trabalho (incluindo salários) e de capacitação dos prestadores de cuidados, assim como da conciliação vida-trabalho dos cuidadores informais. Segundo a Comissão é possível apontar um conjunto de preocupações inerentes à Estratégia:

# O cuidado diz respeito a todos nós. Ao longo de nossas vidas, nós e os nossos entes queridos precisaremos de cuidados ou de prestar cuidados.

# A pandemia de COVID-19 destacou a importância de ter serviços de cuidados formais robustos para garantir a continuidade dos cuidados

# Serviços de cuidados de alta qualidade têm benefícios claros para todas as idades.

# Apesar dos claros benefícios dos serviços de cuidados de alta qualidade, para muitas pessoas eles ainda não são acessíveis (mesmo do ponto de vista financeiro), disponíveis.

# Serviços de cuidados inadequados têm um impacto maior nas mulheres, uma vez que as responsabilidades de cuidados suplementares ou informais ainda recaem predominantemente sobre elas, o que afeta a sua vida profissional e reduz as suas opções para assumirem trabalho remunerado

# A inadequação dos sistemas de cuidados tem um custo económico e mina o potencial do setor para criar empregos

# Boas condições de trabalho no setor de cuidados são vitais para a resiliência do próprio setor e atratividade do setor e para a igualdade de género

No caso específico da Recomendação sobre o acesso a cuidados de longa duração acessíveis e de elevada qualidade, a Comissão indica que os Estados Membros devem nomear um coordenador nacional de cuidados continuados e estabelecer um plano de ação nacional com medidas específicas de implementação da Recomendação. É esperado que os Estados Membros invistam nestes cuidados de forma a garantir que estes sejam atempados, abrangentes e a preços acessíveis, aumentem a oferta destes serviços; invistam na qualidade dos mesmos; assegurem condições de trabalho justas para os trabalhadores formais e apoiem os informais

e mobilizem financiamento adequados e sustentável, usando para isso também os fundos europeus.

O Webinar que decorreu no dia 19 de janeiro de 2023 teve como principal objetivo refletir e debater a proposta de recomendação sobre o acesso a cuidados de longa duração acessíveis e de elevada qualidade e promover um debate em torno da sua importância, lançando os primeiros alertas e as primeiras propostas que possam ser um contributo para este plano de ação.

O webinar teve a participação das seguintes entidades/ pessoas: Maria dos Anjos Catapirra (Associação Nacional de Cuidadores Informais); Rosário Zincke dos Reis (Alzheimer Portugal); Carmina Rei (SOSDEMÊNCIAS); Carla Martins Pereira (DG Saúde); Cristina Caetano (Rede Nacional dos Cuidados Continuados). As conclusões foram realizadas por Constança Paúl (ICBAS).

Mensagens Chave do Webinar Pressupostos para o desenvolvimento dos Cuidados de Longa Duração

# Existe um entendimento claro sobre a importância da Estratégia Europeia para a Prestação de Cuidados e da Recomendação sobre o acesso a cuidados de longa duração para a melhoria dos cuidados de longa duração em Portugal. Permanece, no entanto, uma distância entre as entidades diretamente responsáveis por esta área ao nível nacional, e dos discursos sobre esta matéria. A adoção da Recomendação só será eficaz se os diferentes setores responsáveis pelos cuidados em Portugal estabelecerem sinergias entre si, se existir coerência nos discursos e nas formas de atuação.

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# O investimento nos Cuidados de Longa Duração implica, desde logo, respeitar os Direitos fundamentais da pessoa que carece de cuidados e dos seus cuidadores (formais e informais); prestar os melhores cuidados, num ambiente que seja favorável e que inspire segurança e promova bemestar. O desafio está em transpor efetivamente estas premissas para o Plano de Ação nacional.

# A prestação de cuidados deve ser uma prioridade na agenda política nacional. É necessário investir na definição de medidas estruturais de longo prazo, preventivas (preparação do envelhecimento e da reforma) e de reabilitação. A recomendação só conseguirá ter sucesso se estiver assente em medidas que promovam o envelhecimento saudável e garantam a autonomia das pessoas.

# O Plano de Ação nacional em matéria de cuidados de longa duração deve ser integrado, ou seja, ser capaz de mobilizar diferentes áreas políticas, para além da área social e de saúde.

# O Plano de Ação deve ser acompanhado de um plano financeiro sustentável, mobilizando para o efeito os fundos estruturais e orçamento nacional. Os fundos devem ser aplicados de forma transparente e a sua execução deve ser monitorizada de forma a garantir que as verbas destinadas às ações estão a ser executadas e quais os desvios existentes.

# Investir na acessibilidade aos serviços implica não só garantir que estes são acessíveis do ponto de vista financeiro, mas também que estes são acessíveis do ponto de vista territorial. Uma situação particularmente grave nos casos dos serviços mais especializados. Existem diferenças regionais consideráveis em Portugal e é importante elaborar diagnósticos destas situações de forma a pensar novas modalidades de resposta às pessoas que estão em diferentes territórios e para as quais as suas famílias são muitas vezes a primeira e única resposta existente.

# É necessário realizar um diagnóstico exaustivo e participativo sobre os cuidados de longa duração em Portugal, quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista informal. A falta de diagnóstico tem impacto nas medidas que são definidas e nos dados

que são recolhidos. Neste momento é possível obter diferentes dados sobre os cuidados de longa duração dependendo do setor (saúde ou social) que os detém, o que origina discrepâncias na recolha de informação e na leitura da realidade, tornando difícil o apuramento das necessidades.

# A mudança de mentalidade acerca do envelhecimento, das pessoas idosas e do potencial humano das pessoas cuidadas é central e deve ser alvo de investimento. O plano de ação previsto deve contemplar ações de maior consciencialização pública para a área do envelhecimento e do combate aos estereótipos.

mais velhos de si próprios e da sua própria vontade e isso pode conduzir a um desinvestimento no seu potencial e mesmo, em situações mais graves, à violação dos seus direitos.

# É fundamental perceber os efeitos da pandemia na qualidade dos serviços. A perceção que se tem do terreno é que se acentuaram más práticas, acentuaram-se estereótipos e estaremos a assistir a um retrocesso sobre a visão que se tinha das necessidades das pessoas mais idosas e, em particular, das necessidades das pessoas idosas com dependências várias. A pandemia passou, mas os seus efeitos podem ser prolongados no tempo e precisam de ser solucionados.

Necessidade de investimento nas pessoas que cuidam

# A abordagem centrada na pessoa é um dos princípios relevantes na qualidade dos serviços de prestação de cuidados. No entanto, este princípio ainda é pouco considerado na prestação de cuidados e está, em muitos momentos, assente em estereótipos relativamente ao envelhecimento e às pessoas idosas. A formação das equipas que prestam cuidados, numa lógica de aprendizagem ao longo da vida, precisa de ser considerada e operacionalizada.

# A abordagem centrada na pessoa exige a constituição de espaços/momentos de auscultação e participação das pessoas beneficiárias diretas dos serviços. A voz dos beneficiários deve ser deve ser trazida para o processo de tomada de decisão, quer ao nível político, quer ao nível da própria programação de serviços de qualidade e na sua monitorização. O plano de ação nacional deve considerar um eixo de governança que contemple a participação dos diferentes atores e dos beneficiários diretos dos cuidados.

# É necessário investir no empoderamento dos utilizadores dos serviços, reconhecendo que este exige financiamento próprio, tempo e novas formas de pensar e intervir no envelhecimento e com as pessoas idosas. A prática de cuidados pode-se revestir de um sentido paternalista, ou seja, na proteção aos mais idosos, cuidadores e famílias estão sempre atentos e preocupados em proteger os

# A qualidade dos serviços tem de passar obrigatoriamente pela criação de condições (estruturais e humanas) para promover a autonomia e a reabilitação das pessoas que recebem cuidados. Não se trata apenas e só de aumentar, por exemplo, o número de camas, mas sim de formação de profissionais, constituição de equipas multidisciplinares e melhores condições de trabalho e apoio aos que prestam cuidados.

# A formação e a valorização das carreiras dos prestadores de cuidados formais (nomeadamente auxiliares), que possa atrair mais pessoas para este sector, deve ser uma das prioridades na promoção da qualidade dos próprios serviços.

# A situação dos cuidadores informais permanece ao nível nacional num plano secundário face a outras prioridades. A aprovação do Estatuto do Cuidador Informal foi considerada um avanço relevante em matéria de reconhecimento desta prática e das pessoas que prestam estes cuidados, mas permanecem medidas ainda por executar, como o apoio domiciliário e o descanso do cuidador. O Estatuto, neste momento e passado um ano da sua regulamentação, limita-se a ser um subsídio de apoio de aproximadamente 300€ mensais. Segundo

a Lei nº100/2019, de 6 de setembro que aprova o Estatuto do Cuidador Informal, o cuidador informal principal pode beneficiar de um subsídio de apoio, a atribuir pelo subsistema de solidariedade mediante condição de recursos [(alínea a) do n.º 4 do artigo 7.º]. Em dezembro de 2022 existiam 5701 cuidadores informais principais, num total de 11 729 pedidos deferidos. No universo de 30 milhões de euros previstos para esta medida, estamos perante uma execução significativamente reduzida.

# Ainda se verifica um desconhecimento por parte das pessoas relativamente ao Estatuto e à legislação que as pode apoiar em matéria de cuidados. Paralelamente, o pedido do Estatuto de cuidador informal ainda se reveste de uma forte carga burocrática que dificulta o acesso ao mesmo.

# A situação dos cuidadores informais é particularmente difícil no que se refere ao acesso aos cuidados de longa duração. Por um lado, os critérios existentes para acesso a estes cuidados podem estar a deixar de fora pessoas que precisam destes cuidados, mas que não cumprem os critérios e, por outro lado, os cuidados de longa duração são incomportáveis em termos de preço para os cuidadores informais. O empobrecimento é um dos problemas que afeta as pessoas que cuidam, porque cuidar implica prescindir dos próprios empregos, recorrer a subsídios ou às próprias reformas das pessoas que estão a cuidar.

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A pessoa no centro dos cuidados
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Otempo assume um papel preponderante na intervenção junto de pessoas em situação de sem-abrigo. A intervenção e a pesquisa têm vindo a demonstrar que quanto mais tempo a pessoa se mantiver em situação de sem-abrigo, maior tenderá a ser a sua vulnerabilidade em termos de condição de saúde, de empregabilidade, e na sua relação com a família e pessoas próximas, amigas e de vizinhança. Cada vez maior tenderá, também, a ser o seu grau de afastamento em relação aos diferentes serviços disponíveis na comunidade. Para além disso, acrescem ainda as perdas individuais, ao nível das competências, capacidades e até da autoestima, que tende a ir-se desvanecendo. Com a permanência na condição de sem-abrigo, as pessoas tendem a ir padronizando os seus comportamentos, limitando as suas perspetivas futuras e (sobre)vivendo apenas (a)o presente. É neste quadro complexo e em constante mudança que a intervenção precoce deve ser reconhecida como uma ferramenta fundamental no combate às situações de sem-abrigo.

Torna-se, pois, necessário analisar a situação destas pessoas à luz de um modelo sequencial, que considere o tempo como elemento central dos seus percursos individuais, promovendo abordagens que consigam garantir que a intervenção precoce enquadra políticas, práticas e estratégias destinadas a combater o risco imediato de situações de sem-abrigo, através da partilha de informações, avaliação contínua e acesso atempado ao apoio necessário.

O relatório “Fighting homelessness and housing exclusion in Europe - a study of national policies” reforça que, à escala europeia, os serviços de apoio à população sem-abrigo continuam a não ter uma abordagem suficientemente preventiva, não dando a importância devida a procedimentos para a deteção precoce de situações de risco que deviam integrar a sua ação (Baptista e Marlier, 2019).

Perante tais evidências, a intervenção precoce assume particular protagonismo enquanto estratégia facilitadora de uma mudança progressiva de paradigma: de uma abordagem centrada na emergência para uma abordagem centrada na prevenção. Na visão de Pleace et al. (2018), a adoção desta abordagem preventiva pode pois, fazer parte do “mapa para resolver a situação de sem-abrigo”, na medida em que uma resposta comprovadamente eficaz “pode ser usada como estratégia para reduzir significativamente os números e reduzir significativamente o risco de viver em situação sem-abrigo” (Pleace et al., 2018: 97).

Stephen Gaetz e Erin Dej (2017) reconhecem, igualmente, a mais-valia da intervenção precoce enquanto abordagem prática que pode promover a mudança progressiva acima mencionada. Os autores analisaram a importância das estratégias de intervenção precoce, sobretudo junto de pessoas e/ou famílias em risco iminente de ficar em situação de semabrigo ou em situação recente de sem-abrigo. A sua análise centrou-se, particularmente, na eficácia da intervenção precoce no que se refere ao trabalho com jovens, grupo identificado como particularmente vulnerável se se mantiver por algum tempo em situação de sem-abrigo.

A abordagem preventiva e a participação ativa como essenciaispilaresda intervenção
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Por Pedro Perista, Coordenador Nacional do Projeto HOOD
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CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social

Mais do que uma intervenção paliativa, importa então promover práticas em que a prevenção de possíveis situações de sem-abrigo seja integrada numa leitura mais abrangente, que reconheça a heterogeneidade da população em situação de sem-abrigo, bem como a complexidade da relação entre os fatores estruturais (já conhecidos) e fatores individuais, algo voláteis, que as caracterizam.

O projeto HOOD – Homeless’s Open Dialogue (https:// hoodproject.org/), apoiado financeiramente pelo programa Erasmus+ da Comissão Europeia (Projeto No. 2020-1-IT02KA204-079491), e conduzido em Portugal pelo CESIS –Centro de Estudos para a Intervenção Social, nasceu a partir destas inquietações. Através de uma parceria que envolve seis entidades de cinco países diferentes, bem como três entidades associadas, tem como motivação primeira introduzir uma mudança de paradigma na intervenção social junto de pessoas em situação de semabrigo, apostando na prevenção.

Esta mudança de paradigma só será bem-sucedida se feita em estreita articulação com práticas metodológicas centradas na pessoa, enquanto sujeito de direitos, e no seu empoderamento ao longo do processo de intervenção. É este o enfoque do ‘Co-Planeamento Capacitante’, metodologia inicialmente desenvolvida para o trabalho com população com deficiência e também das ‘Práticas Dialógicas’, inspiradas no trabalho desenvolvido sobretudo na área da saúde mental.

O ‘Co-Planeamento Capacitante’ pretende assegurar que as pessoas em situação de marginalização possam viver as suas vidas e a sua cidadania sem limitações. A redistribuição de poder é central para este processo: as pessoas ‘capacitadas’ não têm necessariamente mais competências do que quando as conhecemos, mas terão necessariamente mais poder sobre a sua vida.

Por outro lado, complementarmente, as ‘Práticas Dialógicas’ constituem um instrumento-chave para as práticas de coplaneamento dialógico e capacitante (Seikkula e Arnkil, 2006). Primeiramente adotadas no âmbito da psicologia social, dão origem a conhecimentos e instrumentos para a intervenção social, na qual as partes estão envolvidas numa relação igualitária e em que nenhuma delas poderá reclamar ser a detentora da descrição mais verdadeira ou fidedigna de

um dado evento ou situação. Apoiando-se nestas premissas, as ‘Práticas Dialógicas’ permitem o desenvolvimento de uma relação entre profissionais e pessoas beneficiárias que não lhes retire poder, mas antes tenha os seus desejos, necessidades, capacidades, projetos e visões sobre a vida em consideração.

As intervenções devem, assim, considerar os recursos da pessoa, os seus interesses, valores pessoais, etc. Envolver as pessoas, trabalhando com elas individualmente com o objetivo de reforçar as relações positivas, fomentar a autodeterminação e o sentimento de pertença entre os/as participantes e reconhecer as suas perspetivas; todos estes aspetos são importantes.

Determinadas culturas profissionais evitam, por vezes, estas possibilidades porque consideram que os/as profissionais devem estar sistematicamente no controlo para que o processo se desenvolva exatamente como planeado. Nesse tipo de abordagem, as contingências, as mudanças e as incertezas são consideradas como fatores perturbadores. Os sistemas sociais existentes, que apoiam as pessoas socialmente excluídas, têm sido identificados como podendo constituir, em si mesmos, um fator de exclusão. Os requisitos e as sanções impostas às pessoas destinatárias são frequentemente entendidos como um lembrete da sua incapacidade pessoal, podendo conduzir ao estigma e à exclusão auto impostos (Maini Thorsen, 2018; Ramsdahl, et al., 2018). Como sublinham Curto e Stefani (2021) a culpabilização é um aspeto central da apreciação coletiva sobre o estar em situação de sem-abrigo, o que dificulta as possibilidades deste grupo heterogéneo avançar na realização das suas necessidades, preferências, sonhos e opiniões. A tomada de consciência acerca das raízes culturais inscritas nas atuais políticas e serviços sociais seria um passo importante na direção de um bem-estar baseado em direitos, visando o empoderamento das pessoas beneficiárias.

Para além disso, e considerando que a intervenção precoce também procura promover o empoderamento, é necessário que o /a profissional adote uma postura dialógica. Tal implica assumir que pode não ter o melhor conhecimento acerca do objetivo e de como lá chegar. Assim, o/a profissional não deverá procurar apenas orientar mas sim também apoiar. Só através desta perspetiva, a pessoa será apoiada

na construção do futuro desejado, mais autêntico e com objetivos definidos.

Com esta expetativa, torna-se evidente que a avaliação e potencial reformulação das metodologias e práticas utilizadas no trabalho de intervenção poderá ser uma mais-valia. As ‘Práticas Dialógicas’ e a metodologia do ‘CoPlaneamento Capacitante’ implementadas no projeto HOOD visam oferecer uma perspetiva inovadora e ferramentas coerentes nesta matéria.

A abertura de espaços sem respostas pré-definidas, o acontecer de coisas que não foram planeadas, o repensar e a mudança de caminho pela pessoa beneficiária são elementos bem-vindos. Todos eles fazem parte do processo de redefinir os significados que os/as profissionais devem promover e não dificultar.

Espera-se que as reflexões metodológicas sobre redistribuição de poder e intervenção precoce funcionem de forma articulada. Com efeito, a redistribuição do poder deve ser implementada desde o primeiro contacto com as pessoas em situação de sem-abrigo, de modo a desenvolver um percurso coerente, orientado para o empoderamento das pessoas e para o alargamento das suas escolhas e possibilidades de vida.

Por último, deve salientar-se que tal mudança de paradigma será certamente alavancada se acompanhada por uma mudança de paradigma ao nível das medidas de política e, claro, dos mecanismos de apoio (incluindo financeiros) que estão na base das práticas de intervenção.

Baptista, I. and Marlier, E. (2019), “Fighting homelessness and housing exclusion in Europe: A study of national policies”, European Social Policy Network (ESPN), Brussels: European Commission. Available at: https:// op.europa.eu/pt/publication-detail/-/publication/2dd1bd61-d834-11e99c4e-01aa75ed71a1/language-en.

Curto N. and Stefani S. (2021), “Per un welfare delle aspirazioni: il progetto HOOD Homeless’s Open Dialogue”, Epale Journal, v. 9, pp. 108-115.

Gaetz S. and Dej E. (2017), A New Direction: A Framework for Homelessness Prevention. Toronto: Canadian Observatory on Homelessness Press. Available at: https://www.homelesshub.ca/sites/default/files/ attachments/COHPreventionFramework_1.pdf

Maini-Thorsen, Af Anne-Sofie (2018), Jeg kan godt lide, når jeg kan dufte, at jeg har vasket fingre – En eksplorativ undersøgelse af kvinders erfaring med hjemløshed [I like the smell of soap after washing my hands: an exploratory study of women’s experiences of homelessness], København, Projekt Udenfor. Available at: https://udenfor.dk/wpcontent/uploads/2018/08/En-eksplorativ-undersøgelse-af-kvinderserfaringer-med-hjemløshed_til-download.pdf.

Pleace, N. (2016), “Exclusion by Definition: The Underrepresentation of Women in European Homelessness Statistics”, Mayock, P. and Bretherton, J. (Eds.) Women’s Homelessness in Europe, pp.105-126, London: Palgrave Macmillan.

O apoio da Comissão Europeia à produção desta publicação não constitui um endosso do conteúdo, que reflete apenas as opiniões dos autores, e a Comissão não pode ser responsabilizada por qualquer uso que possa ser feito das informações nela contidas.

Ramsdahl, A.; Vesterbøg, T.; Kirkegaard, A. (2018), Ung og UDENFOR –erfaringer efter tre års arbejde med unge hjemløse på gaden [Young and OUTSIDE – experiences after three years of working with young homeless people], 2018, København, Projekt Udenfor. Available at: https://udenfor. dk/wp-content/uploads/2018/08/UngogUDENFOR_samletpdf.pdf.

Seikkula, J., Arnkil T. (2006) Dialogical Meetings in Social Networks London, Routledge.

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CIMEIRA DAS PESSOAS: Não há Europa Social sem Direitos Sociais Colocar as pessoas no centro das políticas

Por Fátima Veiga, Coordenação da Unidade de Projetos e Políticas Nacionais e Comunicação e Paula Cruz, Coordenação da Unidade de Projetos e Políticas Europeias da EAPN Portugal

AUnião Europeia anunciou o Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais (PEDS) em 2021, convertendo os 20 princípios e direitos do Pilar em ações concretas, em benefício das pessoas que vivem na UE. O objetivo final do Plano de Ação é alcançar uma Europa social forte, justa, inclusiva e cheia de oportunidades. No entanto, a sua aplicação tem carecido de resultados visíveis em toda a Europa.

Portugal incluiu a segunda Cimeira Social do Porto como prioridade para o Programa de Trabalho da Comissão 2023 e, ao fazê-lo, assume mais uma vez que está empenhado na implementação do Plano de Ação e das suas metas.

O Plano de Ação já conduziu a resultados positivos em termos de política social a nível nacional: conduziu à criação da Estratégia Portuguesa de Combate à Pobreza, que tem agora de ser posta em prática e acompanhada de forma participativa pelas pessoas em situação de pobreza. A EAPN acredita que esta é uma oportunidade para criar uma verdadeira cultura de participação para as Pessoas em situação de Pobreza e para as entidades da sociedade civil que trabalham diretamente com elas. Foi também aprovado este ano o Plano Nacional da Garantia para a Infância, e mais recentemente a Agenda do Trabalho digno. Foram por isso dados passos significativos no que diz respeito à concretização do Pilar. Mas será que esses passos têm real significado na vida das pessoas?

Para responder a esta e outras questões e na antevisão da Cimeira (Fórum) Social do Porto que decorreu em maio, a Rede Europeia Anti Pobreza Portugal (EAPN Portugal) e a Rede Europeia Anti Pobreza Europa (EAPN Europa) acolheram a Cimeira das Pessoas, no Porto, a 17 de março.

A Cimeira das pessoas reuniu pessoas em situação de pobreza, associados, decisores políticos e organizações sociais de base para avaliar a implementação do Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais (PEDS), através de vários workshops e sessões plenárias. Um exemplo vivo do que é a participação ativa, tal como referiu a Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho na sessão de abertura.

Citando Juliana Wahlgren, Diretora da EAPN Europa: pretendemos trazer uma nova metodologia para uma Conferência Política: queríamos tentar uma abordagem mais inclusiva, uma perspetiva bottom up e defender uma verdadeira democracia deliberativa no processo de monitorização e avaliação do PEDS e do seu Plano de ação. Nas palavras do Presidente da EAPN Portugal, Agostinho Jardim Moreira [esta] é uma oportunidade para reduzir o alheamento e o distanciamento sentido por parte de muitos cidadãos em relação às instituições europeias, procurando mobilizar as mesmas para causas que verdadeiramente interessem às pessoas.

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Principais mensagens-chave*

# É necessário definir e implementar uma Estratégia Europeia de Combate à Pobreza e à Exclusão Social que enfrente as causas estruturais da pobreza, inclua medidas preventivas e promova os direitos de todas as pessoas.

# É necessário investir no apoio e acompanhamento social, com medidas preventivas e uma visão holística de intervenção nas áreas do bem-estar, com menos burocracia e mais próxima das pessoas, visando o seu desenvolvimento integral.

# O Pilar Europeu dos Direitos Sociais deve ser reforçado por documentos vinculativos, como uma Diretiva-quadro sobre o Rendimento Mínimo e uma Diretiva relativa à Proteção dos Serviços Públicos Universais.

# A justiça fiscal é um instrumento essencial para a redistribuição de riqueza e diminuição das desigualdades, e para financiar Estados-providência sustentáveis.

# O acesso a medidas adequadas de rendimento (rendimento mínimo e salários mínimos) é essencial para garantir o acesso a uma vida digna e aos bens e serviços essenciais.

# A luta contra a pobreza só será eficaz se os mecanismos de governação incluírem uma participação efetiva das pessoas em situação de pobreza, em toda a sua diversidade, tanto na fase de conceção das políticas como nas fases de execução,

# A promoção da literacia digital deve ser acompanhada de um acesso físico a serviços essenciais de qualidade acessíveis e disponíveis para todos.

O maior desafio do Plano de Acão do Pilar Europeu dos Direitos Sociais é a sua concretização: foram traçados princípios, acreditando que o acesso ao mercado de trabalho, às condições justas de trabalho e o acesso à proteção social, juntamente com o princípio da igualdade de género e de oportunidades são ferramentas suficientes para o combate à pobreza e a promoção da inclusão social (Juliana Wahlgren, Diretora da EAPN Europa). Sabemos hoje, em 2023, que estas ferramentas podem não ser suficientes. Temos de nos debater pela justiça social e económica e a redistribuição equitativa do rendimento e dos recursos disponíveis.

Sabemos que não é uma utopia, que é apenas a vontade (ou a falta dela) de inaugurar um novo paradigma e para tal momentos como o da Cimeira das pessoas devem repetirse e deve ser dada a oportunidade às pessoas debaterem estes temas a partir da sua experiência, das dificuldades que sentem e das suas necessidades.

O caminho da União Europeia com os desafios que enfrenta devido às consequências da guerra e às questões do novo alargamento a Leste deve permanecer na senda da coesão social e da convergência social ascendente. Manter o Pilar Europeu dos Direitos Sociais como instrumento central na defesa de uma Europa Social será uma boa aposta. Aguardamos com expetativa a implementação dos princípios do Pilar no horizonte 2030

*As conclusões da Cimeira das Pessoas estão publicadas em português e podem ser consultadas na página da EAPN Portugal (www.eapn.pt).

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“O Futuro tem de ser Social”

AEAPN Portugal e a EAPN Europa estiveram presentes no Fórum Social do Porto que decorreu nos dias 26 e 27 de maio. A realização do Fórum Social do Porto foi um compromisso assumido pelo Governo Português e pretendeu ser um momento de balanço do plano de ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais apresentado em 2021 e reafirmar o compromisso dos Estados Membros com o cumprimento do Pilar e das 3 metas estabelecidas: Aumentar a taxa de emprego da população entre os 20 e os 64 anos para, pelo menos, 78%; Elevar a taxa anual de participação de adultos em educação e formação para, pelo menos, 60%; Reduzir a população em risco de pobreza ou exclusão social, resgatando a essa condição um mínimo de 15 milhões de pessoas, incluindo cinco milhões de crianças. António Costa, primeiro-ministro de Portugal, referiu no seu discurso de abertura no dia 27 que este foi o compromisso mais abrangente e ambicioso alguma vez alcançado na União Europeia em termos sociais – o Compromisso Social do Porto2

O balanço do Plano de ação do Pilar Europeu torna-se, por isso, imperioso, não só porque há compromissos que foram assumidos e que precisam de ser concretizados, ao nível europeu e ao nível dos Estados membros, mas também porque desde 2021 foram vários os acontecimentos que abalaram a Europa e que impuseram, e ainda impõem, desafios ao nível político, económico, social e ambiental. Não é por isso estranho que muitos dos discursos iniciais tenham apelado ao reforço da agenda social pois corremos um sério risco de repetir erros do passado em que o social foi secundarizado face a outras agendas, nomeadamente, a agenda económica.

Nicholas Schmit, Comissário Europeu para o Emprego e Direitos Sociais, destacou no seu discurso as várias iniciativas que foram sendo colocadas em prática e que concretizam o pilar e os seus vários princípios. No entanto, destacou também os riscos ainda existentes de que não se consiga uma efetiva economia e sociedade justa e inclusiva, o que pode levar ao agravamento das desigualdades e ao aumento do populismo. É de realçar igualmente o destaque dado pelo Comissário à presença dos parceiros sociais e à sociedade civil no Fórum o que, para organizações como a EAPN Portugal e a EAPN Europa, presentes, é visivelmente positivo, uma vez que a sociedade civil ainda se debate

por dificuldades em termos de participação efetiva nos processos de decisão nacionais e europeus. O destaque ao papel da sociedade civil foi reiterado por Oliver Ropke, Presidente do Comité Económico e Social Europeu, que referiu que uma sociedade civil saudável e vibrante é um sinal de uma democracia saudável, destacando deste modo que a sociedade civil e os parceiros sociais têm o papel ideal para apoiar os decisores políticos.

O anseio por uma Europa capaz de compromissos sociais concretos foi realçada pelo Vice-presidente do Parlamento Europeu, Pedro Silva Pereira. É preciso enfrentar o escândalo das desigualdades e as metas estabelecidas pelo plano de ação do Pilar só fazem sentido à luz de uma cultura de avaliação dos resultados. Um apelo que a EAPN muito defende, pois só conseguiremos medir o impacto das várias iniciativas e medidas implementadas se estas forem adequadamente monitorizadas, avaliadas, e ajustadas quando necessário. Pedro Silva Pereira destacou a voz forte do Parlamento Europeu (órgão por excelência eleito pelos cidadãos e cidadãs de todos os Estados Membros) em favor de uma agenda social para a Europa, respondendo assim ao apelo direto das pessoas.

O plano de ação do Pilar só faz sentido se os Estados Membros desenvolverem uma ação conjunta no seu cumprimento, o que exige necessariamente que ao nível nacional se implementem medidas que deem corpo ao Pilar e aos seus princípios. Ana Mendes Godinho, Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, destacou algumas das medidas recentes implementadas pelo Governo Nacional nesse sentido. No entanto, apesar dos vários passos conseguidos estes visam a concretização de vários objetivos que ainda estão longe, a nosso ver, de serem efetivamente alcançados. Ana Mendes Godinho realçou, por exemplo, que é necessário reiniciar alguns pressupostos nos Estados Providência; que devemos garantir que a Garantia para a Infância deve efetivamente cortar ciclos de pobreza; que os jovens devem ser valorizados no trabalho e devemos enfrentar a precariedade; que as mulheres precisam de ser libertadas no mercado de trabalho e devem ser promovidos direitos iguais; que as pessoas idosas precisam de respostas diferentes. As medidas já implementadas, como a Garantia para a Infância, a Agenda do Trabalho Digno, a própria Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (para

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Por Paula Cruz, Coordenação da Unidade de Projetos e Políticas Europeias da EAPN Portugal
▪ NA EUROPA

indicar algumas) são caminhos iniciados que precisam de ser monitorizados, efetivamente concretizados, de forma a permitir alcançar uma efetiva melhoria nas condições de vida das pessoas.

Este discurso, claramente positivo, que a Ministra Ana Mendes Godinho fez, desperta uma das preocupações que a EAPN apresentou no Side Event do Fórum Social no dia 26 3: de que o Plano de Ação do Pilar não é um documento obrigatório, ou seja, não obriga os países a nada (a não ser quando estão em causa Diretivas, como a Diretiva dos Salários Mínimos). Portugal pode estar a fazer um caminho, mas as metas a alcançar são europeias e Portugal é um dos 27 Estados Membros. Na Cimeira das Pessoas, estas mostraram que estão exaustas e se sentem pressionadas pelas múltiplas e implacáveis crises que enfrentamos. As respostas encontradas pelos decisores políticos da UE/ Europa não são adequadas e não são suficientes para gerar uma mudança efetiva na vida das pessoas. É por isso que uma das principais recomendações aos Estados-Membros que resultou da Cimeira das Pessoas, e que quisemos destacar no Fórum de maio, é que chegou o momento de implementar mudanças estruturais a longo prazo e de colocar as pessoas no centro das políticas. As medidas de emergência não são suficientes. Não podemos combater eficazmente a pobreza e conseguir mudanças sociais com medidas de emergência consecutivas.

Outros dos apelos que a EAPN apresentou centraram-se no investimento em medidas de rendimento adequado (salários e rendimento mínimo). Se queremos assegurar uma real inclusão das pessoas e quebrar ciclos viciosos de pobreza, precisamos de garantir proteção social adequada para todos e acesso a um mercado de trabalho com salários dignos e boas condições laborais.

O acesso aos serviços essenciais de qualidade e a preços acessíveis foi outra das dimensões abordadas pela EAPN, especialmente na defesa dos mesmos enquanto serviços universais, sem exceção, e complementados com medidas específicas para os grupos vulneráveis, em particular no contexto de crises múltiplas e em relação à ligação entre pessoas saudáveis e um planeta saudável no âmbito do Pacto Ecológico Europeu.

Como mensagem final da EAPN neste Fórum realçamos a importância de se definir uma Estratégia Europeia de Combate à pobreza, apoiada por instrumentos vinculativos e processos concretos de participação de todos os atores. A luta contra a pobreza só será eficaz se os mecanismos de governação incluírem uma participação efetiva das pessoas em situação de pobreza, em toda a sua diversidade, tanto na fase de conceção das políticas como nas fases de execução, monitorização e avaliação. Agostinho Jardim Moreira, Presidente da EAPN Portugal, referiu na Cimeira das Pessoas que lutar contra a pobreza é lutar pelo desenvolvimento integral de todo o ser humano,baseadonumfortecompromissodeumaparticipação efetiva dos cidadãos! 4

Do ponto de vista dos decisores presentes no encontro, foi assinada uma Carta Aberta5 por 37 líderes europeus, na qual foram renovados os compromissos da Cimeira Social do Porto para 2030 e a organização bianual de um Fórum Social de balanço do Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais.

Reiteramos as palavras do Comissário Nicholas Schmit de que o Futuro tem de ser social, mas para isso a EAPN considera que precisamos de encarar efetivamente o Social como investimento e fazer da luta contra a pobreza um desígnio europeu e consequentemente, um desígnio nacional.

2 O Compromisso Social do Porto foi assinado a 7 de maio de 2021 e representa o compromisso com o cumprimento do plano de ação do Pilar e as três metas definidas e a serem alcançadas até 2030. O documento está disponível para download na página da Cimeira Social de 2021: https://www.2021portugal.eu/pt/cimeira-social-do-porto/ compromisso-social-do-porto/

3 A comunicação da EAPN Portugal e da EAPN Europa no Fórum Social do Porto está disponível na íntegra na página da EAPN Portugal: www. eapn.pt

4 O documento de Conclusões da Cimeira das Pessoas está disponível na página da EAPN Portugal: www.eapn.pt

5 A Carta Aberta está disponível no Portal do Governo: https://www. portugal.gov.pt/pt/gc23

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Nicholas Schmit no Fórum Social do Porto, 27 de maio 2023
NA EUROPA ▪

A APOSTA NA GARANTIA PARA A INFÂNCIA uma aposta da

União

Europeia que Portugal não pode desperdiçar

Por Fátima Veiga, Coordenação da Unidade de Projetos e Políticas Nacionais e Comunicação da EAPN Portugal

Apobreza infantil distingue-se de outras formas de pobreza dado que afeta uma categoria social – as crianças – que se caracterizam por uma dupla dependência dos adultos, biológica e social, que as torna mais suscetíveis à pobreza (probabilidade acrescida de se encontrarem em situação de pobreza, em relação a outras categorias sociais) e mais vulneráveis aos efeitos desta na sua vida, no curto como no longo prazo. Por razões conjunturais e estruturais, justifica-se, portanto, a alocação de recursos às áreas da infância e da pobreza infantil com um quadruplo objetivo: i) de minorar e esbater a intensidade da pobreza infantil, contribuindo para o seu alívio; ii) de retirar crianças da situação de pobreza infantil; iii) de avaliar as ações e políticas públicas com impacto na formação e reprodução da pobreza infantil de maneira a aumentar a eficácia dos recursos gastos nestas áreas, reduzindo gastos desnecessários; iv) e de combater as situações de risco e de dano associadas a alguns perfis específicos de pobreza infantil.

A necessidade de implementar uma Garantia para a Infância não é algo novo do ponto de vista da abordagem da União Europeia, e recordemos a recomendação da Comissão de 20 de fevereiro de 2013, denominada “Investing in Children: breaking the cycle of disadvantages. Mas apesar de já nessa altura a Comissão falar em “investimento” desde então não foram dados passos muito concretos nesse sentido e apenas agora estamos prestes a assistir a um real investimento nas crianças da Europa, sobretudo das mais vulneráveis.

A Garantia Europeia para a Infância é uma das prioridades do plano de ação para implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais que estabeleceu como objetivo reduzir, até 2030, em cinco milhões o número de crianças em risco de pobreza ou exclusão social. A Garantia Europeia para a Infância é assim o primeiro instrumento político ao nível da UE contra a exclusão na infância. Um dos vinte princípios do Pilar, o princípio 11 estabelece que «as crianças têm direito a uma educação pré-escolar a preços acessíveis e a estruturas de acolhimento na primeira infância de qualidade» e «as crianças têm direito à proteção contra a pobreza. As crianças oriundas de meios desfavorecidos têm o direito a medidas específicas para reforçar a igualdade de oportunidades».

Sabemos que a desvantagem e a exclusão social nas idades mais precoces têm um forte impacto no futuro sucesso das crianças (quer em termos escolares, quer em termos de empregabilidade futura), criando assim um círculo vicioso de desvantagem.

Apesar dos recentes desenvolvimentos positivos, a pobreza infantil e os ciclos de pobreza intergeracional continua a ser um problema na União Europeia, agravado pela situação pandémica que vivemos recentemente e pelo atual contexto de guerra e as suas consequências do ponto de vista económico.

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Segundo dados publicados pelo Eurostat em setembro de 2022 existiam 24.4% de crianças na União Europeia em risco de pobreza ou exclusão social em 2021 e prevê-se que a crise da COVID-19 que enfrentamos recentemente e cujas consequências ainda não conseguimos avaliar, venha exacerbar as desigualdades já existentes.

O Plano de Ação para o Pilar Europeu dos Direitos Sociais definiu a meta ambiciosa de reduzir em cinco milhões, até 2030, o número de crianças em risco de pobreza ou exclusão social, o que foi reforçado na Cimeira Social do Porto em 2021. A Garantia Europeia para a Infância é um importante passo em direção a esse objetivo. Precisamos de uma ação concertada para assegurar que combatemos as desvantagens e a exclusão durante os primeiros anos das crianças, a fim de lhes garantir um futuro mais promissor na idade adulta.

# garantir um acesso equitativo e inclusivo às atividades em contexto escolar, incluindo a participação em visitas de estudo e atividades desportivas, recreativas e culturais;

# implementar programas acessíveis de promoção da saúde e de prevenção de doenças destinados às crianças necessitadas e às suas famílias;

# proporcionar às crianças necessitadas e às suas famílias um acesso prioritário e atempado a habitações sociais ou à ajuda à habitação.

Do ponto de vista nacional e para dar resposta à recomendação, Portugal enviou para a Comissão um Plano de ação até 2030 que foi aprovado em janeiro de 2023. No Plano de ação há uma meta de redução da pobreza monetária das crianças: retirar 170.000 crianças da situação de pobreza monetária até 2030. Do ponto de vista de modelo de intervenção este Plano de Ação terá ainda uma concretização territorial através da criação de Núcleos para a garantia para a infância, no âmbito dos conselhos locais de ação social, para promover uma abordagem integrada e multidisciplinar que assegure,

efetiva e atempadamente, uma resposta às situações concretas, mobilizando a rede social local e de proximidade. O Governo português apresentou o Plano de Ação da Garantia para a Infância no dia 6 de fevereiro de 2023, destacando-se as seguintes áreas de intervenção:

# Educação e Cuidados na Primeira Infância: Implementação do Programa de Saúde Mental e Parentalidade no Apoio aos Cuidados de Saúde Primários: garantir creches gratuitas para todos;

# Educação: Fornecimento de equipamentos necessários na escola; criação de “espaços de estudo acompanhados”; implementação da educação informal e não formal;

# Cuidados de Saúde: Acesso a consultas de proximidade nos serviços de Cuidados de Saúde Primários; acesso gratuito a instalações de saúde mental para crianças em situação de pobreza; alargamento dos programas de prevenção do suicídio;

# Nutrição: Fornecimento de uma refeição gratuita na escola todos os dias; iniciativas sobre alimentação saudável;

A recomendação que foi adotada a 14 de junho de 2021 estabelece uma série de medidas propostas aos EstadosMembros, a saber:

# criar um quadro político para combater a exclusão social das crianças;

# identificar e eliminar os obstáculos financeiros e não financeiros à participação na educação e no acolhimento na primeira infância, na educação e nas atividades em contexto escolar;

# fornecer, pelo menos, uma refeição saudável por dia letivo;

# assegurar o fornecimento de material didático, incluindo instrumentos educativos digitais, livros, uniformes ou outro vestuário necessário;

# providenciar transporte para os estabelecimentos de educação e de acolhimento na primeira infância e para os estabelecimentos de ensino;

# Habitação: Implementação do Programa de Apoio ao Acesso à Habitação; acesso a soluções de habitação de emergência ou de transição;

# C ategorias especificas de crianças e jovens especificamente vulneráveis: Crianças em situação de abandono ou privação habitacional severa; Crianças e jovens com deficiência, Crianças e jovens oriundas da imigração; Crianças e jovens provenientes da Ucrânia, Crianças e Jovens de comunidades ciganas; Crianças integradas em estruturas de acolhimento alternativas.

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ÚLTIMA HORA

EAPN Portugal vai promover XV Fórum Nacional de Combate à Pobreza e Exclusão Social

2023 marca a 15ª edição do Fórum Nacional de Combate à Pobreza e Exclusão Social da EAPN Portugal. O nosso país enfrenta uma situação social desafiante: aos problemas estruturais já existentes, acresce ainda a subida dos preços da energia, dos bens alimentares, dos combustíveis. Contextos que geram impactos diretos e imediatos nas famílias.

É, por isso, necessário debater e refletir sobre estes problemas, para que se encontrem soluções estruturantes, sempre com as pessoas no centro. Assim, o Fórum Nacional pretende ser um momento de reflexão com as pessoas em situação de pobreza, para promover a discussão e a reflexão acerca do impacto do aumento dos bens essenciais na vida das pessoas. Vai, também, focar-se na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030, dando a conhecer o seu plano de ação.

Para além desta reflexão, a organização vai também realizar a Cerimónia de atribuição da V Edição do Prémio de Jornalismo: Analisar a Pobreza na Imprensa. Esta iniciativa tem como objetivo distinguir profissionais que, através do seu trabalho, contribuem para um melhor conhecimento das situações de pobreza e de exclusão social e trabalhos publicados que “retratem e/ou promovam uma imagem real da pobreza e da exclusão social” no sentido de facultar uma clara informação sobre estas realidades nomeadamente, sobre as suas causas, as suas consequências, as suas formas de expressão e alguns indicadores que explicam estas situações.

Em 2023, o evento vai ser realizado em Coimbra, entre os dias 17 e 18 de outubro.

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Por Inês Duarte

Presidente da EAPN Portugal recebe distinção por Mérito Social

O Presidente da EAPN Portugal / Rede Europeia Anti-Pobreza, Agostinho Jardim Moreira, recebeu, no dia 18 de junho, o Galardão de Mérito Social por parte do Círculo Católico de Operários do Porto. A distinção foi entregue durante a Sessão Solene Comemorativa do seu 125º aniversário.

A distinção ao Presidente é-lhe atribuída, de acordo com a organização, “pelos serviços relevantes, que tem prestado à comunidade local, através da Rede Europeia Anti-Pobreza”.

Para Agostinho Jardim Moreira, esta distinção representa “um reconhecimento do trabalho desenvolvido pela EAPN Portugal”. Demonstra que o trabalho da instituição continua a promover soluções eficazes no combate à pobreza por todo o país.

“É um reconhecimento pelos mais de 30 anos a que nos propomos lutar pelo desenvolvimento integrado da pessoa humana de uma forma estrutural e multidisciplinar”, no contexto do combate à pobreza e exclusão social, explica o Presidente da EAPN Portugal..

Ficha Técnica

FOCUSSOCIAL Revista semestral | junho de 2023

Diretor Agostinho Cesário J. Moreira

Subdiretora Maria José Vicente

Editora Inês Duarte

Conselho editorial Fátima Veiga, Joaquina Madeira, Maria José Vicente, Elizabeth Santos e Inês Duarte

Fotografia Inês Duarte, Círculo Operário de Católicos do Porto, Maria Cecília Monteiro, Projeto 3ESC.E8G, Projeto Redes na Quint@ E8G, pxhere.com

Infografia Observatório Nacional de Luta Contra a Pobreza

Capa Fotografia pxhere.com

Design e paginação makeup design | augusto pires© Sede da redação/editor Rua Costa Cabral, 2368, 4200 – 218 Porto | Tel: +351 225 420 804

E-mail redação: comunicacao@eapn.pt

Site: www.focussocial.eu

Apoio administrativo: Paula Amaral

Apoio à edição Paulo Sérgio Santos

Redação comunicacao@eapn.pt

Propriedade EAPN Portugal

NIF: 502866896

Periodicidade semestral

Depósito legal ???????????

ISSN 2182-1224

Nº Registo ERC 126146

Preço 5€

Tiragem 2.000 exemplares

Impressão ???????????

Os textos escritos ao abrigo do anterior AO são da responsabilidade dos seus autores.

Todos os artigos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores, não coincidindo necessariamente com a opinião da direção da EAPN Portugal, promotora deste projeto editorial.

Estatutos Editoriais: A FocusSocial é uma revista especializada em economia social; defende a liberdade de expressão e a liberdade de informar, bem como repudia qualquer forma de censura ou pressão, seja ela legislativa, administrativa, política, económica ou cultural; é uma revista com convicções, mas independente de todos os poderes, manifestando esse espírito de independência também em relação aos seus eventuais apoiantes; entende que as publicações de natureza informativa devem ser independentes porque só assim cumprem a sua função essencial perante a sociedade; participa no debate das grandes questões que se colocam à sociedade portuguesa na perspetiva da construção do espaço europeu e de um novo quadro internacional de relações, no que concerne às políticas sociais; é responsável apenas perante os leitores, numa relação rigorosa e transparente, autónoma do poder político e independente de poderes particulares; entende que é determinante dar visibilidade ao trabalho efetuado pelas organizações não-governamentais, numa perspetiva independente e objetiva, divulgando boas práticas; tem e terá presente os limites impostos pela deontologia dos jornalistas, pela ética profissional e pelo Código Deontológico do Jornalista; inscreve-se numa tradição europeia de jornalismo exigente e de qualidade, recusando o sensacionalismo e a exploração mercantil da matéria informativa.

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