DIGESTO ECONÔMICO, número 376, janeiro e fevereiro 1996

Page 1


T)úrioInformátíca A MELHOR OPÇÃO

PARA SALVAR

O SEU PROGRAMA

Para obter o melhor retorno do seu investimento em publicidade, é preciso direcionar o seu anúncio ao público interessado.

Anunciando no Diário Informática, você atinge o seu público-alvo diretamente. Afinal quem se interessa por informática lê o Diário Informática.

Para salvar esta informação é só acessar

Diário do Comércio

Publicidade Comercial

Presidente

Élvio Aliprandi

ISSN 0101-4218

Antonio Gontijo de Carvalho {1947=f1973)

Diretor:

João de Scantimburgo

Administração industrial:

Francisco Cantero

Capa: (Criação e Produção}

Sandra Vastano

Redação e Administração:

Rua Boa Vista, 51-9« andar tels.: 224-3274 - 244-3092

teíex: (011) 1123355

Editoração Eletrônica:

Cesar D’Amico

Publicidade:

Gerente de Publicidade Comerciai

Maury Demange

Rua Galvão Bueno, 83 - São Paulo

CEP 01506-000

TeL: 242-6618

Telex 1132446 - Fax 242-6625

Assinaturas: Tels.; 242-6616-Fax 242-6625

Edições Atrasadas:

(Preço da última edição)

TeL; 270-9366 - 242-6627

Atendimento a Assinantes: TeL: 270-9366 - 242-6627

I

A busca da unicidade tributária tem uma antiga e respeitável tradição na história econômica.

Os editores

A batalha do Imposto Editorial

O Imposto Único

Marcos Cintra

Voltaire, o revolucionário

Joáo de Scantimburgo

Que Brasil é este?

Benedicto Ferri de Barros 30

Agricultura, reforma agrária e ideologia

Roberto Campos

u e água benta José Sarney

O homem em questão Milton Vargas 40

A condenação de Jesus

Carlos Aurélio Mota de Souza

A lei n° 8.971 e suas repercussões no Direito Civi Amoldo Wald

Soluções para o Nordeste Ciro Gomes

A ductibilidade do Capita Oliveiros S. Ferreira 55

A família evolui

Maria Coleta Oliveira

Composição e Impressão: Oficinas do Às vésperas do século XXI Alexander Soljenitzyn IXfSHODoCoMârao

Rua Galvão Bueno, 83

TeL: 242-6614 - 242-6615

Liberdade - SP - CEP 01506-000

Publicação bimestral daAssociaçâoComercial de São Paulo dedicadaà análise e discussão de assuntos políticos, econômicos, jurídicos e sociais que interessam ao empresário, bem como à sociedade em gerai.

A floresta e o homem Amazonino Mendes 62

A lição do Visconde de Mauá

Barbosa Lima Sobrinho

Vem de longe, vem das brumas remo tas da História, quando a vida em sociedade começou a se organizar e a se impor o registro das relações do )oder com os súditos, apresençados tributos, para atender às necessida des coletivas. Quem percorre essa mestra, a História, nela encontra, invariavelmente, o coletor, isto é, o Estado, arrecadando impostos e ta xas. Os especialistas em tributação conhecem os mais variados exem plos a nos fornecerem das tentativas para reduzir impostos, mas sempre o Estado, insaciável glutão, quer mais, e nunca, ao que nos constCy até hoje, se chegou a um sistema perfeito de tributação. Os chineses, os assírios e

3abilônicos, os egípcios, os persas, os gregos, os judeus, os romanos, enfim, os Impérios e os Estados nâo encontraram até hoje a fórmula prática ou, se se quiser, mágica, que resulte num sistema racional de exaçáo de impostos ou de um só imposto. O ameriHenry George, com discípulos no Brasil, e discípulos armados, na época em que atuaram, de meios de comunicação, não teve êxito. Inúmeras reformas foram até hoje realizadas na sistemática tributária brasileira — para ficarmos apenas em nosso país—sem que não tivesse tombado sobre o povo 0 peso do chumbo da irracionalidade. Daí, a sonegação ter se tornado no Brasil um hábito tão profundo, com rizomas extensos, no passado, que é difícil combatê-la. Evidentemente, ninguém gosta de pagar impostos, sobretudo quando sao conside rados extorsivos. Mas nao há quem nao saiba que o imposto é, rigorosamente, necessário. O governo

cano

Fernando Henrique Cardoso, cuja vitória não ofere cia dúvida, deveria ter-se iniciado com uma reforma tributária pronta e acabada para ser submetida ao Congresso Nacional. Seu governo já transcorreu um ano e quatro meses e ainda não temos a reforma, na medida em que o País dela necessita. É uma lacuna ^rave, de cuja dimensão o presidente da República e seus colaboradores, especialmente na área em' ques tão, se dão conta, como contas se dão os membros do Congresso. Mas a realidade é que nos falta uma reforma tributária tanto quanto possível qüânime. Das muitas propostas até hoje elaboradas, a que nos parece mais racional, mais prátia, mais próxima da verdade—ou do que possamos denominar verdade—

saúde do País. A proposta do A realidade é professor Marcos Cintra é, no yyg falta entanto, bem-feita, bem-arti- uma reforma tributária cuiaaa, Dem-oonauzioa a um im. O governo ganharia muito se a adotasse. contribuição à consecução poSSÍvel desse objetivo, publicamos eqüânime neste número o abalizado traComo tanto quanto palho do professor Marcos Cintra, sobre 0 Imposto Único. Ficara documentado nas páginas do DIGESTO ECONÔ MICO esse louváve esforço, que, fosse compensado com sua aceita^, tributária é a do professor Marcos Cintra, o Imposto . traria vant^ns ao Tesouro Nacional e Único. O governo apropriou-se da idéia, deformou-a e ao povo. Outras colaborações pôsemvigorofamosoIPMEqueorninistroAdibJatene petam este número da cinqüentenária se comquer ressuscrtar para acudrr ao buraco do sistema de revista.

O Imposto tJnico revela ser uma excelente alternativa para a reforma tributária

0 IMPOSTO UNICO

VIarcos Cintra

49, é doutor em Economiapela Universidade de Harvard (EUA), vereador da cidade de São Paulo pelo PL eprofessor titular da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi secretário de Planejamento e de Privatização e Parceria do Município de São Paulo (administração Paulo MaluJ). E Presidente Estadual do Partido Liberal (PL).

i) DNTRODUÇÃO

No momento em que o assunto que mais movimenta o mundo político, o empresariado, a imprensa e a sociedade em geral são as propostas de reforma consti tucional enviadas pelo governo ao Congresso Nacional, é útil lembrar a proposta do Imposto Único, como alternativa a ser considerada, exa minada, sem preconceitos, e inte grada ao capítulo da reforma do sistema tributário nacional.

Desde que o tema foi colocado para debate, em janeiro de 1990, em artigo puhíicaáonaFolhadeSãoPaulo (‘Tor uma revolução tributária”, 14/01/90), a polêmicatemsidointensa. Pretende-se, aqui,avaliaralgumascríticas,recoÍocar os principais argumentos e avançar em alguns pontos práticos na imple mentação da proposta.

A idéia da unidade tributária tem raízes seculares e conta com uma ampla e variada literatura. Foi, pri meiramente, formalizada pelos fisiocratas, que defendiam um im posto único sobre a propriedade fundiária. Outros defenderam proje tos semelhantes, como Henri George, no século passado, e

Edouard Schiller, na década de 50.

De forma menos radical, Nicolas Kaldor defendeu uma reforma tri-

butária baseada no imposto sobre consumo. Agora mesmo, defendese o Imposto Único no Canadá (vide single íax, Dennis Mills, Hemlock Press, Toronto, 1990). Nos Esta dos Unidos, visa-se, também, a radical simplificação tributária (vide The Fiat Tax, R. Hall e A. Rabushka, Hoover Institution Press, Stanford, 1985), ainda que características diferentes do

imposto sobre transações realiza das no mercado financeiro).

A conjugação da idéia unicidade tributária com a transa ção bancária surge agora. A substi tuição da moeda escriturai; a brutal

da

corrupção e à evasão de uma gritante com Imposto Único.

Por outro lado, o uso da transa ção” financeira como base de inci dência tributária é recente. Surgiu preponderância da moeda escriturai sobre a moeda manual e efeitos da era da cibernética informatização bancária.

manual pela n . ^'^oíução da míormatica e seu impacto no siste ma bancário; e a possibilidad um sistema tributári declaratórío e, portanto áeil barato, universal e imune à são fatos poraneidade e fazem do Único sobre Transações uma i cujo tempo chegou.

Neste trabalho, a segunda parte destaca os principais aspectos do si tema tributário incorporado posta do Imposto Único. Trata uma nova e de não- o

A criação de uma taxa sobre transações bancárias foi proposta Estados Unidos em 1986 e deosto idéia

com a pro. ,“n«PÇãodeadmmrtrí çao fiscal, com características não se confundem, minimainem/ com a mera redução do número d impostos. Em realidade, o Einda mental são as inovações do ponto dè vista de administração e de técnicas tributíáiias por ele permitidas. A pro posta é, ainda, discutida em ümção de seu impacto no contribuinte

com os na nos fendida no Congresso norte-ameri cano em 1991. Impostos sobre tran sações financeiras, em suas mais variadas formas, têm sido aplicados na Argentina, na Austrália, no Peru e, também, no Brasil (o lOF é um nas

fomias de gestão pública e nos mercados finan ceiro c de capi tais. Na terceira parte, ela é ava liada segundo cri térios de simpli cidade, custo, equidade e efici ência. A quarta ^ parte encaminha respostas a críticas a cia fonnuladas, propõe soluções para problemas que poderíam sur gir cm sua im plementação e avalia o Imposto Provisório sobre Transações Fi nanceiras (IPMF), apontando suas dramáticas distorções, comparativamente ao Imposto Único. Finalmente, a quinta parteavalia seus impactos macroGconomicos na taxa de empre go, na estrutura produtiva c na política de desenvol vimento econômico.

2) O SSSTEMÂ DO DMPOSTO ÚNOCO

a) A Filosofia

A idéia é simples: sobre as transações monetárias efetuadas no sistema bancário incidirá uma alíquota de 2%, dividida, igual mente, entre as contas correntes credora e devedora. A arrecadação será efetuada eletronicamente. Será automática e, imediatamente, dis tribuída às três esferas de governo, de acordo com critérios previamen te definidos. Todos os atuais im postos serão extintos, mantendo-se apenas os que têm características cxtrafiscais, por serem instrumen tos de regulação e de política eco nômica.

A busca da unicidade tributária tem uma antiga e respeitável tradição na história econômica ras, em que o bem objeto do paga mento é o próprio dinheiro, sofre^ rão tratamento especial. Saques e depósitos de numerário do sistema bancário serão sobretaxados—com uma alíquota dobrada de 4% —, e as transações nos mercados finan ceiros e de capitais sofrerão tributa ção sobre os rendimentos reais.

O Imposto Único é uma tiirn-over tax, como existiu na Alemanha, até meados da década de 60. A essên cia do tributo é a mesma. Mas a forma de arrecadação lhe traz contemporaneidade. Tributa-se as transações econômicas através de seus correspondentes lançamentos bancários. A técnica de cobrança garante, automaticidade, superan do os sistemas de “lançamento” (como 0 IPTU ou o IPVA) e o de “auto-apuração ou auto-recolhiECONÔMICO 1

mento com auditoria” (como o IR, ICMS, IPI e vários outros). Elimi na-se a burocracia e o papelório. Cumpre observar que essa nova sistemática de arrecadação se tor nou viável a partir da modernização e informatização do sistema bancá rio brasileiro. E, ainda, pela quase total substituição da moeda manual —uma relíquia bárbara, no dizer de Keynes — pela moeda escriturai. Essas duas características mitem concretizar a

Apenas as transações financeiperutopia” do imposto único, acalentada há sécu los, mas frustrada pela dificuldades de identificação de formas viáveis de opcracionalização. Não é a nova base de incidência, em si, que justi fica o Imposto Único, mas, sim, o fato de ele pennitir a unicidade tri butária, ainda que de forma lativa. E de pennitir, além disso. cumu-

Ições tidas como substitutivas serem mais elevados do que a economia tributária obtida. Por exemplo, as câmaras de compensação privadas seriam, em realidade, pequenos bancos privados, com custos operacionais que não podem ser negligenciados. A aceitação de cheques de terceiros encerra riscos cujos custos o comércio e o setor bancário bem conhecem. Pergunto se o custo de uma apólice de seguro contra cheques sem fimdo seria in ferior à alíquota do Imposto Único. Além disso, o processo produtivo moderno é, essencialmente, unidirecional. Nas transações entre enq)resas e entre setores, não existem pagamentos recíprocos. O professor vende seus serviços à universidade e quase nada compra dela; o operário deumasiderúrgicanãoconsomeaço, nem o sapateiro come os chinelos que fabrica. Nesse sentido, as câma ras de conq)ensação, para ter um

mínimo de efetividade, teriam de ser abertas ou, então, englobar grande número de setores. Ademms, vale lembrar que o Imposto Único é desburocratizado. Mas não prescin de de um arcabouço legal mínimo. Algumas regras teriam de ser segui das. Por exemplo, compensação de valores é atividade privativa do siste ma bancário, o que tomaria legais as câmaras de compensação privadas. Cheques ou endossos aoportador são proibidos, sujeitando o inôator a pe sadas multas, que reverteriam, auto maticamente, em favor de quem apresentasse os documentos irregu lares a qualquer guichê de banco. Adernais, atributação sobre os cheques levaria^contaonúmero de endossos que portassem em seus versos. Com pequenas e simples regras como estas, os argumentos tidos como insuperáveis pelos críticos do Imposto Único poderiam ser, imediatamente, removidos. Basta

QUADRO n

DE ARRECADAÇÃO DO IMPOSTO

uma regulamentação competente e um pouco de boa vontade para en contraras soluções administrativas. Várias duvidas têm surgido no tocante aos c^culos de arrecadação do Imposto Único. A intenção do projeto é garantir a mesma arreca dação atual, ou seja, cerca de US$ 80 a US$ 85 bilhões anuais. Este é o volume de recursos arrecadados, atualmente, pelos três níveis de governo e pela Previdência. Tenta remos estimar o valor corrente das transações, para que a comparação seja compatível com as flutuações cíclicas da economia.

As simulações realizadas acerca da arrecadação do Imposto Único, com base no perfil tributário de 1993, dizem que seu valor ficaria muito próximo do da receita obtida pelos três níveis de governo e a Previdência, entre US$ 85 bilhões e US$ 90 bilhões/ano, equivalentes a cerca de 25% do PIB.

ÚNICO

- (US$ bilhões /ano)

(1) M transaçaes nio incluem valor das operações de crédito (2) Com reduçõo de 20% no volume global de transações. Fonte: Albuquerque, Marcos Cintra C. de, Xnbutaçao np Brasil e q Importo Úniço - *Sao Paulo: MakronBooks, 1994.

Questiona-se o potencial do Im posto Único, tomando por base a arrecadação do Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira— IPMF. Este, na crítica, é tido como um espelho do Imposto Único, quando, em realidade, as coinci dências são apenas aparentes. Pois entre eles há diferenças substanci-

e financiamento bancário;

ais, não somente de natureza conceituai básica, entre os modelos de unicidade e de multiplicidade tributária. Há, também, distinções operacionais profundas, embora ambos sejam impostos sobre lança mentos bancários.

O IPMF tributa, cumulativa mente, as transações financeiras, ECONÔMICO

enquanto o Imposto Único tributa os rendimentos reais; o IPMF con tém incontáveis imunidades e isen ções, ao passo que o Imposto Único é universal; o IPMF não tributa a movimentação de numerário, quando o Imposto Único sobretaxa saques e depósitos em moeda. Fi nalmente, o Imposto Único não in-

duz à sonegação, uma vez que a economia tributária é sempre me nor do que os custos implícitos nas práticas de evasão. Já o IPMF é um forte indutor da evasão tributária. Não pela economia de 0,25% da movimentação bancária — valor que a experiência provou ser quase irrisória —, mas pelo efeito “dedo duro”, pois a Receita Federal empe nhou-se em utilizar o IPMF como um mecanismo de controle da arre cadação dos demais tributos e as listagens dos contribuintes do IPMF como referência para investigar a vida fiscal dos correntistas que dele houvessem pagado grandes impor tâncias.

Estas diferenças respondem pela discrepâncias observadas nas pre visões de receita do Imposto Único, frente à obtida pelo IPMF. Neste, as imunidades constitucionais são ex pressivas, pois incluem representa ções diplomáticas, entidades e as sociações de classe e entidades fi lantrópicas e sem fins lucrativos, fundações, papel de imprensa, edi toras de livros e outros que, em seu conjunto, representam grande par cela das atividades econômicas. Basta lembrar que grandes setores da economia ficaram fora da alçada do IPMF por terem entidades mantenedoras sem fins lucrativos, como o setor de educação e de saú de. Grandes fundações ligadas a conglomerados econômicos e fi nanceiros de porte estavam, também isentos.

Feitas as ressalvas e alertas a respeito do que ocorreu com a arre cadação do IPMF (que certamente se repetirá com a Contribuição so bre Movimentação FinanceiraCMF, reprise do IPMF sob outro nome, agora vincidado ao custeio da saúde), não há razões para supor que os números previstos para a arrecadação do Imposto Único es tejam incorretos. A experiência do IPMF não é bom indicador da recei ta do Imposto Único. Quando mui to, serve para mostrar os erros que foram cometidos e aponta a neces sidade de total universalização da

incidência tributária sobre os flu xos bancários. Consideramos levi anas as comparações entre o Im posto Único e o IPMF, sem as res salvas acima mencionadas, que buscam comparar situações e ex periências que, sabidamente, exigiriam ajustes profundos para se tomarem comparáveis.

As estimativas de receita do Imposto Único provêm de dados observados dentro do sistema ban cário e mostram com maior fide-

dos custos da Receita Federal, das receitas estaduais e das coletoiias mimicipais, estou incluindo os re lativos à arrecadação previdenciária e ao funcionamento das atividades judiciárias e legislativas, vincidadas, direta e indiretamentdT a ques tões tributárias. Por exemplo, varas de fazenda, processos e ações na justiça e atividades legislativas li gadas à criação e à regulamentação de tributos nos mais de 6.000 parla mentos existentes no país. Essa esdignidade a movimentação bancá- timativa dá uma idéia da magnitude ria no Brasil do que os reflexos da dos interesses estabelecidos no arrecadação do n*MF. Eis porque segmento da burocracia pública reafirmo que o Imposto Único, com vinculado a essas atividades, alíquota de 1%, irá superar, com folga, a meta prevista de US$ 85 bilhões, qüe, dentro de uma neces sária, sempre prometida e jamais cumprida reforma fiscal, deverá ser mais que suficiente para a manu tenção de um aparato público capaz dos quase R$ 120 bilhões/ano atuais, de exercer suas funções essenciais, de forma produtiva e eficiente.

A proposta do Imposto Único, como toda proposição não conven cional, gerou muita controvérsia, porque suas características ferem interesses estabelecidos na buro cracia dos três planos de governo, interesses derivados e de entidades

econômicas e outras que, no siste ma atual, permanecem isentas de impostos. Além destes, há que in cluir aqueles agentes que, mesmo cumprindo suas obrigações tribu tárias formais, aproveitam-se das brechas do sistema para pagar me nos (sonegação legal) e os sonega dores contumazes, refugiados na falsidade ideológica ou na econo mia informal, nem sempre hoje al cançados pelo caro e ineficiente aparato fiscal do governo.

Apenas para ilustrar, pode-se supor, conservadoramente, que os custos de controle, lançamento, ar-

O preconceito em relação à pro posta do Imposto Único não hesita em usar de argumentos inteiramen te falaciosos, sem qualquer funda mentação técnica. Úm é o que diz que, com ele, a arrecadação cairía arrecadados pelos três níveis de governo e Previdência, para cerca de R$ 15 bilhões/ano. Ora, estas são estimativas enviesadas, porque in clui no bolo arrecadado contribui ções para o FGTS, Cofins, Imposto de Importação (de alíquota e valor elevados transitórios), etc., além de assumir que o brutal arrocho tribu tário atual seja passível de perma nente sustentação. Além disso, to mam como referência a arrecadação conseguida com o IPMF, sem con tudo, considerar aquelas diferenças que explicam as discrepâncias ob servadas entre essa arrecadação e a previsão de receita do Imposto Úni-

CO.

A alíquota de 1 % não tem propri edades místicas. Não procede, pois, a crítica de que ela não seja capaz de gerar receita suficiente para finan ciar o Estado, de forma não- infla cionária. Preliminarmente, importa esclarecer que elanuncafoi definida recadação e cobrança de impostos, por mim como sendo a que seria envolvendo atividades nos poderes necessária para garantir o “financiexecutivo, legislativo e judciárío, amento não-inflacionárío” do setor executados no âmbito da União, público. Em realidade, tal expresdos 27 Estados e dos cerca de 6.000 são, ou equivalente, jamais foi utimunicípios, geram custos de US$ lizada em meus estudos. Nunca 10 bilhões. Cabe assinalar que, além procurei atribuir qualquer qualida-

Ide transcendental a este 1%,, nem prová-la. Ele, obviamente, é apenas um balizamento, que poderá ser alterado para mais ou para menos, conforme as metas de política eco nômica do governo.

É surpreendente que se possa, se quer, imaginar a existência de uma ^quota que, intrinsecamente, pu desse possuir tão extasiante proprie dade — a de não ser inflacionária. Afinal, o “financiamento não-infiacionárío” não depende, exclusiva mente da alíquota tributária, mas, sim, da relação entre essa alíquota (que define a taxa~de extração de recursos do setor privado) e o nível de gastos realizado pela administra ção pública. Despretensiosamente, a alíquota de 1% sempre foi definida na proposta do Imposto Único como aquela capazde garantirneutrahdade arrecadatória, fiente àtendênciamais recente na receita tributária. Nada mais que isto.

Hoje, a carga tributária está sen do brutalmente elevada. Um ajuste fiscal equivocado, pois não redimensiona o tamanho, as fun ções e a ineficiência do setor pú-

blico. Partindo dos cerca de 22% a 25%, tradicionais nos últimos 20 anos, a atual administração, segun do dizem alguns, pretende jpassar de 30% do PIB em 1995. E claro que este violento aumento de im postos não podería ser concretiza do, no caso de vigência do Imposto Único, com a mesma alíquota de 1%. Não faz, então, o menor sentido julgá-la pelo critério de ser ou não ser inflacionária. Muito menos de ser ou não ser compatível com a “estabilização da economia brasi leira”, como afirmam críticos do Imposto Único.

Qual a arrecadação que o Impos to Único quer substituir? O objeti vo é eliminar os impostos e contri buições existentes, mantendo-se somente aqueles com característi cas, predominantemente, extrafiscais. Permanecem as taxas pela prestação de serviços e as contri buições pessoais e associativas, como o FGTS, o PIS-Pasep, os re colhimentos ao SESC, SENAI, etc. Assim, somando-se a arrecadação tributária do governo federal com a receita do ICMS, tem-se um valor

QUADRO m

* Inclui lOF, Finsocial e Contribuições s/ lucro de pessoa jiuídica. (Jan-Jul) Fonte; Boletim do Banco Central e Instituto de Economia do Setor Público (EESP).

que representa a virtual totalidade das receitas tributárias do país. As receitas próprias dos municípios— ISS e IPTU

aproximam-se de

3% da carga tributária bruta brasi leira, enquanto que o ICMS repre senta mais de 90% das receitas es taduais. Assim, a receita de impos tos da União, as arrecadações previdenciárias e as receitas totais do ICMS superam 90% das receitas tributárias que se pretende substi tuir . Os montantes absolutos que vinham sendo arrecadados durante os últimos 10 anos, entre US$ 80 bilhões e US$ 90 bilhões, corres pondiam a uma carga tributária bruta situada entre 22% e 25% do PIB. Buscou-se a alíquota do Imposto Único capaz de obter, com folga, arrecadação de US$ 85 bilhões. O Quadro III mostra as magnitudes destes valores, ao longo daque le período, e mostra que US$ 85 bilhões é valor suficiente para uma política econômica compatível com a estabiUdade monetária e com o controle do déficit público, desde que dentre de um programa coeren te de ajuste fiscal.

A permanecer a atual furia arrecadatória, desacoplada de es forços sérios para ajustar o setor público, a alíquota de 1%, como já observamos, põderá revelar-se in suficiente, o que não significa crí tica ao Imposto Único, mas desati no dos governantes que procuram ajustar o governo sempre pelo lado do aumento da arrecadação e, rara mente, pelo lado da busca da efici ência.

Fica, assim, demonstrado que aquelas “impropriedades” foram gratuitamente apontadas.

Afirma-se que o peso do Impos to Único aumenta com a queda da inflação. Esta crítica é, ainda, mais indigente. Tomemos o caso de uma aplicação finan ceira de 100 unidades monetá rias, com correção monetária de 30% e juros reais de 10%. Ao final do período, o capital corrigido é de 130 e a remune ração de 13, perfazendo um crédito total de 143. A

por um imposto único, capaz de arrecadar o que eles geram de re ceitas para o governo, atualmente: US$ 85 bilhões.

5) IMPACTOS

MACROECONÔMICOS

A implantação do Imposto ÚniCO provocará enorme economia de recursos, hoje desperdiçados na estéril tarefa de escrituração tribu tária nas empresas. Envolve, tam bém, além da minimização da eco nomia informal, redução sensível dos custos de fiscaliz^ão e arre cadação da máquina estatal. Estas características da proposta têm

Mesmo com condições de estabilidade na canga tribniâríla braiar os Impostos setoHms podm^lk» ser signifi vos

alíquota de 1% do Imposto Único implica arrecadação de 1,43, que pode ser distribuída en tre o valor original (1% de 100), a correção (1% de 30) e os juros reais (1% de 13). No total, a opera ção líquida de imposto rendeu Imposto Único acarreta uma 141,57, ou seja, um retomo de 8,9% no período. Se a inflação fos se zero, o crédito bmto da opera ção seria de 110, o imposto atingi ría 1,1 e o retomo líquido seria de 108,9, ou seja, um rendimento real de 8,9%

exatamente o mesmo que com inflação de 30%.

Com o auxílio deste exemplo, os críticos , por certo acometidos pelo conhecido mal da “ilusão mor netária”, causada pela inflação, poderão relembrar as proprieda des distributivas da multiplicação, que mostra que, com inflação zero, mil ou um milhão, o peso do Im posto Único será sempre o mesmo. Portanto, que fique claro o que ele se pretende — substituir os impos tos, predominantemente, fiscais

cia de recursos humanos para o desenvolvimento de suas tarefas, principalmente, de fiscalização de gastos do setor público. A automaticidade e economia com que a arrecadação tributária seria realizada com o Imposto Único podería liberar recursos humanos para garantir um acompanhamen to mais criterioso dos gastos do governo, minimizando o desperdí cio, a ineficiência e a corrupção, que se abateram sobre vários seto res da burocracia estatal.

Da mesma forma, o contingente de pessoal ora atrelado às impro dutivas rotinas tributárias no setor .privado poderia ser reorientado para o aperfeiçoa mento dos controles geren ciais e administrativos, como, aliás, aconselham a formação e os ideais profissionais dos que foram treinados para se dedicar à contabilidade, à au ditoria e às finanças empresa riais.

suscitado suspeitas de que ela po dería gerar forte aumento da taxa de desemprego.

Em realidade, a aplicação do mu-

reduz

dança semelhante à de qualquer inovação tecnológica custos, aumenta a eficiência e incrementa a produtividade.

As sociedades modernas já aprenderam que a busca de efici ência e da produtividade não causa desemprego nem gera processos crônicos de subconsumo. Pelo

contrário, é o caminho do aumento da competitividade dos setores produtivos, do poder aquisitivo dos salários e, por extensão, de indução do crescimento econômi co. Seria ingenuidade esperar que a parte da máquina estatal hoje dedicada à fiscalização e à admi nistração tributárias, seja, subita mente, desmontada. Sabidamente, o setor público tem enorme carên-

O impacto macroeco nômico mais significativo do Imposto Único ocorrerá na estru tura produtiva. Tratando-se de um imposto cumulativo, a nova inci dência tributária poderá alterar, substancialmente, os preços relati vos e, ;portanto, impactar a estru tura produtiva global e a própria taxa inflacionária. Mesmo com condições de estabilidade na carga tributária bruta, os impactos setoriais poderão ser significati vos, o que tomará esta a área de pesquisa mais importante a ser de senvolvida na discussão do Impos to Único. Sua cumulatividade impactaría, de forma diferenciada, o preço dos produtos, dependendo da extensão de suas respectivas ca deias de produção e das taxas de valor adicionado em cada uma de las. Certamente, os preços relati vos serão alterados, mas para me lhor, no sentido de refletirem, mais fielmente, seus respectivos custos de oportunidade.

A carga tributária dependerá da extensão da cadeia de produção de cada setor e, também, do coefici ente de agregação de valor em cada uma destas etapas. Por exem plo, dois produtos com uma mes ma cadeia de produção, mas que diferem no montante de valor agregado na última etapa da cadeia — no varejo, por exemplo—terão onerações tributárias diferentes. Embora a teoria do second best tenha colocado uma pá de cal so bre as pretensões de se conhecer, detalhadamente, as implicações alocativas das distorções tributári as, não há porque esperar que as alterações sejam, necessa riamente, para pior. Estimati vas setoriais mostram que a cunha fiscal será reduzida, significativamente, e, portan to, com o Imposto Único, a estrutura de preços relativos será menos distorcida do que a atual. Preços se aproximarão dos custos marginais, e os pre ços relativos se aproximarão das taxas marginais de transforma ção.

ção de alíquotas diferenciadas. Isto não significa dizer que o go verno se tome passivo na forma ção da estrutura de preços inter nos, mas apenas que deverá pas sar a utilizar subsídios e transfe rências como meio de alterar preços relativos, em substituição aos efeitos alocativos de um sis tema tributário mais discricioná rio, como o atual. Evidentemente, subsídios e transferências são ins trumentos a ser utilizados com parcimônia.

O Imposto Único poderia ser a base para amplo entendimento na-

0 Imposto Único cria condições para o início de um diálogo que já tarda no país

denciárias, das retenções na fonte e das contribuições patronais. Para 0 empresário, permite redução de custos, aumento de mercado e re composição de margens.

certamente.

arresememono-

Não há porque defender a ma nutenção da atual estrutura de pre ços relativos. Aliás, a forte con centração industrial brasileira per mite que a carga tributária teórica seja usada na composição de pre ços ao consumidor, ainda que ela não se transforme em efetiva cadação pelas mais variadas for mas de evasão. Isto quer dizer que boa parte dos preços ao consumi dor tem um comportamento lhante à exploração polística, acarretando fortes distorções alocativas e dístributivas.

Com o Imposto Único, o ins trumento tributário perde flexibi lidade. Diferentemente da atual estrutura, altamente discricioná ria, ele deve ser aplicado de forma rígida, com estrita recusa de fixa-

cional. Não é tarefa fácil acomo dar os interesses dos principais grupos sociais envolvidos, traba lhadores, empresários e governo. Cada um visualiza a oportunidade de ampliar seus rendimentos, con figurando um conflito de interesse impossível de ser superado em condições estáticas. Nesse senti do, ao permitir ganhos a todas as partes envolvidas — setor público, assalariados e empresários — o Imposto Único cria condições para o início de um diálogo que já tarda no país. Para o setor público, ele permite redução de custos, desburocratização, modernização administrativa, recuperação de re ceitas. Facilita, enfim, o necessá rio ajuste fiscal. Para os trabalha dores, abre espaço para a recom posição salarial, mediante a incor poração aos salários, mesmo que parcial, das contribuições previ-

Convém lembrar gue o espaço aberto pelo Imposto Único eqüivale à redução dos custos do atual sistema tributário. Supondose que os custos de arrecadação tributária, em todos os níveis de governo — União, Estados e mu nicípios, nos poderes executivo, legislativo e judiciário equivalentes a 10% da carga tribu tária bruta, abrir-se-ia um espaço de cerca de 2,5% do PIB; su pondo-se, ademais, uma drás tica redução dos custos de es crituração e administração tri butárias do setor privado — que, correspondem, no mínimo, a 30% dos custos administrati vos do setor produtivo —, não é improvável que se reduzam custos em outros 1,5% ou 2% do PIB. Globalmente, portan to, abre-se ampla margem de ne gociação, próxima de 4% do PIB. O Imposto Único poderia, ain da, provocar importantes efeitos positivos. Evitaria a corrosão in flacionária dos tributos; auxiliaria no plano de estabilização, através da facilitação do ajuste físcal; e poderia ser importante coadjuvan te no fortalecimento do sistema bancário nacional, que passaria a ser remunerado pelos serviços prestados ao público e, principal mente ao governo.

6)CONCLUSÃO

Sob todos os aspectos analisa dos, o Imposto Único revela scr uma excelente alternativa para a reforma tributária, se for único. Como um imposto a mais como o IPMF (ou a CMF), agravará as já inaceitáveis contradições do atual modelo tributário brasileiro. ●

sejam

NA DEFESA DA

100 ANOS PARAR SEM LIVRE INICIATIVA

Fundada em 7 de dezembro de 1 894, pelo coronel Antonio Proost Rodovalho, exemplo de empreendedor e homem público, a Associação Comercial de São Paulo vem participando ativamente da história política, econômica e social da Cidade e do País, sempre na defesa da livre iniciativa e do desenvolvimento do Brasil.

Mantendo suas tradições, mas modernizando-se continuamente, a Associação é uma grande prestadora de serviços para seus associados,para o que conta com moderno centro de informática, um jornal, o Diário do Comércio, uma revista, o Digesto Econômico, além de 1 3 Sedes Distritais que asseguram seu contato e presença atuante em todas as regiões da Cidade.

Empregando mais de 1 .000 funcionários, a ACSP atende cerca de 2.000.000 de consultas cadastrais por mês, de seus 30.000 associados dos vários segmentos de atividade: indústria, comércio, serviços, instituições financeiras, agricultura e profissionais liberais. Ao completar cem anos, representando e defendendo a classe empresarial paulista, a Associação Comercial de São Paulo orgulha-se de sua história, dos homens que ajudaram a construí-la, desde personalidades notáveis que ocuparam cargos públicos relevantes - governadores, prefeitos, ministros, parlamentares de seus funcionários e todos seus associados, que durante este século ajudaram a fazer sua grandeza.

quando a fama lhe cresce, vindo a receber uma pensão da rainha, aboa Maria Leczinska. Na Rússia uma sucessão entraria em seu destino: morre Pedro, o grande, e ascende ao trono Catarina I.

Voltaire corteja — no exato sentido da palavra — os grandes: oferece La Henriade a Jorge I, da Inglaterra, e dois anos depois é apresentado ao soberano. Instalando-se na Inglaterra, publica opús culos e liga-se por amizade com Swift, Pope e outros. Aproveita para editar, em Londres, La Henriade. Regressa à França, sendo autorizado a habitar em Paris. Voltaire firma amizades. Uma delas com o duque de Richilieu, de uma das mais po derosas famílias da França, de quem veio a ser seu padrinho de casamento com Madame de Guise. Mas volta a ter proble mas com a polícia. SuaHistoire de Charles II é apreendida. Para escapar à ira policial vai para Rouen, e, quando pode voltar para seus antigos mestres, os jesuítas, lança a tragédia de sua autoria Brutus. O ano de 1732 lhe foi propício, uma tra gédia, Zaire, alcança triunfo sem paralelo. Paris o aplaude. Continua a trabalhar e produzir, es crevendo, ao mesmo tempo, cartas para vários destinatários. Voltaire escreveu tantas, mais tantas cartas que superou em muito Mario de Andrade. Hoje iria, certamente, para o Guiness of Records, como o maior epistológrafo da História. Estava ele com 40 anos, quando recebe convite para trabalhar com o duque d’Holstein, herdeiro presuntivo da Rússia. Era o primeiro que lhe chegava, para se constituir no rol dos que o fariam confidente, mas, também, adulador da aristo cracia, ele que, perfeito “snob”, tanto a admirava. A França entraria em guerra com o imperador do Sacro Império Romano Germânico. Um acontecimento na área das artes marca o período: Bach compõe o “Oratório de Natal”. Fantástico trabalhador das letras, Voltaire

produz sem fadiga. Saem logo La Pucelle e o Siécle de Louís XIV. Ê para confirmar sua,tentação aristo crática e real, inicia correspondên cia com Frederico, príncipe real da Prússia. Irrequieto, compra brigas. Mas continua a cultivar amantes. Voltaire era um verdadeiro “courreur de jupons”, vocação que lhe era facilitada pela fama da qual estava aureolado no hagiologio leigo do mundo das letras.

Tão importante e destacada é sua posição nas letras, que o príncipe Frederico da Prússia lhe manda documentos sobre a Rússia. Cínico, o Voltaire dos salões mais ilustres de Paris, é agora, com menos de 50 anos, a personagem predileta dos

Fantástico trabalhador das letras

Voltaire produz sem fadiga

grandes da Europa. Frederico II lhe submete, nada mais, nada menos do que o Anti-Machiavel. Para lhe devolver a obra, Voltaire o visita, dando partida a uma amizade que fará do escritor o apadrinhado de reis. Enquanto isso, sua fama tanto cresce, que o visitam ingleses fa mosos como Lord Chesterfíeld. Tal relevo tem a personagem das letras e dos círculos mundanos que o pintor Quentin de La Tour faz o seu retrato. É a consagração. Voltaire podia or gulhar-se, sobretudo quando é no meado historiador do rei da França, provavelmente por influência de Madame Pompadour, que lhe ad mira 0 espírito. Morre nesse perío do seu amigo, o imperador do Sacro Romano Germânico Império, su cedendo-o Francisco I. Nessa altu ra de sua vida, registra-se um acontecimento de peso, que iria muito influir na civilização e na

cultura: Voltaire conhece Jean Jacques Rousseáü. Voltaire que sempre esteve às voltas com a Igrej a radicalizaria a sua posição. Não vou estabelecer paralelo entre as duas personagens da História do pensa mento, pois ambos tiveram em suas páginas papel do maiorrelevo.Mas, não obstante, os problemas que o atormentaram, Voltaire levava uma “dolce vita”, vivendo em castelos, amando mulheres jovens e famo sas, e privando da intimidade de príncipes, reis e imperadores.

Faltava-lhe, ainda, a glória da Academia Francesa. Veio-lhe co roar tantas prendas a eleição, com 52 anos, para a cadeira de um certo Jean Bouhier. Ele já havia batido à porta da ilustre Casa, e não se lhe foi aberta, mas agora era diferente. O grande escritor contava com o apoio dos pode rosos, e, cínico, faz apologia do catolicismo, prodigalizan do fartos elogios a seus antigos mestres, os jesuítas. Foi eleito, graças a essas artimanhas, e como na França a Academia está, desde a fundação, sob o patrocínio do chefe de Estado, Louis XV dá o seu beneplácito à eleição, e temo-lo acadêmico. A glória 0 acompanhava. Acadêmico, historiador do rei da França, autor de sucesso, representado no teatro com a presença da corte e da aristo cracia, os deuses pareciam tê-lo escolhido como afilhado da fortu na. Frederico II da Prússia o nomeia para sua corte, chamando-o a Berlim. Não durou muito, no entan to, o convívio com Frederico II. Desentendendo-se, embora sem profundidade, com o rei da Prússia, visita castelos de amigos e amigas. A nossa personagem é diabólica, tão diabólica que vai escrever, na biblioteca beneditina de Scnones, seu livro Essai sur les moeurs. Em seguida, liga-se com os enciclopedistas, escrevendo verbe tes para a grande obra. E, como se não bastasse, ainda se interessa pela arte da guerra, sugerindo ao Minis tério da Guerra da França a constru¬

ção de carros de combate, os ante passados dos tanques. Voltaire se preocupa com a guerra entre a França e a Prússia, e se propõe intennediar a paz, amparado no seu proclamado prestígio de amigo do rei da Prússia, até há pouco tempo, amizade que não lhe custaria reatar. Teve êxito, pois segundo Jeam Orieux, nesse tempo havia na Eu ropa dois reis, o rei da Prússia e Voltaire. Maneira de dizer, evidentemente, pois toda a Europa era governada pelo trono, uns com mais, outros com menos prestígio. Mas o grande Fre derico e o grande Voltaire se entendiam estupendamente bem. O rei por scr satisfeito na sua vaidade, o con vívio com um homem de espírito, que a Eu ropa culta e os salões mundanos admira vam. O escritor, por que gozava a vida que sempre ambicionou levar, a da plena satis fação de seus desejos, de seus gostos, de seus caprichos. Mas na realidade, Voltaire, 0 “parvenu”, é que se tornará o grande vito rioso na Europa do es pírito c da inteligên cia. Voltaire era reco nhecido como o mes tre cm cortejar, práti ca que temperava, umas vezes com a iro nia c outras com o sar- Voltaire foi muito retratado e caricaturado casmo, mas sempre com a arma que soube manejar admiravelmente bem, o riso, a sua espada de intrépido mosqueteiro de outro reino que o político, o reino dc espírito. Enquanto isso continua a produzir. Aos 65 anos publica o mais conhecido de seus romances Candide. Quem, na minha geração, ou até a minha geração, não leu Candide,

deliciando-se com a personagem e Pangloss?

O famoso autor já dominava as letras da Europa, já contava no seu fichário as amizades de reis e impe radores. A grande Catarina da Rússia lhe havia enviado de presen te um suntuoso manteau dc zibeline, 0 mais precioso de todos. Frederico II havia esquecido a msga. E agora o Candide o elevava ao píncaro do

romance é, ainda, atual. Ou será sempre atual por colocar a boa fé, a frivolidade, em contato com a rude za do mundo. Sem deixar de lado os prazeres da vida, Voltaire adquire e mantém várias residências do mais alto luxo. Ao mesmo tempo, man tém-se em contato ou recebe a visi ta de grandes escritores de seu tempo. Um deles é Gibbon, autor até hoje da melhor história sobre a grandeza e a decadên cia dos romanos. Na longínqua Rússia, a Grande Catarina detinvvlfe;.!-;''': ha autocraticamente o trono. Sua amiga queridíssima. Catarina merecería seus louvores. Já com 70 anos, publica o Díctionnaíre Philosophique, obra traduzida, como o Candide, em português, pois, que me conste, nenhuma outra foi publicada em nossa amada língua. Seu rompimento com Rousseau resultou em livro, Le sentiment des citoyens, e os dois iriam ter decisiva infiuência no Século das Luzes e no destino da História, k Incansável, apesar w da idade, concita os filósofos franceses a deixarem a França, asilando-se à sombra de seu amigo, o rei da Prússia. Mas, não obstante sua atividade, o declínio já se fazia sentir, e o percebia o endiabrado escritor, filósofo, polemista, epistológrafo, mundano. Sua participação na prossegue. Mostrando-se tolerante, no sentido que o vocábulo revestiu no Século das Luzes, compõe uma Ode para o segundo centenário do Massacre de São Bartolomeu, publica Les lois de Mines, tragédia contra o fanatismo. Pouco depois. renome, um renome popular, pois toda Paris só falava, só comentava 0 romance. Apóstolo da Razão e do Racionalismo das Luzes, Voltaire fez do Candide a crítica irsonha, mas severa, das crises de seu tem po. A ingenuidade da personagem contrasta com os problemas do tempo, mas c o que Voltaire queria. Aconselho a leitura de Candide. O

Enciclopédia e

esse formidável movimentador e que, no Século das Luzes, concór-

debatedor de idéias dava de presente à Madame du Barry, nada mais, nada menos do que um relógio de sua fábrica, porque ele tinha ou era sócio deuma manufatura de relógios na Suíça. Unia o útil ao agradável. Nessa altura circulou pela Europa menor apreço pelo filósofo que Clemente XIV havia dissolvi- genebrino. Rousseau habitava o do a Companhia de Jesus. Não mundo das quimeras, enquanto consta que Voltaire haja protestado Voltaire se mostrava o mais realista contra a extinção da Ordem na qual formara a sua cultura e preparara a sua inteligência para as letras. Che gou também à Europa a copiosa informação sobre uma guerra que iria mudar o mundo, a guerra da Independênciados Estados Unidos. No trono fimicês, Luís XVI não apreciava Voltaire. Eram caracteres opostos. O rei, pie doso, católico praticante, o fi lósofo, escritor, polemista, epistológrafo, blasfemo, irreverente, avesso aos sacra mentos da Santa Madre Igreja. Mas seu compatriota, La Fayette, nome ilustre da aris tocracia francesa, estava na América, lutando com os re beldes contra a Inglaterra. Voltaire está com 83 anos.

Necker ocupa o Ministério das Fi nanças de Luís XVI.

Abadia de SeilUéres, de manhã, muito cedo. Em 2 de julho morre

VasMiiui fiiita correií sobre áriválidadè entre as duas pemnagens

Mantiveram-se distantes, nunca se acomodando em amizade que fosse assinalada com recíproca sinceri-

Formam-se nesses subterrâneos da História, sem que ninguém saiba dade. Os amigos de Voltaire, como são tecidas, as teias que co lherão o trono fimicês na maior de todas as revoluções Franklin, em baixador americano, visita o filó sofo, que, por sua vez, adere à Maçonaria, sendo recebido na Loja das Nove Irmãs. Voltaire sente-se mal, nos seus 84 anos. É obrigado pelos médicos a manter-se em re- intensíssima.Quejuízo fazer de seu pouso, e em 30 de maio falece — o papel na História, no pensamento, ano era 1778 — sendo imunado na na civilização, na cultura? O século XVni, no qual tanto Voltaire e Rousseau atuaram, influenciandoo com suas idéias, foi o Século das Luzes, do qual são expressões na história do pensamento o deísmo inglês, o filosofísmo francês e o iluminismo alemão. Seria lon-

com que se entreteve sempre galante, para mulher que sabia apreciar a coqueterie. Ambos continuaram gloriosamente no tro no. Poucos anos depois irrompia a Revolução Francesa, que mudaria o rumo da História. Uma vida

na Revolução Americana, do outro reramparaurdirosíiosqueestuaram lado do Atlântico, e na Revolução na Revolução Francesa. Voltaire e Francesa, que iriam conduzir a civiRousseau emergem no cenário das Uzação daí por diante. Visada por Luzes, e nele se fixam. Mas o dia- essas correntes, ou por essas bifiirbólico teatrólogo, historiador, cações de uma só corrente, era e foi epistológrafodeFemeynãotinhao a Igreja. Roma tomou-se o alvo supremo das invectivas das Luzes. Não a pouparam os deístas, os fUosoíistas, os iluministas. Os cha mados livre-pensadores se proclados seres humanos. Rousseau es- mavam alforriados das cadeias da creveu, mesmo, a Voltaire, fazen- Santa Madre Igreja, professando um do-o saber que não o admirava, e vago cristianismo herdado do livre lhe atribuiu males de que sofna. exame da Reforma, e amplamente Voltaire não respondeu, direta- difundido da Inglaterra para o conmente: seduziu os conterrâneos tinente. Voltaire foi o típico deísta genebrinos de Rousseau com suas francês, do Século das Luzes, ele peças de teatro. Foi a sua vingança. um iluminista. Voltaire não foi um filósofo como Descartes, Kant, Hegel — para ficarmos na Idade Moderna — mas atuou no campo filosófico, como sequaz de Locke, cujo sensua lismo assimilou e difundiu, assim como o fizeram outros enciclopedistas, em particular Rousseau, que deve às suas idéias o Contrato Social, cuja influência no mundo não pre cisa ser aqui feita, mas apenas lembrada. Foi em Locke que Voltaire encontrou e com elas se identificou as idéias dos deístas ingleses. Escrevendo, copiosamente, numa das maiores produções Frederico II e a Grande Catarina, individuais de toda a História do pensamento, Voltaire, além de tra gédias, poemas, romances, panfle tos, colaborou na Enciclopédia, com Diderot, D’Alembert, D’Holbaeh e outros. Os enciclopedistas, aos quais Voltaire se ligou, colaborando na obra que demoliu os valores paci entemente edificados pela Igreja, os autores da Enciclopédia fundi ram a matriz da Revolução, como processo de mudança. Inauguraram o “time of troubles”, cujas reper cussões chegaram até nós e ainda não estão amortecidas.

Jean Jacques Rousseau, com o qual dividiu a parceria de uma das mais dramáticas e poderosas influências no itinerário do inquieto ser huma no pela face da Terra. Muita, vastíssima tinta já correu sobre a guíssimo fazer a história desse rivalidade entre as duas personagens movimento, cujo desfecho se daria dos padres jesuítas gravitou do caVoltaire foi, no Século das Luzes, o mais encarniçado — a palavra cabe no julgamento de sua obra — inimigo da Igreja. O antigo aluno

tecismo que lhe foi ensinado no colégio Louis le Grand para o anti go impiedoso da Enciclopédia e, sobretudo, para a expressão que atravessa os séculos nenhum sentido

hoje sem Ecrasez

L’Infame, esmagai a Infame, isto é, a Igreja, o fanatismo, como ele di zia. A Enciclopédia foi, em geral, contra a Igreja, confundida com o fanatismo, mas Voltaire excedeuse no combate à Santa Madre, na qual despertara para a vida, na qual iniciara a formação de seu intelec to. Voltaire não foi anticristão. Era deísta. Voltaire, como os enciclopedistas, como os deístas ingleses e os iluministas alemães foram os submissos da deusa Ra zão, a que mais tarde a Revolu ção Francesa glorificou, entronizando-a na Catedral de Notre Dame, secularizada e profanada. Segundo Jacques Chevalier, esses adoradores da Razão entendiam e proclama vam que se bastavam semDeus. Mas o próprio Voltaire usava, a propósito do mimdo, a metáfora do relógio, que deveria ter um relojoeiro parao fazer marchar. Daí a sua incerteza sobre Deus como a causa do mundo. Foi, isto sim, anticatólico. Dotado do gênio satírico, ferozmente demolidor quando é aplicado para o mal, pôs os seus predicados contra a Igreja e a abalou, como forte coluna do tro no. Numa de suas cartas a Damilaville, afirma que, na medida em que envelhecia, mais se tomava implacável contra a Igreja. De resto basta ler a sua correspondência, para se ter dela a transpiração do ódio contra a instituição eclesiástica, do papado ao clero.

Voltaire afirmava querer a pro pagação da fé, do progresso, mas, também, o esmagamento da Igreja, para ele a sede do obscurantismo, do fanatismo. Queria destmir a Igreja, colima da ordem. Não con seguiu, pois, como vem prometido nos Evangelhos as portas do infer no não prevalecerão contra a Casa de Deus, o Corpo Místico de Cristo.

firmam retomo de Voltaire à fé de sua infância e adolescência. Ficou provado que mandou sua sobrinha, Madame Denis, que fosse buscar o padre Gaultier para tomar-lhe a confissão, pois ele deveria estar preparado para comparecer diante de Deus, criador de todos os mun dos. Atendeu-o o padre Gaultier duas vezes, em 2 e 30 de março, dois meses antes de sua morte.

Mas, surpreendentemente, nos seus últimos dias reconciliou-se com a Igreja. Confessou-se e tomou co- tempo, Voltaire combateu com rara munhão, morrendo na fé de seus tenacidade a Igreja, encarnação, anos de juventude. Segundo o autor para ele, da intolerância de que se Jacques Donvez, documentos des- fizera adversário. A expressão — cobertos em tabelião de Paris con- Ecrasez l’Infame - ressoa, liberta do conceito em que foi proferida, como um libelo contra a Igreja. Mas injustamente, pois a Santa Madre era, no século eni que o racionalismo suplanta a Razão, na sua claridade, a guarda da consci ência do rei, isto é, do poder. Na Europa protestante, à qual Voltaire se acolheu, essa consciência já não fazia a catarse dos pecados. Prefe ria cultivar opuritanismo. NaRússia Mas já havia abalado a Igreja nos ortodoxa do cesaropapismo, o mo¬ narca era chefe da Igreja. Era, portanto, para Voltaire a Santa Madre o recipiente do fanatis mo, da intolerância, do espíri to aprisionado pela teologia dos confessores do rei.

Voltaire queria deistruir a Igreja, coluna da ordem

nascido. E Voltaire? Também me lhor fora não ter nascido? Em seu

Daí a sua invectíva contra esse baluarte. Impregnado do espírito burguês, que cada vez mais se an^)hava com a ascen são dessa camada de Terceiro Estado, Voltaire manteve-se, contudo, apegado ao privilégio de privar do convívio dos reis, com Luís XTV, o Regente, Louis XV, Frederico II e a Grande Catarina.

seus fundamentos. Onze anos depois de sua morte, as suas idéias com as dos Enciclopedistas, com a filosofia das Luzes romperia a resistência da Nesse ambiente contribuiu para enordemplurissecularrepiesentadapela grossar a torrente que se entornaria ahançâ do trono e do altar, dapolítica sobre a França, o Ocidente, o mundo edareUgião.IrromperiaaRevolução do fatídico Julho de 1789, quando. Francesa. Prolongou-se nos séculos como vem em Taine, não estourou seguintes, como nota Jacques uma revolta; começou uma revoluChevalier, o “espírito voltairiano”, ção. Voltaire já não é hdo. Sem dúque não é, como se pode supor, o vida. O Candide é, no entanto, espíritodetolerância,masdecombate sempre atual, em qualquer circunsà instituição cristã, que deu forma à tância. Como é atual, tanto quanto no civilização.

longínquo século XVIII, o combate ao cristianismo pregado, ensinado.

Considero Voltaire um revoluci onário, entendidaarevolução como catequizado pela Igreja Católica. O processo de mudanças, não como tolerante seria, portanto, intolerante, barricadas erguidas contra uma or- Seria preciso continuar, mas essa é dem que é preciso abater. Num de outra história, que não cabe nesta seus momentos de sinceridade, breve apreciação sobre Voltaire, nasNapoleão, mn dos nascidos mais cido há trezentos anos. ● gloriosos e também mais desgraça dos da História, confessou que ele e Rousseau melhor fora não terem

Texto de conferência para Academia Paulista de Letras a

o espaço geográfico, econômico e cultural do Brasil continua aberto

QUE BRASIL E ESTE?

E há na esperança de que me comovo, E na grita de dúvidas, que escuto, A incerteza e alvorada do meu povo!

Olavo Bilac

Mensagem para nossos filhos e netos que construirão o Brasil do século XXI

B enedicto Ferri deB arros

Da Academia Paulista de Letras

O BRASIL, ONTEM, HOJE, AMANHÃ

Um tema desta amplitude exigi ría um feito impossível: sinte tizar tudo o que já se disse sobre nosso País. Nosso propósito é menos ambicioso. Não pretende mos dar um retrato do Brasil, ape nas oferecer uma moldura suficien temente ampla para poder enquadrálo e permitir sua compreensão. Na atualidade enfrentamos grandes problemas. A vida se tor nou difícil para todos. E essa difi culdade toldou nossa visão e per turbou nosso ânimo. Transforma mos nossos incômodos em julga-

mento do Brasil. Mais do que in conveniente e injusto, isto é falso. Não é esse o retrato da Nação. Ele não corresponde ao que fizemos, ao que somos, nem ao que estamos fazendo e poderemos fazer. Se queremos ver o Brasil além das névoas do momento presente, ne cessitamos de uma moldura mais ampla, que nos permita abrangê-lo em conjunto, no que ele tem de permanente e essencial.

Pretendemos com apenas quatro pontos, e com palavras simples, oferecer essa moldura, para que cada um, recorrendo a sua memória e aos seus conhecimentos, restaure den¬

tro de si próprio um retrato mais confiante, mais generoso, mais jus to, mais fiel, sobretudo.

Este trabalho arremata meio sé culo de reflexões, iniciadas na mo cidade e encerradas na velhice. Constitui meu testamento de brasi leiro e por isso o dedico aos nossos filhos e netos - neles simbolisando as gerações vindouras.

Este trabalho é uma versão revis ta e ampliada em 1990 de artigos que sob outro título foram publica dos em nossa coluna de “O Estado de S. Paulo” em 26.10.88 e 2.11.88 e de conferências que fizemos no Japão no mesmo ano.

0 Brasil recebeu menos imigrantes do que a Argentina

Esta ediçãoédeoutubrode 1955.

Nos dias correntes novas e pro missoras perspectivas acenam com a substituição das “dúvidas” por uma nova “alvorada”.

Acreditamos que isto aumenta sua atualidade.

V Ponto: UMA NAÇÃO

EXTREMAMENTE

JOVEM

O primeiro ponto é que o Brasil é uma das mais jovens de todas as nações novas do mundo.

Como nação não tem mais do que 174anos(1822-1996).Éincorrcto compará-la a nações que têm uma vida e uma história bimilenares. Uma nação com menos de dois séculos está ainda em sua in fância histórica e cultural. Neste curto período, conseguimos, entre tanto, integrar em um todo um ter ritório dc dimensões continentais, criar uma cultura original, elevarnos à sétima economia do mundo. É preciso considerar que cm 1808, fim do período colonial, o Brasil não tinha mais do que 4 mi lhões de habitantes, aglomerados cm 5 núcleos demográficos isola-, dos, distantes entre si, sem maior apreço uns pelos outros, ligados, talvez, apenas por uma língua, uma

religião e um “espírito cultural” comum originário da matriz lusita na. (1)

O período colonial foram 300 anos de isolamento do Brasil do mundo. O comércio e a navegação eram objeto de monopólios priva dos concedidos pela Coroa; as in dústrias eram proibidas; inexistiam escolas superiores. A primeira tipo grafia chega ao Brasil nos navios que trouxeram D. João VI (1808).

O projeto de uma nação conti nental já estava, entretanto, conce bido, e o embrião de um povo e de uma cultura originais já havia dei tado raízes no País.

2° Ponto: REALBIAÇ© DE BRASBLEDROS

imigrantes, a Argentina 7, o Cana dá 5,2, o Brasil recebeu apenas 4,3 milhões - dez vezes menos do que a grande nação americana. (2)

Assim, enquanto o crescimento dos Estados Unidos e o progresso de nações como o Canadá, a Aus trália e a África do Sul podem ser vistos como obra de colonização realizada sobretudo graças a impor tação e ao aporte de capital humano representado por imigrantes, no Brasil, ao contrário, o desenvolvi mento foi feito essencialmente por nós mesmos, com intensivo apro veitamento da valiosíssima mas es cassa contribuição numérica de imigrantes.

O que foi feito nos 174 anos deste projeto e desse embrião é rea lização autóctone, endógena, nati va, quase exclusiva, se poderia di zer, de escassa população de pouco mais de 6 gerações de brasileiros. Por comparação, e em contraste com a maioria das grandes nações do novo mundo, o Brasil é o país que recebeu a menor contribuição dc emigração estrangeira. Ao passo que entre 1800 e 1955 os Estados Unidos receberam 40 milhões de ros. Reflita-se:

ou

Este é um ponto fundamental, freqüentemente omitido minimizado na avaliação do esfor ço e do desempenho dos brasilei-

Uma nação não é mais do realização dos homens que nela tra balham. O tempo, a quantidade qualidade desses homens são o fa tor decisivo do desempenho nacio nal. Esse desempenho traduz forço e o valor do que foi realizado. Por outras palavras, que a e a o eso caput humano” é o fator crucial. Ele é o

mais demorado, o mais caro e o mais produtivo de todos os capitais: levam-se 30 anos para se formar um homem; entre todos os fatores, ele é o de custo mais caro; entretanto é um ativo que produzirá por 30 anos ou mais, que se repõe e amplia pela multiplicação e cujo trabalho, se integrando à herança cultural, se transmite a seus descendentes, continuando a produzir muito tempo além da extinção do indiví duo.

É sob este enfoque que se pode apreciar o valor do capital humano obtido pela imigração. Ele se forma fora, ao custo pago por outros po vos; traz a irqueza insubstituível e mais valiosa, que é a do tempo, da experiência e da cultura acu mulados. E é dado de graça: nada custa ao país que o recebe, salvo integrá-lo no povo e na ção que o acolhe.

Os brasileiros soubemos, como talvez nenhum outro

povo, acolher, integrar e multi plicar em escala máxima a contribuição do escasso “capi tal humano” que recebemos. Isto, ao par de salientar quanto de nosso desenvolvimento é fruto de esforço próprio, destaca o aproveitamento e a integração do imigrante como uma pessoa de nos sas maiores realizações.

Mas não é só. Parauma completa e exata avaliação do trabalho e va lor das realizações do povo brasi leiro durante o curto espaço da vida nacional, devem-se acrescentartrês aspectos dessa população.

O primeiro é que, excetuado o pequeno contingente (3) de portu gueses e o número menor de outros grupos europeus que integraram o núcleo básico desta população e que dispunham de um patrimônio cultural desenvolvido, a grande massa se constituiu de aborígenes e africanos, aqueles ainda na idade paleolítica, estes que apenas havi am alcançado a agricultura de so brevivência. Populacionalmente, pode-se dizer que o Brasil partiu do marco zero histórico e cultural.

O segundo é que esta população sempre se caracterizou por elevada porcentagem de jovens e crianças, ainda imaturos do ponto de vista produtivo e demandando elevados custos para sua formação. Ainda em 1980, segundo o censo de então, 36% dessa população era de indiví duos com 15 anos ou menos e 50% de 20 anos para baixo. (4)

O terceiro ponto é que a densida de da população no território brasi leiro tem sido e continua a ser uma das mais baixas do mundo: 15habitantes/km2, contra 35 na média mundial, 25 nos Estados Unidos e 318 no Japão. (5)

Ao passo que no começo do sé culo XIX o Brasil com seus 4 mi-

Obra^Nnié, desde 0 iiiício a(» dias

dè hoje, uQi homem continental

Ihões de habitantes tinha em média 0,5 homens/km2, o Japão desde 1700 (século XVin) possuía uma população de cerca de 25 milhões de habitantes, ou 6,6 homens por km2 - treze vezes mais. (6)

A conclusão geral é que o país de hoje é a realização de um escasso número de brasileiros (nele incluí do os imigrantes que integraram nossa população), realização alcançai em tempo muito curto, a partir de um marco histórico-cultural aproximado do zero.

Sob este ângulo deve ser medido seu trabalho e avaliado seu esforço.

3° Ponto; UNIDADE CONTINENTAL DO POVO E DA CULTURA BRASILEIRA

A despeito de sua extensão geo gráfica, das disparidades étnico-regionais iniciais, e apesar de sua pouca idade, o Brasil é reconhecido

por todos os estudiosos como a na ção dotada de maior homogeneidade cultural e do mais alto grau de integração étnica, entre todas as nações do mundo.

Em quaisquer outros países, jo vens e velhos, as discrepâncias re gionais, os contrastes étnicos, as diferenças, lingüísticas, religiosas, culturais e “radicais” são mais acentuadas do que entre nós. Os provincianismos, os particularismos, os paroquialismos, as ir validades - as barreiras que sepa ram os homens, em suma - são maiores.

As distâncias e dificuldades de comunicação que atuaram geogra ficamente no sentido de criar ilhas regionais no continente brasi leiro foram superadas por uma permanente movimentação da população, a qual, desde os tempos coloniais migrou livre e maciçamente do sul para o norte, do leste para oeste e reciprocamente, desde os tempos dos bandeirantes até aos nossos dias, nos ciclos da mineração, do cacau, da bor racha e do café, no povoamen to dos estados de Mato Gros so, no desenvolvimento do Paraná, na construção de Brasília, na con quista do cerrado e do Amazonas, nos afluxos para os grandes cen tros urbanos, nos grandes empre endimentos de construção da infraestrutura, na abertura de estradas, na expansão de fronteiras econô micas.

As regiões jamais foram limites para os brasileiros. Em todas elas, seja nos grandes centros urbanos, seja nas mais remotas implantações rurais e extrativas, há brasileiros de todos os estados e procedências.

O brasileiro é, desde o início aos dias de hoje, um homem continen-

tal.

4» Ponto; A DEMOCRACIA HUMANA BRASILEIRA

O quarto ponto, intimamente li gado ao terceiro, e que fecha a moldma do quadro, é o universalmente

reconhecido espírito brasileiro de abertura, acolhimento e calor nas relações pessoais. Essa atitude pas sa por cima de todas as diferenças sociais e culturais, permitindo aproximação e entendimento direto entre as pessoas, impedindo e dis solvendo a formação de barreiras de quedquer natureza na vida coleti va. Dessa forma as diferenças con cretas, locais, étnicas, culturais e sociais que existem em todas as sociedades não se erigem entre nós em preconceitos e discriminações institucionais intransponíveis, se jam elas econômicas, culturais ou “raciais”, permitindo intercâmbio, miscegenação e integração entre os indivíduos, por mais distintos que sejam.

Esse tipo de relacionamento pes soal anti-convencional, constitui uma variedade de democracia que admite mas transcende as diferenças existentes entre as pessoas, cri ando um clima de convivência ecumênica. Trata-se de uma varie dade única de relacionamento hu mano, imediatamente percebidapor qualquer visitante estrangeiro, as sim como por qualquer brasileiro que visite outros países. Fácil de perceber, é difícil de caracterizá-la, por se tratar de uma qualidade de espírito, íntima e subjetiva, que im pregna todas nossas relações pes soais. Seus efeitos são, entretanto, aparentes, quando se observa o que se passa nas demais nações do mun do, sejam elas “novas” ou “velhas”, onde diferenças de natureza étnica, religiosa, social e cultural se cons tituem barreiras como infranqueáveis entre os indivíduos e em fatores de desentendimento pessoal insuperável.

Pense-se na nação que se queira. Em todas elas se encontrarão re giões, populações, grupos, não as similados na sociedade nacional, isolados por diferenças que se tra duzem por divergências e barreiras que dificultam ou mesmo inviabilizam a convivência entre pessoas, não raro originando ódios, divisões e confrontos sangrentos.

É o espírito de “democracia hu mana” que une nosso povo acima de todas as divisões que pennite compreender as soluções incruen tas que têm sido dadas em nosso país a questões que, em outros, re sultaram em gigantescos conflitos e ressentimentos, animosidades e ódios dificilmente superados. É ele que tem impedido que as grandes questões nacionais desfechem em revoluções e que as revoluções se convertam em guerras civis. Os exemplos clássicos da libertação dos escravos, da passagem da mo narquia para a república, se repe tem na transição democrática de 1985 que ainda hoje vivemos. Pense-se no que isso tem custado na história de outros países e na sepa ração que tem ocasionado entre seus habitantes.

Vista pelo seu melhor sentido, a exaltação das diferenças existentes entre brasileiros de etnias, regiões e condições econômicas e culturais diversas, deve ser entendida não como um esforço de erigir barreiras onde elas inexistem, mas como ex pressão de sensibilidade e r^údio, visando a eliminar todos os resídu os de preconceitos subsistentes.

Na escala mundial inexiste povo mais aberto, mais livre de barreiras humanas e pessoais do que o nosso. É nesta moldura de tempo, pes soas, espaço, trabalho e relações humanas que se deve enquadrar o retrato do Brasil.

Em 1930 éramos ainda “uma nação essencialmente agrícola”, cuja produção de escala se reduzia aumúnico produto, o café. Não tení mais do que 50 anos a moderniza ção brasileira. Volta Redonda, nos sa primeira grande usina siderúrgi ca, data de 1947. Tem pouco mais de 30 anos o esforço que interligou em uma rede nacional de transpor tes e comunicações os grandes e distantes núcleos regionais brasi leiros. É desta geração a rodovia asfaltada que liga São Paulo e Rio, as duas maiores cidades e capitais do País. É deste tempo, também, a grande rede energética nacional.

As 6 gerações de poucos habi tantes que há 166 anos (7) apenas trabalhamos um espaço continen tal, ainda não desbravados quiçá mais do que 40% de nosso território e só superfícialmente inventaría mos e pusemos em utilização plena seus recursos.

Não tem mais de 20 anos a des coberta das jazidas minerais de Carajás, das maiores do mundo. Serra Pelada tem menos de lOanos. É desta geração o início da explo ração do “cerrado”, região cuja superfície de 2 milhões de Km2, superior a de muitas nações, tida como árida, vai se transformando numa das maiores produtoras de grãos do mundo. Em várias velhas cidades auriferas brasileiras, voltase a descobrir ouro nas ruas e quin tais, deixado pela sumária explora ção das catas e garimpos. O Brasil continua em fase de descobrimen to, desbravamento, ocupação, va lorização de suas terras e irquezas. Onde surgem iniciativas, a res posta da população é pronta e cria tiva. No alto Mato Grosso, próxi mo às fronteiras dò Pará, há 8 anos se iniciou Alta Floresta, hoje uma cidade de 180.000 habitàntes, 50 indústrias, 964 estabelecimentos comerciais, 502 empresas de servi ços, 8.492 proprietários agrícolas, dotada dos mais modernos recursosurbanos: no séculoXXinstalada em plena selva. (8) Em matéria de hidrovias e ferrovias quase tudo está para ser feito, mas grandes projetos começam a caminhar (9) Outras cidades comó Alta Floresta e outros empreendimentos com a envergadura deste se acham gestação no País.

Na atualidade, alcançamos em todos os setores, econômico, cul tural, artístico, profissional, tecno lógico e empresarial, níveis que nada ficam a dever aos de maior modernidade mundial. Tais níveis ainda se acham limitados a peque no contingente da nossa população suficiente para, no período de duas gerações - os próximos 50 anoselevar a grande massa da produção

brasileira ao nível de educação, saúde, alúnentação, habitação e cultura já conquistado pelo Brasil moderno. Essa população e seus problemas, que hoje é vista como o grande passivo e o componente re volucionário da atualidade brasi leira, na realidade constitui o desa fio mais construtivo e o ativo de maior significado para o projeto nacional nas próximas décadas. Na atualidade, essa população que era dominantemente rural há 50 anos, é hoje dominantemente urbana: 73% dela vive em cidades. Essa porcentagem de urbanização, que corresponde praticamente à dos países desenvolvidos, facilitará sua modernização. O trabalho de integrá-la em nossa modernidade é um dos mais produtivos, ricos e belos esforços, aberto ao futuro do País e ao projeto nacional brasilei ro, de uma nação continental construída por um dos povos mais firatemos, alegres e humanos do mundo. Poucas nações -se alguma outra existe - podem oferecer aos seus jovens, às próximas gerações, desafio mais empolgante, perspec tivas mais amplas de construir e realizar-se.

No mimdo inteiro hoje se fala do século XXI como o portal de uma nova era e vê-se a tecnologia e o conhecimento como o caminho do progresso humano. Entretanto, tecnologia e conhecimento não passam de instrumentos. Pré-condição de sua utilização é o entendi mento entre os homens, uma convi vência não ameaçada de desunião por diferenças e barreiras. Diferen ças econômicas objetivas são mais facilmente reduzidas e superadas do que barreiras subjetivas alicerçadas em divisões étnicas e culturais que inviabilizem o relaci onamento entre as pessoas. Sob este aspecto o Brasil é iima das nações mais avançadas entre todas as ve lhas e novas nações do mundo, constituindo exemplo prático de um humanismo pluralista que repre senta um paradigma espiritual a ser seguido se o Terceiro Milênio deva

ser a idade do ecumenismo planetáno.

Neste sentido, soam como pro féticas as palavras do eminente pensador brasileiro, Alberto Tor¬ res:

“O Brasil é um país destinado a ser o esboço da humanidade futu ra”. (1911)

À luz dessa perspectiva os ma les atuais não passam de proble mas de uma nação adolescente que marcha em direção a sua maturida de. As graves questões do endivi damento e da inflação não passam de perturbações da infância, abalos conjunturais, crises de crescimen to. As impiedosas críticas que fa zemos a nós próprios, são testemu-

Entre

1870

e 1987 0 Brasfl foi o pffl's que nnis cresceu no mundo

nho da impaciência e do vigor com que queremos crescer e realizar o projeto brasileiro. (9) É errado, en tretanto, julgar por elas o País. Essa avaliação só pode ser feita vendose o retrato do Brasil por inteiro: o que até aqui realizamos e as ilimi tadas perspectivas abertas ao nos so futuro.

Entre 1870 e 1987 o Brasil foi o país que mais cresceu entre todas as nações do mimdo. Neste período o Produto Interno Brasileiro aumen tou de 157 vezes, o do Japão 84 vezes e o dos Estados Unidos 53 vezes. O espaço geográfico, econô mico e cultural do Brasil continua aberto para a manutenção desse ímpeto. (10)

Este é o desafio para as próximas décadas e as perspectiva que se oferecem no presente, desde já, às velhas e jovens gerações de brasi leiros.

NOTAS:

1. Veja-se o último parágrafo de Capí tulos da História Colonial, Edição da Sociedade Capistrano de Abreu. F. Briguiet & Cia., 1934.

- Dados sobre a população brasileira em Estatísticas Históricas do Bra sil, Rio, IBGE, 1987, especialmen te pg. 28.

2. Estudos de Geografia do Brasil, Melhem Adas, São Paulo, Editora Moderna Ltda., 1985, pg. 110.

3. Em 1819, de uma população de 3.167.900 pessoas, 843.000 eram brancos (23%); 259.400, índios (7%); 1.887.900, negros (52%); e 628.000mestiços (17%). - Fonte: A Província de São Paulo, 17 de ja neiro de 1878.

4. IBGE, op. cit., pg. 33

5. Facts and Figures of Japan, 1987, Tokyo,ForeignCenter Press, 1987, pg. 10. Dados de 1984.

6. Geoige Sansom, History of Japan, 1615-1867, vol. III. Stanford Univeisity Press, pg. 107.

7.0 Estado de São Paulo, São Paulo, 31.8.1988, última pg.

8. Jornal da Tarde, São Paulo, 26.9.1988, pg. 10

9. Para conhecimento correto da questão do endividamento mundial, leia-se Do embuste da dívida ao absurdo dos pri~ vilégios à exportação, Jacques Dezelin, Rio, Espaço e Tempo, 1987. Fica-se sabendo que en tre 122 nações a dívida brasi leira é média; ocupa o 59® lu gar em volume e o 44® “per capita”.

10. Desempenho da Economia Mun dial desde 1870. Angus Madison, Ed. do Instituto Femand Braudel, São Paulo, 1988.

O autor, formado em Ciências Soci ais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, é ensaísta, conferencista e poeta. Foi por 20 anos colunista d’0 Estado de S. Paulo” e do “Jornal da Tarde”. Autor, entre outras, das seguintes obras: “O merca do de capitais dos Estados Uni dos - Organizações e seu funcio namento (trad.), “Mudanças Econômicas Mundiais e a Crise Brasileira”, “Japão - A harmo nia dos contrários”, “Viagem ao Japão”, “Rapsódia de Ouro Pre to” (poesia), “O viandante e sua viagem” (poesia).

Em Mato Grosso, com um padre, um advogado e dois posseiros cria-se um conflito agrário

GRICULTURA,REFORMA AGRÁRI EIDEOLOGI í k

Toi então pela primeira vez promulgada a lei agrária, desde aguela época, até hoje, nunca mais foi discutida sem provocar as mais violentas comoções”.

Tito Lívio, sobre a primeira lei agrária de Cassio (486 a.C.)

Deputado Federal

confusão em tomo das ocupações de terras, dos movimenf^tos políticos e dos desafios à ordem jurídica, interessa-me parti cularmente porque foi sob minharesponsabihdade que se elaborou, no Governo Castello Branco, o Estatuto da Terra, documento ao qual geral mente se reconhece um caráter mo derno e inovador. Se houvesse sido adequadamente cumprido, com toda a probabüidade teria reduzido a um insignificante resíduo os problemas (reais alguns, imaginários outros) que ora esquentam o debate púbhco. . 1

Muitos leitores se sentem per plexos com invasões organizadas como operações de guerra, e tama nha complicação para assentar em algum lugar alguns lavradores, num pds com tanta terra. Mas vamos por partes. O que há, na verdade, não é uma “questão agrária”, mas uma série de questões que se desdo bram a partir de pelo menos quatro vetores principais. Vejamos:

1. Há uma questão econômica, a da agricultura, que tem de alimen tar e prover de matérias-primas uma população urbana que já está próxi-

ma dos 80% do total do pais.

2. Há uma “questão social”, que se subdivide em duas: (i) prover fatores de produção para o aprovei tamento de mão-de-obra quaUficada, capaz depfoduzir eficientemente (em geral, vítima das sucessivas divisões, por herança, das terras da família) e gerar excedentes para o mercado, e (ii) dar uma base de subsistência para agricultores nô mades, posseiros e outras categori as sem quahficação especial.

Note-se, a pro^sito, que o “bóia.fiia” resultou da demagogia do Esta-

Os chamados sem terra reivincficam a reforma agrária

tuto do Trabalhador Rural, do Go verno de João Goulart, que cerceou a gestão do fazendeiro, forçando-o, para sobreviver, a livrar-se de meeiros, arrendatários, colonos etc. —mecanismo de grande capilaridade vertical pelo qual os imigrantes euro peus e japoneses de São Paulo acaba ram por expelir do campo os “quatrocentões”. A simples moder nização desse Estatuto geraria enor me absorção de mão-de-obra, da mesma fonna que a eliminação do corporativismo fascista da legisla ção do trabalho (grande culpada pelo

“custo Brasil”) aumentaria muito a oferta de emprego.

3. Há uma questão ideológica, na realidade resumida a antigas pala vras de ordem, importadas pelas esquerdas na fase da descolonização e da guerra fria entre os blocos ocidental e soviético. No auge des ta, 1957-1964 - entre o Sputinik, o primeiro vôo espacial tripulado, e a queda de Khruschov - a União So viética parecia embalada num cres cimento econômico e tecnológico fantástico. Pretendia ultrapassar os Estados Unidos até o fim do Segun-

do Plano Septenal (1972)!

4. Há, por fim, questões relaciona das, por um lado, com a preservação da ordem pública c do Estado de direito, e por outro, com as enonnes deficiências práticas da regulariza ção jurídica da propriedade mral. O Estatuto da Terra partiu de uma análise teoricamente elabora da, mas fácil de explicar. O Brasil não possuía um “campesinato”, como 0 que resultou na Europa (c persistiu muito tardiamente na Eu ropa Oriental) da desintegração das relações de produção do modo feu-

dal de produção; nem como o da índia ou da China, representativos de outros modos de produção não estritamente “feudais”; nem como o de certas comunidades indígenas da África e da América Latina, v.g., México, tecnologicamente rudi mentares, mas dotados de formas fiincionais de solidariedade social. Não tivemos a “aldeia”, com seus laços comunitários, nem grandes senhores de terras, aristrocráticos ou mercantis, que viviam de extrair rendas do camponês pelo uso da terra. Apenas algumas poucas áreas do nosso vasto território (no Nor deste, por exemplo) lembrariam vagamente essa condição. Essa es trutura agrária estratificada e de baixa produtividade tendería a de saparecer com a industrialização.

A repartição da terra era um grito revolucionário autêntico naquelas sociedades camponesas. Numa economia moderna, faria tão pouco sentido quanto a ocupação das fá bricas e distribuição das ferramen tas entre os trabalhadores. No Bra sil (como nos Estados Unidos ou na Austrália, onde não preexistia uma sociedade agrária tradicional indí gena), o problema prioritário era assegurar a base para uma política agrícola que privilegiasse o aumen to da produção e a alta produtivida de. Note-se, a propósito que o Esta tuto da Terra veio no momento em que sedefíniaumadecisivamudança estrutural na nossa agricultura. De 1920 a 1970, a produção agrícola brasileira cresceu mais ou menos linearmente, de modo extensivo, pela incorporação quantitativa de dois fatores, terra e mão-de-obra. Mas já a partir da década de 60 começava a perceber-se a intensifi cação de capital e tecnologia, com máquinas e insumos modernos. De 1960 a 1994, o PIB real do país passou de um índice de 100 para 510,8. A participação do setor agrícola no PIB caiu, no entanto, de 17,8 em 1960 para pouco mais de 10% em 1980, desde então oscilan do em tomo desta última cifra. Por outro lado, a população rural é hoje

menor do que em 1990, de modo que a produtividade agrícola per capita teria um índice de quase 370 para 100 em 1960.

Essa estmtura produtiva, que hoje produz 80 milhões de toneladas de grãos (cinco vezes mais do que em 1960),não podia ser posta em irsco, sob pena de comoção grave. Por outro lado, era preciso acomodar os agricultores viáveis, e dar um míni mo de condições de suficiência aos não capacitados.

A essência do problema era, pois, completar uma “revolução capitalis ta” na agricultura, acabando com os restos das formações pré-capitalistas. Para isso, era preciso que o custo da terra fosse determinado pelo seu produto marginal - ou, dito menos tecnicamente, que a terra oferecesse uma rentabilidade comparável a ou tros ativos, ao invés de ficar ociosa em grandes propriedades, como re serva de valor. Imaginamos, então, três mecanismos básicos: 1. imposto territorial

2. progressivo; zoneamento; e 3. saneamento do re gistro dapropriedade rural. O imposto puniría os improdutivos e os que maltratassem a terra, e com a sua arrecadação havería recursos sufici entes para assentar os pequenos agri cultores qualificados, e para dar al guma terra e assistência aos não qua lificados.

O Estatuto praticamente não foi implementado, por uma série de razões, que não cabe examinar aqui, entre elas a complicada conjuntura internacional dos anos 70 em dian te, e as questões políticas internas. E as dificuldades práticas de uma geografia do tamanho da nossa revelam-se piores do que o esperado.

Quanto à questão ideológica, acredito que há uma esquerda “fora do ar”, despreparada, que ainda vive nos anos de ouro da “gloriosa Pátria do Socialismo”.

Marx, que detestava a idiotice do campo, queria a organização de bri gadas agrícolas - idéia que, na versão stalineana dos “sovkhoses”, pro vocou 0 irreversível desastre da agricultura soviética (causando uns

14 milhões de vítimas). Mas há, também os menos inocentes, que vêem na agitação no campo—pela ameaça à agricultura e ao abasteci mento das cidades — um instru mento de intimidação para reforçar sua base política “socialista”. Assentar agricultores é relativa mente fácil, desde que se contenha a invasão de terras produtivas, que é uma perversão ideológica perigo sa. Mas não é barato. Fala-se em 40 mil reais por família. E as trapalha das usuais do Governo não ajudam. Em Mato Grosso, por exemplo, quase todos os projetos oficiais fracassaram, em contraste com as colonizações privadas. Na agricul tura atual, além da tecnologia e de insumos industriais caros, máqui nas e equipamentos pesam muito. Nos Estados Unidos (1991), a mé dia desse item era de 42 mil dólares. Ali, 90% da mais poderosa agri cultura do mundo são tocados por 650 mil estabelecimentos de alta eficiência (31% do total), com me nos de 2% da força de trabalho. Por fim, temos a questão da or dem pública. Há, certamente, con fusões sobre a legitimidade dos tí tulos, que, em algrms lugares, for mam vários “andares”.

E há a “grilagem”. Velha tradi ção. E não apenas de terras. O setor público é grilado pelos “marajás” e pelos corporativistas das estatais, sob o manso olhar dos governos. É valido o Movimento dos Sem-Terra ir à Justiça contestar títulos de

propriedade duvidosos. E o Gover no deve recuperar terras abusi vamente apropriadas. Caso neces sário, pode desapropriar, pagando a indenização devida. Tudo dentro da lei. E sem privilegiar os fabri cantes de “conflitos’ porque o “conflito” é organizado profissionalmente. Em Mato Grosso, com um padre, um advogado e dois pos seiros, cria-se um conflito agrário. A condição da liberdade é o Estado de direito, essa invenção liberal que os coletivistas detestam. Por isso, primeira obrigação do Governo é cumprir a lei. m a

Saimos da U TI

Estamos melhorando.

Mas é preciso atenção para os remédios

UTI EAGU i

JoséSamey

Presidente do Senado

de saúde. É uma

s nações, como as pessoas, passa a vida administrando problemas pedrinha na vesícula, uma dor de cabeça de vez em quando, é uma unha encravada, às vezes problemas agudos, apendicite, hemorróidas, amídalas, pressão alta, taquicardia e, quando as coisas vão muito bem, surge um esporão do calcâneo ou um calo no pé.

As vezes, ocorrem problemas gra ves, infecções agudas, hos pitalizações, complicações, pontes de safena, válvulas, a vida é ameaçada e, para mantê-la, usa-se a UTI.

O Brasil tem suas doenças, algu mas crônicas necessitando de remé-

dio permanente, cuidados e regirne especial. Tem que andar todo dia, fazer cooper, ioga e tomar aspirina. Mas não está com problemas de UTI. Senão, vejamos: os principais problemas agudos de um país, que levam a dificuldades extremas, são política cambial, falta de reservas, saffa agrícola comprometida por problemas climáticos, catástrofes de grande amplitude, problemas polítide sustentação, crises militares, ameaças de conflitos externos, caos interno, crise internacional com re percussões nacionais, crise econô mica.

COS Ora, 0 Brasil neste momento tem grandes reservas internacionais, tem

uma taxa de inflação baixa; não se depara com nenhuma perspectiva de chuvas, neste ano, bom. Não existe nenhuma perspectiva de conflito extemo potencial, fronteira com dez países, sem nenhuma questão rema nescente, a situação internacional al tamente favorável, juros baixos, pre ço de petróleo baixo, dívida externa sob controle e interna em nível de padrões internacionais em relação ao PIB, boa.

Temos um presidente equilibrado (o contrário seria outro fator de desestabilização), com larga experi ência política, militância, foi minis tro da Fazenda, conhece a economia, foi ministro das Relações Exteriores,

f I»

Presidente José Sarney, cauteloso e prudente nas críticas

tem uma visão internacional dos pro blemas e da interdependência do país à ordem internacional.

Portanto, o país não está na UTI. Não tem problemas agudos. E um excelente momento. Há paz social, não há desintegração política, não há divisões proftindas de natureza reli giosa nem de raça.

O Brasil conta como trunfo estru tural ser um grande mercado, já in dustrializado, ter grandes riquezas naturais c recursos humanos de gran de potencialidade.

É um paraiso? Não. Temos pro blemas mas graves? Temos. Pode mos, se errannos, entrar de novo na UTI? Podemos.

Remanescem, como disse, os problemas de saúde. E há necessi dade de cuidarmos deles. Existe o problema educacional, caótico, porém fator libertário e, hoje, bási co para o desenvolvimento, pois implica no domínio do conheci mento. A média chilena de escolarização é de oito anos e sete meses; da Argentina, oito anos e

três meses. A brasileira, três anos e três meses, é uma tragédia.

A área de transporte está atrasa da 20 anos, não entramos ainda no equacionamento intermodal, crioumentalidade rodoviária e

se a abandonamos o transporte do pas sado e o do futuro que é o ferro viário.

Há uma estrutura institucional que toma o país ingovernável, baseada nesta Constituição de 88, responsá vel pelo atraso do país. Mas há uma vontade nacional de superar esses óbices e o Congresso começa a votar as reformas com determinação.

Esta visão geral nos dá confiança, mas nos dá a dimensão dos desafios que nos aguardam, necessitando da visão de Estado, dos nossos dirigen tes e políticos. Esta é uma hora que só tem lugar para a grandeza.

De Gaulle dizia que a França era maior que os Iranceses. Quer dizer, todos nós somados, brasileiros, so mos menos que o Brasil. Este é eter no, nós somos passageiros desse pri vilégio de ter nascido neste grande país, que tem um destino no mundo.

Saímos da UTI. Estamos melho rando. Mas é preciso atenção para os remédios. Estas pílulas dos juros al tos têm terríveis efeitos colaterais, bem como as cápsulas da tentação da infabilidade do tratamento. Humil dade e água benta não fazem mal ninguém.

A segurança pública marcha para um desfecho extremo. A violência passou a ser endêmica c o caso do Rio dc Janeiro nos mostra uma face de guerra urbana. O país está ameaçado pelo medo de viver e pela falta da paz interna, tão essencial à qualidade de vida. Os indicadores sociais são dos mais baixos do mundo. Há bolsões de po breza intoleráveis. Há desniveis regi onais que impõem situação de misé ria a muitas regiões e o emprego, que é um direito do cidadão, passa a ser um privilégio. A pobreza começa no desemprego. Há níveis de salário in compatíveis com a dignidade das pessoas e uma concentração de renda que não pode continuar. a

Não se deve entender a individuação com o individualista

HOMEM QUEST

Da Escola Politécnica da USP

Depois da Segunda Guerra

Mundial, a humanidade tor nou-se bem consciente de que não é possível transformar, para melhor, a sociedade se o homem permanecer o mesmo com toda sua capacidade, desejo de poder e incompetência social. Tomou-se patente, ainda, que o homem atual sofre de uma profunda dissociação psíquica. Por exemplo: presou, nem se discutiu tanto a li berdade humana e, ao mesmo tem po, nunca o homem sentiu-se tão subjugado à ordem social e às im posições institucionais; isto é, como se costuma dizer, ao sistema. Ora,

dessa dicotomia resulta que o ho mem de hoje sofre a divisão de seu interno pela pressão de constantes solicitações opostas. Enfim, a vida de hoje leva aum estado esquizóide, caracterizado pelo querer e não querer a mesma coisa.

Constatou-se, por outro lado, que há uma dissociação política do mundo paralela à dissociação psí quica do homem moderno. De um lado a planificação, e a ordem e o autoritarismo são tidos como única solução para os problemas sociais; do outro, os direitos civis, a liberda de democrática e a dignidade do indivíduo, como conquistas a nunca se

inalienáveis da civilização ociden tal. À medida que a ordem técnoeconômica foi-se mostrando im prescindível para manter a existên cia humana num mundo superpovoado, nossa cultura vem exigindo preservação da liberdade individual como requisito imprescindível da mesma existência. E disso nasce o conflito entre liberdade individual e ordem social que nós todos so fremos na nossa própria vida quo tidiana.

Ora, tudo isso levou ao campo da psicologia e, mais especifícamente, ao da psicanálise a preocupação com os problemas sociais. O que se

verifica mais nitidamente em todos os descendentes da escola freudiana. C.G. Jimg, por exemplo, parte da constatação da dissociação política paralela à da psique a que nos re ferimos acima.

Qual a ponte que pcmiitiria es perar c ultrapassar essas dissociações? pergunta Jung. Desde Freud que se sabe que a parte in consciente da alma humana é do minada por tendências opostas: a libido (de natureza sexual, segundo Freud) c a regressão (incapacidade, inibição, volta a estados infantis). Ambas submetem a alma humana à dissociação entre os desejos de vida c preservação c os de morte c des truição. São energias psíquicas que SC alternam na alma do homem e que não são mais do que o que se chamava, desde os tempos clássi cos de Empcdoclcs, de amor e ódio. O impulso de vida cm oposição ao de morte.

Jung, analisando a questão mais profundamente, mostrou que uma parte de nosso inconsciente não é mais individual. É coletiva; perten ce, a toda a humanidade; pois, manifesta-sc de maneira semelhante tanto nos sonhos c alucinações individuais, como nos mitos e len das de todos os povos em todas as épocas. Pois bem, a energia incons ciente manifesta-se simbolicamen te por meio de figuras que aparecem nesses sonhos c nessas lendas. São os arquitetos do inconsciente, per sonagens das fantasias e dos mitos, por exemplo; a mãe boa e a terrível (a madrasta das estórias de fadas), e o papai protetor ou castigador. A figura do herói iluminado eontrapõe-se a uma figura sombria e ame açadora, como um demônio: a sombra. Uma mente equilibrada e sã é o resultado da harmonização desses polos opostos de energiamantidas dinamicamente cm tensão. O desequilíbrio se dá quando uma delas, prevalecendo sobre as ou tras, toma conta do inconsciente. A loucura é a subjugação da totalida de da mente consciente e incons ciente por um arquétipo. A mente

desequilibrada poderá ver, fora de si - projetado no mundo - um com ponente de seu inconsciente. Por exemplo: é possível, para muitos homens de hoje, verem Amim Dada a projeção da “sombra” - o persona gem sombrio do inconsciente cole tivo. Então eles verão nele não num presidente africano, mas a própria personificação de tudo que é amea çador, sombrio e destruidor para a

Jung mostrou que parte do nosso inconsciente não é mais individual

totalidade da humanidade. Não é difícil compreender, sob essa pers pectiva, 0 terror exacerbado pelo comunismo, por parte de certos políticos, ou a preferência incontroladapclo autoritarismo, por parte de outros. O fanatismo reli gioso ou político pode também ser explicado dessa forma. Enfim, essa teoria explicaria também, o paralelismo entre a dissociação po lítica e psíquica de que se está tra tando.

mente, ao seu oposto: a auto-destruição pelo vício e pela miséria (o que não deixa de ser uma regres são).

Segundo Jung, a grande maioria dos homens ainda precisa da or dem, pois os poucos que dela não precisam a substituem por uma forte consciência moral; o que não é comum na humanidade. Pois, sob esse ponto de vista, a humanidade ainda está em sua infância. Por tanto, é bem possível que a saída não esteja na supressão de um dos polos; mas, na aceitação da per manência da tensão entre os dois. Jung é dessa opinião. Aconselha ele: torna constantemente cons ciente, por meio da análise, tudo que passa na própria psique. Todo e qualquer sinal alarmante do in consciente que se manifeste sim bolicamente, em sonhos, fantasias, atos falhados, ao correr da vida quotidiana, deve ser conscientizado e- analisado com toda a clareza. Procurar-se-á cuidadosamente não cair no engano da auto-adulação ou da auto-complacência, cuidan do de não enganar-se a si próprio. Por outro lado, procurar-se-á livrar de toda projeção; isto é, atribuição a coisas ou pessoas do mundo, dos nossos temores, emoção e defeitos. Tais projeções ocorrem principal mente com as pessoas mais próxi mas nas quais, se não tivermos cuidados, projetaremos os conteú dos dominantes de nossa própria psique sem, ao menos, sabermos que assim o estamos fazendo. Pois, como tal fenômeno é inconsciente, veremos neles não o seu comporta mento, mas, os das nossas próprias figuras arquetípicas. Entretanto, não é só com os próximos que isso acontece. São possíveis as proje ções sobre estranhos ou mesmo sobre pessoas há muito tempo sentes ou mortas.

E necessário uma modéstia constante em relação a si mesmo, no reconhecimento das próprias imperfeições, e isso corresponde, no plano arquetípico, a reconhecer e aceitar sua “sombra”. Com excr-

Como haver-se como tal dissociação? Há correntes psicanalíticas que pretendem a libertação do homem de toda e qualquer re pressão, para impedir a regressão. Curiosamente tais doutrinas encon tram acolhida favorável em exten sas camadas de nossa sociedade, principalmente nos “hipies”. Mas, a própria supressão de toda a re pressão tem levado, paradoxalau-

cícios constantes desse tipo é que o homem moderno podería combata sua dissociação e, deixado de proje tar no mundo essa sua dissociação, melhorá-lo. Jung diz: “Não estou animado por um otimismo desme dido, nem entusiasmado por algum ideal solene. Simplesmente preo cupa-me o destino, o bem estar, as infelicidades do homem, esta uni dade infinitessimal da qual depen de o mundo”.

Uma outra contribuição impor tantíssima de Jung à psicologia

profunda é o conceito de individuação. A individuação é o fim e a meta da análise jungeana. Individuado é um homem livre de regressão e da projeção, não porter encoberto um dos polos energéticos de sua psique mas, por mantê-lo em tensa conjugação como opos tos. É um homem centrado em si mesmo e consciente das tendên cias opostas que constituem sua alma É um homem capaz de en frentar circunstâncias mais adver sas, livre do perigo de tratar com

parcialidade esses dois grandes in trusos: o triunfo e a derrota. Não se deve entender a individuação com o individualismo, pois o eu indi vidual é somente a parte conscien te daquele centro da personalidade a que nos estamos referindo. A maior parte dele permanecerá in consciente e abarcará mesmo o in consciente coletivo onde todos os impulsos contrários estarão em oposição. Esse será o homem novo capaz de bem governar ou bem ser governado. #

QUEM PROCURA NEGÓCIOS, ACHA

Quem precisa atingir diretamente o empresário sabe que o Diário do Comércio é o veículo certo.

Porque mantém há 66 anos a tradição de jornal especializado nas áreas econômico-financeiras e jundico-legais.

Porque é dirigido a mais de 32.000 empresários associados ã ACSP. Quem procura negócios, acha.

Ao juiz cabe tender a um processo justo, direcionado à procura da verdade

CONDENAÇÃO DE JESUS JUSTIÇA SUMÂRI

CarlosAurélioMotade Souza

É magistrado aposentado e professor na Faculdade de Direito da UNES,P Campus de Franca (SP).

Umlivro que incita àreflexão de

queni cultua o Direito Penal é o de Piero Pajardi, magistrado em. Milão, recentemente falecido: “IL processo di Gesü” (Giuffrè, 1994).

Católico professo, Pajardi che ga à singular conclusão de que tanto o processo religioso perante o Sinédrio, como o posterior, diante do governador Pôncio Pilatos, fo ram

Foram, portanto, processos re gulares: “Não descarreguemos so bre o processo culpas que não são do processo. Assumâmo-las todas e todos. Já fizemos a mesma coisa” (P.XXVIII).

Entretanto, parece-nos que, dentro de um projeto de salvação do Homem, e para o momento mais transformador da História, a Sabe doria não agiu arbitrariamente, ao contrário, escolheu o tempo, o lu gar e o modo da morte de Jesus. Era exatamente aquele o “tem po” em que havería de ser permi tido aos homens de fé encontrar-se terrivelmente” legítimos: “Uma imputação precisa, uma instrução suficiente, uma possibi lidade de defesa, uma deliberação; enfim, um regulamento de com petência, uma execução” (p.77). com a Boa Nova! O homem não

podia mais esperar o Verbo da Gra ça e da Verdade; não podia mais suportar a própria solidão: tinha necessidade do “Amigo” que lhe ensinasse a amar sem limites e aliviasse os seus trabalhos.

Escolheu o “lugar”, a Palestina, oprimida pelas autoridades judai cas e romanas, com regras jurídicas bem distintas.

Escolheu ainda o “modo”, a morte na cruz, como resultado de um “processo”, aliás dois, lun reli gioso, diante do Sinédrio, e outro civil, perante o Governador.

Jesus não se subtraiu às leis dos homens, aceitou o “processo” e

“desejou” ser julgado, mesmo sa bendo qual sentença estaria sendo pronunciada e que morte atroz de veria sofrer.

Não é fundamental para nós acreditarmos se os dois processos foram ou nào legítimos. Isto pode interessar somente a quem se limita a aceitar um conceito “formal” de justiça, segundo o qual é justa a sentença quando respeita a lei, estri tamente.

Ao contrário, in teressa-nos o julga mento expresso, a final, “aquela sen tença”. E foi, inega velmente, uma sen tença injusta. Por isso, mesmo hoje, após vinte séculos, “aquele processo” ainda atormenta os juizes e os juristas.

Injusta porque traiu um princípio universal, ode dara cada um o que lhe é devido, por haver condenado a Jesus, sabendo-o inocente. Injusta porque con trária à verdade, e não porque o pro cesso

pela “rua” (pela “vontade do povo”, sabiamente manobrada) e pela ra zão de Estado. E traindo o dever de imparcialidade, pronunciou a con denação à morte!

Pilatos simboliza todos os ho mens que têm horror à Verdade: “Quid est veritas?”. A Verdade es tava ali, diante dele, em carne c osso, mas virou as costas, de medo.

mas sobre a própria capacidade humana de saber, com certeza, onde se encontra a Verdade.

É o sarcasmo dos céticos!

Foram, portanto, duas senten ças “injustas”, mesmo que, apesar disso, fossem plenamcntc legíti mas!

A Providência, entretanto, queria” deixar à História uma mensagem, ou seja, uma lição dc proce dimento penal, que tantas e muitas ve zes parecemos es quecer: a finalidade dc um processo pe nal, dc qualquer processo (que já cm si é um pena!), é aquele dc acrescen tar a uma sentença, proferida por um juiz super partes, que seja “conforme à verdade”.

inquinado de víci-

estivesse os.

Quando Jesus respondeu a Caifás ser“FilhodcDcus”, disse a verdade, mas não foi acreditado, não obstante múltiplos “sinais” de sua vida, sobre os quais deveríam ter refletido to dos os sacerdotes. Mas foi, r dc inocente, condenado porblasfêmia! os 0 julgamento de Jesus

E quando coube a Pilatos inter rogar a Jesus, deu-se conta dc sua inocência e chegou a exclamar: “Não encontro nenhuma culpa neste homem!”, mas não foi conseqücnte, pois se deixou condicionar

Com isso, permitiu que fosse perpetrada a mais cruel violência sobre o mais justo dos homens; c para fugir à responsabilidade por esse crime, hoje classificado dc hediondo, lavou as mãos, para que o sangue do justo caisse sobre ou tros, que não ele; enfim, plantou no espírito dos homens a semente da dúvida, não sobre uma verdade, apesar

Aceitar a verda de, no pleno respei to aos direitos invioláveis do ho mem, sobre um fato culposo que sc ad mite cometido: é aquela rcal, materi al c não já aquela meramente formal, que não satisfaz, nào pode satisfazer à consciência c que minaacrcdibilidade na justiça.

Cabe-nos, pois, recordar sempre, que Cristo veio a ser injustamente con denado porque o Grande Sinédrio traiu a verdade, c Pilatos traiu seu dever dc juiz imparcial.

Definitivamente, a Sabedo ria “queria” deixar-nos, através do Evangelho — mesmo para os que não crêcm — o testemunho de um clamoroso erro judiciá rio. E quer que seja recordado por todos os séculos, para que

possamos tirar dele todas suas conseqüencias.

Ainda hoje, “aquele processo” soa tragicamente como admoestação não só para o Ministério Público e Juizes, mas também para os ju ristas em geral, para os meios de comunicação e para cada um de nós, partícipes daquela indistinta “praça pública”, sequiosa de uma justiça primária e imediata, e que, privada de misericórdia, faz transparecer inveja e vingança.

Quantos “cristos” são, ainda

hoje, “injustamente” privados da liberdade, processados e até mes mo condenados? Quantos, “injus tamente”, percorreram a via crucis daqueles dias, excluídos da prote ção da lei, destruídos no corpo e no espírito, sem encontrar sequer um Cireneu ou talvez uma Verônica que lhe ofereça um gesto de solida riedade? ■ '

Finalmente, ao juiz cabe tender a um processo “justo”, que não seja só em relação a regras formais de um “jogo” entre partes opostas

(acusação e defesa), mas seja direcionado à procura da verdade, dentro do respeito ao homem, sem coação material ou psicológica e, portanto, com “amor”!

De outra maneira, “aquela senum anátema

tença’ cada vez mais sobre as consciênpesara cias dos juizes, como advertira Rui Barbosa, ao estudar e profligar o processo contra Jesus:

“O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”! ●

TREINAMENTO IMEDIATO

PARA ENFRENTAR OS NOVOS DESAFIOS

A melhor arma para enfrentar os desafios constantes do Brasil moderno é o empresário e sua equipe estarem treinados prontos para atacar o mercado e defender a empresa. Treinamento é a grande saída. Procure-nos, depressa. CTDE-CENTRO DE TREINAMENTO E DESENVOLVIMENTO

tos de concubinato ou da união es tável, no plano material, como consequência do direito das obriga ções, enquanto somente algumas decisões preferiam admitir que, es pecialmente em virtude do disposto na Constituição de 1988, a matéria devia ser caracterizada como sendo de direito de família.

Na realidade, também havia dú vidas quanto ao efeito imediato das disposições do art. 226, § 3° do téxto constitucional vigente, en tendendo alguns que a sua vigência deveria depender de regulamenta ção pela lei ordinária, enquanto outros preferiam considerá-las de caráter auto-aplicável. Assim, a exata interpretação do mencionado artigo, que se referia à união estável e à proteção que o Es tado devia dar-lhe, não conse guiu ser uniforme. Efetiva mente, o reconhecimento da união estável como entidade familiar poderia significar sua relativa equiparação ao casa mento ou então, uma proteção menor do que a dada às justas núpcias, tratando-a como sendo uma entidade familiar de menor densidade, como incentivo à conversão do concubinato em matri mônio, ao qual alude o legislador constituinte quando afirma que a lei deve “facilitar casamento”.

Para que houvesse maior segu rança jurídica, formou-se rapida mente um consenso no sentido de

ser aconselhável a elaboração de uma lei ordinária que completasse o texto constitucional, permitindo a umformização da jurisprudência e consenso da doutrina. Foi respon dendo a esses anseios do mundo jurídico que veio a ser aprovada a Lei n" 8.971, que introduz o concubinato no direito de família e no direito o sucessório, rompendo a tradição da nossa jurispru dência majoritária, que dela tratava aplicando-lhe o direito das obriga ções, baseada na teoria da socieda de de fato. com

lei assegura à qompanheira e ao companheiro, em virtude do concubinato, o direito aos alimen tos, desde que o devedor dos mes mos seja solteiro, separado, divor ciado ou viúvo e que a união dure mais de cinco anos ou que dela tenha surgido prole. Este direito se mantém enquanto o credor provar a sua necessidade e não constituir nova união e desde que o devedor tenha a possibilidade de fornecer os alimentos.

No direito anterior, inexistía tal direito aos alimentos, pois os concubinos ou companheiros não eram nem parentes, nem cônjuges, não havendo amparo legal para que pudessem exigir alimentos, um do

0 artigo 1° da nova lei assegura direito aos alimentos

outro, sem prejuízo dos eventuais direitos decorrentes da sociedade de fato, real ou presumida, da a sua conversão em prestação de serviços ou de inde nização eventualmente devida em virtude do ato ilícito. Era essa a jurisprudência dominante e a posi ção praticamente unânime da dou trina, embora existissem alguns jul gados isolados dos Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul que, em virtude de circunstâncias peculiares, já ante riormente à nova lei, admitiram o direito da concubina aos alimentos.

Cabe, aliás, salientar que, nos casos em que havia contrato entre os concubinos garantindo ou pre vendo direito aos alimentos, a licitude da cláusula parecia discutí vel a tal ponto que, em vários Es tados, as escrituras que a continham eram vedadas por determinação da Efetivamente,- o art. 1° da nova Corregedoria, que proibia que as

mesmas fossem lavradas.

Atualmente, a cobrança dos ali mentos rege-se, no caso, pelo dis posto na Lei n° 5.478, de25.7.1968, que instituiu rito especial, admitin do o procedimento sumário, inclu sive mediante utilização da justiça gratuita, a fixação liminar dos ali mentos provisórios, realização de audiência de conciliação e julga mento, apelação com efeito mera mente devolutivo, possibilidade de revisão e execução especial com sujeição do devedor à pena de pri são, no caso de inadimplemento voluntário e inescusável da obriga ção alimentícia (art. 5, LXVII da Constituição Federal).

Ao referir-se aos companheiros em vez dos concubinos, o le gislador quis caracterizar o direito decorrente da nova lei como pertencendo tão-so mente às pessoas que coabitavam sem que tal fato constituísse adultério, aten dendo assim no caso do cha mado “concubinato puro” em oposição à coabitação adulterina.

Na realidade, o texto legal, numa interpretação literal, só determina que inexista sociedade conjugal vigente, por parte do de vedor, não fazendo a mesma exi gência em relação ao credor dos alimentos, que, em tese, poderia pleiteá-los mesmo estando casado com outra pessoa. Esta interpreta ção, que decorre de má redação do texto legal, não deve todavia pre valecer, em nosso entendimento, em virtude da necessidade de aten der aos princípios gerais do direito de família e às próprias disposições constitucionais, assim como à parte final da redação do art. 1 ° que exclui o direito aos alimentos a partir do momento em que o credor consti tuir nova união.

Embora o legislador ordinário não tenha utilizado a expressão consagrada pela Constituição Fe deral (união estável) — o que teria sido aconselhável — os requisitos legais para a aplicação da lei fazem

c a inc-

presumir que haja. no caso, uma certa estabilidade no relaciona mento entre os companheiros, seja cm virtude do decurso do tempocinco anos - seja cm decorrência da existência de prole comum. A pro va da condição de credor dc alimen tos far-se-á ou pela apresentação da certidão dc nascimento de filho comum ou evidenci ando a vida cm co mum por mais dc cin- ^ CO anos xistcncia de relacio namento adulterino.

O legislador, ins- ^ pirado pelo princípio constitucional da igualdade dos sexos, atribuiu, no caso, os mesmos direitos à companheira c ao companheiro, desta cando a situação dc ambos — da mulher no caput do art. T c do homem no pará grafo único do mes mo artigo — a fim de evitar quaisquer dú vidas quanto à possi bilidade dc exercício do direito à prestação alimentícia por pes soas dc ambos os se xos.

(ou o companheiro) pode renunciar aos alimentos especialmente se, no momento da dissolução da união estável, tinha recursos suficientes para se sustentar ou se recebeu bens para este fim, tratando-se de direito patrimonial que admite transação. Com a nova legislação, a extinção da união estável poderá ensejar

FORENSE UNIVERSITÁRIA LEGISLAÇÃO

Por outro lado, o companheiro (ou a companheira), nas mesmas condições previstas no art. 1®, passa a figurar na ordem sucessória, nos termos do art. 2®, sob diversas for mas, conforme haja ou não descen dentes e ascendentes do de cujus. Inspirando-se na ordem sucessória estabelecida tradicio nalmente pela nossa lei civil, o compa nheiro (ou a compa nheira) passa a rece ber a totalidade da herança quando o de cujus não tinha des cendentes, nem as cendentes, figurando assim em terceiro lu gar na vocação here ditária, ocupando a posição que o Códi go Civil reconhece ao cônjuge (artigos 1603, III e 1611).

BRASILEIRA

Como a lei civil atri bui a herança ao côn juge cuja sociedade conjugal não estava dissolvida no mo mento da morte do outro, o companhei ro (ou a companhei ra) se substitui no

caso ao conjuge, as sumindo a sua posi ção. Os alimentos são devidos enquanto o credor dos mesmos

COORDEN PROF. JOS não constituir nova união, sob a fonna de casamento ou dc ouconcubinato. tro

Quanto aiimcntantc ao

deve dor dos alimentos — cabc-lhe pagar os ali mentos mesmo sc mudar a sua si tuação matrimonial ou sc tiver ou tra união estável. A extinção do dever de prestar alimentos depen derá da prova do fato que modifi que a situação do credor. Embora seja matéria discutível, como no caso dos demais alimen tos, entendemos que a companheira

íAÇÃÒ E fNmcE EOIEniU^llt

A Constituição consagrou a expressão: união estável acordos que deverão, de preferên cia, ser instrumentados por escritu ra pública e que, cm nosso enten der, podem inclusive obter a homo logação judicial para maior garan tia das partes, embora tal procedi mento não seja necessário para va lidade do acordo feito entre as partes.

IPoroutrolado,ha

vendo descendentes ou ascendentes, o companheiro (ou a companheira) herda como se fosse cônju ge viúvo, quando o regime do casamen to não é o da comu nhão universal, pois os dois primeiros incisos do art. 2° da Lei n° 8.971 correspondem ao § Pdoart. 1611 do Código Civil, que tem a seguinte redação:

“O cônjuge viúvo, se o regime de bens do casamento não era da comunhão universal, terá di reito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta-parte dos

bens do cônjuge falecido, se hou ver jBlhos deste ou do casal, e à metade, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes do "de cujus”.

Assim sendo, o companheiro (ou a companheira), recebe em usufhito a quarta parte dos bens de cujo, quando concorre com descenden tes deste ou comuns, e a metade se, não havendo descendentes, con correr com ascendentes do faleci do. No caso, a lei refere-se à parti lha dos direitos entre o companhei ro (ou a companheira) sobrevivente e os filhos do de cujo, sendo que a interpretação sistemática nos leva a concluir que o legislador se referiu, na realidade, aos descendentes de qualquer grau (filhos, netos ou bisnetos).

No particular, a lei teria dito menos do que queria (minus quam voluit).

Finalmente, no caso da socie dade de fato ou da colaboração do companheiro na formação do patrimônio do falecido, equipa ra-se o companheiro ao cônjuge casado sob o regime de comu nhão universal, pois recebe a metade dos bens da herança, com a única diferença de não lhe caber a mais o direito de habitação previsto pelo art. 1611, § 2® do Código Civü.

Não nos parece que, no particu lar, o legislador tenha sido muito feliz pois poderia ter deixado ao arbítrio do Juiz a fixação da parti cipação do companheiro (ou da companheira), em virtude das cir cunstâncias de fato, não tratando igualmente pessoas cuja participa ção na formação do patrimônio co mum pudesse ter dimensões muito diversas. Neste sentido, a jurispru dência tmha admitido que fosse graduada a peuticipação na herança de acordo com a efetividade e a importância da colaboração dada ao falecido pelo (a) companheiro (a) sobrevivente.

Cabe salientar que esta colabo ração não se presume e, em tese, deverá ser provada em cada caso.

tanto mais que, de qualquer modo, arelação entre companheiros enseja o direito ao usuihito de parte do patrimônio, que compensa a vida em comum. No passado, a presun ção de sociedade de fato que, se gundo alguns julgados, beneficiava amulher independentemente de sua contribuição efetiva para a constru ção do patrimônio do companheiro, justificava-se a fim de evitar um enriquecimento sem causa e de compensar o trabalho doméstico, o que atualmente já ocorre com a concessão de usufiiito, embora o mesmo só perdure enquanto o ali mentando — credor dos alimentos — não constituir nova união. Esta restrição assinala o caráter misto de

0 companheiro (a) recebe em usufruto a quarta

parte dos bens

compensação e de assistência que caracteriza o direito hereditário do companheiro, ensejando uma limi tação à liberdade sexual do usufin- tu^o que quiser manter os seus direitos hereditários. A situação lembra, em certo sentido, as san ções que, na sua redação originária, o Código Civil estabelecia em rela ção à viúva, que convolasse novas núpcias e que, em decorrência, per dia o pátrio poder sobre os seus filhos. Se a restrição pode justificar-se em relação aos alimentos, não nos parece que tenha qualquer fimdamento no tocante aos direitos hereditários, que não dependem da necessidade do herdeiro e tem cará ter compensatório, em virtude da solidariedade que existia no passa do entre os companheiros. Embora não esteja dito na lei, entende-se que somente tem direito hereditário o companheiro (ou a

companheira) quando a união está vel ainda existia no momento do óbito. Caso contrário, poderiamos inclusive ter várias concubinas pleiteando os direitos hereditários do mesmo companheiro, por terem tido, cada um, união estável com o de cujus por mais de cinco anos, ou da qual tenha surgida prole comum, em fases diversas da vida da pessoa que faleceu. Embora esta condição seja lógica, teria sido adequada que o legislador a incluísse de modo explícito na lei.

Na realidade, também pode-se entender que enquanto as disposi ções dos artigos 1° e 2® se referem respectivamente ao direito de famí lia e das sucessões, o art. 3° é ma téria de direito das obriga ções, tratando da sociedade e explicitando que as suas nor mas também se aplicam nas relações entre companhei ros e até concubinos. A jurisprudência tem in clusive admitido que en quanto os direitos da compa nheira (ou do companheiro) aos alimentos e a sucessão só existem no caso do concubinato puro, ou seja, sem que haja adultério, não poden do o concubinato ocorrer simulta neamente com a manutenção da sociedade conjugal de um dos concubinos, o mesmo princípio já não se aplica no tocante aos resulta dos decorrentes da sociedade de fato.

Neste sentido, tem decidido o Superior Tribunal de Justiça que os direitos do concubino - ou da concubina - decorrentes da socie dade de fato devem ser reconheci dos, mesmo tratando-se de pessoas casadas, cuja sociedade conjugal não foi dissolvida e até quando não há separação de fato entre os cônju ges, por se tratar, no caso, de obri gações societárias, que a relação sexual entre as partes não deve ex cluir.

Diante do texto legal, cabe então indagar se pode haver cumulação pelo concubino - ou pela compa-

nheira - dos direitos referentes aos artigos 2® e 3®, ou seja se, havendo efetivamente sociedade de fato, com contribuição de ambos os con cubinos, no caso de falecimento de lun deles, se o outro não poderá cumular os direitos decorrentes da união estável - ou seja, os direitos sucessórios - com os direitos decor rentes da sociedade de fato, o que lhe daria a meação (em virtude da sociedade) acrescida do usufhito ao qual lhe dá direito a existência do concubinato.

A admitir, por absurdo, a tese da cumulação, a companheira acaba ria tendo mna situação muito me lhor do que a esposa legítima.

Como, por outro lado, existe ju risprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo entendendo que os concubinos, entre os quais existe

sociedade de fato, perdem os res pectivos direitos quando casampelo regime da separação de bens (RT 712, pág. 148), teríamos mna legis lação que, contrariamente ao espí rito de Constituição, dissuadiria os companheiros a transformar a sua relação em justas núpcias.

O perigo seria até, daqui a pou co, as mulheres casadas pretende rem a sua equiparação às concubinas, invocando a sociedade de fato no momento da partilha dos bens do cônjuge. Situação similar, embora diferente na sua dimensão, ocorreu com os imigrantes que, ca sados, nos seus países de origem, pelo regime da separação absoluta de bens, vinham ao Brasil, onde constituíam o seu patrimônio fami liar, que ficava em nome do marido, invocando, por morte deste, a sua

mulher a teoria da sociedade de fato, para obter parte do patrimônio construído pelo esforço comum dos cônjuges. Foi essa situação que jus tificou a inclusão, na Lei de Intro dução ao Código Civil, do art. 7, § 5® admitindo a mudança do regime de bens do estrangeiro que se natu ralizasse brasileiro, podendo o mesmo optar pelo regime da comu nhão universal.

A nova legislação, embora tecni camente imperfeita e discutível, re presenta importante passo do legisla dor ordinário para con^lementar e por em execução a norma constituci onal, cabendo à juii^rudência e à doutrina aprimorar o texto, sedimentando as interpretações as mais adequadas, para que, no futuro, seja revisto e aperfeiçoado o texto pelo próprio legislador. ●

Uideotexto

TECLE ACSP + ENVIO E ENTRE NO MUNDO DA LIVRE EMPRESA

(Serviço Aberto)

Relações obrigações do MÊS + ENVIO para saber das obrigações de um determinado dia tecle: N° DIA + ENVIO Obs.: somente números que “piscam” são último prazo para obrigações neste mês.

niais e semicoloniais e a implanta ção de sua ditadura sobre os Esta dos industrializados evoluídos).

Hoje, olhando a torrente cada vez maior de refugiados que jorra através de todas as fronteiras da Europa, é difícil para o Ocidente não se sentir uma espécie de forta leza: uma fortaleza segura por en quanto, mas cla ramente sitiada. E, no futuro, a cres cente

crise

ambiental pode alterar as zonas climáticas, levan do à escassez de água potável e de terras adequadas em lugares onde eram abundantes. Isso por sua vez, pode dar origem a novos conflitos ameaçadores no planeta, às guer ras pela sobrevi vência.

Assim, complexo ato de equilíbrio

um apresenta para Ocidente: manter 0 pleno respeito a todo ■'«4 O precioso pluralismo das culturas mundiais c à sua busca dc soluções distintas, mesmo tempo não perder de vista seus próprios lorcs, sua estabi lidade historica mente singular dc vida cívica sob império da leiquistada a duras penas que concede independência c espaço para cada cidadão particular.

lançamos ao fundo do oceano a chave de ouro da autocontenção. Mas a autolimitação é o ponto de parada fundamental e mais sábio para o homem que alcançou sua liberdade. É também a via mais segura rumo à sua obtenção. Preci samos não esperar que aconteci mentos externos nos pressionem duramente ou até nos derrubem;

desvios desse curso pelos partidos e governos estão bciti à vista. Quando uma conferência dos alannados povos da Terra se reúne por causa da ameaça inquestionável e iminente ao meio ambiente c à atmosfera do planeta (a Conferên cia da Terra no Rio, cm 1992) uma potência, que consome nada menos que a metade dos recursos atual mente disponí veis na Terra c que emite meta de de sua polui ção insiste—por causa dc seusin-

teresses internos atuais — cm re duzir as reivindi cações dc um acordo internaci onal sensato, como se não vi¬ vesse na mesma Terra. Então, ou tros importantes países se negam a atender até a essas reivindica ções reduzidas. Portanto, numa corrida econômi ca, estamos nos envenenando. Da mesma forma, a desa-

gregação URSS ao longo das enganosas fronteiras traçadas Lênin da sociais e ao por propiciou exemplos marcantes formações cém-nascidas vadc rc-

Soljenitzyn, o profeta do século XXI, na antiga tradição russa precisamos adotar uma posição conciliadora e, por meio da autocontenção prudente, aprender a aceitar o inevitável curso dos acontecimentos.

Autolimitação — Esta era nos exorta a limitar nossas necessida des. É difícil nos impormos sacrifí cios e recusas, porque na vida polí tica, pública e privada, há muito

Apenas nossa consciência e as pessoas mais íntimas dc nós sabem que nos desviamos dessa regra cm nossas vidas pessoais. Exemplos de que, na busca dc uma imagem de grande potência, se apressam cm ocupar extensos terri tórios que lhe são histórica c ctnicamente alheios, territórios que tém dezenas de milhares alguns casos, milhões dc pessoas dc etnias diferentes, sem pensar no fu turo, esquecendo imprudentementc que tomar nunca traz benefício. o estabilidade conconou, cm

Desnecessário dizer que, apli cando-se o princípio da autocon tenção a grupos, profissões, parti dos ou países inteiros, as perguntas difíceis daí decorrentes superam em número as respostas já encontra das. Nesta escala, todos os compro missos com o sacrifício e a autonegação terão repercussões para multidões de pessoas que talvez estejam despreparadas ou se opõem a elas. (E até a autocontenção de um consumidor trará conseqüências para produtores em algum lugar).

No entanto, se não aprender mos a limitar firmemente nossos desejos e exigências, subordi nar nossos interesses aos crité rios morais, nós, a humanidade, simplesmente seremos estraça lhados quando os piores aspec tos da natureza humana mostra-

rem os dentes.

Isso foi destacado por vários pensadores muitas vezes, e cito aqui palavras do filosofo russo do século 20, Nikolai Lossky: “Se uma personalidade nao está voltada para valores mais nobres que o eu, a e a decadência inevitaas corrupção velmente tomam conta”. Ou, se me permitem transmitir-lhes uma ob-

servação pessoal, podemos apenas experimentar a verdadeira satisfa ção espiritual não tomando, mas recusando-nos a tomar. Em outras palavras: adotando a autocontenção.

Hoje, a autocontenção nos parece algo totalmente inaceitável, cons trangedor, até repulsivo, porque, ao longo dos séculos, nos desacostu mamos do que para nossos ances trais foi um hábito nascido da ne cessidade. Eles viveram com restri ções externas muito maiores e tive ram muito menos oportunidades. A importância suprema da autocontenção só neste século se apresentou em sua inteireza pre mente para a humanidade. Todavia, levando-se em conta mesmo os vá rios vínculos mútuos que permeiam a vida contemporânea, é, não obstante, apenas por meio da autocontenção que podemos, ape sar de grande dificuldade, curar gradualmente nossa vida econômi ca e política.

Hoje, não muitos aceitarão prontamente este princípio para si. No entanto, nas circunstâncias cada vez mais complexas de nossa modernidade, limitarmo-nos é o

único meio verdadeiro de preser vação para todos nós. E é útil res taurar a noção de que existe uma Autoridade Una e Superior senso totalmente esquecido de hu mildade perante essa divindade. Só pode haver um progresso ver dadeiro com a somatória do pro gresso espiritual de cada indivíduo, do grau de perfeição pessoal no curso de suas vidas. Fomos recente mente entretidos por uma fábrila ingênua sobre o feliz advento do “fim da História”, do avassalador triunfo de uma bem-aventurança pan-democrática. Esse, que é su postamente o acerto global máxi mo, foi alcançado. Mas todos nós vemos e sentimos que algo muito diferente está chegando, algo novo e talvez bastante irgoroso. Não, a tranquilidade não promete pousar em nosso planeta e não nos será concedida tão facilmente.

Porém, com toda a certeza, não passamos em vão pelas provações do século 20, e nossa solidez conseguida a duras penas será de algum modo transmitida às gera ções vindouras. ● Condensado, data vênía, de “Estado de S. Paulo”

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.