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Rabino Dario Bialer
DELAÇÃO PREMIADA E A LEI JUDAICA
Rabino Dario Bialer
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Dizer que jamais se viu no Brasil crise tão grande como a atual é lugar comum. Quando alguém imaginou que teríamos todas essas figuras atrás das grades? Poderosos que normalmente estão a salvo do sistema – muitas vezes protegidos pelo próprio sistema! – estão na cadeia. E a Lava-Jato continua. A sociedade assiste incrédula, a maioria eufórica, outros indignados, a maior investigação de corrupção no Brasil e provavelmente do mundo.
A Lava-Jato iniciou em março de 2014 em Curitiba como uma investigação sobre organizações criminosas controladas por doleiros, que operavam um mercado paralelo de câmbio. O curioso nome da operação se deve ao uso de uma rede de postos de serviços de automóveis para lavagem de dinheiro.
A partir deste começo quase banal se chegou ao esquema de corrupção que envolveu pesadamente a Petrobras e outras iniciativas controladas pelo Estado. Com o extensivo uso do recurso da delação premiada, Odebrecht, JBS e outras megaempresas brasileiras fizeram estremecer parte considerável da alta classe política brasileira, envolvida até o pescoço na corrupção.
O conceito da delação premiada é inspirado em casos bem sucedidos da Itália e dos Estados Unidos: uma pessoa que se juntou a outras para praticar procedimentos ilícitos e que está sendo investigada por este feito resolve colaborar com a justiça, se autoincriminando e oferecendo os meios para a obtenção de provas materiais que incriminem os demais participantes da organização crimiO livro de Shemot 23:1 adverte que o testemunho de quem cometeu o crime não pode jamais ser considerado pelo tribunal.
nosa da qual fez parte, em troca da redução parcial ou total de sua punição. Desta forma a delação premiada ajuda a justiça a encontrar e implicar os outros indivíduos do esquema que sem a delação dificilmente seriam identificados.
Os executivos da Odebrecht explicaram que, por não poder trabalhar na América Latina sem pagar subornos, eles o sistematizaram. Os políticos foram expostos pela eficácia dos engenheiros brasileiros que subornaram com o mesmo profissionalismo com que constróem pontes. A partir da cultura de uma empresa de engenharia, obcecada com o controle, medição e registro de tudo, um sistema foi construído para organizar o fluxo de dinheiro. Quanto foi pago a quem e porquê, o que faltava pagar e outras informações foram sistematizadas num “departamento de propinas” que passou a fazer parte da estrutura orgânica da mesma.
Isto faz lembrar o conceito cunhado por Hannah Arendt em seu livro Eichmann em Jerusalém, sobre a banalidade do mal dos nazistas, que inventaram métodos efi-
O tribunal deve cientes para levar a cabo o seu tenebroso estabelecer os fatos por uma investigação que extermínio. Todas as atividades se estruturam dentro de uma aberrante e impessoal profissionalização com o intuito de criar preserve inteiramente uma subjetividade que torna o ilícito nao suspeito. tural. Essa é a banalidade do mal. Ele se banaliza quando passa a ser aceito como parte do cotidiano. Salvando a imensa distância com o nazismo, vejam em que ponto estamos no Brasil, quando o que chama a atenção não é que pessoas proeminentes tenham roubado, mas que estejam sendo presas. Dentro desse contexto de perplexidade geral, mais de uma vez congregantes da sinagoga me perguntaram: “O que diz a lei judaica sobre a delação premiada? A pergunta às vezes aparece por simples curiosidade, mas muitas vezes encerra uma genuína preocupação. Alguns se sentem decepcionados pelo fato de um criminoso ser poupado de qualquer pena por delatar políticos corruptos. Como pode ser que pessoas inescrupulosas fiquem sem pena apenas por entregar seus comparsas? Como isso pode ser justo?
Bem, tenho que dizer que a Torá concorda com eles.
Por outro lado, muitos acreditam que a delação premiada é um recurso imprescindível, além de legítimo, para se chegar ao fundo do poço e começar por fim a limpar o país.
E de novo, conforme a piada judaica: também com eles a Torá concorda.
Então vamos analisar o assunto e entender os argumentos que o judaísmo traz sobre a delação premiada a partir da abordagem da advogada Melissa Ivy Softness1 e do rabino Abraham Skorka2 .
A legislação judaica se ocupa amplamente da temática da autodelação (seja ela premiada ou não), e os rabinos são bastante claros na proibição dessa prática pelos tribunais. Mas, como veremos mais adiante, com algumas exceções e particularidades.
Contudo, antes de entrar no tema em si, eu queria ressalvar que a lei judaica distingue dois tipos de crime: os que envolvem penas pecuniárias (dinei mamonot) e os que envolvem penas físicas (dinei nefashot). No segundo caso, as precauções na aceitação de testemunhas (inclusive as que se autodelatam) são mais rígidas. Ou seja, uma testemunha que não seria aceita num caso que resulte em pena física, talvez possa ser aceita num delito onde as penas são pecuniárias.
Os crimes de corrupção são mais próximos ao primeiro grupo, contudo, conforme opina o rabino Skorka, vale a pena olhar também para os casos mais extremos (dinei nefashot), pois eles podem sinalizar princípios válidos para todos os casos.
Primeiro princípio
O primeiro princípio que norteia a proibição da autoincriminação consta no Talmud Babilônico e é espandido por Maimônedes no Mishne Torá (Sanhedrin 18:6): “ninguém pode fazer de si uma má pessoa (rashá)”.
Ou seja, mesmo que a pessoa se autoincrimine sem coação e sem premiação, o tribunal deve rejeitar este testemunho, pois ela não pode fazer mal a si mesma.
Nota-se a extrema preocupação judaica na preservação da dignidade do indivíduo. Nem mesmo voluntariamente permite-se que ele se degrade perante a comunidade. Nota-se também que por este princípio a delação premiada está proibida.
Contudo, nada é tão simples assim! É preciso observar que a proibição de uma pessoa fazer mal a si mesma indica também que a pessoa deve escolher o caminho da menor pena, quando esta for inevitável. Uma metáfora para isso é a amputação de um membro. A amputação é peremptoriamente proibida pela lei judaica, mas pelo princípio do mal menor, ela é permitida se for necessária para salvar a vida.
Esta observação indica que as delações provocadas pela Lava-Jato encontram amparo na lei judaica, pois elas são feitas por pessoas contra as quais a justiça já amealhou provas irrefutáveis e que serão condenadas a muitos anos de prisão devido a isto. Mas existem outros princípios em jogo que rejeitam a autodelação. Portanto, sigamos na análise.
Segundo princípio
Um outro princípio importante na análise da validade da autodelação deriva da Torá, no livro Devarim / Deuteronômio, onde a preocupação de não permitir que uma injustiça seja feita exige a presença de no mínimo duas ou três testemunhas, dependendo do assunto a ser julgado. É excluída a possibilidade de apenas uma única pessoa testemunhar: “uma testemunha não se levantará contra uma pessoa por qualquer iniquidade ou por qualquer pecado que ela tenha cometido; pela boca de duas testemunhas ou pela boca de três testemunhas os fatos serão estabelecidos.” (Devarim 19:15).
A lei judaica é cuidadosa. A proibição de uma única testemunha diminui muito a possibilidade de testemunho falso ou enganoso, visto que as testemunhas terão suas histórias contrastadas.
A Torá exige duas ou três testemunhas, mas não diz explicitamente que uma delas não pode ser o acusado. Contudo, baseado no raciocínio que vai abaixo, Rashi infere que a proibição da autoincriminação está ligada à passagem acima.
Pois, o livro de Shemot / Êxodo 23:1 adverte que não se deve aceitar um malvado (rashá) como testemunha, uma vez que sua palavra não é confiável. Logo, o testemunho de quem cometeu o crime não pode jamais ser considerado pelo tribunal.
Bem, neste ponto dá vontade de fechar o livro e concluir que a autodelação (premiada ou não) é inaceitável. O criminoso não tem credibilidade. Fim de papo. Mas será
que isto é válido sempre? Vamos aprofundar mais um pouco no assunto.
Terceiro princípio
Mais tarde no caminhar da história, um novo e muito importante argumento foi adicionado à lista de princípios que proibem os tribunais rabínicos de aceitar a autoincriminação. O rabino Joseph ibn Migash (10771141) expõe isto da seguinte forma: “Se confissões tiverem valor probatório os tribunais se inclinarão a supervalorizá-las, tal como fez o rei David em Samuel II 1:16, passando a dar menor importância à sua obrigação de procurar estabelecer os fatos.”
A história em Samuel II é do Rei David mandando matar um Amelikita que lhe disse ter ajudado a matar o Rei Saul (a pedido do próprio Rei Saul, que estava mortalmente ferido). David condenou o Amalekita a morte sem checar se sua história era verdadeira, ou seja, sem procurar uma segunda testemunha, o que é insuficiente para uma corte rabínica, pois gera a incerteza que um inocente esteja sendo culpabilizado.
Independentemente se a justificativa bíblica usada pelo rabino ibn Migash é razoável ou não, fica claro que sua preocupação é afastar qualquer possibilidade de coação (sob tortura física ou moral) de suspeitos. O tribunal deve estabelecer os fatos por uma investigação que preserve inteiramente o suspeito, em mais uma demonstração do extremo cuidado da lei judaica com a dignidade da vida humana.
Outros rabinos enfatizaram o ponto de ibn Migash: David ben Solomon ibn Abi Zimra (Radbaz), século 16, opinou que confissões são inadmissíveis em casos que resultam em pena de morte, pois “a vida da pessoa não lhe pertence, e sim a Deus, assim que sua confissão não pode afetar algo que não é dele.”
Maimônides também endossou e reforçou a tese. Ele disse que “uma proibição abrangente proibindo a autoincriminação é necessária para evitar que pessoas emocionalmente confusas cometam o crime de confessar crimes que não cometeram”.
E isto parece se encaixar em muitos casos da operação Lava-Jato, onde os delatores estariam “confusos” pela quantidade de provas trazidas contra eles e pela prisão temporária que foi imposta a alguns. A lei judaica coincide Um resumo até aqui com a lei brasileira, se bem que apenas Vimos três princípios. O primeiro proibe uma pessoa de fazer mal a si mesem circunstâncias ma, o que por um lado ele proibe a autocomo as que estamos delação, mas ao mesmo tempo a endossa vivenciando hoje. nos casos que é premiada. Um a zero para a delação premiada. O segundo obriga a presença de no mínimo duas testemunhas e desautoriza o testemunho de criminosos. A anulação dos testemunhos dos criminosos repele a autodelação. Temos agora um empate de um a um. O terceiro princípio obriga cuidado extremo para evitar danos morais aos investigados. Ou seja, pela lei rabínica a pessoa não pode se autoincriminar. E mesmo que ela o faça voluntariamente o tribunal deve desconsiderar seu testemunho. O jogo virou. Dois a um para a proibição. Em circunstâncias normais, portanto, concluimos que a lei judaica não autoriza a delação premiada. Mas será esta é a última palavra? Não! Ainda há mais. Vamos analisar agora a lista de circunstâncias extraordinárias onde se permite aos responsáveis pelos julgamentos rabínicos avaliar se as normas podem ser suspensas.
Circunstâncias extraordinárias
Os sábios no judaísmo destacam as três circunstâncias nas quais é possível contrariar alguns princípios consagrados, dentre eles o da autodelação. a. Tempo de emergência. b. Perigo substancial para a comunidade. c. Desrespeito sistematizado à lei. Sobre o último ponto, Maimônides disse que só poderia ser aplicado por período limitado de tempo. Ou seja, que a autodelação não poderia ser codificada na lei, o que coloca a lei brasileira em oposição à lei judaica. Contudo, o que acontece no Brasil em nossos dias parece se enquadrar perfeitamente em “tempo emergencial”, muito embora sua definição seja limitada no tempo e o fato da corrupção política estar tão enraizada no Brasil levanta a hipótese de que sua naturalidade contradiga o conceito de emergência. Em outras palavras: algo que acontece o tempo todo não pode ser considerado uma emergência. Mas, mesmo escapando pela tangente acima notada, há um muito bem fundamentado e inequívoco “Perigo subs-
tancial para a comunidade”. A corrupção está devastando o Brasil, dizimando o potencial da nação em oferecer muito melhor qualidade de vida para seus cidadãos. Uma breve visita aos estudos da ONG Transparência Internacional evidencia que o mapa da corrupção no mundo é incrivelmente semelhante ao mapa da pobreza.
Conclusão
Não se trata apenas de que a Lava-Jato esteja expondo o tamanho da corrupção, que é de milhares de milhões de reais, mas fundamentalmente o fato de que os crimes estão sendo cometidos pelas altas autoridades do país, o que leva ao perigo de um colapso total na sociedade. Esse argumento me parece ser suficiente para deixar de lado as demais considerações e aceitar a delação premiada como ferramenta indispensável para sanar a doença da sociedade. A lei judaica passa a coincidir com a lei brasileira, se bem que apenas em circunstâncias como as que estamos vivenciando hoje.
É lamentável a realidade que a Lava-Jato está demonstrando. Não é o ideal que criminosos confessos (como é o caso desses empresários e políticos) sejam poupados do castigo que merecem, mas a delação premiada parece ser necessária para se atingir o objetivo maior de resgatar o país de lideranças nocivas ao povo brasileiro.
Finalmente, como não lembrar de um autor imprescindível na compreensão da alma brasileira, o genial e aguçado Nelson Rodrigues, que nos alerta sobre os idiotas (políticos e empresários corruptos?) confessos:
“Os idiotas prosperam no Brasil. E sobrevivem em torno da ilusão de poder. É interessante ver o que acontece quando esse poder vai diminuindo.”
Notas
1. No texto: “Compelled to Render Oneself Evil: American Plea-Bargaining from a
Jewish Law Perspective”, encontrado a partir de https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2013237 2. Publicado no livro Temas de Derecho Hebreo, editado pelo Seminário Rabínico Latinoamericano Marshall T. Meyer.
O Rabino Dario E. Bialer serve à ARI – Rio de Janeiro.
Índice mundial de percepção da corrupção 2016
Níveis de corrupção percebida pela população em 176 países/territórios no mundo
corruption perceptions index 2016
The perceived levels of public sector corruption in 176 countries/territories around the world.
Fonte: Transparência Internacional
Highly Corrupt Score
Very Clean
0-9 10-19 20-29 30-39 40-49 50-59 60-69 70-79 80-89 90-100
