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Raul Cesar Gottlieb
TRÊS POEMAS, TRÊS RUAS EM TEL AVIV
Três ruas em Tel Aviv. Três homenagens a poetas dispersos por três milênios de vivência judaica. Em paralelo, três contrastes entre poesia e paisagem urbana.
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Contrastes que refletem o ressurgimento político de um povo muito antigo, que por milênios se alimentou apenas de espiritualidade, mas que, mesmo sem ter relevância política, jamais foi deixado em paz para desfrutar sua singular relação com o transcendente.
Ausência de paz e, portanto, de segurança que compeliram este povo a, assim que possível, exercitar seu adormecido músculo político e distender, qual uma mola subitamente desbloqueada, o desejo milenarmente reprimido de viver em segurança.
Três ruas entre tantas, três poetas entre tantos, três vivências de uma única e longa história. Que continua a ser escrita. E que continuará a sê-lo enquanto assim o desejarmos.
Raul Cesar Gottlieb Fotos Daniela Strauss
Tel Aviv: uma cidade onde os construtores da literatura judaica nomeiam as ruas. (Foto: istockphoto.com)
Solomon Ibn Gvirol (cerca 1021-1058)
O Bordado da Terra1
Usando chuvas e trovoadas como tinta, Raios como pena e nuvens como mãos, O inverno escreveu uma carta para o solo, em azul e violeta, Obra que nem o mais perito artesão conseguiria igualar.
Então quando a terra desejou o céu, Ela teceu sobre si leitos de flores, Mais ou menos como as estrelas.
O poeta viveu na chamada “Idade de Ouro” do judaísmo na Espanha moura. O poema é um canto idílico à harmonia do mundo. Tal qual um amante, os céus mandam uma carta de amor para a terra na forma das chuvas de inverno. A terra retribui ao seu amado tecendo uma trama com as flores que nasceram após a chuva. Flores que refletem na terra o padrão das estrelas do céu.
Um equipamento urbano compatível com o poema deveria ser algo como uma praça, não muito grande, gramada, florida, cercada por uma cerca baixa e delicada. Ao centro, um laguinho refletindo as cores do céu e bancos sombreados à volta convidando amigos e namorados a desfrutar a brisa juntos.
Mas não é nada disto que temos em Tel Aviv e sim uma rua, uma das maiores ruas da cidade. Importante via de ligação do centro com o norte da cidade e, como tal, constantemente superlotada. Nos horários de pico (e eles são muitos), ônibus, carros e motos disputam cada centímetro de suas pistas, buzinando freneticamente ao menor sinal de hesitação do motorista à frente.
As calçadas são ladeadas por lojas de todos os tipos e tamanhos, o que faz com que pedestres e bicicletas disputem o espaço com mesas de restaurantes, alguns de bom nível outros nem tanto. A prefeitura, um edifício em forma de gigante caixa de sapatos sem muita graça se debruça sobre a grande esplanada quase vazia e árida onde as manifestações políticas de Tel Aviv acontecem (é a praça Rabin, onde o primeiro-ministro foi assassinado).
A harmonia do poema medieval contrasta com a desarmonia e a concretude de uma paisagem urbana, que empastela de suor no verão e congela no vento do inverno.


Difícil pensar no leito de flores da poesia de Ibn Gvirol enquanto você está no meio do trânsito.
A harmonia idílica do poeta medieval não está refletida na movimentada concretude do cotidiano.

Seguramente o ciclista não está pensando, como na poesia de Uri Tzvi Greenberg, em cadáveres desenterrados pelos arados dos camponeses.
Uri Tzvi Greenberg (1896-1981)
Sob os Dentes de seus Arados2
Mais uma vez as neves derreteram aqui … e os assassinos agora são fazendeiros. E lá se foram eles arar suas terras, que são, todas elas, meus cemitérios. Se o toque de seu arado, rolando como um crânio sobre os sulcos da terra, Topar com um dos meus esqueletos, o fazendeiro não ficará nem triste nem chocado, Mas irá sorrir e reconhecê-lo, reconhecerá a marca que sua ferramenta atingiu.
A primavera se renova sobre a terra: brotos e botões e liláses e pássaros. Rebanhos pousam ao longo de brilhantes correntezas de águas rasas, Os judeus errantes não estão mais: não estão mais com suas barbas e peot. Não estão mais nas pousadas com talit e tsitsit sobre suas camisas; Não estão mais nas mercearias ou nas lojas de roupas; Não estão mais em suas oficinas e vagões de bonde; Não estão mais nem em suas sinagogas, ou no mercado; Eles estão sob os dentes do arado cristão. Por que o Senhor encheu de graça Seus goym escolhidos.
Mas a primavera será a primavera - e o verão vem abundantemente depois, As árvores que margeiam as estradas estão cheias de frutas, como nunca antes. As frutas nunca estiveram tão vermelhas ou suculentas como agora Que não há mais judeus.
Os judeus não tinham sinos para acenar a Deus. Benditos sejam os cristãos, porque deles são os sinos no alto, Sinos cujas vozes soam seriamente através das planícies, agora que é primavera, Intensamente esparramada pelas terras cobertas de fragrâncias e cores. É todo poderoso e mestre de tudo: não há nada a Lhe passar acima, Como Ele uma vez passou sobre os tetos dos judeus.
Benditos sejam os cristãos, por que deles são os sinos no alto, Que honram a Deus que ama os cristãos e toda a humanidade. E todos os judeus são cadáveres sob os dentes de seus arados Ou sob a grama das pastagens.
Ou nos túmulos das florestas Nas margens dos rios, no fundo dos rios, ou jogados por aí Nos caminhos a que pertencem.
Oh louvemos nós o teu doce Jesus Com o golpe dos teus grandes sinos; Bing-bong.
O poeta e jornalista viveu no auge da Shoá. Lutou a Primeira Guerra Mundial pelo Império Austro-Húngaro e ao escapar miraculosamente dos pogroms de Lemberg, em 1918, se convenceu definitivamente que todos os judeus que viviam na Europa seriam, mais cedo ou mais tarde, exterminados. Ele anteviu o nazismo antes mesmo de seu nascimento e alertou com seus escritos sobre sua terrível ameaça. Mas em vão. Os judeus ficaram na Europa e ele, que imigrou em 1923 para Israel, passou o resto da vida tendo que contemplar diariamente a sensação de “se ao menos me tivessem escutado”.
A indesculpável generalização condenatória do poema e sua completa desilusão com um Deus que, conforme ele aprendeu no cheder, deveria amar seu povo acima de todos os demais, mas que parece se deixar subornar pelo poder dos sinos e pela beleza das igrejas, só podem ser mitigadas pela compreensão da terrível vivência do poeta.
A amargura do escrito contrasta com a doçura da rua, num pequeno bairro residencial, bem planejado, dispondo de amplos espaços para crianças brincarem, de um pequeno mas bem fornido centro comercial e bem servido de escolas e de transporte público. Lugar de vida agradável e pacífica no atual limite norte de Tel Aviv. Nada, absolutamente nada, na rua lembra remotamente os pogroms da Europa – não há nem cossacos-lavradores nem barbas e peot.
Neste caso é a desarmonia do poema que contrasta com a harmonia da rua.
Lea Goldberg (1911-1970)
Pinheiro3
Aqui eu nunca ouvirei o chamado do cuco. Aqui as árvores nunca vestirão o shtreimel de neve. Mas aqui, à sombra do pinheiro, eu posso ouvir toda A minha infância, revivida de tanto tempo atrás.
As agulhas ecoam: Era uma vez “Lar” era a palavra que eu dava à neve, não à areia, E ao riacho trancado no gelo - uma geada esverdeada Do idioma do meu canto numa terra longínqua.
Talvez as aves migratórias que acham sozinhas Seu próprio caminho se equilibrando entre céu e terra, Sabem como eu oscilo entre duas terras de nascimento.
Em ti eu fui transplantada, oh meu pinheiro, Em ti eu me transformei em mim mesma e cresci Onde paisagens díspares dividem uma raiz em duas.

Acima, flores e gramados ladeiam a rua que homenageia o poeta Uri Tzvi Greenberg, que anteviu a destruição da vida judaica na Europa. Abaixo, na Rua Lea Goldberg, uma esquina tipicamente israelense.


A poetisa Lea Goldberg sonhava com pinheiros nevados, mas a rua “dela” tem cactos israelenses.
Lea Goldberg já era dona de uma erudição invejável quando fez aliá em 1935. Filha de uma família lituana, fez seus altos estudos em filosofia e idiomas semíticos na Lituânia e na Alemanha. Atraída pelo sionismo, se obrigou a escrever apenas em hebraico deixando completamente para trás sua zona de conforto. “Para mim, escrever num idioma diferente do hebraico é o mesmo que não escrever … e eu quero ser uma escritora, este é meu único objetivo”, anotou em seu diário. Ela falava sete idiomas e traduziu muitas obras estrangeiras para o hebraico, notadamente russas e italianas.
Diferentemente de muitos sionistas daquela época, que se esforçaram para abandonar suas raízes europeias, Lea jamais tentou sufocá-las, muito ao contrário. Abraçou de forma entusiasmada o seu novo país, mas nunca deixou de valorizar a cultura europeia – suas raízes se dividiram em duas.
Homenagear a dupla afinidade cultural de Lea Goldberg exigiria dar o nome dela a uma rua que fosse ao mesmo tempo semelhante a um boulevard europeu, com duas pistas separadas no meio por um passeio arborizado, mas com os prédios brancos e baixos de linhas retas que pontuam a Tel Aviv dos primeiros tempos – algo como Sderot Rotschild ou Sderot Chen.
Contudo, a prefeitura de Tel Aviv a colocou numa rua tipicamente israelense, num bairro relativamente novo do norte da cidade, sem nenhum resquício do charme europeu e também sem muita semelhança com o estilo que Lea encontrou na cidade em 1935.
A poetisa se sentia pertencente a dois mundos, mas sua homenagem em asfalto e concreto é unicamente israelense.
Três ruas em Tel Aviv. Três homenagens a poetas dispersos por três milênios de vivência judaica. Em paralelo, três contrastes entre poesia e paisagem urbana.
Contrastes que refletem a distância entre o lirismo e a realidade. Entre o sonho e sua consumação.
Por séculos vivemos no mundo superior das ideias, dos debates teóricos sobre a organização jurídica, política e social de um Estado. Apesar da beleza superior deste mundo, não queremos voltar para lá.
Notas
1. Traduzido para o português a partir da tradução do hebraico para o inglês de Raymond P. Scheindlin, no livro
Vulture in a Cage: Poems by Solomon Ibn Gabirol. 2. Traduzido para o português a partir da tradução do hebraico para o inglês de A. Z. Foreman, publicada em seu blog “Poems Found in Translation”. 3. Traduzido para o português a partir da tradução do hebraico para o inglês de A. Z. Foreman, publicada em seu blog “Poems Found in Translation”.
Raul Cesar Gottlieb é diretor da Devarim Daniela Strauss é artista plástica