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Rabino Sérgio Margulies
DESABAFO D’ALMA
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Rabino Sérgio Margulies
Uma voz clama no deserto (Ieshaiahu/Isaías 40:3)
Antes da Era Contemporânea, a Moderna. E antes, a Idade Média. E antes, a Antiguidade. E antes, a Pré-História. A Pré-História antecede a invenção da escrita e, portanto, dos registros que possibilitaram a construção de uma história.
Antes dos comentários judaicos dos acharonim (últimas gerações) do ano de 1550 até a presente data houve o período dos posekim (intérpretes legais) do ano 1000 a 1550. E antes, a época dos geonim (sábios) de 650 até 1050, e antes, dos comentaristas denominados saboraim (500-650), e antes, dos comentaristas chamados amoraim, que entre 220-500 editaram as discussões do Talmud (Guemará), e antes, a geração dos tanaim, que compilaram o código das leis da Mishná entre os anos 7 e 220. E antes, o Período Bíblico. A Bíblia começa com o relato da criação do mundo. E antes, o que havia? A própria Torá descreve em hebraico: tohu vavohu, que expressa a condição caótica, sem forma e vazia.
E atualmente, qual é a época? A sensação é que estamos voltando à Pré-História, um período em que as referências de registro da construção da humanidade inexistiam. Ou que estamos regredindo ao tohu vavohu, para a falta de forma, para o Caos, que precedeu a criação. O mundo criado e transformado é desconfigurado e destruído. As referências que abalizam uma conduta, desprezadas. A vida, valor supremo e sagrado, perde seu significado. Da bomba de alto calibre de uma organização à bomba suicida dos fanáticos, a vida nada vale. Do tiro com mira calibrada à bala perdida (que não é perdida, pois encontra um alvo) a vida nada vale. Do miserável que cambaleia desamparado pelas ruas sem rumo ao faminto que se depara com a abundância na esquina que não
lhe alcança, a vida nada vale. Da criança desprovida da oportunidade de estudo à criança que na escola deixa de sentar na cadeira para embaixo dela ter a ilusão de que se esconde, a vida nada vale.
Se a Pré-História antecede a palavra escrita e o período Pré-Bíblico a palavra divina, regredimos a um tempo em que não sabemos mais usar a escrita: as palavras enviadas a milhões pelas redes sociais são muitas vezes flechas aniquiladoras que carregam em suas pontas venenos de ódio. Em seus monólogos afirmativos da própria concepção fanática, destroem ideias e esmigalham a dignidade, como se a vida nada valesse. * * * Estamos nos aproximando dos temíveis dias de julgamento marcados pela celebração de Rosh Hashaná – o Ano Novo Judaico – e Iom Kipur – o Dia do Perdão. Na preparação para estas celebrações recitamos diariamente o Salmo 27 que traz como mensagem o resgate da esperança e nos convida a não termos medo. Diz o Salmo: “A quem então, temerei?” (...) “Fortalecer-se-á teu coração por depositares no Eterno toda a tua esperança”.
Sem o sacrilégio de menosprezar a mensagem milenar de fé, o medo prevalece. A esperança é nebulosa diante da força avassaladora do medo. Inclusive, este medo se intensifica em função do salve-se quem puder que nos conduz à treva da solidariedade e dos diálogos que se tornam monólogos na falta de compromisso com os demais. O medo ganha contornos de desalento diante da consciência de que tantos são influenciados por um ambiente em que não há medo. Não temem as consequências de seus atos. A ausência do temor os leva a atitudes que expressam “dane-se você”, ou “perdeu”. Ao não terem a compreensão das histórias da vida que são construídas, agem com truculência e desconsideração infligindo a nossa perda de vida. Dilaceram a história que está sendo construída e criada e assim, sem hesitação, nos ejetam para a Pré-História e para o Caos da pré-existência. * * * Além do Salmo, no período que precede a chegada do novo ano temos a oportunidade de escutarmos diariamente (a exceção do Shabat) os toques do shofar. As palavras do profeta Irmiahu/Jeremias (4:19) ecoam: “Escutaste, mi-
Que da alma brote a nha alma, o som do shofar, o alarme da força que impeça a boca ser amordaçada, guerra.” O som do shofar mescla os vários sentimentos de uma guerra, entre eles medo e esperança. o coração acorrentado Medo que sejam vitoriosos o radicae as mãos amarradas. lismo que sufoca a troca de ideias, o ódio que massacra os vínculos afetivos, a soberba que esmaga a condição para com o diferente, o foco exclusivo que aniquila o pluralismo comunitário, os conflitos que dilaceram o compartilhar, a prepotência que alija o convívio íntegro, o interesse instantâneo que rompe os elos antigos. Este medo faz bradar o pessimismo do profeta bíblico Ioná/Jonas (4:3): “Melhor me é morrer do que viver,” até mesmo porque se estes elementos forem de fato vitoriosos a alma – mesmo que em corpo vivo – morre. Mas o retumbante toque do shofar também carrega nesta batalha a esperança. Esperança de que não sucumbirão os estandartes dos valores que pautam condutas íntegras, que predominarão os marechais da decência, que será continência o apreço à dignidade, que os caminhos serão escolhidos pelos princípios e não pelos atalhos da esperteza, que será reconhecida a relevância da determinação que germina a vontade de aprender e realizar. Esta esperança é o chamado do profeta bíblico Iehezekel/Ezequiel (18:32): “Retornai, pois, e vivei!” Retorne, isto é, não fuja, não desista, resgate a essência de quem você é e de quem melhor pode se tornar. Retorne ao passo que mobiliza a construção de uma vida plena e realizadora. * * * Deste modo, caminhamos para a celebração de Rosh Hashaná, conforme as palavras do Machzor, o livro de oração desta festa: iom harat olam, o dia da criação do mundo. Uma criação que é sempre renovada, tal como aprendemos de nossas orações diárias: “renove sempre os feitos da criação”. O medo imposto pela fragmentação da sociedade não nos catapultará à Pré-História ou ao Caos. Renascerá a alma que quer continuar respirando plenamente a vida. Sim, respirando: alma em hebraico é neshamá, palavra que vem do verbo limshom, respirar. No respirar d’alma, entre o medo que inspira e a esperança que expira, que não haja a asfixia do afã de viver. Rosh Hashaná – pontua Isaac Aboab (séc. 14, Espanha) – também corresponde ao dia em que Iosef/José, filho do patriarca Iacov/Jacob e da matriarca Rachel, foi liberta-
do do calabouço. Ele, que antes havia sido colocado num poço – condenado a morrer – pelos próprios irmãos sendo depois resgatado por mercadores, tornou-se empregado de um nobre do Egito antigo, sendo injustamente acusado de tentar seduzir (quando na verdade ele foi o seduzido) a esposa deste nobre e foi enviado ao calabouço. Após sucessivas quedas – poço e calabouço – emergiu para tornar-se aquele que salvaria tantos da fome. Rosh Hashaná representa, assim, a esperança de que a injustiça não prevalecerá e que a vingança não contaminará a alma com o veneno do rancor.
Frequentemente receamos, em consequência da inveja e trapaça alheia, sermos remetidos às profundezas que se assemelham aos poços e calabouços. Que a este medo que seja adicionada a esperança de que é possível renascer destas situações. Assim foi com Iosef/José e igualmente tem sido com as gerações contínuas de nosso povo e de nossas famílias. Que também seja, no resgate do impulso de viver, conosco. Na sequência de Rosh Hashaná celebramos Iom Kipur, dia em que – ensina o comentarista Rashi (séc. 11/12, França) – Moshé/Moisés, ao estar pela segunda vez no Monte Sinai, recebeu a nova versão das Tábuas da Lei em função da quebra da primeira versão no episódio do bezerro de ouro.
Diante do desprezo dos que quebram os princípios mais básicos da vida, a recordação deste simbólico momento vivenciado por Moshé alimenta a alma e nos impulsiona com renovado vigor. Não há ilusão messiânica sobre este vigor, tanto que ambas as versões das Tábuas da Lei – a quebrada e a inteira – foram colocadas juntas na mesma Arca da Aliança (Talmud: Tratado Berachot). Com consciência da realidade, o medo do mundo fragmentado segue junto com a esperança de restauração.
Afirma a Torá que “estas palavras [entre as quais as das Tábuas da Lei] estão em sua boca, coração e mão”. (Devarim/ Deuteronômio 30:14). Isto significa que o medo paralisante e a esperança transformadora estão em nossas palavras (boca), pensamento (coração)1 e ações (mão). Que da alma brote a força que impeça a boca ser amordaçada, o coração acorrentado e as mãos amarradas.

* * * No pêndulo que vai da esperança ao medo, entendemos que medo existe porque há vida sendo construída com pessoas amadas através de projetos sonhados. Este medo é também o medo de que a esperança de um futuro melhor evapore e com ela o sopro da vida. Assim, o toque do shofar – como o sopro da vida – evoca tanto a esperança quanto o medo: “E tocarás o shofar e sem que estremeçam?”, indaga o profeta bíblico Amós (3:6).
Ao construirmos a vida com esperança como não estremecer e não ter medo? E no temor como não escutar a esperança para que nossa alma não seja como um deserto que desistiu de frutificar as sementes da vida? A alma torna-se “uma voz [que] clama no deserto”. (Ieshaiahu/ Isaias 40:3) Clama a esperança e simultaneamente desabafa o medo.
Notas
1. O coração, na Bíblia, é caracterizado como o lugar da sabedoria.
Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

