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Rabino Dario E. Bialer
HINENI: A RESPOSTA MINDFULNESS DO JUDAÍSMO
Hineni é a resposta judaica ao chamado de Deus. O hineni de Adão é de insegurança diante do desconhecido. O de Abraão o leva a testar sua fé. O hineni de Moisés o faz sair de si mesmo, do refúgio onde se encontrava, e se comprometer com a libertação dos oprimidos.
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Rabino Dario E. Bialer
Uma das últimas músicas que o incrivelmente talentoso Leonard Cohen escreveu antes de morrer fala sobre Deus e a escuridão que o homem sente em sua vida, para surpreender no estribilho cantando em hebraico as palavras bíblicas Hineni Adonai, hineni, Eis-me aqui, Meu Senhor, eis-me aqui.
Ele canta hineni num momento de sua vida em que sente como nunca antes o encontro com Deus, com sua musa inspiradora recentemente falecida e, portanto, e também com sua própria morte. “Sinto que estamos tão próximos que se estenderes a tua mão poderás segurar a minha.”
Como traduzir hineni? Nas palavras do próprio músico, hineni é “essa declaração de prontidão, não importa qual seja seu resultado, e faz parte da alma de todos. Todos nós somos motivados por profundos impulsos e profundas vontades para servir, mesmo que talvez não sejamos capazes de localizar o que estamos querendo servir. Então, é apenas uma parte da minha natureza, e eu acho que da natureza de todos os demais, se oferecer no momento crítico em que essa emergência se articula. É somente então que conseguimos localizar essa vontade de servir”.1
Hineni é a resposta judaica ao chamado de Deus.
Assim responderam Adão, Abraão, Jacob, Moisés, Samuel, Isaías e tantos outros.
O hineni de Adão é de insegurança diante do desconhecido.
O de Abraão o leva a testar sua fé.
O hineni de Moisés o faz sair de si mesmo, do refúgio onde se encontrava, e se comprometer com a libertação dos oprimidos.
O hineni de Samuel instaura a profecia e o de Isaías um diálogo profundo com seu Criador.
Deus chamou o mundo a ser, e esse chamado continua.
O ato de trazer o mundo à existência é um processo contínuo.
Há o momento presente porque Deus está presente. Todo instante é um ato de criação. Um momento não é um fim, mas um flash, um sinal de começo. O tempo é inovação perpétua, sinônimo de criação continuada, e estar presente é saber responder hineni ao chamado da vida.
No entanto, na maioria das vezes a nossa mente está se movendo constantemente, do passado para o futuro e do futuro para o passado. Vai até as memórias do passado e se transporta para os desejos do futuro. De fato, muitas vezes o futuro não é mais do que o passado projetado. Se alguma vez amamos, vamos querer voltar a sentir essa sensação outra vez. Se sofremos fazendo algo, vamos evitar fazer o mesmo no futuro para não sairmos magoados novamente. Quando se vai do passado ao futuro e do futuro ao passado, se utiliza o tempo presente somente como um meio para outros fins, enquanto que o presente é o único instante verdadeiro. Hineni é estar presente e perceber Deus (aqueles que acreditam nele), a natureza que nos rodeia e a cada ser vivo que se comunica conosco.
Isso é mindfulness. Consciência plena. Estarmos presentes no presente.
Os patriarcas e os mestres de nossa tradição foram abençoados com essa capacidade. É por isso que responderam hineni ao chamado da vida. Essa capacidade faz deles pessoas extraordinárias que nos inspiram a compreender que o judaísmo chama também a nós a vivermos vidas onde estejamos preparados para responder hineni. E a chave para isso é mindfulness.
O judaísmo tem raízes profundas na busca de estabelecer um vínculo plenamente presente, consciente e responsável com cada elemento da Criação.
O Talmud da Babilônia nos ensina que os antigos mestres dedicavam uma hora inteira antes do começo das orações a uma espera silenciosa. Ou seja, aqueles textos que viriam a ser cristalizados como sendo as fórmulas fixas das orações do judaísmo emergiram de um processo em que seus formuladores se sentavam isolados em seus respectivos silêncios.
Mindfulness é o resultado de práticas espirituais consistentes tais como meditação, yoga e esforços semelhantes. Quando alguém está conscientemente ciente (mindfully aware), ele está desperto para o desdobramento milagroso da vida, cultivando a capacidade de estar presente com o que estiver acontecendo a cada instante, prestando atenção de uma forma sustentada e singular no momento presente e sem julgamento. “É uma das muitas formas de meditação, considerando meditação como qualquer forma onde nos empenhamos em (1) regular sistematicamente a nossa atenção e energia (2) influenciar e possivelmente transformar a qualidade de nossa experiência (3) estar ao serviço de realizar todo o potencial de nossa humanidade e de (4) nossas relações com os outros e com o mundo.”2
Recentemente participei de uma experiência mindfulness, convidado pelo mestre e rabino Marcelo Bronstein, da sinagoga B’nai Jeshurun de Nova Iorque.
Devo confessar que cheguei morrendo de medo. Não sabia o que esperar ou como me comportar. Não era muito o que sabia de mindfulness até esse momento, e o pouco que sabia não era muito alentador. Durante uma semana, numa montanha afastada da civilização, e estava completamente proibido o uso de telefone ou qualquer outro aparelho. Já pensaram? Sete dias sem poder encostar no celular!? Alguém já tentou isso? Também mais da metade do dia era passada em completo silêncio. Pensar em passar tanto tempo consigo mesmo é assustador, mas muito menos do que se passar a vida fugindo de si mesmo.
Acordávamos cedo, às 5h30 da manhã, e, depois de tomar um chá, começávamos o dia com uma hora de meditação. Logo caminhávamos em silêncio até o café da manhã, que se estendia por mais uma hora de total silêncio. No início, resulta estranho estar rodeado de pessoas e ao mesmo tempo estar apenas com você mesmo. Pois é disso que se trata. A ausência de palavras no início incomoda, mas depois se converte numa oportunidade de ouvir e falar com você mesmo. Em silêncio se come mais pausadamente e ficamos mais conscientes do que ingerimos. Depois é o momento de rezar. Os homens e as mulheres que assim o desejam vestem seus talit e tefilin numa experiência religiosa em que se reza sem um sidur
Quando alguém está tradicional, apenas uma apostila com alconscientemente ciente, ele está desperto guns textos que a cada dia eram escolhi dos alternativamente. Assim, cada dia tí nhamos uma reza diferente. para o desdobramento A oração com atenção plena é uma milagroso da vida, oração menos fixa e muito mais pessoal. cultivando a capacidade Você não tem que correr. A oração judaica de estar presente com o é um equilíbrio entre keva (o que é fixo) e kavaná (intenção). Ao fazer a oração com que estiver acontecendo atenção plena, a keva é negociável, a kaa cada instante. vaná nunca é. Você pode realizar menos orações, mas você vai se aprofundar mais e mais para dentro do seu coração e da sua alma. A partir das 10 da manhã e até o meio dia fazíamos o que me resultou mais difícil. Aula de dança e movimento corporal. Os que me conhecem sabem que toda a minha desenvoltura no púlpito da sinagoga é inversamente proporcional ao pânico cênico que sinto numa pista de dança. Não é só dançar, mas me dar a permissão de fazer o ridículo, de me mexer livre e solto, de que por duas horas o corpo seja livre para se mexer sem o controORAÇÃO DO RABINO NACHMAN DE BRATISLAV (1772-1810 E.C.) Mestre do universo, concede-me a capacidade de estar sozinho. Que seja meu costume sair ao ar livre cada dia entre as árvores e a relva. Entre todas as coisas que crescem, Para lá estar sozinho e entrar em oração. Possa eu expressar tudo o que está em meu coração, Falando com Ele, a quem pertenço E que a relva, as árvores e as plantas despertem na minha vinda. Preencha a minha oração com o poder de suas vidas, Fazendo pleno o meu coração e o meu discurso Através da vida e do espírito das coisas que crescem, Feitas plenas por Tua fonte transcendente. Oh! Que eles entrem na minha oração! Eu, então, abrirei totalmente meu coração em oração, súplica e sacralização; Então, ó Deus, eu derramarei as palavras do meu coração diante de Tua Presença.
le da mente e dos pensamentos. Aprendi que soltar o corpo é um mecanismo muito importante para liberar a alma e que um corpo travado encerra emoções ainda não manifestadas.
Depois do almoço se visitava um projeto social, solidário, comunitário e autossustentável dos habitantes da região. Em cada um desses lugares, a possibilidade de aprender como com tão pouco é possível realizar tanto.
Na parte da tarde um novo momento de reflexão e introspecção e depois do jantar uma aula-conversa-avaliação do dia, para em absoluto silêncio ir a dormir até o próximo dia.
Muito silêncio, muita pausa, muita atenção, respiração.
Ter participado dessa experiência me fez entender por que faz sentido se engajar regularmente com “práticas que se parecem muito a estar fazendo nada”.3
A ausência é uma oportunidade para nos perguntarmos de que queremos nos preencher.
O jejum de Iom Kipur é exatamente isso. De que queremos nos preencher no ano que começa?
A experiência de jejuar é muito mais do que a ausência de alimentos, da mesma forma que o silêncio é muito mais do que a ausência de som.
“Silêncio é o espaço entre as notas.
É o que sustenta a música.
O silêncio é uma paisagem
O silêncio é uma dimensão onde reside a alma.
O silêncio é um local de encontro e possibilidade.”4
Como dizia Heschel, o sublime é aquilo que vemos e que somos incapazes de expressar, é a alusão silenciosa a coisas com um significado maior que elas mesmas.
Mindfulness é uma prática que oferece infinitas oportunidades para cultivar maior intimidade com sua própria mente e para explorar e desenvolver os recursos interiores que temos para aprender, crescer, curar e potencialmente transformar a compreensão de quem você é e como pode viver com mais sabedoria, com maior bem-estar e felicidade.
Isso não se aprende lendo um livro, nem durante uma semana de retiro espiritual. Esses são o início para uma caminhada ao longo da vida toda. Só quando vivemos E é importante destacar que a prática presentes e conscientes podemos atingir nosso mindfulness acontece justamente na vida e não num retiro do mundo. Como bem diz o Dr. Daniel Goleman, máximo potencial escritor e psicólogo especializado em intepara cumprir mitsvot, ligência emocional, “Fugir um pouco da fazer justiça e sermos vida atribulada não basta. A mente ainartífices do tikun, de da continua agitada mesmo dentro de um corpo deitado em uma praia tropical”.5 consertar tudo o que O principal beneficiário das mudanfomos destruindo ças que mindfulness pode trazer à sua no nosso mundo. vida é você mesmo. Mas logicamente também, você começa a estabelecer com todos os que lhe rodeiam vínculos mais significativos e menos tóxicos. E dessa forma se constitui numa prática reparadora e integradora. A grandiosa premissa da religião é que o homem é capaz de se superar, de elevar sua mente e se vincular com o absoluto. Só quando vivemos presentes e conscientes podemos atingir nosso máximo potencial para cumprir mitsvot, fazer justiça e sermos artífices do tikun, de consertar tudo o que fomos destruindo no nosso mundo. O que estas e muitas outras práticas têm em comum é serem comportamentos que nos erguem de nosso estado comum de percepção e nos colocam num estado de atenção que saúda o mundo e todas as experiências com simplicidade, gratidão e assombro. Elas nos tiram de nossas perspectivas egoístas e nos conduzem a uma consciência mais abrangente. O judaísmo não se resume a cumprir rituais de santidade. O ser humano é a santidade. Nós somos sagrados. Seres de kedushá. E a cada respiração aprofundamos na kavaná de estarmos abertos à vida.
Notas
1. No original: That declaration of readiness, no matter what the outcome, that’s a part of everyone’s soul. We all are motivated by deep impulses and deep appetites to serve, even though we may not be able to locate that which we are hoping to serve. So this is just a part of my nature and I think everybody else’s nature to offer oneself at the critical moment when the emergency becomes articulate. It’s only when the emergency becomes articulate that we can locate that willingness to serve. 2. Jon Kabat-Zinn, Mindfulness for Beginners, p. 12. 3. Idem, p. 15. 4. Bronstein, Marcelo, “For you silence is praise”, Sabbat 11 dezembro 2015. 5. Goleman, Daniel. A Arte da Meditação. Dario E. Bialer é rabino e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro-ARI.
