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Vittorio Corinaldi
PARADOXOS SINFÔNICOS
A atitude de Toscanini, ao aceitar a incumbência de reger uma orquestra desconhecida, torna-se particularmente louvável, e se acrescenta aos atos de ousadia que caracterizam sua carreira e que o levaram a abandonar a Itália fascista, na qual se negava a reger obras que Mussolini ou Hitler ditavam.
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Vittorio Corinaldi
80 anos atrás, em dezembro de 1936, Arturo Toscanini regeu o concerto inaugural da Orquestra Filarmônica de Israel, então Sinfônica de Eretz Israel (Palestina). A história da orquestra é um espelho empolgante do renascimento nacional do povo judeu, e está carregada de episódios emocionantes, tanto do ponto de vista artístico como do humano.
Sua fundação se deve a Bronislaw Huberman, renomado violinista que teve a iniciativa de levar músicos judeus perseguidos na Europa (onde o Nazismo se afirmava ameaçadoramente) para uma nova vida musical e material no nascente estado judeu em embrião.
Com evidente consciência da alta qualidade musical do conjunto que conseguira reunir, Huberman convidou para o concerto de abertura o grande Maestro Arturo Toscanini. Este se distinguía tanto pela severa liderança artística quanto por suas intransigentes atitudes contrárias aos regimes ditatoriais, que sistematicamente procuravam moldar toda atividade cultural em função de suas agressivas aspirações político-ideológicas ou de suas turbulentas bravatas demagógicas.
O fato de Toscanini ter anuído ao convite é já por si um gesto corajoso de convicção e de simbólica significação moral, que a seguir inspirou a trajetória musical e cívica da orquestra em todos os anos de sua existência. E é gratifi-
cante pensar que naqueles dias a população do “ishuv”(população judaica na região) contava não mais de 600.000 pessoas de escasso poder financeiro e de modestas ambições materiais.
A cidade de Tel Aviv não passava então de um reduzido centro urbano, que vinha se erguendo da areia costeira com seus brancos edifícios de despretensiosa arquitetura de estilo internacional, trazida por arquitetos judeus igualmente expulsos dos centros europeus que se fechavam à sua atividade profissional.
A cidade não dispunha então de teatros ou auditórios apropriados para o evento, que atraiu um público numeroso de trabalhadores e “chalutzim” (pioneiros), os típicos modestos mas entusiastas consumidores da cultura naquele austero período. E o concerto teve que se realizar num hangar do porto de Tel Aviv, recentemente inaugurado para substituir o da vizinha cidade de Yafo (Jaffa), que os distúrbios árabes da época tornavam inacessível ao trânsito de mercadorias e passageiros judeus.
Quem frequenta costumeiramente o ambiente musical conhece bem o caráter brilhante, elegante e sofisticado desses auditórios hoje, e o luxo um tanto exibicionis-
A inspiração de ta que frequentemente é ostentado – talToscanini tornou-se um vez menos para dar um fundo respeitável legado para a orquestra, e ela foi crescendo à experiência musical do que para evidenciar “status” social ou méritos políticos. A atitude de Toscanini, ao aceitar a incom o Estado de Israel cumbência de reger uma orquestra desdentro de um espírito conhecida num entorno dos mais humilde solidariedade des e primitivos, torna-se então particue participação na larmente louvável, e se acrescenta aos atos de ousadia que caracterizam sua carreira épica experiência e que o levaram a abandonar a Itália fasde sua criação. cista, na qual se negava a reger obras que Mussolini ou Hitler ditavam como enaltecedoras de seus regimes. A inspiração de Toscanini tornou-se um legado para a orquestra, e ela foi crescendo com o Estado de Israel dentro de um espírito de solidariedade e participação na épica experiência de sua criação. O octogésimo aniversário foi comemorado com um concerto festivo cujo programa coincidia com o concerto de fundação regido por Toscanini. Desta vez porém o evento se deu no “Heichal Hatarbut”, a condigna sede permanente da Filarmônica, tão diferente do simples hangar do porto, sob a regência de Riccardo Muti, músico que por suas qualidades pessoais e profissionais é quem mais se
presta para celebrar os valores contidos no episódio de Toscanini. Ele o fez conduzindo a orquestra num desempenho impecável, depois do qual usou de palavras lisonjeiras para a orquestra, para o público e para um Israel depositário daqueles característicos que nada melhor do que a música pode expressar.
E em contraste com a atitude de Toscanini, que não via com simpatia a execução de hinos nos seus concertos (por reflexo da imposição por ele repelida de tocar o Hino fascista), fez culminar a comemoração com a surpresa não programada da execução da “Hatikva”: o hino pacífico que a Filarmônica executou com uma harmonia e uma comovente serena sonoridade superiores ao habitual desempenho.
A atmosfera de elevação espiritual e de enaltecimento cívico se dissipou porém infelizmente logo à saída do concerto, defrontando-se com a realidade da Israel de hoje: uma realidade que seguramente não teria encontrado o apoio de Toscanini, e que Riccardo Muti conseguiu fazer esquecer durante as três horas do acontecimento, fazendo uso do paralelo da música com um mundo de paz e fraternidade em nada semelhante àquilo que vem se passando no interior e ao redor do país.
A atmosfera de Paradoxalmente, Israel se rege hoje em elevação espiritual e de enaltecimento muitos setores pelos mesmos critérios e princípios que Toscanini condenava. O espírito de abertura liberal e democrácívico se dissipou logo tica que orientava os pioneiros daqueles à saída do concerto, anos “heróicos” e que se espelhava na Ordefrontando-se com a questra Filarmônica, vê-se hoje abafado realidade da Israel de por uma onda de vulgarização populista liderada por uma Ministra da Cultura hoje: uma realidade obcecada por uma suposta hegemonia da que seguramente não cultura ocidental, em detrimento da exteria encontrado o apoio pressão que se alimenta de fontes “oriende Toscanini, e que tais” sefarditas e árabe-judaicas, particuRiccardo Muti conseguiu larmente presentes em comunidades sediadas na periferia (isto é, fora da cosmofazer esquecer polita e liberal Tel Aviv…); ou por uma durante as três horas tendência de glorificação da visão místido acontecimento. co-religiosa nacionalista que o Ministro da Educação vem introduzindo no sistema escolar, num processo de ostracismo do livre-pensamento e da comparação democrática de opiniões divergentes; ou por um solapamento do ainda soberano poder judiciário, que uma demagógica Ministra da Justiça insistentemente procura deturpar, através da tentativa de introduzir critérios político-partidários na nomeação de juízes. Como membro de um governo de direita ultranaciona-
Wavipicture/istockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 23

lista com fortes inclinações religiosas ortodoxas, a Ministra Regev vem patrocinando uma política de censura da livre expressão cultural que se faz sentir em todos os setores da ação intelectual. Ela promove iniciativas provincianas de duvidoso “folclore” e acentuado teor “patriótico”, ao mesmo tempo que administra uma distribuição discriminatória dos recursos, canalizando somas desproporcionais para atividade ideologicamente comprometida nos territórios ocupados.
Um exemplo disto foi o recente episódio da apresentação do Teatro Nacional Habima na cidade de Ariel – um dos maiores núcleos do assentamento judaico na Cisjordânia: vários atores do conjunto se recusavam a atuar naqueles territórios, em coerência com sua condenação da prolongada e contestada ocupação. A atitude da Ministra foi a de suspender o subsídio oficial de que o Teatro vem gozando, e que é essencial para sua sobrevivência financeira.
Diante da ameaça de uma total paralisação de sua atividade, o Teatro acabou cedendo à imposição ministerial, apenas com a substituição de alguns atores insistentes em sua recusa.
Igualmente, o Ministro da Educação Bennet (do partido religioso ortodoxo “Habait Haiehudi”) vem investindo grandes esforços para “injetar” conceitos de judaísmo ortodoxo nos mais variados e alheios setores do ensino, até mesmo naqueles em que nada mais do que um objetivo, racional, científico critério de pesquisa livre de preconceito se faz necessário; sob o pretexto de suposta defesa da integridade nacional, ele por exemplo proíbe o acesso às escolas (e portanto a uma exposição de ideias diferentes das do “main-stream” oficial) a grupos como o “Shovrim Shtiká” (“Quebrando o Silêncio”) que – no que até agora era aceito como regra conforme o costume de uma sociedade democrática – estabelecem um contacto entre alunos em idade de convocação militar e ex-soldados recentemente dispensados do serviço ativo, cujos relatos de experiências tidas no contato com as populações dos territórios podem despertar dúvidas ou questões de consciência quanto à realidade dos assentamentos. O atual governo de Ainda na mesma corrente de velado Israel vem seguindo uma linha de perigosas “Macartismo”, a Ministra da Justiça, Shaked, não perde uma ocasião para propor à Knesset leis restritivas da autoridade jucontradições, e que dicial, numa evidente tentativa de revesarrasta o país para um tir iniciativas contrárias a princípios de campo de desrespeito direito com uma roupagem de falsificade direitos humanos, da “legalidade” (como no exemplo de terras usurpadas aos legítimos proprietários, de deslegitimização para o estabelecimento de assentamentos das minorias e do como a comentada Amona). poder judiciário, de Estas são situações sintomática de lavagens cerebrais e toda a linha que o atual governo de Israel falsificações históricas. vem seguindo, e que não é intenção deste artigo analisar em detalhe: uma linha cheia de perigosas contradições, e que – usando uma linguagem de aparência “patriótica” de ufanismo e autonomia – arrasta o país para um campo de desrespeito de direitos humanos, de deslegitimização das minorias e do poder judiciário, de lavagens cerebrais e falsificações históricas; para um isolamento e uma situação geopolítica que poderão marcar o fim da experiência sionista e da vocação humana e pacífica que o povo judeu cristalizou em séculos de sofrida sobrevivência: atributos tão bem representados pela Orquestra Filarmônica. Os concertos desta são uma ilha de estética e harmonia em meio ao desarmônico, nervoso conjunto de contrastes da sociedade israelense. À diferença do tom por vezes cacofônico do diálogo entre os vários componentes dessa sociedade, a linguagem da música desperta anseios de justiça e solidariedade com um vocabulário de significado universal. O setor mais equilibrado e esclarecido da população de Israel anseia por uma mudança nesse sentido. Quando ela vier, os acordes da Filarmônica voltarão a ser o mais autêntico, erudito documento de uma sociedade livre, aberta e tolerante, portadora autorizada dos verdadeiros valores do Movimento Sionista. Vittorio Corinaldi, arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do Kibutz Broch Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, planejamento e organização dentro do movimento kibutziano.



