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Paulo Geiger
SIONISMO 2.0
(Este texto complementa, acrescenta e repete um pouco, intencionalmente, e num contexto específico, o do Devarim anterior, Occupy world)
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Comecemos pelo título, o que é sempre um bom começo. Sionismo 1.0 refere-se ao movimento nacional de um povo planetário e multimilenar, que, por ter perdido seu lugar de origem, de formação e de vida, ancorou a sobrevivência de sua identidade (por meio de religião, cultura, misticismo, e, na era dos direitos individuais e nacionais, por meio deste movimento nacional moderno) na visão de seu retorno e da reconstrução de uma vida nacional plena na ‘Terra Prometida’. Sionismo 1.0 é a evolução do antigo sionismo [dos exilados na Babilônia; do ritual religioso diário que evoca o retorno a Sion como a realização do destino judaico; dos sonhos e visões messiânicos e escatológicos; dos poetas, escritores, rabinos e líderes comunitários; do shtetl e das metrópoles; da renovação do presente e do futuro judaico pela confirmação da identidade nacional e religiosa do passado (Chadesh Iameinu Kekedem)] para um movimento moderno, inspirado nessa tensão milenar do Retorno, mas agora baseado nos direitos do homem e dos povos, um direito internacionalmente reconhecível e irrefutável. Sionismo 1.0 é o coroamento da pertinência religiosa e cultural, que sempre teve caráter nacional, num movimento nacional moderno, numa ideologia, num programa de ação e em sua realização. É ‘o povo judeu em marcha’, nas palavras de seu primeiro grande líder, Theodor Herzl. É a presença do povo judeu no mundo, como nação, no concerto das nações.
Sionismo 1.0 é, pois, a visão e o processo da extração dos judeus – do povo judeu – de sua dispersão no planeta para concentrá-lo numa entidade nacional sólida e estrutural, um estado-nação, com ideais consentâneos com a visão ética do judaísmo. Um processo de diluição da identidade planetária para a consolidação de sua presença individual e soberana como nação senhora de seu destino. Um país que nasceria da redenção do deserto, da volta do povo judeu à terra e ao trabalho obreiro, da criação pioneira (chalutziana) de comunas e cidades. Um movimento, também no sentido literal da palavra. Ele partiu, portanto, da realidade de um povo disperso, unido por seus valores, catalisado pela perspectiva do Retorno, para recriar a nação física, com sede própria. Para isso, os judeus puseram-se em marcha e criaram esta sede. A alma, preservada, recriava um corpo.
Sionismo 2.0 é uma proposta para a continuação desse movimento a partir da realização, já consolidada, da fase 1.0. Uma continuação que parte de uma realidade totalmente diferente, que exige um movimento, inclusive literal, numa direção diferente.
A nação consolidada, o estado-nação judaico, existe, e abriga cerca de metade do povo judeu. A outra metade, no momento, no mundo inteiro, não está em marcha. As comunidades em perigo, e a maior parte dos judeus que aspiravam a uma vida nacional plena num estado judaico já estão lá. Herzl realizou seu programa, e a vez é de Achad Haam. A alma judaica dos que NÃO estão lá sabe que já tem um corpo, mas o vê como uma possibilidade futura, ou como um abrigo garantido em qualquer momento mais difícil. O que foi uma visão religiosa, mística, escatológica, heroica, pioneira de Sion e da volta a Sion é hoje uma realidade terrena, um objeto real, um estado democrático, com seus próprios problemas, que também é o estado de seus cidadãos não judeus, cujos interesses vitais, talvez, nem sempre, coincidam com o de todo judeu em qualquer parte do mundo. Surgiu um novo movimento que tem ‘sionismo’ no nome: o pós-sionismo. Que diz: o sionismo acabou, cumpriu seu papel, o que temos agora é um estado e seus cidadãos, e suas prioridades, que não coincidem sempre, e em tudo, com as dos judeus que são cidadãos de seus estados não judaicos. Gostem de nós, se quiserem, deem seu apoio, se quiserem, mas não se metam na nossa vida, aqui quem tem voz é a sociedade israelense, o governo israelense.
Mas essa proposta contradiz toda a história judaica. Uma resposta a essa realidade que seja consentânea com a histórica judaica seria o Sionismo 2.0.
É a continuação do sionismo, e a continuação do sionismo é o caminho lógico do povo judeu. Sionismo não é uma invenção intelectual ou política que possa ser desfeita por declarações ou teses ou intenções. Sionismo é a vontade do povo judeu e dos judeus e de cada judeu de ser um povo só, com uma história comum, uma religião comum, e um futuro comum. A história judaica é sionista. Foi sionista na aliança abraâmica que se estendeu a todas as gerações seguintes; na decisão naassé venishmá; no percurso de quarenta anos no deserto em direção ao próprio destino; na conquista de Canaã; no pranto nas margens dos rios da Babilônia; nas lutas contra helênicos e romanos; em Massada e em Iavne; nas comunidades, que são territórios virtuais judaicos na dispersão; nas preces do sidur e do machzor; na declaração final da Hagadá; na poesia de Iehuda Halevi e Bialik; na cultura, nas lendas e nos mitos do povo judeu. Israel é UMA das conquistas do sionismo. Sionismo é a decisão individual de todo judeu que assim decidir, do povo judeu, enquanto assim de-
Paulo Geiger
cidir, de ser um povo só, esteja em seu estado-nação ou em qualquer estado onde seja também cidadão. Por tudo isso, a ideia de que sionismo se esgote com o advento do estado-nação judaico é absurda. O estado-nação judaico é mais um bastião do sionismo, um músculo do sionismo, faz parte da visão sionista inicial, é a prova de seu acerto e de sua vitalidade.
Mas a marcha (se Herzl tinha razão, para onde, ou o quê, marcha o povo judeu hoje? para o quê deveria marchar?), ou seja, o movimento de Sionismo 2.0 deve ser, se não o oposto, o simétrico ao de Sionismo 1.0. A realidade atual é a de um estado-nação judaico e de um povo judeu que são, ao mesmo tempo, partes de um planeta ameaçado, por estar sendo tão abusado e espoliado quanto eram os povos vítimas de colonização e imperialismo (e planeta em perigo é perigo para todos que nele habitam), a realidade de uma globalização que enfrenta – ou favorece? – o ressurgimento de preconceitos, racismos, isolacionismos, fechamentos, brexits, Wilders, Trumps, Le Pens, Putins, Erdogans, Maduros, Kim Jong-uns, et caterva, uma realidade em que, mais de setenta anos após o Holocausto, ressurgem e avultam preconceitos de todos os tipos, especificamente o anti-israelismo e o antissemitismo. Nessa realidade, volto a perguntar: Se sionismo é o povo judeu em marcha, para onde, ou para o quê, devem marchar hoje o povo judeu, os judeus que a ele pertencem, e o estado-nação do povo judeu (pois pelo seu próprio DNA1 e sua própria história, religião e cultural, eles sempre marcham juntos, e nenhum pós-sionista é capaz de negar ou evitar isso)?
O movimento de Sionismo 1.0 foi para a retirada dos judeus de seus nichos de inserção, guetos, shtetls, metrópoles, sociedades, cidadanias, culturas, para mobilizá-los na recriação da nacionalidade institucional, do instrumento de governança de seu próprio destino, naquilo que se chamou de autodeterminação. O povo judeu pôs-se em marcha e, apesar de tudo, apesar de ser mal-recebido, de encontrar resistências internas, apesar do (e não graças ao) Holocausto, apesar de pogroms, de sete ou oito guerras, de terrorismo e boicote (até hoje), levou avante a ideia sionista de ser um só povo (na dispersão E em seu estado nacional –, uma só cultura (a religiosa e a secular), um só futuro. Diante da realidade de hoje, Sionismo 2.0 é o movimento de retorno dos judeus, do povo judeu, do estado judeu, juntos como sempre estiveram, a sua inserção planetária: a ser parte integrante dessa sociedade maior, em que as fronteiras não são abismos, lacunas ou muros, exercendo a vocação judaica que define o povo judeu como mamlechet kohanim, um reino de sacerdotes a serviço da humanidade, solidário com os problemas da humanidade e partícipe deles como parte da solução. Sionismo 2.0 é a continuação da história judaica, da qual Sion, por ser promessa divina desde a raiz, ou por ser raiz necessária, acalentada, perdida e reavida, é parte integrante. É a marcha do povo judeu, suas coletividades e seu estado, juntos, pois são um só (ou não existiriam mais), e junto com a humanidade, com o planeta que ela habita, pela sua salvação (da humanidade e do planeta) física e moral, pela convivência, pela justiça e equanimidade (que são a essência da moralidade judaica). É o movimento de retorno, agora ao berço comum de todos, à solidariedade com todos os oprimidos (por exploração, por preconceito, por totalitarismos, por demonizações, por prepotências econômicas, políticas, religiosas...), os esquecidos, os menosprezados. É o movimento de uma luta comum contra terrorismo, fanatismos, intolerâncias, fundamentalismos, isolamentos, muros, desmatamentos, torcidas violentas (e todas as demonizações do ‘outro’), poluição, superexploração de recursos, degradação. É a busca de novas solidariedades, por parte de uma nação que tanto careceu de solidariedades em toda a sua história e que agora tem a oportunidade e a capacidade de exercê-la, pois mais do que ninguém sabe o que ela significa. Solidariedade com todos que, pequenos e indefesos como fomos ao longo do tempo, têm seus próprios sionismos como sonho e instrumento de redenção, sejam esquimós, baleias em extinção, povos indígenas, ou a própria Terra, lar de todos nós. E isso não é novidade, no fundo, está nas raízes profundas do judaísmo, nas palavras dos profetas.
Se Sionismo 2.0 reunir a força, a decisão, a energia, a capacidade de ação do Sionismo 1.0, nada disso será utopia, como demonstra a incrível história da recriação da nação judaica em sua terra. E com Sionismo 2.0 reafirma-se a vocação judaica de ser mamlechet kohanim, e a vocação de Sion, o Estado de Israel, de, junto com povo judeu do qual faz parte, contribuir para a humanidade e o planeta. Ki miTsion tetse Torá.
1. DNA metafórico, não biológico, referindo-se aos componentes do tripé ‘formador’ da identidade judaica pela decisão do naassé venishmá: 1) pertinência ao grupo (agora povo); 2) o conteúdo identificador do povo (cultura, filosofia, ética e estética, religião e os consequentes comportamentos; 3) percepção e perseguição de um futuro comum na terra de origem e de destino, conforme a aliança inicial abraâmica.





