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Ricardo Sichel

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Paulo Geiger

Paulo Geiger

ZYGMUNT BAUMAN: AS IDENTIDADES LÍQUIDAS

Ricardo Sichel

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Em 9 de janeiro do presente ano, faleceu em Leeds o sociólogo Zygmunt Bauman z’L. Nascido em 1925, na cidade de Poznan, na Polônia, fugiu do nazismo em 1939 para a União Soviética. Participou do exército polonês no exílio, organizado pela URSS. Com o fim da guerra, retorna a Varsóvia, onde estuda sociologia e ciência política na Academia de Ciências Políticas e Sociais, tendo completado, em 1954, seu mestrado na Universidade de Varsóvia, onde se tornou professor até 1968.

Após perseguição política ao final dos anos 60, patrocinada pelo governo polonês, com viés antissemita, emigra para Israel, onde passa a lecionar na Universidade de Tel Aviv, antes de aceitar a cadeira de sociologia na Universidade de Leeds, em 1971. Esta nova imigração é fruto de seu desapontamento com os rumos da política em Israel, onde ele fala não querer mais uma vez ser vítima do nacionalismo. Esta repulsa também vem a ser sentida por sua esposa, Janina Bauman, sobrevivente do Gueto de Varsóvia, levando a família Bauman a uma nova imigração.

A obra de Bauman é densa. Um de seus temas é a crítica ao processo de globalização, uma análise do problema dos refugiados, em 2016, na Europa, como também uma análise da vida em comunidade e da relação de seus membros. Observa, em outro estudo, o Sionismo, estabelecendo uma análise crítica. Em uma de suas visitas a Israel, em entrevista publicada no jornal Haaretz, de 16/02/2013, observa: A compreensão da necessidade de coexistência é um marco de seu pensamento. A solidariedade humana assume em seu estudo um elemento crucial, ele se torna cético do individualismo e do liberalismo econômico, apontando para o crescimento da miséria e da injustiça social.

“Vim para Israel durante o trágico episódio do breve governo de Rabin – o tempo da esperança que a nação iria adquirir sentido, parar a decadência e seguir um caminho para fora do impasse”, ele lembra. “Porém, o episódio terminou violentamente pouco depois – não por uma bala palestina, mas judaica. Desde então, em eleição após eleição, a maioria dos israelenses expressaram sua aprovação pela dureza em lugar da sanidade, colocando no poder pessoas que asseguraram que a coexistência pacífica entre israelenses e palestinos não estaria no mapa”.1

A compreensão da necessidade de coexistência é um marco de seu pensamento. Nesta mesma ocasião, ele anseia por confluir a moralidade com a sociologia. A solidariedade humana assume em seu estudo um elemento crucial, onde se torna cético do individualismo e do liberalismo econômico, apontando para o crescimento da miséria e da injustiça social.

Para Bauman, a Comunidade representa um local estável e seguro de se estar. Segundo ele, em sua obra A Co-

1. “I came to Israel during the tragically brief episode of Rabin’s government − the time of hope that the nation was about to come to its senses, stop the rot and follow the road out of the impasse,” he recalls now. “That episode, though, was brought to a violent end shortly after − not by a Palestinian, but by a Jewish bullet. Since then, in election after election, the majority of Israelis have expressed their approval of high-handedness over high-mindedness, voting into power people who made sure that peaceful Israeli-Palestinian coexistence is not on the cards.” munidade (p. 8), é neste espaço que podemos contar com a boa vontade dos outros. Caso venhamos a cair, seremos ajudados. Bauman dá valor a sua existência e compreende que o homem deve viver em seu meio, estabelecendo relações de confiança, que, entretanto, em face das mudanças do mundo atual se tornam cada vez mais líquidas. Em suma a sua existência remete a uma coisa boa.

A liquidez das relações importa em “derreter os sólidos” (Modernidade Líquida, p. 10). Baseia Bauman sua análise em uma visão de Max Weber, na qual a empresa busca se libertar dos grilhões e dos deveres para com a família, derretendo as relações sólidas, deixando uma complexa rede de relações sociais no ar. Trata-se de um processo decorrente da desregulamentação, da flexibilização e do descontrole dos mercados. A rigidez anterior dá espaço à volatilidade. O mundo se relaciona de forma mais superficial, criando um espaço para a denominada modernidade. Ele encontra-se em constante transformação; a solidez das relações existentes no passado dá lugar a uma constante e profunda mutação.

Por outro lado, Bauman aborda o Holocausto. Analisa a sua causa, os fatos que o propiciaram, buscando uma compreensão do mesmo. Para ele, conforme estudo publicado por Francisco J. Guedes de Lima, na revista Argumento:

“[...] o Holocausto não foi simplesmente um problema judeu nem fato da história judaica apenas. O Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura.” (Lima, 2014, p. 283)

Exatamente esta racionalidade, ou também a banalidade do mal, como observa Hannah Arendt, traduz a capacidade humana de perpetrar crimes, de forma racional e metódica. A civilização ocidental, baseada em métodos, cria uma máquina mortífera e Bauman observa que a sua modernidade foi condição necessária para o Holocausto.

O Holocausto foi um teste para a modernidade, um experimento, no dizer de Franciso G. de Lima, do ilimitado e sanguinário de uma ideologia totalitária. O uso das ideias como elemento que catalisa a sociedade, estabelecendo uma hierarquia, cuja obediência cega leva ao cometimento de graves crimes, acaba por ser citado em sua obra, baseando-se em observações de Hannah Arendt:

“Os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual. Essa exigência é feita pelos líderes dos movimentos totalitários mesmo antes de tomar o poder e decorre da alegação, já contida em sua ideologia, de que a organização abrangerá, no devido tempo, toda a raça humana.” (Arendt, 1989, p. 373)

Bauman aponta que a primeira ação perpetrada pela ditadura nazista foi a de isolar os judeus do restante da sociedade, usando para tanto fundamento de uma alegada base da racionalidade, dentro de uma lógica de purificação racial. Era uma questão de higiene pública. Uma condição adicional foi acrescida, no sentido de retirar o caráter humano das vítimas, de forma a se evitar questionamentos de ordem ética e moral na dizimação, passava a ser uma questão técnica. Uma vítima não humana estava no mesmo nível da coisa e, portanto, não sugeria o surgimento de

Os refugiados solidariedade. Tal desumanização explica simbolizam, personificam nossos as maiores crueldades feitas em nome da ciência. Por seu turno, há uma crítica aos demais setores da sociedade, que se manmedos. Ontem, eram tiveram inertes ante a barbárie: pessoas poderosas em seus países. “O silêncio diante da desumanidade or-

Felizes. Como nós ganizada foi o único ponto a unir as igrejas, normalmente em total desacordo. Nesomos aqui, hoje. Mas, nhuma delas tentou reclamar sua autoridaveja o que aconteceu de ridicularizada. (Hitler nunca deixou a hoje. Eles perderam Igreja católica, nem foi excomungado). Nesuas casas, perderam nhuma sustentou seu direito de fazer julseus trabalhos. gamentos morais sobre o rebanho e de impor penitência aos desgarrados.” (Bauman, 1998, p. 135) Bauman alerta a sociedade para os riscos de regimes autoritários, que classificam pessoas conforme sua origem étnica, religiosa ou orientação sexual. A discriminação destas é o primeiro passo para a prática de atos mais truculentos, por meio dos quais direitos humanos são desrespeitados. Nesse sentido, em sua obra sobre os refugiados aponta o sociólogo para o risco de sentimentos xenofóbicos, baseados no receio ao estrangeiro, em uma busca de segurança, em detrimento da liberdade, onde o outro se transforma em uma ameaça e em uma justificativa para o fracasso de modelos. A organização e o preconceito do passado ressurgem no presente. A onda migratória, decorrente de conflitos regionais ou ainda de um processo colonizador no continente africano, que foi fatiado sem levar em conta os diversos traços culturais, mas sim o objeto exploratório, tem sua repercussão nos dias de hoje. O refugiado não é bem visto por ser diferente, é equiparado ao terrorista, constituindo, portanto, em uma ameaça, na visão daqueles que não perceberam que a cultura diversa é fonte de riqueza. Em sua abordagem sobre os refugiados, esclarece Bauman: “Estas pessoas que estão vindo agora são refugiados que não são famintos, sem pão ou água. São pessoas que, ontem, tinham orgulho de seus lares, de suas posições na sociedade, que, frequentemente, tinham um alto grau de educação e assim por diante. Mas, agora eles são refugiados. E eles vêm para cá. Quem eles encontram aqui? O precariado. O precariado

vive na ansiedade. No medo. Nós temos pesadelos. Tenho uma ótima posição social e quero mantê-la.

‘Precariado’ vem da palavra francesa précarité que, em livre tradução, significa andar em areias movediças. Agora, surgem estas pessoas da Síria e da Líbia. Elas trazem esta ameaça de países distantes para nossas casas. De repente, eles aparecem ao nosso lado. Não conseguimos omitir suas presenças.

Os refugiados simbolizam, personificam nossos medos. Ontem, eram pessoas poderosas em seus países. Felizes. Como nós somos aqui, hoje. Mas, veja o que aconteceu hoje. Eles perderam suas casas, perderam seus trabalhos.

O choque está apenas começando. Não existem atalhos para o problema. Não existem soluções rápidas. Então, precisamos nos preparar para um tempo muito difícil que está chegando. Esta onda de imigração que aconteceu ano passado não foi a última. Há mais e mais pessoas esperando. Precisamos aceitar que esta é a situação. Vamos nos unir e encontrar uma solução.” (http://www.fronteiras.com/artigos/zygmunt-bauman-o-medo-dos-refugiados, acesso em 11/03/2017)

A sua análise da sociedade, do comportamento do ser humano, se torna evidente com sua recusa em aceitar o rótulo de “pós-modernista”, na medida em que este, na sua visão, se fecha ao debate, fugindo desta forma do elemento crítico. Nesse sentido, além de em Leeds, também foi homenageado como professor emérito da Universidade de

A comunidade judaica, Varsóvia, deixando, juntamente com oupor dever de lealdade a seus antepassados, não tros cientistas sociais, um legado inestimável para a compreensão das intrincadas relações humanas e como estas, de uma pode ficar indiferente ao forma tão concatenada, podem levar ao drama dos refugiados. desprezo dos direitos humanos. Os seus ensinamentos deveriam ter uma importância especial para o povo judeu. Desde há muito tempo ele se viu obrigado a fugir para sobreviver. A comunidade judaica, por dever de lealdade a seus antepassados, não pode ficar indiferente ao drama dos refugiados e se não tomar uma ação positiva, sob o manto de que há o risco à segurança, estará estigmatizando um grupo e passando, infelizmente, para a condição de algoz, esquecendo o seu passado e renegando as suas vítimas. A importância de Bauman para as ciências sociais e para a humanidade é manifesta. Ele analisa e conceitua a fluidez dos tempos pós-modernos. Ele se torna um crítico das relações sociais dos tempos atuais, nos quais a fragilidade destas justifica a conceituação de liquidez das mesmas. Foi autor de inúmeras obras, sob o foco das ciências sociais, tendo sido testemunha das profundas alterações que ocorreram no século XX, desde da barbárie do Holocausto, passando pela Guerra Fria até a queda da URSS e de todo o bloco da Europa Oriental. Ricardo Sichel é advogado, conselheiro da ARI, doutor e mestre em Direito pela Westfälische Wilhelms Univ, Münster, Alemanha, procurador federal e professor de Direito da Unirio.

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