Os árabes
Os Lewis
Os
Os árabes por Juliana Portenoy
Doenças por
Os
Os
Chachamim ou aiatolás? por Paulo Geiger
Chachamim ou aiatolás? por Paulo Geiger
Os limites da inclusão por Raul Cesar Gottlieb
Os limites da inclusão por Raul Cesar Gottlieb
Tefilat Haderech por Guershon Kwasniewski
Tefilat Haderech por Guershon Kwasniewski
Uma análise do Complexo de Portnoy por Breno Casiuch
Uma análise do Complexo de Portnoy por Breno Casiuch
Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 7, n° 17, Abril de 2012 devarim Cuidar das pessoas com HIV/Aids: uma questão judaica! Rabino Joseph Edelheit Do silêncio à escuta: as etapas judaicas Rabino Sérgio Margulies
judeus reformistas formam um movimento? Rabino Stephen Lewis Fuchs Cuidar das pessoas com HIV/Aids: uma questão judaica! Rabino Joseph Edelheit Do silêncio à escuta: as etapas judaicas Rabino Sérgio Margulies
judeus reformistas formam um movimento? Rabino Stephen
Fuchs
israelenses e os desafios da democracia por Juliana Portenoy Schlesinger
genéticas e comunidade judaica
Dafne Dain Gandelman Horovitz
“Judeus do Vaticano” por Avraham Milgram Escravos judaizantes no Brasil colônia por Bruno Feitler
israelenses e os desafios da democracia
Schlesinger Doenças genéticas e comunidade judaica por Dafne Dain Gandelman Horovitz
“Judeus do Vaticano” por Avraham Milgram Escravos judaizantes no Brasil colônia por Bruno Feitler
Meu filho dormiu as últimas duas noites no bunker”, contou o meu amigo logo depois que nos sentamos. “Eu estava falando com ele no Skype quando ouvi o som da sirene e ele nem se despediu, desapareceu da frente do computador. Alguns segundos depois eu ouvi o barulhão do míssil caindo – deve ter caído bem perto do quarto dele, porque a imagem tremeu toda.”
Eu comentei que em Tel Aviv, onde mora a minha filha, ninguém foi perturbado pelos ataques. Assim como a nossa vida de pais brasileiros de filhos israelenses tam bém seguiu seu ritmo normal nos últimos dias, pensei eu. A única “guerra” que nós dois presenciávamos naquele momento era o típico conflito latino-americano: um jogo pela Copa Libertadores da América. E sentado no Estádio do Engenhão, no meio do barulho e da excitação pré-jo go, me vi subitamente pensando nos estranhos laços que unem os judeus de todo o mundo, agora e sempre.
Mesmo vivendo num continente onde as batalhas mais sérias são disputadas nos estádios de futebol e em seus en tornos, sentimos que participamos da mesma guerra exis tencial enfrentada pelos judeus israelenses. Assim como –focando em alguns poucos casos aleatórios – há 30 anos tentávamos junto com os judeus russos imigrar da União Soviética e há mil anos sofremos coletivamente com as ma tanças e perseguições provocadas pelas Cruzadas.
Os judeus desafiam as definições e desmentem os rótu los. Somos uma religião ou uma nação ou uma etnia? Ou será que somos alguma outra coisa?
Religião não somos: muitos judeus não praticam reli gião alguma e não se definem como religiosos. E mesmo entre os judeus religiosos, as diferenças de crença e prática entre as vertentes da religião judaica não permitem iden tificar qual a visão de mundo de um judeu religioso sem a justaposição de um adjetivo: “reformista”, “conservador”, “ortodoxo”, “progressista”, “ultraortodoxo”, “reconstrucio nista” e outros.
Deixamos de ser uma nação há milênios – mais precisa mente após a destruição do Primeiro Templo em 586 aec.
Importante notar que quando fomos permitidos retornar à terra de Israel, setenta anos depois, apenas uma peque na parte dos judeus optaram pelo regresso. Desta forma, mesmo antes da ocupação dos romanos nos primeiros sé culos da era comum já estávamos espalhados desde a Me sopotâmia à extremidade do Mediterrâneo.
Atualmente não compartilhamos uma mesma etnia, não falamos o mesmo idioma e não mantemos os mes mos costumes. Além disso, uma grande parte dos judeus é nacional de Estados não judaicos, com os quais se identi ficam plenamente sem prejuízo algum para sua identida de judaica, como é o caso dos judeus brasileiros que op tam viver aqui.
Pensamos diferente, vivemos em lugares diferentes, falamos idiomas diferentes, temos gostos e hábitos diferen tes. E mesmo assim mantemos uma fortíssima identida de coletiva.
Talvez esta intrigante característica esteja na raiz de nossa inquietação intelectual. Quando você não tem um rótulo para te definir você é obrigado a pensar no que é. Quanto mais complexa a resposta, mais profunda a refle xão. Quanto mais profunda a reflexão, maior a acuidade para perceber o mundo. Talvez a reflexão sobre a identida de seja o ponto de partida para o nosso amor pelos livros e pelos debates acalorados. Talvez a reflexão pela identida de, nunca perfeitamente definida, seja o segredo de nos sa sobrevivência.
A conhecida piada do náufrago judeu que construiu duas sinagogas na ilha deserta, aquela com a qual ele se identifica e aquela que ele nem passa na porta, é quase sempre contada como se a atitude lá caricaturada fosse ab surda. No entanto, parece-me admirável a urgência em avaliar todos os lados de cada questão e de construir e des construir todos os argumentos imagináveis. É difícil de finir a identidade judaica, mas, paradoxalmente, é atra vés desta indefinição que encontramos nossa maior força.
Raul Cesar Gottlieb Diretor de Devarim
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1 editorial
“
Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 7, n° 17, Abril de 2012
P R es I dente d A ARI evelyn Freier Milsztajn
R A b I nos d A ARI sérgio R. Margulies dario e bialer
dIR eto R d A Rev I stA Raul Cesar Gottlieb
Conselho e d I to RIA l beatriz bach, breno Casiuch, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio R. Margulies
e d I ção Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um)
e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) tainá nunes Costa • Sebastian Ribeiro
F oto GRAFIA s e I l U st RA ções istockphoto.com (capa: Manuel Gutjahr)
t RA d U ção beatriz torres Gorenstin e teresa Roth
Rev I são de t exto Mariangela Paganini (libra Produção de textos)
Colaboraram neste número: Avraham Milgram, breno Casiuch, bruno Feitler, dafne dain Gandelman horovitz, Guershon Kwasniewski, Rabino Joseph A. edelheit, Juliana Portenoy schlesinger, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Rabino sérgio R. Margulies, Rabino stephen lewis Fuchs.
os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista devarim ou da ARI.
os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br devarim@arirj.com.br Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ biblioteca virtual devarim: www.docpro.com.br/devarim
A contracapa de devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ
devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
sumário
Do silêncio à escuta: as etapas judaicas Rabino Sérgio R. Margulies 3
Somos realmente um movimento? E, se somos, o que nos une? Rabino Stephen Lewis Fuchs 9
Cuidar das pessoas com HIV/Aids e abrigá-las: uma questão judaica! Rabino Joseph A. Edelheit 15
Tradição, Herança e Tecnologia Dafne Dain Gandelman Horovitz 23
Os árabes israelenses e os desafios da democracia em Israel Juliana Portenoy Schlesinger 29
Os limites da inclusão Raul Cesar Gottlieb 35
Os “Judeus do Vaticano”: Postscriptum Avraham Milgram 41
Escravos judaizantes? Cristãos-novos, negros, índios e mestiços no Brasil colônia Bruno Feitler 47
Tefilat Haderech, uma reza com muito caminho Guershon Kwasniewski 53
Livros: Uma análise do Complexo de Portnoy, de Philip Roth Breno Casiuch 57
Livros: Auschwitz nos perseguirá para sempre? Raul Cesar Gottlieb 59
Cócegas no Raciocínio – Chachamim ou aiatolás? Paulo Geiger 60
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d o silêncio à escuta: as etapas judaicas
rabino sérgio r. margulies
Alef
O que havia antes do começo?
Nada! Se houvesse algo, o começo não seria o começo.
Nada é o impronunciável. Inominável.
Se fosse pronunciável tornar-se-ia algo. Deixaria de ser nada.
O começo, assim, é o silêncio. O impossível de ser dito ou enunciado.
O silêncio é indefinido.
O silêncio é transcendental. Além do tempo. Não confinado às categorias temporais.
A Torá começa com a letra beit – a segunda do alfabeto hebraico. Começa através do relato da criação do mundo. Antes havia o nada. O silêncio.
O silêncio é simbolizado pela letra hebraica alef.
É paradoxal o silêncio ser simbolizado.
A simbolização corresponde à necessidade humana de compreender. Compreender para prender os conceitos aos seus domínios.
A simbolização atende ao anseio pelo domínio.
O ser humano nomina para dominar.
Ainda assim, o silêncio é inominável, indominável, incompreendido.
O silêncio coloca o ser humano na esfera humana. Não permite a arrogân cia. Impede o ser humano de se julgar superior e de crer que tudo pode domi nar. Entender os limites é ter capacidade de exercer o potencial. A energia é ca nalizada com propriedade.
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Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 3
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Alef é a primeira letra do alfabeto hebraico. Não tem som. Simboliza o que não pode ser dito, compreendido, capta do. O que está além do domínio huma no. Adquire som ao ser acoplado a uma vogal. O silêncio espera ser enunciado através de um som que brota do ser hu mano. A vogal que o som da fala coloca é o chamado para a ação humana. Nas ce o potencial de atuação. Alef pode ser lido elef dado que as vogais são secundá rias na língua hebraica. Elef significa mil. Do silêncio pode emergir um grande po tencial criativo caracterizado pela grande za do número mil.
O silêncio divino convida a parceria humana.
Alef – Conforme a Torá ensina, Deus convida o ser humano a romper o silêncio e pergunta, apesar de sua onisciência, “onde estás?”
Beit – A letra beit inicia a palavra berachá, que significa bênção. Bênção é a expressão do agradecimento.
Ser judeu é saber agradecer.
O silêncio humano – a ausência de resposta – a este convite representa a recusa humana em atuar no mundo. O silêncio humano – a surdez diante do convite divino – é conivente com as mazelas.
Conforme a Torá ensina, Deus convida o ser humano a romper o silêncio e pergunta, apesar de sua onisciência, “onde estás?”
A Torá é a pergunta divina e a busca da resposta hu mana.
A resposta humana é o início do mundo. Não do mun do dos elementos da natureza, mas do mundo habitado pela consciência humana e pelo potencial humano de agir.
Beit
Bereshit, que significa ‘no início’, é a primeira palavra da Torá e começa com a segunda letra do alfabeto hebrai co: beit. Como as vogais são secundárias nas palavras he braicas beit pode ser lida bait, que significa casa. A criação maior é de nossas casas. Casas são nossas moradias, nossa comunidade, nossos ambientes de trabalho. Construir ca sas implica em erguê-las com as vigas dos relacionamentos. Casas são, sobretudo, ambientes de convivência.
O formato da letra beit é fechado para trás, para cima e baixo, aberto somente para frente. Este é o foco da cons trução: para frente. Este, aliás, é o foco que o judaísmo dá a vida. Honrar o passado é saber seguir adiante. Por isso o termo hebreu – ivri em hebraico – está ligado ao verbo la
avor, atravessar. Atravessar e seguir. O que vem adiante é uma incógnita. Desconhe cido, mas será construído, realizado e so lidificado com bênçãos.
A letra beit inicia a palavra beracha, que significa bênção.
Bênção é a expressão do agradecimento.
Ser judeu é saber agradecer. O termo judeu – iehudi em hebraico – é a raiz do verbo lehodot, agradecer. Agradecer pelo que recebemos como, por exemplo, os meios que a natureza nos disponibili za para com nossa ação transformar em alimentos, roupa, moradia e remédios. A bênção reconhece que a realização de nos so potencial deve ser acompanhada pela apreciação e preservação do mundo. Um exercício ecológico.
A recitação de uma bênção tem uma fórmula dada através de uma precisa sequência de palavras. Logo após a palavra ‘abençoado’, o termo exigido é ‘Tu’. Refere -se a Deus.
Deus em seu silêncio convidou o ser humano para a ação. O ‘Tu’ indica o diálogo estabelecido e a aceitação deste convite. Imediatamente, prosseguindo com as pala vras estabelecidas pela fórmula da bênção, Deus é chama do de Senhor. Assim são os vínculos: abrem opções, ora para a intimidade (Tu), ora para a reverência (Senhor). Seja como for o vínculo, a interação se faz presente.
Conjugado ao “Senhor” há um pronome possessivo que pode dar a impressão de exclusividade. Um dos dra mas da religião é quando uma pessoa ou um grupo arvora-se detentor da palavra divina. O drama neste caso é de toda a sociedade que vê o pluralismo ameaçado. Assim, enquanto o vínculo individual é uma avenida genuína na relação com Deus, para não criar a exclusividade, a bên ção acrescenta o pronome “nosso”. É a unidade inclusiva de todos. Cada parte do todo tem seu modo particular de conectar-se com a força divina, mas todos têm igualmen te o potencial de trilhar os caminhos espirituais da cone xão. Não é privilégio de um indivíduo ou de um grupo.
A fim de evitar o privilégio, a fórmula da bênção conti nua com o termo ‘Soberano do Universo’. Acima dos seres humanos somente um: Aquele que é o Soberano de todos. A bênção democratiza a convivência: ninguém é soberano
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de ninguém. Ninguém é vassalo de ninguém. Caminhamos juntos.
Guimel
Neste caminho, às vezes, o tropeço. Uma queda. Dos salmos bíblicos apren demos que Deus é Aquele que ergue os que caem. Deus age através do ser huma no. Os atos de ajuda são denominados pela expressão em hebraico guemilut chassadim
Dalet – A abertura das portas pressupõe perceber o outro e escutar o som de sua vida. Até mesmo nas palavras do profeta bíblico, o som silencioso.
lizada pelo deserto. Quando as perspecti vas se estreitam e os problemas predomi nam a ação urge para que ninguém veja as portas fechadas às oportunidades que a vida deve oferecer.
Guemilut é bondade. Começa com a terceira letra do alfabeto hebraico, guimel. Assim, segue o alfabeto refletin do um ideal: do silêncio divino ao convite para a bênção que encontra a expressão concreta nos atos de guemilut. O termo guemilut começa com a letra guimel, que tem a mes ma grafia da palavra gamal que significa camelo.
A raiz da palavra guemilut é gamal. Tal como o came lo é capaz de fazer a travessia em condições inóspitas o ato de guemilut visa também permitir que cada um realize sua jornada pela vida, sobretudo nas ocasiões de aridez simbo
Dalet Segue o alfabeto para a letra dalet, a quarta do alfabeto, associada à palavra de let, que significa porta. Novamente basta alterar as vogais – secundárias. Em acréscimo, o formato da letra dalet se assemelha a uma porta entreaberta.
O ato de compaixão abre as portas para que as que das sejam circunstâncias superáveis, para que o sonho não murche, para que o ideal não evapore, para que a esperan ça não fuja, para que o espírito solitário encontre o alen to do afeto, para que a dor do corpo encontre o conforto, para que o cambaleante consiga continuar. O ato de com paixão não é conivente com o silêncio humano diante da aflição humana.
Phil
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Uma parábola. Um homem bate na porta da casa de sua amada. Ela pergunta: “Quem é?” Ele responde: “Sou eu!” Ela não abre a porta. Ele bate novamente. Ela pergunta: “Quem é?” Ele responde: “Sou você”. Ela abre a porta.
A abertura das portas pressupõe per ceber o outro e escutar o som de sua vida. Até mesmo nas palavras do profeta bíbli co, o som silencioso.
Hei
Nenhum som é silencioso. Parece ser silencioso aos ouvidos não dispostos a escutar o outro.
A escuta deve ser apurada para cap tar o sutil som, como a da próxima letra do alfabeto hebraico, hei. O som do hei é semelhante ao ‘h’ gutural que sai sua vemente da garganta. Na correria das conversas pode não ser apropriadamente escutado. Como também a aflição e o clamor, a emoção e o sentimento igualmente podem não ser escutados, pois atropelados pela desenfreada cor reria das falas moldadas pelos ritmos acelerados da vida.
Hei – O formato da letra hei se assemelha ao da orelha. Lembra a importância da escuta genuína que não é automática ou instantânea. Começa com o cultivo do silêncio e com a apreciação do espaço que Deus nos concede para entrar no sagrado vínculo dos relacionamentos que um ser humano é capaz de forjar com outro.
da para atuação em prol do outro, abrindo (dalet) as portas de relacionamentos através do (hei) da escuta sensível. Estes passos pavimentam o caminho da respon sabilidade.
Responsabilidade em hebraico é achraiut. A raiz etimológica desta pala vra é acher, que significa outro. Respon sabilidade é atuar em prol do outro. Para o outro, nós somos o “outro”. Responsa bilidade rompe com a satisfação exclusi va de nossas necessidades. Responsabili dade é inclusiva.
Responsabilidade pode implicar em desviar o caminho para perceber os que estão – ou deveriam estar – conosco. Não somente aonde se chega é importante, mas como e com quem se chega. A che gada a um objetivo solitário é uma vitó ria oca, vazia. Ergue-se um suposto troféu e afunda-se na depressão.
O formato da letra hei se assemelha ao da orelha. Lembra a importância da escuta genuína que não é automática ou instantânea. Começa com o cultivo do silêncio e com a apreciação do espaço que Deus nos concede para entrar no sagrado vínculo dos relacionamentos que um ser humano é capaz de forjar com outro. O silêncio é frequentemente incomodativo: escutar o outro pode implicar em assumir responsabilidade de atuação. Isto pode ser um transtorno. Quebra a comodidade. Altera a rotina.
Escutar não implica em concordância, mas em com preensão. Difícil quando tantos rompem o silêncio divi no para se proclamarem detentores da verdade. Proclama dores de uma verdade que anula o outro e rejeita a com preensão.
Os passos
Estes são alguns passos preconizados pelo judaísmo: (alef) o silêncio divino que (beit) dá espaço para a expressão humana através da bênção que por sua vez (guimel) convi
Acher – outro – é escrito em hebraico com letras pa recidas às da palavra um – echad – que significa um. Am bas começam com a letra alef, continuam com a letra chet, mas terminam com letras diferentes, respectivamente reish e dalet. Detalhe: o formato das letras reish e dalet é pareci do. Para evitar confusão que a semelhança pode provocar, a Torá destaca a letra dalet do echad quando menciona a uni cidade divina. Assim enfatiza que Deus é um e não outro.
Contraponto: Deus é um, não há outro. Os seres hu manos são vários, há outros. Para Deus o reconhecimento da unicidade, aos seres humanos a valorização da alterida de. No fundo, a própria unicidade divina abrange a plura lidade da alteridade humana. Louvar a Deus, como Cria dor, é estender a benção a todas as Suas criaturas.
De alef a hei, estes são alguns passos que nunca con cluem. Quando chegamos a tav, a última letra do alfabeto, lembramos da Torá (palavra que começa com a letra tav), cuja leitura nunca cessa. A responsabilidade, a atuação hu mana, a escuta, a busca das bênçãos, o louvor a Deus con tinuam. Como a vida.
Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union Colle ge (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
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s omos realmente um movimento? e , se somos, o que nos une?
Diferentes comunidades e diferentes indivíduos têm pontos de vista divergentes quanto ao papel das mulheres, ao casamento gay e lésbico, ao casamento inter-religioso e aos padrões para as conversões. O que realmente nos une?
rabino stephen lewis Fuchs
Certa vez, ao final da reunião da comissão de assuntos religiosos de sua sinagoga, dois dos participantes se engajaram em uma acalorada discussão sobre se a congregação deveria ficar de pé ou sentada ao recitar o Shemá. “A nossa tradição foi sempre ficar de pé”, alegava um. “Não”, insistia o outro, “a nossa tradição foi sempre ficarmos sentados”. Ficaram discutindo assim até que um terceiro congregante veio até eles com a seguinte sugestão: “Yosef Leibowitz tem 95 anos, mora em um lar de idosos e ainda está bastante lúcido. Por que vocês não vão a ele para perguntar qual é verdadeiramente a nossa tradição?”
Assim fizeram. O primeiro disse: “Yosef, a nossa tradição não é ficar de pé durante o Shemá?”
“Não tenho 100% de certeza”, respondeu Yosef, “mas, sim, acho que é esta a nossa tradição.”
Então o outro homem disse: “Mas Yosef, a nossa tradição não é ficarmos sentados durante o Shemá?” “Não tenho 100% de certeza”, respondeu o velho sr. Leibowitz, “mas, sim, acho que é esta a nossa tradição.”
Depois disso os dois homens voltaram a discutir com mais ênfase ainda do que antes. Esqueceram completamente do sr. Leibowitz, até que ele os inter rompeu para dizer: “Agora eu me lembro bem e tenho 100% de certeza. A nos sa tradição é esta discussão... estas diferenças de opinião!”
Todos nós já ouvimos dizer que onde quer que encontremos dois judeus cer tamente encontraremos três opiniões. Isto parece ser ainda mais verdadeiro no
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caso dos judeus progressistas. Portanto, é adequado perguntar: somos realmente um movimento? Diferentes co munidades e diferentes indivíduos têm pontos de vista di vergentes quanto ao papel das mulheres, ao casamento gay e lésbico, ao casamento inter-religioso e aos padrões para as conversões. O que realmente nos une?
Refletir sobre esta questão tão importante me remete a uma das minhas passagens favoritas da Torá. Logo depois da revelação dos Dez Mandamentos, em Shemot/Êxodo 20:22, lemos que o Todo Poderoso instruiu Moisés: “E se Me fizeres um altar de pedras, não o farás de pedras poli das (ou torneadas, lavradas) porque [para fazê-lo] a tua es pada deverias levantar sobre ele [para polir as pedras] e, ao fazer isto, o profanarias”.
As pedras de diferentes formas e tamanhos no altar sagrado são uma metáfora para as nossas 1.200 comunida des espalhadas por este mundo afora assim como para os indivíduos que as formam. Somos todos diferentes uns dos outros. Temos ideias diferentes, origens diferentes, idiomas diferentes, talentos e habilidades diferentes, e certamente nem sempre concordamos uns com os outros.
Enquanto judeus, já desde o Sinai fomos instruídos a não modificarmos as pedras. Isto significa que devemos aceitar as pessoas como elas são e encontrar maneiras de integrar uma ampla variedade de ideias em um único al tar, um todo integrado.
Obviamente existem limites. Não é possível para um judeu acreditar na divindade de Jesus e continuar consi derando-se judeu. Mas os limites são – e devem continuar sendo – muito amplos.
Porém isto nos leva de volta à nossa pergunta inicial. Considerando-se todas as diferentes opiniões que cabem sob o nosso guarda-chuva, o que nos une enquanto mo vimento?
Primeiro, e sobretudo, estão aqueles ideais da nossa Torá e dos profetas, que nos são tão caros e que alicerçam a nossa união. Não assumimos a Torá nem literalmente e nem como verdade histórica. Enquanto judeus progressis tas, vemos as histórias, narrativas e leis ali contidas como valiosas fontes de orientação e inspiração, com lições que – caso decidamos segui-las – farão de nós melhores judeus e melhores pessoas.
Estamos unidos por acreditarmos que nossas vidas de vem ter propósito e significado! Estamos unidos em nossa afirmação de que a felicidade pessoal não é o objetivo cen tral da vida e que o objetivo deve ser agir, da maneira que estiver ao nosso alcance, de forma a construir um mundo melhor! E com certeza estamos unidos em nosso respeito pela Torá como fonte de tudo em que acreditamos.
Através da Torá o nosso povo apresentou ao mundo um conceito de Divindade totalmente diferente do anteriormente encontrado no mundo pagão. No mundo pagão, os deuses eram forças supostamente poderosas. O único pro pósito da atividade religiosa era apaziguar estes deuses. As pessoas faziam oferendas para que os deuses usassem seus supostos poderes para ajudar ou, no mínimo, para evitar que prejudicassem aqueles que os adoravam.
Por exemplo, se eu fosse agricultor (como era o caso da maioria das pessoas naquele tempo) eu faria uma ofe renda para o “deus da plantação” (ou o deus da agricultu
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ra) ao plantar as minhas sementes. Se a minha colheita fosse boa, eu pensaria que o deus tinha gostado da minha oferen da. Mas se o meu plantio não frutificas se devido a uma seca, enchente, gafanho tos ou qualquer outro motivo, eu supo ria que a minha oferenda não tinha sido adequada e trataria de oferecer um sacri fício maior no ano seguinte. O princi pal problema deste sistema pagão de ofe rendas crescentes (e não faz diferença se estamos nos referindo ao mundo pagão no antigo Oriente Próximo, na América do Sul e Central com os Astecas, Incas ou Maias, ou no Antigo Havaí) é que ele acabava chegando ao sacrifício humano.
O Deus – nosso Deus – apresentado pela Torá traz uma visão completamente diferente. Já a partir do início do Gênesis percebemos que o objetivo mais elevado do nosso único Deus é fazer com que nós, humanos, possamos criar nesta terra uma socie dade justa, preocupada com o seu próximo e compassiva.
Estamos unidos por acreditarmos que nossas vidas devem ter propósito e significado, em nossa afirmação de que a felicidade pessoal não é o objetivo central da vida e que o objetivo deve ser agir, da maneira que estiver ao nosso alcance, de forma a construir um mundo melhor.
como corrente impetuosa”. (Amos 5:24) Encontramo-nos unidos enquanto movimento em nosso compromisso ina balável com estes ideais dos profetas. São eles a razão de ser da nossa fé religiosa. Tudo o que fizermos enquanto judeus pro gressistas tem a finalidade de fortalecer o nosso compromisso com estes princípios. Embora comunidades – e até indi víduos dentro de comunidades – sejam muito diferentes em sua maneira de ob servar os Chaguim e o Shabat, acredita mos que estes dias especiais, cada um dentro de sua forma específica, podem nos inspirar e nos transformar em pes soas melhores, cada vez mais dedicadas à missão central do nosso povo.
Para isto Deus fez um pacto com Avraham, Sara e seus descendentes (todos nós) pelo qual Ele promete proteger -nos (em sentido amplo) dar-nos filhos (assunto da maior importância para os patriarcas e matriarcas) transformar -nos em um povo permanente (quatro mil anos é perma nente segundo qualquer padrão!) e dar-nos a terra de Is rael (pois é, a nossa ligação com aquela terra remonta aos primórdios do nosso surgimento como povo).
Mas não ganhamos tudo isto sem um custo! Pela nos sa parte do pacto (ou seja, pela promessa “abençoar-te-ei” que Deus fez a Abraão em Bereshit/Gênesis 12:2) nos foi cobrado ”Anda na Minha presença e seja valoroso” (Be reshit/Gênesis 17:1) e obedeça ao Todo Poderoso e ensi ne a seus filhos a obedecer ao Todo Poderoso preenchen do assim o mundo com dois conceitos hebraicos que le mos repetidamente na Torá e nos escritos proféticos: tze daká e mishpat, virtude e justiça. Estes valores do pacto são a base da nossa unidade.
Quando o Dr. Martin Luther King Jr. resolveu dar um final imponente para o seu imortal discurso no Mo numento a Washington, no verão de 1963, ele escolheu as palavras do profeta Amos: “Que a justiça/mishpat flua poderosa como as águas e que impere a virtude/tzedaká
Por exemplo, o período de Rosh Hashaná a Iom Kipur nos pede – quer acreditemos em Deus ou não1 – que examinemos nossos pensamentos e ações como se o nosso destino dependesse da nossa habilida de de mudar tudo o que existe à nossa volta e que, ao invés de nos elevar, nos rebaixa e causa sofrimento ao próximo.
Sukot e Tu b’shvat não nos deixam esquecer que somos dependentes do solo e das coisas que dele crescem para nos alimentarmos e para nos protegermos do sol e da chuva. Ao afirmarmos a mensagem do famoso Midrash que nos ensina que, quando Deus acabou de criar o mundo, Ele falou ao primeiro casal e disse: estou entregando mi nha criação a vocês, que ficam encarregados da terra e res ponsáveis por ela. Mas lembrem-se de guardá-la com cui dado, porque é a única terra que terão (Koheleth Rabbah, 7:13, seção 1).
Certamente o amor pela Torá também nos une. Cele bramos Simchá Torá com fervor uníssono quando com pletamos a leitura do rolo e o recomeçamos. Encontramos a mesma unidade na celebração do aniversário do recebi mento da Torá no Sinai em Shavuot.
Chanucá transmite mais uma mensagem de unidade. A Festa das Luzes lembra-nos do quanto precisamos valorizar a identidade judaica. Nunca qualquer força externa foi capaz de nos destruir, mas nós podemos nos autodestruir por apatia e indiferença para com a vida judaica.
A mensagem de Purim é parecida. Há um momento na vida de cada um de nós em que – como aconteceu com
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Esther – precisamos nos erguer e manifestar o nosso orgulho de sermos judeus se quisermos continuar passando a nossa preciosa herança de geração em geração.
A história de Pessach nos mostra –quer acreditemos ou não que os aconte cimentos da nossa escravidão e liberta ção se passaram como descritos em She mot/Êxodo – o compromisso para que as nossas ações sirvam o único e verda deiro Deus, em oposição ao deus pagão Faraó.
O shabat também deveria nos unir. É verdade que cada pessoa tem a sua própria maneira de guardar o shabat e a maioria de nós rejeita as proibições ortodoxas de andar de carro ou acender as luzes. Mas o fato é que, se na verdade constituímos um movimen to, precisamos encontrar uma maneira de fazer com que o shabat seja um dia diferente dos outros dias da sema na. O shabat deveria proporcionar a todos um tempo de afastamento da rotina do dia a dia para que possamos nos perguntar por que fazemos aquilo que fazemos. Uma das grandes dádivas do nosso povo à Humanidade foi a noção de diferentes tipos de tempo: tempo comum e tempo sa grado. Precisamos de ambos.
Aprendi com o meu rabino, Charles Akiva Annes, há muitos anos, que as palavras “vá e estude” são uma parte tão importante das instruções de Hilel como a versão judaica da “regra de ouro” que ele cita. Parafraseando Hilel, “trabalhar por um mundo melhor é a Torá inteira. Vá e estude!”
pirar-nos – através de uma imensa varie dade de costumes e cerimônias – para que possamos usar nossos talentos e transfor mar o mundo em um lugar melhor. Se há uma festa de que eu não gosto muito, en tão haverá uma outra para me passar uma mensagem mais inspiradora!
Um Midrash famoso fala de um pa gão que foi consultar separadamente dois grandes sábios, Shamai e Hilel, e lhes disse: “Se você puder me ensinar a Torá in teira de pé em um pé só, eu me converto!” Muito zangado, Shamai mandou o ho mem embora. Hilel, pelo contrário, disse -lhe: “Não faça a outrem o que te é odio so. Isto é a Torá inteira. O resto é comen tário. Vá e estude.” (Talmudda Babilônia, Shabat 31a).
Aprendi com o meu rabino, Charles Akiva Annes, há muitos anos, que as palavras “vá e estude” são uma parte tão importante das instruções de Hilel como a versão judaica da “regra de ouro” que ele cita. Parafraseando Hi lel, “trabalhar por um mundo melhor é a Torá inteira. Vá e estude!”
Precisamos do tempo comum para trabalhar e realizar. Precisamos do tempo sagrado para refletir sobre o propó sito de nossas vidas e sobre os objetivos para os quais dedicamos tempo e energia.
Muito embora nem todos nós observemos o shabat e os outros dias especiais da mesma maneira, estamos unidos ao acreditarmos que vivenciar o shabat e as ou tras ocasiões sagradas nos oferecem uma oportunidade de compreender melhor qual é o propósito e o significa do de nossas vidas.
Se formos honestos teremos que reconhecer que, ao guardar o shabat e os dias santos, frequentemente não cumprimos as expectativas tradicionais e também não cumprimos as nossas próprias expectativas para conosco. Nossa unidade como movimento não está na capacidade de corresponder aos nossos ideais sublimes e sim em sem pre manter sublimes os nossos ideais!
É possível que a grande genialidade do judaísmo seja que todos os nossos muitos ritos especiais existam para ins
Realmente, com frequência nossos estudos nos levam a conclusões divergentes a respeito do que escolher para acreditar e fazer. Apesar de, como as pedras do altar anti go, sermos diferentes uns dos outros em muitos aspectos estamos unidos em nossa esperança e em nossa convicção de que, enquanto judeus progressistas, precisamos lutar para compreender e determinar aquilo que o Todo Pode roso e a nossa tradição exigem de nós. Também estamos unidos em nossa convicção de que nossos estudos e nos sas ações enquanto judeus progressistas nos ajudarão a dei xar o mundo um lugar mais justo, mais preocupado com o próximo e mais virtuoso para nossos filhos, netos e para todas as gerações vindouras.
Notas
1. Para saber mais sobre a questão da crença em Deus, por favor, vejam meu ensaio “What if I don’t believe in God”. Ele pode ser encontrado em http://scheinerman. net/judaism/Sermons/fuchs-2.html
O Rabino Stephen Lewis Fuchs é o presidente da World Union for Progressive Judaism.
Traduzido por Teresa Roth
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c uidar de pessoas com H iv / a ids e abrigá-las: uma questão judaica!
rabino joseph a. edelheit
Em dezembro de 1985 conheci Richard. Ele tinha acabado de sair do hospital, depois de ter passado mais de uma semana na Unidade de Terapia Intensiva, acometido por grave pneumonia pneumocística, a pneumonia relacionada à Aids. Sua irmã me pediu que o visitasse, por que o rabino da família o rejeitara por causa da doença e por ele ser gay! Lendo isto mais de 17 anos depois, ainda me sinto chocado pelo fato de o rabino que havia oficiado o bar-mitzvá de Richard ter dito que “não há lugar no judaísmo para a Aids”.
Eu levei a menorá de Chanuká e algumas velas ao seu apartamento e passei cerca de uma hora com ele, período após o qual sua fadiga me mostrou que se ria melhor ir embora. Prometi voltar e, quando ele entregou meu sobretudo, à porta, estendeu sua mão, em sinal de gratidão. Por um milissegundo, que du rou uma eternidade, eu simplesmente fiquei ali parado. Mas Richard era verda deiramente um “Malach” – Mensageiro das Alturas – e ele simplesmente man teve a mão estendida, aproximando-a um pouco mais de mim. Finalmente eu apertei sua mão e sai, aterrorizado com o meu comportamento.
Fiquei sentado no meu carro durante muito tempo, chorando e amaldiço ando em voz alta minha completa falta de compaixão. Jurei que nunca mais hesitaria novamente em tocar uma pessoa com HIV/Aids. Seis meses depois, segurei a mão de Richard enquanto dizia o Shemá por ele, e ele faleceu serena mente, com sua mãe e irmã ao pé de sua cama.
17 anos depois, ainda me sinto chocado pelo fato de o rabino que havia oficiado o bar-mitzvá de Richard ter dito que “não há lugar no judaísmo para a Aids”. Sua irmã me pediu que o visitasse, porque o rabino da família o rejeitara por causa da doença e por ele ser gay.
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Desde nosso primeiro encontro eu venho contando essa história como meu próprio ato de teshuvá – arrependimen to – pela minha chocante recusa, mes mo que fosse por aquele milissegundo, em aceitar a mão de Richard. Eu cos tumo contar essa história quando ten to dar uma aparência humana à pan demia global de HIV/Aids. Atualmen te, mais de 30 anos depois do primeiro caso conhecido de morte por HIV/Aids, as pessoas ainda me perguntam: “Rabi no, a Aids é realmente um problema ju daico? Quantos judeus podem estar in fectados? A Aids ainda é uma questão para a comunidade judaica – mesmo hoje?”
O HIV/Aids sempre foi uma questão judaica, porque abrange todas as categorias possíveis de justiça abordadas pelos profetas: a viúva, o órfão e o estrangeiro – o Outro –, o homem gay, o dependente de drogas injetáveis, a trabalhadora do sexo.
As categorias da justiça profética e o Outro
No Brasil há apenas 100 mil judeus numa população de 193 milhões e, as sim, essa pergunta é ainda mais impres sionante: Quantos judeus podem estar infectados? Como pode o HIV/Aids ser uma questão para os judeus no Brasil em 2012? A resposta que eu sempre dou é que a Aids é um problema judaico, inde pendentemente dos dados estatísticos de hoje em relação ao número de judeus in fectados, judeus morrendo, judeus já fa lecidos, bem como famílias judaicas em luto.
Eu não tenho a menor ideia de quantos judeus estão vivendo com HIV/Aids ou quantos judeus já morreram por doenças relacionadas à Aids. Mesmo no auge da crise da Aids nos EUA, no final da década de 1980 e durante a década de 1990, eu nunca vi nem computei estatísti cas dos judeus afetados pelo vírus e por suas devastado ras consequências. Sim, houve judeus que morreram do vírus e das doenças que ele causou, mas também houve judeus profissionais da área de saúde que prestaram as sistência aos infectados e aos doentes e judeus que eram ativistas sociais e lideraram a luta política contra a discri minação e, ainda, líderes comunitários que ajudaram a trazer à tona o assunto, desconhecido até então, nas reuniões e comissões pertinentes das federações e dos cen tros comunitários judaicos.
Como rabino, minha carreira foi iluminada por e an corada na pandemia do HIV/Aids. No Estado de Illinois é exigido um teste de anticorpos contra o HIV para ob ter a certidão de casamento; os órgãos de governo regional e nacional do Judaísmo Reformista e a Conferência Cen tral de Rabinos (Reformistas) Americanos me solicitaram que liderasse a elaboração do programa para a sinagoga e educação para o rabinato. Então, em 1995 fui convidado para servir no Conselho Assessor do Presidente Clinton sobre HIV/Aids. Em todos esses diferentes cargos e con textos costumavam me perguntar: “A Aids é realmente um problema judaico?”
O HIV/Aids sempre foi uma questão judaica, porque abrange todas as categorias possíveis de justiça abordadas pelos profetas: a viúva, o órfão e o estrangeiro – o Outro –, o homem gay, o dependente de drogas injetáveis, a tra balhadora do sexo em um país em desenvolvimento, onde a pobreza e o analfabetismo fizeram com que não tivesse outra opção para sustentar sua família.
Os antigos profetas hebreus desafiavam, em nome de Deus, os líderes a cuidar dos marginalizados, lembrando que eles, os israelitas, já haviam sido estrangeiros/escravos e agora sua liberdade exigia responsabilidade sobre aque les que não tinham voz e estavam tão alijados da socieda de que poderiam ser facilmente ignorados.
Os profetas hebreus ainda nos desafiam constantemente, dando voz aos mais marginalizados em cada sociedade: a viúva, o órfão e o estrangeiro – o Outro. O texto clássi co de Abraham Joshua Heschel sobre os profetas bíblicos é um guia eterno para os judeus sobre a necessidade de nos sas obrigações nas comunidades nas quais vivemos e sobre o sofrimento das pessoas que continuam oprimidas.
“O profeta está engajado em intensificar a responsabili dade, é impaciente com as desculpas, despreza o fingimen to e a autocompaixão” (Abraham Joshua Heschel, The Pro phets, 2001, p. 7). “Qual é o bem mais elevado? Três coisas a sociedade da Antiguidade valorizava mais que tudo: sa bedoria, riqueza e poder. Para os profetas esta atração era ridícula e idólatra” (p. 8). A pandemia do HIV/Aids é exa tamente o tipo de experiência cruel para a qual apontaria a crítica dos profetas. No mundo, esse vírus infectou aqueles
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que ignoramos, rejeitamos e inclusive alegamos merecerem esse sofrimento como punição por seus pecados.
O universalismo necessário
Uma vez, enquanto eu estava dizendo o Shemá para um homem depois de semanas de sofrimento, ouvi um jo vem que estava parado ao pé da cama do hospital chorar copiosamente. Um pouco depois que o sofrimento havia cessado com a libertação final da morte, me aproximei do amigo e perguntei a ele sobre sua reação em prantos quan do ouvia o Shemá. Ele se debulhou em lágrimas e expli cou que ele tinha dito ao seu rabino que era gay antes do seu bar-mitzvá e o rabino havia rejeitado sua honestidade e dito a ele que ele acabaria superando isso com a idade. Ele nunca mais voltara à sinagoga e até aquela noite ele nunca havia voltado a falar com um rabino, porém a experiência de ver seu querido amigo falecer de Aids, enquanto um ra bino dizia aquelas palavras para ele, havia reacendido uma chama que julgava extinta.
No mundo há literalmente milhões de órfãos, sim plesmente aceitos como endêmicos à cultura de extrema pobreza e analfabetismo, contudo aos órfãos da Aids é negado o acesso inclusive aos orfanatos públicos. Nas sociedades que possuem recursos limitados para ajudar aos mais gravemente marginalizados, o HIV/Aids se tornou um trágico denominador comum – eles são o excedente populacional sobre o qual Thomas Malthus advertiu em On Human Population. An Essay on the Principle of Po pulation (Sobre a População Humana. Um Ensaio sobre o Princípio Populacional).
Num mundo no qual até as nações em desenvolvimen to hoje experimentam uma nova expansão da riqueza, en contramos os poderosos querendo negar inclusive a dig nidade humana mais básica a uma quantidade enorme de pessoas entre nós. Heschel nos ensina mais uma vez que todos os judeus têm uma obrigação para com os mais fa cilmente ignorados:
“Acima de tudo, os profetas nos lembram da estatura mo ral de um povo: poucos são culpados, mas todos são respon
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sáveis. Se admitirmos que o indivíduo é, de alguma forma, condicionado ou afeta do pelo espírito da sociedade, o crime de um indivíduo revela a corrupção daquela socie dade. Numa comunidade não indiferente ao sofrimento, decididamente impaciente com a crueldade e a falsidade, permanente mente preocupada com Deus e com cada ho mem, o crime seria pouco frequente ao invés de ser comum” (p. 17).
O Messias é aquele que desenrola as ataduras
antigas e enrola as novas, uma de cada vez, pensando: “Quero estar pronto no momento em que for chamado”.
Quando me perguntam, inclusive agora, se o HIV/ Aids é um problema judaico, imediatamente tenho von tade de responder com as oportunas palavras de Heschel, porém a réplica mais assertiva é de que todos nós somos responsáveis especialmente por aqueles julgados como de menor importância nas nossas comunidades. O HIV/Aids infecta basicamente as pessoas através do contato sexual e do uso de drogas injetáveis: os homossexuais, as trabalha doras do sexo e os dependentes químicos. Estes são gru pos que sempre se viram pressionados em direção às mar gens mais periféricas da sociedade.
Agora somos forçados a compartilhar com eles nossos sistemas de saúde sobrecarregados e aceitar a responsabili dade pelas esposas que foram infectadas por seus maridos, que frequentam trabalhadoras do sexo na cidade onde pre cisam ir para conseguir trabalho, e pelas crianças que nas ceram com o vírus quando a mãe analfabeta não tinha ne nhuma noção do problema.
É fácil e simples demais atribuir a todos esses indivíduos um julgamento moral devastador e assim justifi car nossa negativa a conceder-lhes a mais básica dignida de. Se acreditarmos que o vírus HIV, e suas consequentes doenças oportunistas, são um castigo divino, então esta remos vivendo num mundo no qual a destruição de vidas de mulheres e crianças é um dano colateral da ação de um Deus irado que mata hemofílicos “inocentes” juntamente com os viciados em heroína. Não posso aceitar essa teolo gia no século 21, especialmente como um rabino da Re forma Progressista.
Depois de 25 anos de trabalho na comunidade com HIV/Aids, entendo que a comunidade judaica possa sen tir-se confusa a respeito de uma crise mundial de saúde que se encontra basicamente na África e entre os não judeus – como pode esta ser uma questão judaica? Nos pri meiros 20 anos da pandemia, especialmente na Améri
ca do Norte, judeus morriam de Aids, vi viam com o vírus HIV, lideravam as pes quisas médicas e científicas e erguiam vo zes que protestavam contra o estigma e a discriminação. Hoje em dia, o HIV/Aids deixou de ser uma questão para a União do Judaísmo Reformista ou para a Conferência Central dos Rabinos Americanos, ou para a União Mundial pelo Judaísmo Progressista e se transformou, nestes últimos 25 anos, em uma nota de rodapé sobre preocupações das ações sociais pregressas.
Mais uma vez, Heschel nos ensina que as preocupações judaicas não podem ser definidas através da quantidade de judeus afetados: “Os olhos do profeta estão dirigidos sobre o cenário contemporâneo; a sociedade e sua conduta são o tema principal de seus discursos... A medida de sua supe rioridade é aquela do universalismo” (p. 21). Toda ques tão encontrada no site da UNAids permanece como desa fio universal crítico, especialmente o estigma e a discrimi nação que continuam marginalizando aqueles que vivem com o HIV/Aids.
Os judeus precisam permanecer como guardiões ob servadores em cada sociedade, porque são capazes de ter empatia com todos os vitimados pela detestável discrimi nação. Não podemos permanecer como transeuntes silen ciosos, enquanto em nosso meio lhes são insensivelmen te negados dignidade e os direitos básicos, ao passo que, ao mesmo tempo, lembramos ao mundo do silêncio que este manteve quando os nazistas nos negaram tão cruel mente os nossos direitos. Quando tomamos o compor tamento dos profetas como o exemplo que esperávamos, mas não recebemos, então temos a base moral para reivin dicar, “Nunca mais!”
O HIV/Aids hoje e sempre será uma questão judaica, porque os judeus não podem nem se esquivar enquanto à viúva, ao órfão e ao estrangeiro – ao Outro – é negada a dignidade humana básica.
Jornada rumo à Índia
Minha jornada com o HIV/Aids me levou à Índia, onde compartilhei uma experiência extraordinária de fun dar uma ONG internacional, a Living India. Ela foi cria da para proporcionar educação quanto à prevenção, desen
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volver parcerias inter-religiosas e oferecer assistência aos órfãos da Aids.
Durante a década passada, tive expe riências transformadoras com os líderes cristãos indianos, com os quais trabalhei criando programas de educação para os pobres do meio rural sobre as formas de transmissão do HIV/Aids. Aprendi como as pessoas analfabetas em um dentre as centenas de dialetos (aqueles que não têm alfabeto escrito) podem aprender a usar camisinha ou so bre os riscos que correm as trabalhadoras do sexo através de músicas e paródias compartilhadas nas aldeias.
Cada uma das 32 pessoas que eu enterrei com HIV/Aids me ajudou a experimentar a esperança messiânica, mesmo em meio ao caos perturbador.
Fiquei chocado quando fiquei sabendo que as camisi nhas que o nosso grupo deixou para um grupo de trabalhadoras do sexo foram usadas mais de uma vez, porque não tínhamos explicado a elas que não deveriam lavá-las e reutilizá-las! Eu caí em prantos tentando explicar a uma jovem que ela era HIV positiva, teste esse que hoje é dado automaticamente durante o teste de gravidez. Ela não con seguia entender como ela havia contraído o vírus, muito menos que este infectaria seu bebê ainda em gestação. Ten tei explicar, com o auxílio de um tradutor, que seu marido, um motorista de caminhão, deve ter ido a um dos muitos
bordéis que existem ao longo da estrada e, assim, deve ter se infectado. Sua simpli cidade rural inocente não conseguia apre ender o que eu tentava explicar. Dois anos depois, o marido dela havia falecido e ela estava morrendo em uma pequena clínica rural, que tinha uma enfermaria separada para pacientes com Aids e a mãe e dois fi lhos infectados dessa pobre moça estavam sentados no chão, acompanhando o fim do seu sofrimento e, finalmente, sua morte. Seus filhos não seriam aceitos novamente na aldeia. Os anciãos da aldeia haviam advertido a avó de que se tentasse trazê-los de vol ta, sua pequena choupana seria destruída.
Um lar de esperança
Histórias como essa são a fonte de 60 crianças incrí veis, todas abandonadas ou sem família e infectadas. O Lar da Esperança da Living India é uma instituição única na Índia, uma coalizão multirreligiosa cuja única finali dade é prestar assistência aos órfãos que vivem com HIV/ Aids. Somos oficialmente reconhecidos pelo governo in diano e todas as crianças agora recebem remédios pediá
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tricos contra a Aids e assistência médica. Estamos ofere cendo muitos tipos diferentes de educação, de forma que aqueles que puderem frequentar a escola, ou até mesmo a universidade, possam ser bem sucedidos e aos demais ofe recemos um programa que os prepara para sobreviver nas aldeias rurais da Índia.
Convido o leitor a participar dos sorrisos destas crian ças maravilhosas, visitando o site www.livingindia.org, para conhecer como esses órfãos indianos abandonados confirmam que o HIV/Aids continua sendo uma questão judaica. Quando os visito e me sento no chão com eles para ler, ou me vejo tentando jogar futebol em um campo de terra seca, lembro-me da profunda história do Talmud sobre Elias, o profeta.
Rabi Yehoshua fez a Elias outra pergunta sobre o futu ro: “Quando chegará o Messias?” Elias respondeu: “Vá e pergunte você mesmo a ele.” Yehoshua se espantou: “Quer dizer que eu posso encontrá-lo e falar com ele agora? Onde está ele?” Elias disse: ”Você o encontrará nas portas de Roma”. “Como vou reconhecê-lo nas portas de Roma?”, perguntou Rabi Yehoshua. Elias lhe disse: “Lá ele se sen ta entre os leprosos que você encontrará trocando atadu ras. O Messias é aquele que desenrola as ataduras antigas e enrola as novas, uma de cada vez, pensando: ‘Quero estar pronto no momento em que for chamado’.”
Rabi Yehoshua viajou da caverna de Rabi Shimon Bar Yochai até Roma – uma jornada que lhe pareceu ser de ape nas alguns passos. Nem as fortes portas do inimigo nem as condições miseráveis dos leprosos o assustaram. Mante
ve na cabeça o conselho de Elias sobre como reconhecer o Messias, no lugar mais improvável, entre as pessoas destro çadas, e rapidamente percebeu o pobre sofredor que estava desenrolando e enrolando uma ferida de cada vez.
Aproximou-se Rabi Yehoshua e disse: “A paz esteja con tigo, meu professor e mestre.” O leproso olhou para ele com reconhecimento e respondeu: “A paz esteja contigo, filho de Levi.” Rabi Yehoshua perguntou: “Quando meu mestre irá chegar?” “Hoje”, respondeu o leproso.
Rabi Yehoshua retornou a Elias num piscar de olhos. Elias lhe perguntou: “O que o Messias te disse?” Rabi Yehoshua respondeu: “Ele disse: ‘A paz esteja contigo, fi lho de Levi’, mas ele mentiu para mim ao dizer: ‘Hoje eu virei’ por que ele não veio”.
Disse Elias: “Não, ele não estava dizendo que viria ‘hoje’. Ele estava citando para você o verso: ‘Hoje – se você tão somente ouvir a Sua voz (Salmo 95:7).” (Talmud da Babilônia, tratado Sanhedrin 98a).
Richard, de abençoada memória, foi meu professor. Eu tive a rara e maravilhosa oportunidade de tê-lo tido como fonte de uma compreensão que inspirou minha jornada nos últimos 25 anos. Da mesma forma que Elias, cada uma das 32 pessoas que eu enterrei com HIV/Aids me ajudou a experimentar a esperança messiânica, mesmo em meio ao caos perturbador. Novamente e especialmente en tre os 60 órfãos que estão no Lar da Esperança de Living India, minha esperança num futuro em que a decência co mum dos seres humanos seja reafirmada – independente mente do grau de crueldade que nossas comunidades pa recem ter –, os seres humanos têm, de fato, a capacidade de desenrolar as ataduras dos leprosos que sempre foram mantidos fora dos muros da cidade. Eu não sei quando a Era Messiânica virá, mas se todos tratarmos os menos fa vorecidos entre nós – aqueles que vivem com o HIV/Aids – com o respeito básico com que todos esperamos ser tratados, então talvez já não nos importemos mais com o fato de ainda estarmos esperando!
O Rabino Joseph A. Edelheit é diretor de Estudos Judaicos e Re ligiosos na Universidade Estadual de St. Cloud, Minnesota, EUA, e diretor fundador da Living India.
Traduzido do inglês por Beatriz Torres Gorenstin, da Biagoren Eventos e For ma e Sentido Traduções. Membro da AIIC-Associação Internacional de In térpretes de Conferências, da Apic – Associação Profissional de Intérpretes de Conferências e do Sintra – Sindicato Nacional de Tradutores.
Rabino Joseph Edelheit joga futebol em atividade da ONG Living India.
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t radição, Herança e t ecnologia
dafne dain gandelman Horovitz
Nossos genes são a unidade fundamental da hereditariedade, formados por DNA, e determinam inúmeras funções no organismo.
Isso não significa que a inteligência ou competência, ou seus opostos, sejam genéticos, mas os genes sem dúvida influem nas nossas características como um todo, porém associados a outros fatores externos, como modo de vida, estímulos e esforço pessoal.
Agrande maioria dos leitores deste artigo um dia já deve ter recebido, nessas correntes de mensagens eletrônicas, um texto que o encheu de orgulho: a proporção de prêmios Nobel dados a judeus, comparados com a proporção de judeus no mundo; ou os feitos e as posições de destaque dos judeus brasileiros em comparação à nossa proporção na popula ção do País. Há muito envolvido nesses feitos: em primeiro lugar, trabalho ár duo; mas, por trás de tudo, na maioria desses exemplos, o valor dado aos livros, à educação e formação sólidas, à tradição e certamente também aos genes.
Nossos genes são a unidade fundamental da hereditariedade, formados por DNA, e determinam inúmeras funções no organismo. Isso não significa que a inteligência ou competência, ou seus opostos, sejam genéticos, mas os genes sem dúvida influem nas nossas características como um todo, porém associa dos a outros fatores externos, como modo de vida, estímulos e esforço pessoal. Pressão alta e diabetes também são influenciadas pelos genes, mas não exclusi vamente. Isso em genética é denominado de herança multifatorial.
Infelizmente, na nossa herança podemos também carregar, mesmo sem saber, algumas doenças. Doenças essas diferentes das citadas acima, onde os ge nes até podem exercer influência, mas que o nosso modo de vida pode modi ficá-las, para melhor ou pior. As doenças às quais me refiro são doenças graves, geralmente cada uma delas ligada a um único gene, às quais denominamos he rança monogênica.
Como a genética vem prevenindo doenças graves e de alta frequência em judeus e a importância da conscientização da comunidade
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Todas as pessoas carregam em seu material genético informações que determinam inúmeras característi cas, e também algumas informações que podem deter minar doenças. Alguns desses genes são denominados re cessivos, ou seja, como herdamos material genético tan to de nosso pai quanto de nossa mãe, o problema só irá se manifestar se ambos os pais nos transmitirem aque le gene recessivo.
Em praticamente todo grupo étnico ou demográfico, algumas doenças genéticas ocorrem com maior frequência quando comparamos com a população geral. Como exem plos, podem ser citadas algumas anemias, como a talasse mia em povos do mediterrâneo e nos indianos e a anemia falciforme em africanos.
As “doenças genéticas judaicas” são um grupo de doenças encontrado com maior frequência na população de ju deus ashkenazim, cujos ancestrais vieram da Europa Cen tral e Oriental. Isso é devido ao fato de as comunidades se rem pequenas e isoladas, com tendência a casamentos den tro da própria comunidade. Apesar das migrações, a ma nutenção do grupo coeso fez com que as mudanças nos ge nes (mutações) ocorridas há alguns séculos fossem sendo transmitidas através das gerações.
lista das doenças
S egue a seguir uma lista com o re sumo dos sintomas de algumas das doenças investigadas nos progra mas de rastreamento.
Afinal, o que são essas doenças? E o que podemos fazer a respeito?
A primeira doença grave reconhecida como de alta in cidência nessa população foi a Doença de Tay-Sachs, que é um erro metabólico determinado geneticamente, no qual a falta de uma enzima nas células causa degeneração e des truição progressiva do sistema nervoso central. As crianças afetadas nascem aparentemente normais, indo apresentar um atraso importante no desenvolvimento, notado a par tir dos 4-8 meses de vida. Não chegam a sentar, andar ou falar e apresentam cegueira e convulsões. Não há nenhum tratamento disponível, e a doença evolui inevitavelmen te para o óbito antes dos cinco anos de vida. Um em cada 25 judeus ashkenazi carrega uma informação (gene mutado) para esta doença e até o início de medidas preventivas (que serão apresentadas a seguir), 95% dos casos dessa do ença ocorriam em judeus.
O caminho para a prevenção
Na década de 1960 descobriu-se qual era o defeito bio químico que causava a doença (a enzima que faltava). Ou
Tay-Sachs é uma condição na qual as crianças se desenvolvem normalmen te até cerca de quatro a seis meses, quando o sistema nervoso central co meça a degenerar, devido à falta de uma enzima chamada hexosaminidase (Hex A). A criança perde todas as ha bilidades motoras, tornando-se cega, surda e não responsiva, vindo a falecer antes dos cinco anos.
Doença de Canavan é muito seme lhante à doença de Tay-Sachs, com o desenvolvimento normal até dois a qua tro meses, seguidos por perda pro gressiva dos marcos do desenvolvi mento previamente alcançados. O óbi to também ocorre até os cinco anos.
Doença de Niemann-Pick Tipo A é uma doença em que uma quantida
de prejudicial de uma substância gor durosa se acumula em diferentes par tes do organismo, levando à deficiên cia do crescimento e quadro neurode generativo e levando à morte em torno dos três anos. Um em cada 90 judeus ashkenazi são portadores do gene para esta doença.
Doença de Gaucher Tipo 1 é uma condição variável tanto na idade de início como na progressão dos sinto mas. O baço é doloroso e aumentado, levando à anemia e baixa contagem de glóbulos brancos. A doença óssea é uma das principais causas de descon forto e limitação física. Há tratamen to disponível, com infusão na veia de substância similar à enzima deficiente no organismo a cada duas semanas,
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tra descoberta muito importante no início da década de 1970 foi que, através do mesmo exame por meio do qual se confirmava o diagnóstico (uma dosagem da enzima no sangue), era possível detectar também as pessoas sadias que seriam portadoras da doença (ou seja, que carregavam uma cópia do gene mutado e que teriam risco de ter filhos com a doença caso o parceiro também fosse portador). Isso per mitiu que tal informação passasse a ser usada na progra mação da família, uma vez que em casais onde ambos são portadores do gene mutado o risco para um bebê afetado é de 25% ou 1 em 4.
Partindo de tais informações, foi iniciado nos Estados Unidos, ainda na década de 1970, um programa educati vo de populações consideradas de alto risco para a doen ça, por meio do qual eram fornecidas informações sobre a doença, sobre os exames para detectar os portadores e era fornecida orientação genética preventiva, incluindo infor mações sobre diagnóstico na gravidez.
Tal programa foi muito bem aceito na comunidade ju daica, envolvendo líderes comunitários e religiosos de di versas correntes, e passou progressivamente a ser adotado em diversos países, como Israel, Canadá, Inglaterra, Fran ça, Austrália e outros. Estima-se que mais de 2 milhões de
indivíduos sob risco para a doença já foram testados, tendo sido identificados cerca de 65.000 portadores, 1.500 ca sais sob risco e evitados pelo menos 1.000 casos da doença.
Na maioria desses programas de prevenção, as pessoas fazem os exames antes de casar, antes de programar o início da procriação ou mesmo em fase bastante ini cial da gravidez – nesses casos, a escolha do parceiro não está vinculada ao eventual risco de ambos serem porta dores. Em casos onde isso acontece, o casal tem a opção do diagnóstico pré-natal, no qual, durante a fase inicial da gestação, pode ser feito um exame invasivo (biópsia de vilocorial ou amniocentese), por meio do qual é co lhido material do feto.
No caso de um diagnóstico desfavorável, a maioria dos casais acaba optando pela interrupção da gravidez, apesar das questões éticas envolvidas nesse tipo de decisão. Im portante ressaltar que no Brasil a interrupção da gravidez não tem respaldo legal; ainda assim, muitos casais optam por não levar adiante a gestação de feto com doença gené tica confirmada. Alternativamente, outra opção para casais em risco pode ser a reprodução assistida, com diagnóstico nos embriões ainda antes dos mesmos serem transferidos para o útero materno.
terapia esta de altíssimo custo e ne cessária por toda a vida. Disautonomia Familiar é uma do ença que leva à disfunção do sistema nervoso autônomo e sensitivo. Isso afeta a regulação da temperatura cor poral, pressão arterial, resposta ao stress, deglutição e digestão. Síndrome de Bloom é caracteriza da por baixa estatura, lesões da pele causadas por luz solar, aumento da susceptibilidade às infecções e maior incidência de leucemia e outros cân ceres.
Anemia de Fanconi Tipo C é uma doença associada à baixa estatura, fa lência da medula óssea e uma predis posição para leucemia e outros cân ceres infantis. Alguns podem ter difi
culdades de aprendizagem ou retar do mental.
Mucolipidose IV é causada pelo acúmulo de certas substâncias noci vas no corpo. Indivíduos com a do ença apresentam vários graus de re tardo mental ou motor, muitas vezes manifestando-se logo no primeiro ano de vida. Outros sintomas podem ser oculares, como opacidade da córnea, pseudoestrabismo e degeneração da retina.
Fibrose Cística ou Mucoviscido se é um distúrbio do multissistêmico que faz o corpo produzir um muco es pesso, que se acumula principalmen te nos pulmões e no trato digestivo, resultando em infecções pulmonares crônicas e baixo crescimento.
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Mecanismo de transmissão de herança autossômica recessiva (ambos os pais portadores)
Doenças genéticas frequentes em judeus
Doença Frequência afetado Frequência portador
Tay-Sachs 1:2500 1:25 Gaucher 1:900 1:15
Fibrose Cística 1:2500 1:25
Disautonomia Familiar 1:5200 1:36
Canavan 1:6400 1:60
As doenças acima são as mais frequentemente encontradas nos programas de rastreamento, embora mui tos já testem para mais de 15 doenças; no geral estima-se que 1 em cada 5 judeus Ashkenazi seja portador de um gene recessivo determinando doença grave, passível de prevenção pelor programas.
Condições geneticamente determinadas mais frequentes na população geral
Diagnóstico
A tecnologia pode também ser usada a favor das indivi dualidades de cada população: em comunidades ultraorto doxas nos Estados Unidos criou-se um programa de “com patibilidade” baseado nos testes genéticos. Os adolescentes são testados e não recebem o resultado dos exames, apenas um número. Quando os casamentos começam a ser arran jados pelas famílias, uma base central de dados é consul tada, e apenas serão considerados “compatíveis” casais na situação em que ambos não sejam portadores de um mesmo gene recessivo. As famílias continuam sem saber os re sultados dos testes, sabem apenas se aquele casal teria ris co ou não. Deste modo, é feita uma “prevenção primária” – casais em risco sequer são formados.
Com o progresso galopante da genética nas últimas décadas, principalmente da genética molecular e da aná lise direta de DNA, foi possível adicionar aos programas de prevenção o rastreamento para mais algumas doenças, também de alta incidência em judeus, sem aumentar mui to os custos. Atualmente, há programas que já investigam o risco para mais de 15 doenças genéticas, inclusive in corporando outras não tão específicas em judeus, mas de alta frequência na população em geral, como um tipo fre quente de surdez ou mesmo de retardo mental. Para o sucesso deste tipo de programa são essenciais quatro pré-re quisitos básicos:
1. Consciência da comunidade envolvida no que diz respeito à gravidade das doenças e importância de preven ção de novos casos;
Frequência na população (recémnascidos)
Anemia Falciforme 1:1200 (RJ) 1:650 (Bahia)
Características
Anemia hereditária frequente em afrodescendentes
Síndrome de Down 1:600 – 1:800 Aspecto físico característico, retardo mental, problemas cardíacos
Fibrose Cística 1:3200 (Norte Europeu)
Doença pulmonar crônica, problemas digestivos
Síndrome do X-frágil 1:2000 meninos 1:4000 meninas Retardo mental, algumas características autistas
As síndromes de Down e do X-frágil são as causas mais frequentes de retardo mental determinado gene ticamente. A Fibrose Cística e a Anemia Falciforme são doenças frequentes em várias partes do mundo, com incidências variando de acordo com a região geográfica.
2. Envolvimento dos rabinos da comunidade (sem im portar a linha específica da religião adotada por cada um, dos mais ortodoxos aos mais liberais), no sentido de educar ainda antes do casamento sobre a importância dos exames, além de dar suporte às famílias atingidas por tais doenças;
3. Informação da classe médica, principalmente obs tetras, que ainda podem fornecer aos casais orientação vi sando prevenção em fase pré-gestação idealmente, ou em fase muito inicial de uma gravidez;
4. Excelência dos laboratórios onde são realizadas as análises, além de suporte por médico geneticista para o aconselhamento genético, orientação quanto a alternativas reprodutivas e compreensão correta dos resultados por cada indivíduo envolvido.
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Esses exames já fazem parte, há muitos anos, da rotina médica e da cultura de vários países, sendo inclusive inse ridos em sistemas públicos de saúde no caso de Canadá, França, Inglaterra e Israel, dentre outros. Até o momen to não houve movimento consistente para a adoção des ta rotina aqui no Brasil, apesar de algumas iniciativas iso ladas. Quando é diagnosticado um caso, alguns membros da comunidade ficam mobilizados e querem ser submeti dos aos exames, mas o tempo acaba por apagar a memória e a preocupação, até que outra família tenha a desagradá vel surpresa de um diagnóstico.
Nos países onde a rotina de prevenção dessas doen ças existe, as primeiras iniciativas sempre vieram do grupo de risco específico, ou seja, da comunidade judaica. Nos EUA, onde o sistema de saúde é primordialmente privado, há inclusive programas patrocinados pela comunidade para a orientação de membros que não podem arcar com os custos dos exames ou aconselhamento genético. Aqui no Brasil, apesar de já haver programas de diagnóstico e/ou tratamento para algumas doenças genéticas, é pouco pro vável que venha a ser implementado um programa voltado para comunidade tão específica a curto prazo.
Talvez estejamos vivendo agora um momento favorá vel, uma mudança de paradigma. Nossos vizinhos do sul, da Argentina, recentemente implementaram com o su porte da comunidade um programa de prevenção de doenças judaicas. A tecnologia do DNA agora permite a re alização de múltiplos exames em um só teste, com cus to reduzido, sem necessidade de envio de material para o exterior. E apesar de ainda não haver no Brasil cobertu ra para esses exames pelo Sistema Único de Saúde – SUS –, já há normas específicas para os exames em genética via planos de saúde, com possibilidade de cobertura. Fal tam então a consciência e o envolvimento comunitários. Já que estamos no país do futebol, que esse artigo seja o pontapé inicial.
Dafne Dain Gandelman Horovitz é sócia da ARI e médica gene ticista do Instituto Fernandes Figueira / Fundação Oswaldo Cruz e do Ceres-Genética – Centro de Referência e Estudos em Genética Médica –, Rio de Janeiro; doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
3 A Dra. Dafne Horovitz ministrará palestra a respeito deste assunto no dia 03 de maio, às 20 horas, na ARI.
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o s árabes israelenses e os desa F ios da democracia em israel
juliana portenoy schlesinger
Ocenário político de Israel não é nada animador. No final do ano passado, o jornal Folha de S. Paulo publicou um artigo do escritor peruano Mario Vargas Llosa. Nele, Llosa perguntava-se como um amigo de Israel deve se comportar perante a situação em que se en contra aquele país.
Tive a oportunidade de passar um mês recentemente em Israel. Hospedei -me em um grande e tradicional hotel de Jerusalém. Os meus dias iniciavam -se no restaurante do local. Lá, garçons recebiam os hóspedes com grande es tima e consideração. Eram atenciosos, falavam em hebraico refinado e delica do. Sabah Elheir, eu os cumprimentava em árabe. Eu também tentava ser gen til e delicada, respeitando-os por meio de sua língua-materna, tão pouco ouvi da na Israel judaica. Sua presença, maciça e serviçal, denotava a presença, ma ciça e serviçal, dos árabes israelenses na sua pátria.
Desde o estabelecimento do Estado de Israel, em 1948, o país está envolvi do em três principais conflitos referentes à sua população não judaica. Há aque le que acontece entre o Estado de Israel e os países vizinhos; existe aquele entre judeus e palestinos dos territórios ocupados por Israel na Guerra de 1948 e na Guerra de 1967 e, finalmente, o conflito entre judeus e árabes cidadãos do Esta do. Esses conflitos são muito complexos por se estabelecerem em dois diferentes níveis, entre países e dentro de países, e por serem mutuamente influenciáveis. Aqui, trataremos do terceiro conflito, o menos conhecido e menos enfrentado.
Valores democráticos são característicos ao Estado de Israel, mas a implantação desses valores entre os árabes israelenses resultou numa tensão de duas magnitudes: entre a democracia e a definição de Israel como um Estado judeu e entre a democracia e as preocupações de segurança.
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Os árabes israelenses constituem minoria significativa em Israel. Segundo a Central Israelense de Estatísticas, no ano de 2009 a população árabe correspondia a aproximadamente 20% da população is raelense total, sendo constituída por mu çulmanos (83%, maioria sunita), incluin do os beduínos, 8,5% de cristãos e 8,3% de drusos. Conhecidos de diversas manei ras, codinomes que variam de acordo com a filiação política do locutor, podem tam bém ser chamados de palestinos, palesti nos israelenses, setor árabe, árabes cida dãos de Israel, entre tantas outras deno minações. Essa população é em sua maioria descendente dos aproximadamente 160 mil árabes que permaneceram em Is rael depois do estabelecimento do Estado em 1948 e seus descendentes.
É a existência marcante e densa dos árabes israelenses em Israel que nos cobra o olhar destes utópicos cientistas sociais, segundo os quais é na desterritorialização e na não fronteiras, num terceiro referente, distante da noção de língua-pátria e de nação, que encontraremos a paz.
Estes árabes são cidadãos de Israel tanto quanto um ju deu o é. Eles possuem totais direitos políticos, econômi cos, legais e religiosos assegurados pelo Estado, incluindo direito de expressão e organização política, direito ao voto e, em relação à segurança, a polícia israelense atua em to das as áreas do país. Uma parcela da população árabe isra elense, embora pequena, frequenta as universidades isra elenses; há partidos árabes no Knesset, o parlamento isra elense, e alguns desses cidadãos compõem o corpo diplo mático do Estado de Israel, a exemplo do vice-cônsul de São Paulo, atualmente um druso.
Apesar disso, diversos são os pesquisadores que acu sam o Estado de Israel e sua estrutura governamental e le gal de relegá-los como cidadãos de segunda classe naquele país. Suas escolas, por exemplo, quando comparadas àque las cuja língua de instrução é o hebraico (nas escolas ára bes, é a árabe), são bem menos equipadas e possuem me nos professores por aluno. Seus salários, quando compa rados aos da população judaica israelense, são significati vamente inferiores e eles são residencialmente segregados. Sua língua é oficial em Israel, mas eles necessitam do he braico para frequentar as melhores universidades e para se postularem aos melhores empregos.
Os cidadãos árabes israelenses são impossibilitados de servir no exército, com a exceção de drusos e beduínos, que estão aptos a ocupar posições bem específicas, en
quanto jovens de origem judaica1, tanto homens como mulheres, são obrigados a cumprir o serviço militar. Os árabes isra elenses estão também privados do direito de trabalhar em empregos relacionados à indústria de defesa, que inclui quase to das as indústrias envolvidas com ciência e tecnologia.
Essas exclusões denotam explicita mente a desconfiança em relação a essa população e sua lealdade para com o Es tado.2 Os árabes israelenses não podem possuir terra e não podem manter conta to com a população dos territórios ocu pados. Isso sem tocar no tema-chave daqueles que estudam o tema, que é a na tureza intrínseca ao Estado de Israel, “um Estado judeu e democrático”. Há tempos que nos perguntamos como será que isso é possível. Que espécie de democracia é esta que privilegia uma parcela de sua população?
Valores democráticos são característicos ao Estado de Israel, mas a implantação desses valores entre os árabes is raelenses resultou numa tensão de duas magnitudes: entre a democracia e a definição de Israel como um Estado ju deu e entre a democracia e as preocupações de segurança, enraizadas nos conflitos que envolvem Israel e nas experi ências históricas de perseguição do povo judeu. O cresci mento e o fortalecimento dos árabes israelenses são, nesse caso, considerados tanto um perigo para sua segurança como para a identidade judaica do Estado.
Assim, a democracia israelense privilegia sua maioria judaica em nome dos esforços pela manutenção do per fil judaico da população e o seu controle em nome da se gurança do Estado. Sob essas condições, a comunidade árabe de Israel, embora possua direitos legais aos de seus membros, é politicamente subdesenvolvida e está econo micamente em desvantagem em relação à maioria judaica.
Apesar deste cenário, os árabes israelenses são consi derados uma minoria étnica que aceita sua condição naquele país. Não são separatistas. As pesquisas sugerem que, na criação de um Estado Palestino fronteiriço a Is rael, sua maioria não gostaria de ir viver lá, embora apoie o seu estabelecimento. Durante as intifadas, os levantes da população palestina (aquela que habita os territórios
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ocupados por Israel na Guerra de 1967), o envolvimento da população árabe israelense em atentados terroris tas foi insignificante.
Diversos idealizadores do Sionismo já alertavam que aquela população estava lá e que, mais cedo ou mais tar de, os judeus deveriam lidar com eles. Muitos são os desa fios de Israel, mas pouco ou quase nada se lê ou se escre ve sobre o futuro da população árabe israelense quando o Estado Palestino for criado. Avigdor Lieberman, membro do Knesset, o parlamento israelense, deputado e ministro do Exterior do governo de Benjamin “Bibi” Netanyahu, propôs no ano de 2004 o Plano Lieberman, denominação que faz referência ao seu pai idealizador.
O plano apoia a troca de terras para assegurar a conti
nuidade da maioria judaica em Israel. Uma proposta espe cífica sugere a transferência da cidadania de parte da popu lação da região do Triângulo (oeste da Linha Verde) para a jurisdição da Autoridade Nacional Palestina (ANP) e de um futuro Estado Palestino, em troca do controle sobre a maior parte dos blocos de assentamentos que estão cons truídos na Cisjordânia (leste da Linha Verde). Lieberman, além de ser um dos mais entusiastas políticos a defender essa ideia, criou o slogan “Ein ezrahut bli neemanut” (“Não há cidadania sem lealdade”), que questiona e coloca em xe que o direito dos árabes à cidadania israelense.
Falar em terra e nação no mundo pós-moderno é qua se que uma afronta ao que parte das ciências sociais prega como atualidade – um mundo globalizado e sem frontei
Joel Carillet
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ras. Mas muitos da elite política daquela região do Oriente Médio vislumbram um cenário geopolítico baseado em limi tes territoriais e fronteiriços, colonização e conquista de terras. Talvez, mais do que nunca, é de terra e fronteiras, aliás, nego ciação de terras e fronteiras, que vislum bramos de longe a paz.
É a existência marcante e densa dos árabes israelenses em Israel que nos co bra o olhar destes utópicos cientistas so ciais, segundo os quais é na desterritorialização e na não fronteiras, num terceiro referente, distante da noção de língua-pátria e de nação, que encontraremos a paz.
Os escritores árabes israelenses escrevem em hebraico. Utilizam a língua renascida pelo projeto sionista para falar da ambivalência que é ser um árabe cidadão de Israel.
Uma editora do Líbano publicou esse romance em árabe em 2011. Guf She ni Iachid (Segunda Pessoa do Singular), publicado em 2010, foi um dos finalistas do prêmio literário Sapir, concedido a jovens escritores israelenses, naquele mesmo ano, e foi eleito o romance vencedor do Prêmio Bernstein de Literatu ra em 2011. O livro está sendo traduzi do para diversos idiomas. Nenhum ro mance de Kashua foi, até hoje, traduzi do ao português.
Autores árabes que escrevem em hebraico
Não é de hoje que a literatura hebraica recebe em seu seio autores árabes que escrevem em hebraico. Já na déca da de 1960 o escritor Emil Habibi, aliás, vencedor do prê mio mais importante de literatura hebraica, o Prêmio Isra el, desterritorializava aquele terreno, mudando e amplian do aquilo que se compreendia por literatura hebraica nos primórdios do Sionismo, fosse aquela escrita por escrito res judeus que falariam da Nova-velha Terra, na renovada língua, sobre o pioneiro, o chalutz. Naquela literatura não cabia a história judaica de perseguição nem de sofrimen to. Nela, o indivíduo dava o lugar ao coletivo no ideal so cialista. Era um sonho e a produção literária entrava neste pacote. Mas, parafraseando o escritor israelense Amós Oz, um sonho, quando posto à prova, está fadado ao fracasso, pois um sonho só é um sonho porque não se concretiza. E Israel é real e sua literatura é viva e pulsante. Os árabes is raelenses escrevem em hebraico. Utilizam a língua renas cida pelo projeto sionista para falar da ambivalência que é ser um árabe cidadão de Israel.
A obra do jovem e bem sucedido escritor Sayed Kashua é o significativo exemplo desta literatura hoje produzida em Israel. Kashua tem três romances publica dos por grandes e importantes editoras israelenses. Aravim Rokdim (Árabes Dançantes) foi publicado em hebraico em 2002 e o livro tornou-se um best-seller no país. A obra foi traduzida para sete línguas. Seu segundo livro, Vaiehi Boker (Fez-se a manhã), de 2004, foi traduzido também para sete línguas.
Sayed Kashua é também o roteirista da série Avodá Ara vit (Trabalho de Árabe), que pela primeira vez levou ao horário nobre da televisão israelense personagens falan tes do árabe e que já se encontra em sua terceira tempora da, e é colunista semanal do mais importante jornal isra elense, o Haaretz
Se Israel e sua liderança política atual estão mais do que nunca aterrados nas ideias e concepções de pátria e terri tório, a existência dos árabes israelenses nas ruas e cidades de Israel, quando os enxergamos, só nos faz lembrar que é na maneira como se trata e respeita uma minoria que um país é reconhecido pela sua democracia. A mesma socie dade que dá a um árabe israelense o seu mais importan te prêmio de literatura, a mesma sociedade que tem a co ragem de ceder o horário nobre de sua televisão a perso nagens ambíguos e complexos que falam o árabe, ainda não amadureceu o suficiente suas instituições democráti cas para tratar a minoria em seu âmago.
Uma amiga de Israel e, principalmente, uma amiga da tradição judaica de respeito ao outro, diria: que deixemos os árabes israelenses falarem por si só. Amém!
Notas
1. Como exceção está o setor religioso (ortodoxo) judaico, que está isento da obriga ção de prestar o exército.
2. Embora o exército tenha importância central em Israel, a sociedade israelense não é considerada uma sociedade militar pelo fato de o exército não intervir nas ques tões sociais e políticas, colocando assim em risco as normas democráticas. Contu do, Israel é visto como uma “nação em armas” por intervir nas esferas civis; é um país em que civis servem como soldados quando há a necessidade para defender sua pátria, e depois tiram seus uniformes quando passado o perigo.
Juliana Portenoy Schlesinger é pesquisadora de pós-doutorado da Fapesp, doutora em Língua e Literatura Hebraica pela USP, mes tre em antropologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém e ba charel em jornalismo pela PUC-SP e Ciências Sociais pela USP.
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Moti Meiri
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o s limites da inclusão
Se não entendermos os valores que sustentam o comportamento dos que agridem crianças que andam com os tornozelos descobertos, não seremos capazes de reagir à altura da ameaça.
raul cesar gottlieb
No dia, em dezembro passado, em que um homem de aproximada mente 40 anos cuspiu cheio de furor no rosto da menina Naamah Margolis, de oito anos de idade, ao mesmo tempo em que a chamava de prostituta, o sinal de alerta começou, finalmente, a ser escutado com maior clareza.
A menina caminhava em direção à sua escola pela calçada na frente da yeshi vá em que o agressor passa os seus dias. Não foi a primeira vez que aquilo acon teceu, nem foi o agressor o único frequentador da yeshivá a maltratar meninas que andam com o tornozelo descoberto e Naamah não foi a única menina a sofrer o abuso. O sinal de alerta soou forte porque o evento está longe de ser um fato isolado.
O sinal de alerta foi amplificado por uma entrevista amplamente divulga da, na qual um homem identificado apenas como “Moshe” garantiu aos berros ser uma obrigação religiosa cuspir em meninas que não se vestem conforme o código que o rabino que ele obedece considera adequado.
Materializando o sinal de alerta, centenas, ou talvez milhares, de textos fo ram escritos em todo o mundo judaico condenando o extremismo religioso e advertindo para o perigo que ele representa. Manifestações sacudiram Israel a partir de Beit Shemesh, a cidade onde aconteceu a agressão.
No entanto, parece-me que há uma generalizada incompreensão sobre o quê provocou o acontecimento e é preciso analisar o fenômeno com maior cuidado, mergulhando na raiz do pensamento dos que agridem gratuitamente crianças. Só assim será possível propor soluções para tratar a doença.
As palavras são muito importantes. A partir delas constroem-se as imagens e consolidam-se as opiniões. Conforme ensinou a professora Ruth Wisse em ex
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celente entrevista concedida ao jornal Je rusalem Post1, é imperativo chamar as coi sas por seus devidos nomes, pois rotular de forma ambígua fatalmente cria enten dimento equivocado.
Condenou-se profusamente o “ex tremismo religioso” e o “fundamentalis mo”. Porém, sou de opinião de que es tas rotulações não usam os termos cor retos, que o ocorrido nem é fruto de ex tremismo, nem tem natureza religiosa e, igualmente, não tem relação com o fundamentalismo.
Não existe em nenhuma das muitas codificações da religião judaica qualquer permissão para cuspir em crianças, qualquer que seja seu comportamento.
Ortodoxia e totalitarismo
Extremidade é, por definição, algo que está distante do centro. Para um comportamento ser extremo é necessário que ele se situe numa certa escala de valores, porém que esteja afastado do comportamento mais conservador den tro daquela escala de valores. Um comportamento que não compartilha da mesma escala de valores não pode ser con siderado extremo. Ele é, na verdade, um comportamento estrangeiro, pertencente a outra dimensão.
O respeito às opções individuais de cada ser huma no é o ponto de partida da escala de valores que funda menta o direito das pessoas de se vestir conforme dese jam, de transitar livremente pelos espaços públicos, de escolher seus relacionamentos etc. O reconhecimento de que a liberdade de escolha é um direito inalienável do ser humano é a semente do sistema democrático que impe ra na sociedade israelense, sistema este que também im põe limites às opções legalmente disponíveis para os indivíduos, expressos em leis adotadas por pacto consen sual da sociedade.
Emana desta mesma escala de valores a atribuição do poder de polícia e do poder de justiça a pessoas e organi zações legalmente empossadas. O agressor da menina não tinha poder de polícia, nem poder de justiça e muito me nos o direito de aplicar um código legal diverso do ado tado pelo Estado do qual é cidadão. O agressor estava se guindo um código, particular ao seu grupo, no qual inexis te o respeito às opções do indivíduo. No qual o ser huma no não nasce com direitos, mas com obrigações. No qual o ser humano é obrigado a seguir cegamente, desde o nasci mento, diretrizes emanadas por uma autoridade superior. No qual até para se vestir é preciso seguir as diretrizes do rabino da comunidade.
Segundo a literatura política, totali tarismo é um sistema político no qual o Estado, normalmente sob o controle de uma única pessoa, facção ou classe, não reconhece limites à sua autoridade e se es força para regulamentar todos os aspectos da vida pública e privada.2 Não há como deixar de reconhecer que a organização societária de algumas comunidades ultra ortodoxas, dentre as quais a de Beit Shemesh, segue este modelo. São sociedades totalitárias, nas quais o poder é exercido por uma classe – a dos rabinos.
O agressor não é um extremista na escala de valores que regula a sociedade israelense. Ele pertence a um outro sis tema de pensamento, que não se situa no extremo do sis tema democrático e sim se coloca em direta oposição a ele.
O agressor não é um extremista. Ele é membro de um sistema totalitário.
Quanto ao rótulo “fundamentalista”, invariavelmente utilizado com forte conotação negativa, penso que na ver dade ele tem conotação positiva, mas o fato é que ele não se aplica à equação que estamos analisando.
Explico: valores fundamentais, ou seja, que não po dem ser alterados, estão presentes em todos os sistemas políticos do mundo. Todas as constituições mantêm cláu sulas pétreas e é bom que assim seja, pois são estes valores fundamentais que impedem que o sistema seja corrompido. Por exemplo, manter o valor fundamental da sacrali dade da vida humana é positivo. Idem para o direito à li berdade individual de escolha dentro do leque legal, e as sim por diante.
Ademais, a questão não é se o agressor ultrapassou al gum valor fundamental, mas sim o fato de que ele rejeita os valores fundamentais que regem a democracia.
Finalmente, no que diz respeito ao rótulo “religioso”, é preciso observar que não existe, em nenhuma das muitas codificações da religião judaica, a permissão para cuspir em crianças ou adultos, mulheres ou homens, independente mente de seu comportamento. Consultemos o Talmud de cima para baixo e da direita para a esquerda. Leiamos as responsas de todos os rabinos. Esquadrinhemos o Shulchan Aruch até os olhos saltarem das órbitas. Não acha remos nenhuma insinuação de que este comportamento
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é aceito. Muito ao contrário, pelos ditames do judaísmo quem humilha uma pessoa é como se a estivesse matando.
Cita o Talmud: “Disse Rabbi Elazarde Modiin, aque le que ... humilhar publicamente seu próximo ... mesmo que tenha em seu crédito [o conhecimento da] Torá e das boas ações, não terá parte no mundo vindouro”.3 A pala vra para “humilhar”4 utilizada neste texto é uma derivação semântica de “embranquecer”, pois o rosto do humilhado fica pálido. Os rabinos do passado formularam que humi lhar publicamente um ser humano é análogo a derramar o seu sangue, pois a cor avermelhada (sangue) lhe foge da face, dando lugar à palidez.5
Cuspir em crianças não é um ato religioso. É uma ati tude política perpetrada com o objetivo de conseguir a se gregação de espaços físicos para o convívio exclusivo de pessoas submetidas, voluntariamente ou não, a um regi me totalitário. Através desta atitude pretende-se afastar de “suas” ruas as pessoas que não aderem ao sistema totali tário. E isto é feito semeando o medo, de forma coerente com a estratégia dos terroristas.
Pouco importa se este regime totalitário afirma que a autoridade dos seus mandatários emana de Deus, pois quem afirma esta autoridade é um ser humano, até por que, por definição fundamental, Deus não se manifesta. Um regime que nega ao ser humano o direito de escolha é um regime totalitário, qualquer que seja sua roupagem, inclusive a religiosa.
“A demanda para criar dentro de um regime democrá tico um espaço segregado onde a democracia cede lugar para a prática de um sistema político totalitário” é o ver dadeiro nome do fenômeno que fez soar o sinal de aler ta. É um rótulo comprido, que não tem o impacto de um slogan publicitário. Não tem o impacto simples e direto de “extremismo religioso”, por exemplo. Mas é, a meu ver, o rótulo correto. É um rótulo complexo porque a ques tão é complexa.
A religião não obriga ao isolamento
Agressões físicas aos que cruzam o espaço deste territó rio são manifestações chocantes e, por isto, muito visíveis. Mas existem muitas outras manifestações, que, por serem mais suaves, acabam sendo rotuladas equivocadamente como “folclóricas” ou “inerentes a um estilo de vida”. Por exemplo, pensa-se que a vestimenta congelada nos costu
No cartaz se lê: De acordo com o regulamento de nosso Beit Midrash6, está terminantemente proibida a entrada de qualquer tipo de computador em seu território e arredores.
Mesmo se forem usados para escrever tratados de Torá ou que não estejam conectados a sites impuros.
Esta proibição recai também sobre ferramentas impuras como blackberries, iphones, ipad, etc.
A proibição acima está em vigor mesmo para curtos períodos de tempo e/ou situações temporárias.
mes do século 17 é um sinal de apego à tradição, mas a tra dição judaica sempre foi de adequar a vestimenta aos costumes e clima locais. Usa-se chapéu de pele e capote no ve rão israelense para afirmar a aversão a participar da socie dade democrática e não por obrigação religiosa.
Outro indício do fenômeno é o isolamento cultural que a comunidade impõe a seus membros. A advertência da foto, afixada numa yeshivá, joga uma luz importante so bre esta questão (acima).
Este isolamento não é um imperativo religioso. Vejam que o grande formulador religioso do século 11, Maimô nides, cujas obras seguramente são lidas no Beit Midrash que proíbe o contato com o mundo, foi um médico plena mente inserido na sociedade moura da Espanha e do Egi to, nas quais estudou os clássicos gregos e os pensadores árabes contemporâneos. Ele escreveu parte de sua monumental obra judaica em árabe. Um modelo mais recente é o rabino alemão Samson Raphael Hirsch, do século 19 e fundador da ortodoxia moderna. Ele escrevia em alemão e se graduou em Direito na Universidade de Bonn.
Existem muitíssimos outros exemplos de inserção de
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religiosos judeus na cultura de seu tempo. Nosso isolamento, quando aconteceu, foi, via de regra, imposto de fora e não por opção comunitária.
O isolamento cultural é, contudo, uma característi ca marcante dos regimes totalitários, conforme observam Friedrich e Brzezinski, ao identificar o monopólio abso luto dos meios de comunicação de massa como um dos seis traços característicos comuns aos regimes totalitários7. Em contraste, a livre circulação e expressão de ideias e in formações é uma das principais marcas dos regimes de mocráticos.
Importante observar também que a sociedade israe lense vem cedendo voluntária e gradativamente terreno aos reclamos dos que tentam criar um território segregado para uma sociedade totalitária, como a foto que o autor tirou em 2010 em Tel Aviv comprova (ao lado).
Mas a sociedade israelense não está apenas cedendo ter reno a um grupo totalitário. Ao sustentá-lo com seus im postos, ela está promovendo sua expansão. Cabe observar aqui que o sistema no qual uma parte da sociedade paga para a outra parte se engajar em atividades improdutivas não é um imperativo religioso. Dezenas de milhares de pessoas no Brooklin mantêm um estilo de vida observan te das mais estritas interpretações das mitzvot ao mesmo tempo em que são tão economicamente ativas como todos os demais habitantes do país. O governo norte-americano não contribui com seu sustento, não os isenta de impos tos e também não há registro de que ataquem os eventuais transeuntes de fora de sua comunidade. Nem por isto se consideram menos religiosos que os israelenses.
Percebo que emergem dois dilemas da constatação de que existe uma parte da sociedade israelense demandan do um espaço físico segregado para vivenciar nele um mo delo totalitário.
O primeiro é a impossibilidade de inclusão desta popu lação no sistema democrático que impera em Israel. Mui tos pedem por tolerância e aceitação do diferente. Mas penso ser impossível o convívio com os que não aceitam que o indivíduo tenha liberdade de escolha, pois ela é a base do sistema democrático. Ao abdicar de sua capacida de de escolha, o cidadão renuncia ao exercício de sua ci dadania.
O segundo dilema, derivado da falta de solução do primeiro, está no que fazer com as pessoas que elegem seguir um modelo político totalitário, e como tal renunciam à ci
A placa da prefeitura estabelece uma área especial na praia pública de Tel Aviv para pessoas que não admitem banhar-se junto com indivíduos do outro sexo, vestidos nos trajes de banho atualmente em voga. Ela informa os dias e horários segregados para homens e mulheres e solicita que seja observada a “modéstia” na praia, um eufemismo para a proibição do desnudar, mesmo que minimamente, braços e pernas pelas mulheres. Isto pode parecer tão inocente como o estabelecimento de uma praia para nudistas, ou banheiros femininos e masculinos, mas não é bem assim. Ao segregar uma área pública em virtude da intolerância dos usuários em conviver com os demais, está sendo criado um sistema que categoriza cidadãos (isto é, cria o cidadão classe A, classe B, etc.), o que é intolerável. O naturista se segrega para não ofender os demais. Já o ultraortodoxo se segrega porque os demais o ofendem, pelo fato de cultivarem a democracia.
O diferente e o que se exclui.
dadania. Sendo impossível conviver nas democracias, que alternativas restam para elas? Não podem fundar um Estado seu, pois nenhum país cederia espaço para um novo Estado com estas características. E nenhum país já exis tente as acolherá.
Creio que este é um dos problemas não resolvidos das democracias. O que fazer com os cidadãos que não querem vivenciá-la? Da mesma forma como não parece correto im por a democracia contra a vontade da pessoa, também não é correto permitir que destruam o regime democrático.
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Quando atingem proporção demograficamente importante, como Israel permitiu acontecer ao criar subsídios e facilidades para aquele modelo de orga nização societária, sob a ilusão que esta va respeitando uma opção religiosa, pas sam a ameaçar o tecido social e a nature za democrática do país.
Há um limite para a inclusão e não sa bemos o que fazer com os que se autoex cluem. A meu ver este é o sinal de alerta que soou na cusparada de Beit Shemesh. E ele é perturbador.
O verdadeiro nome do fenômeno não é “extremismo religioso, mas “a demanda para criar dentro de um regime democrático um espaço segregado onde a democracia cede lugar para um sistema político totalitário”.
Principalmente porque sabemos que nenhum país dor me democracia e acorda ditadura. Se chegar a acontecer, a conversão de Israel numa ditadura teocrática será o ponto extremo de um caminho que começou nas isenções conce didas em 1948 pelo governo aos frequentadores das yeshi vot ultraortodoxas, passou pela tolerância à cusparada na menina e aos ônibus segregados, para chegar ao contro le do Estado por um grupo totalitário que participou do jogo democrático apesar de repudiá-lo em sua intimidade.
É importante entender que a convivência com aque le que se autoexclui da democracia fere a democracia. Isso fica evidente quando acontece uma agressão física, mas não é tão claro quando a demanda é meramente por um refúgio que isole e preserve um modelo de sociedade.
O repúdio à cusparada é mil vezes mais compreensível do que o da praia segregada, se bem que ambos derivam do mesmo princípio. Isto porque a demanda por um es paço exclusivo é fruto de uma situação de autoexclusão da sociedade maior, o que parece ser inofensivo, pois aparenta
afetar apenas a quem se exclui. Já a agres são é claramente inaceitável, porque im plica na retirada de direitos de terceiros.
A não compreensão de que ambos os eventos derivam do mesmo pensamen to totalitário é, a meu ver, o que levou a sociedade israelense ao ponto aflitivo em que chegou. E que tende a piorar, se o fe nômeno não for entendido e rechaçado enquanto ainda houver tempo.
Se o que desejamos é um regime de mocrático, pautado pelos códigos legais que fazem do Estado de Israel um Esta do de direito, então a agressão a Naamah exige uma ação mais vigorosa do que meros repúdios verbais, mesmo se vigorosos. O Estado não pode sustentar aqueles que dese jam destruir a sua alma.
Notas
1. Entrevista postada no site do Jerusalem Post em 07/04/11: http://www.jpost.com/ VideoArticles/Video/Article.aspx?id=227881.
2. Conquest, Robert, Reflections on a Ravaged Century, 2000, p. 74.
3. Talmud da Babilônia, ordem Nezikim (danos), tratado Avot (pais - antepassados), 3:11 (em algumas edições: 3:15).
4. A palavra usada é “malbin”, da mesma raiz de “lavan” (branco). Literalmente: “que embranquece”.
5. Talmud da Babilônia, ordem Nezikim (danos), tratado Baba Metzia (o portal do meio), 58:b.
6. Edifício ou sala dedicada ao estudo.
7. Bobbio, Norberto; Matteucci, Niccola e Pasquino, Gianfranco. Dicionário de Po lítica, Editora da Universidade de Brasília, 1998, 11ª ed., p. 1.249.
Raul Cesar Gottlieb é diretor de Devarim, vice-presidente da World Union for Progressive Judaism, América Latina, conselheiro da ARI e ex-ativista do movimento juvenil Chazit Hanoar.
Bruno Gottlieb
Massimo Merlini
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o s “j udeus do v aticano”: p ostscriptum
Em 1985 comecei a pesquisar o capítulo histórico sobre o Brasil e os refugiados judeus durante o nazismo para a minha tese de mestrado na Universidade Hebraica de Jerusalém. Este aspecto da história do Brasil e dos judeus em particular era desconhecido na historiografia e, de fato, não existia à época nenhum estudo a respeito. Havia encontrado algumas passagens que remetiam ao tema na biografia que Alberto Dines pu blicara sobre Stefan Zweig – Morte no Paraíso – em 1981, e estas suscitaram meu interesse pelo Brasil e a questão judaica.
E mais, neste livro encontrei as primeiras pistas de um grande tema e com preendi que deveria acessar os arquivos do Itamaraty para elucidar este assun to. Passei horas e horas lendo quantidades enormes de dossiês e relatórios escri tos pelos agentes do Itamaraty nas diversas legações e consulados brasileiros na Europa e a correspondência com a Secretaria-Geral do Ministério das Relações Exteriores. Foi assim que me familiarizei com a tentativa de salvação de “cató licos não arianos” da Alemanha e outros países ao Brasil por intermédio do Va ticano, assunto que eu desconhecia por completo.
Na conceituação nazista, “católicos não arianos” eram indivíduos que pro fessavam a religião católica que as leis raciais do III Reich excluíram da “raça ariana”. Por esta lógica, eles eram cristãos de religião e judeus de raça. A conversão não só não os protegeu das perseguições raciais como eles se encontraram numa situação depreciável, desprotegidos e discriminados. Pelas leis do Estado nazista eles eram judeus, aos olhos dos judeus eles eram cristãos e a igreja cató lica alemã não tinha estrutura religiosa e política para evitar a violação racial, inaceitável do ponto de vista dos princípios universais da igreja.
Na conceituação nazista, “católicos não arianos” eram indivíduos que professavam a religião católica que as leis raciais do III Reich excluíram da “raça ariana”. Por esta lógica, eles eram cristãos de religião e judeus de raça.
avraham milgram
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O fatídico pogrom da Kristallnacht (“Noite dos Cris tais”) de 9 a 10 de novembro de 1938 foi o auge da políti ca antissemita alemã contra os judeus desde a ascensão de Hitler ao poder em 1933. A partir daí não restavam mais dúvidas: mesmo os judeus que até então se iludiram com respeito às intenções nazistas perceberam que era preciso abandonar a Alemanha, e a qualquer preço. Os converti dos “católicos não arianos” também se viram na iminência de abandoná-la. Porém, no seu caso, a salvação viria das instituições e lideranças católicas na Alemanha e da inter venção do Papa.
Em 31 de março de 1939, dois líderes de grande desta que do catolicismo alemão, Faulhaber, arcebispo de Muni
que, e Berning, bispo de Osnabruck, apelaram ao recém -eleito Papa Pio XII para obter do presidente Vargas uma concessão especial de 3.000 vistos brasileiros para “cató licos não arianos” que estavam sendo perseguidos na Ale manha. No Brasil, o órgão responsável pela política imi gratória era o recém-criado Conselho de Imigração e Co lonização que relutava em recebê-los.
Contudo, Getúlio Vargas e o ministro das Relações Ex teriores, Oswaldo Aranha, decidiram não contrariar a vontade do Papa e, paralelamente, amainar os pedidos inces santes do Comitê Intergovernamental para Refugiados1, que desde sua criação insistia para o Brasil aceitar refu giados [judeus]. Foi a maneira que Vargas e Aranha en contraram para conciliar opostos. Ficar bem com a en
Página 11 da lista da cota especial do Vaticano. Números 484-488, no mes da família Gottlieb. Salomé Gottlieb de solteira, depois Lonca Lu cki. Na mesma página, aparecem os nomes de Margarete Josepha Sohr e Rosa Sohr, impedidas de descer do navio pelas autoridades brasilei ras. Fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty
Página 13 da lista da cota especial do Vaticano. Números 569-570, ca sal Karpsen (o correto é Karpfen). Depois Otto Maria Carpeaux, des tacadíssimo crítico de literatura no Brasil. Fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty
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tidade internacional apoiada pelas grandes potências – EUA e Grã-Bretanha – e, ao mesmo tempo, “contornar” a política imigratória brasileira de restrição à entra da de judeus, o que paradoxalmente era da incumbência de ambos. Aceitar “cató licos não arianos” era o menor dos males. Para efeitos internos tratava-se de conce der asilo a “católicos”, e não a judeus e, para efeitos externos (do Comitê Inter governamental), tratava-se de prestar aju da a refugiados de origem judaica, apesar de católicos.
Contudo, não tardou muito até o re gime de Vargas expor as primeiras dificuldades de uma longa série, visando di ficultar e, no final, frustrar a concessão dos vistos especiais ao Vaticano. Primeiro exigiram dos batizados que viessem providos com uma quantia de dinheiro que eles não pos suíam, visto que as medidas de ‘arianização’, diga-se, con fisco das propriedades e contas bancárias dos judeus, leva ram-nos à falência. Mais tarde, opuseram-se a aceitar fa mílias mistas em que um dos cônjuges era judeu. Quan do aportaram os primeiros imigrantes da cota especial de 3.000 vistos do Vaticano no Brasil, logo surgiu a suspeita da ilegitimidade dos certificados de batismo dos benefici ários, condição sine qua non para receber o visto brasilei ro, e assim por diante.
O que ocorreu com os “católicos não arianos” no Brasil? Optaram pelo catolicismo? Ou quiçá, movidos por suspeitas e medo, resquícios das perseguições antissemitas do Velho Mundo, acabaram por se transformar numa versão moderna do marranismo?
no Brasil para restringir a entrada de ju deus, inclusive de “católicos não arianos” que chegaram em 1941 com vistos expi rados, não surpreende que o embaixador Ciro de Freitas Vale jamais tenha sido re preendido por desobediência.
Dos 959 judeus batizados que obtiveram vistos na embaixada em Roma sabe mos ao certo que apenas uma parcela de les conseguiu abandonar a Europa e salvar suas vidas. Outros, com vistos expira dos devido às dificuldades de transporte, falta de vistos para atravessar países, en tre outros, foram impedidos de aportar no Brasil e obrigados a retornar à Euro pa. Por exemplo, as Sras. Margarete Jose pha Sohr e Rosa Sohr (na lista, nos 476 e 477, respectiva mente) chegaram em 27 de novembro de 1941 e o Minis tério de Justiça e Negócios Interiores impediu-lhes o de sembarque. O mesmo ocorreu com o menino Raphael Jo nas (no 505), que foi impedido de desembarcar em 1942.2 Nas notas da Secretaria de Estado do Vaticano encontra mos um caso “kafkiano” de uma senhora que, “tendo par tido com visto brasileiro regular, obtido através da Santa Sé, há três meses se encontra no navio e já duas vezes com pletou a viagem Lisboa-Rio de Janeiro, sem conseguir desembarcar nem no Brasil nem em Portugal”.3
Do total dos 3.000 vistos, dois terços, ou seja, 2.000 deveriam ser concedidos pela embaixada brasileira em Ber lim, posteriormente transferidos ao Consulado Geral em Hamburgo, e 1.000 vistos seriam autorizados e concedidos pela embaixada brasileira junto à Santa Sé. A documen tação demonstra que apenas 959 vistos foram concedidos do total da cota especial. Trata-se dos vistos que estavam em poder do embaixador Hildebrando Accioly em Roma.
O embaixador em Berlim, Ciro de Freitas Vale, era um antissemita convicto e se opôs categoricamente a con ceder vistos, seja para judeus ou para católicos de origem judaica. Chama a atenção que o embaixador, ao se negar a conceder vistos aos “católicos não arianos” perseguidos na Alemanha, violou de forma concludente as resoluções do Itamaraty e do presidente Vargas, comprometendo sua promessa e obrigação em relação ao Papa. Por outro lado, considerando a radicalização de leis e decretos adotados
Depois de pesquisar e reunir grande quantidade de do cumentos sobre este affair, fiquei curioso para saber quem eram os “católicos não arianos” denominados no livro que publiquei em 1994, Os Judeus do Vaticano. Queria saber o que ocorrera com eles no Brasil. Teriam retornado ao juda ísmo? Optaram pelo catolicismo? Ou quiçá, movidos por suspeitas e medo, resquícios das perseguições antissemitas do Velho Mundo, acabaram por se transformar numa ver são moderna do marranismo? Desde então, reuni algumas informações que me permitem concluir que parte daque les que figuram na lista dos “Judeus do Vaticano” se torna ram católicos convictos, como, por exemplo, o famoso crí tico literário Otto Maria Carpeaux (Otto Karpfen, no 569 da lista dos “Judeus do Vaticano”; lá aparece por engano Karpsen, e sua esposa Helene [Karpsen] no 570), enquanto outros jamais deixaram de ser judeus. No entanto, eles se sujeitaram às formalidades do batismo, ou à adoção tem porária da identidade católica para salvar suas vidas, con
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Visto no passaporte de Otto Karpfen (Otto Maria Carpeaux), autorizando-o a entrar no Brasil pela cota de 3.000 “israelitas católicos”. Antuérpia 25.7.1939. Cópia gentilmente cedida pelo historiador Fábio Koifman. Fonte: Acervo Casa Stefan Zweig, Petrópolis.
forme lembrou o Rabino Fritz Pinkuss, que os acolheu em São Paulo no início dos anos 1940:
“Dentro deste contexto, gostaria de mencionar o car deal Schuster, de Milão, e seus assistentes. Sem nada per guntar, deram documentos de batismo a qualquer judeu que estivesse em perigo e os procurasse. Eles emitiram de zenas de documentos e eu tive a oportunidade de os ver e recolher. Como no Brasil se vivia no então chamado Estado-Novo e os direitos civis eram restritos, tomei a liber dade de destruir os documentos depois que a vasta maio ria desses imigrantes retornou ao judaísmo e se integrou na vida judaica”.4
São raros os depoimentos de “Judeus do Vaticano”. Em geral perdura o silêncio. Eles se abstiveram de falar, escre ver e transmitir suas histórias. A maioria absoluta levou suas memórias para o túmulo. Exceção à regra são duas en trevistas que Liana Gottlieb5 realizou com seu pai, Markus Gottlieb (no 485 da lista), e com sua tia Lonca Lucki (Sa lomé Gottlieb de solteira, no 486) em 19996. Ambos assumiram o judaísmo. Outro depoimento pertence a Rolf Udo Zelmanowicz (no 599). Seu pai se converteu ao ca tolicismo na Alemanha, em 1931, e a família manteve a fé cristã no Brasil. Estes depoimentos refletem, em parte, aspectos obscuros de suas trajetórias anteriores e posterio res à emigração.
Esta dualidade aparece nos depoimentos prestados por Salomé (Gottlieb) Lucki à sua sobrinha Liana Gottlieb em
18 de abril de 1999 e nas memórias de Rolf Udo Zelma nowicz, publicadas recentemente7:
“(...) O ‘sonho do passaporte’ se instalou na cabeça de mamãe, logo que papai foi levado para o campo.8 Ela sa bia que tínhamos que fugir para outro país, de preferência do outro lado do Oceano. Mas, era quase impossível con seguir vistos de entrada em qualquer país. Mamãe era tão ‘viradora’ que descobriu que alguns judeus estavam conseguindo os vistos através do Vaticano. Depois de muitas tentativas e devido à sua teimosia e determinação, ela con seguiu comprar certidões falsas de judeus convertidos a ca tólicos, e teve início a sua odisseia no Vaticano. Ela este ve inúmeras vezes no Vaticano com o Monsenhor X (não quero identificá-lo). Logo na primeira vez ela entregou as certidões, que ele, mesmo sabendo serem falsas, aceitou, acompanhadas, é claro, de uma maleta repleta de dinhei ro. Por outro lado, nessas inúmeras visitas os bispos foram se encantando com mamãe. Muitos deles eram poloneses e mamãe tinha sido criada numa aldeia polonesa, falava polonês perfeitamente e conhecia as orações católicas. Ela também se ajoelhava (o que é terminantemente proibido a qualquer judeu) e beijava o anel do Monsenhor e dos bispos, o que mexia ainda mais com eles. Sem dúvida, esse comportamento todo da minha mãe contribuiu, e muito, para que conseguíssemos os vistos de saída para o Brasil e, além disso, o mais difícil, que o próprio Monsenhor X fos se se encontrar conosco em Lisboa levando o pouco que
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restara do nosso dinheiro, mas fundamental para que começássemos a vida no Brasil, que era o nosso destino. Eu estive algumas vezes com mamãe no Vaticano, e ficava des lumbrada com a suntuosidade das escadarias e dos salões. Depois de conseguidos os vistos, começavam os novos pro blemas. Primeiramente, meu pai e meu irmão tinham que ser libertados dos campos, o que demorou uns meses. Mi nha mãe me incumbiu de viajar para Torino, onde conse guiria os vistos [de trânsito para seu pai e irmão poderem chegar a Lisboa – A.M.].
“(...) Meu pai e meu irmão foram liberados. Mamãe ti nha que ir até Roma pegar os documentos, e eu fui acom panhar meu pai e meu irmão Markus a Torino, de onde eles pegariam o trem que partiria para a Espanha e depois para Portugal. (...) Partimos para Roma. Tínhamos que ficar lá até receber o telegrama avisando que papai e Markus tinham chegado em Lisboa. Mamãe estava tão agoniada que jejuou até receber a notícia da chegada deles. Despa chamos a nossa bagagem antes, e no dia da partida de avião mamãe preparou uns sanduíches e embarcamos para Lis boa. O voo era ‘pinga-pinga’ e demoramos muito tempo para chegar. Quando finalmente chegamos, mais proble mas nos esperavam. Sabíamos que meu pai e Markus es tavam lá no aeroporto nos esperando, mas não podíamos vê-los, pois ficamos retidos. (...) Meus pais alugaram um sobrado por umas três semanas, quando chegaria o navio que nos levaria para o Brasil. Essas três semanas que pas samos em Lisboa foram um sonho, uma delícia. Não ti nha black out e os portugueses eram muito simpáticos e nos acolheram muito bem. (...) Descemos em Santos, via jamos para São Paulo, ficamos alguns dias em um hotel e depois partimos para Varginha. (...)”
Uma perspectiva diferente, na qual apenas o pai da fa mília era judeu convertido ao catolicismo, aparece nas me mórias de Rolf Udo Zelmanowicz9, o filho menor da fa mília Zelmanowicz, que chegou ao Brasil em 12 de de zembro de 1939.
O avô de Rolf, Arie Meier Zelmanowicz, judeu de ori gem polonesa, era representante comercial de famosas marcas de tecidos ingleses na Alemanha pós-guerra. Lá ele conheceu a jovem Maria Veronika Schleipen, doze anos mais moça do que ele e, ao casar com ela, em 1927, foi batizado como católico e mudou seu nome para Markus. Os meninos foram batizados e educados como católicos, religião da mãe. O sinistro antissemitismo nazista impele
a fuga de Markus para a Bélgica em abril de 1939. Atra vés de amigos, ele passa a viver com a família Flaam que o acolhe e, pouco tempo depois, sua esposa e filhos. Foram os Flaam que, gozando de grande simpatia junto à Igreja católica local, apresentaram Markus, a mulher e os filhos ao Núncio Apostólico em Bruxelas.
O consulado-geral do Brasil em Antuérpia, a pedido do Núncio Apostólico de Bruxelas, Clemente Micara, conce deu vistos da cota do Vaticano que permitiram aos Zel manowicz emigrar ao Brasil. Chegando ao Rio de Janeiro e aconselhados por outros estrangeiros, resolveram ir para o Sul do País, onde moravam alemães e italianos, e o calor não era tão intenso. A condição de judeu de Markus (Arie Meier), batizado católico, foi fundamental para que ele en trasse na lista do Papa Pio XII e, embora tenha dado liber dade religiosa para seus filhos, ele sempre teve um com portamento de acordo com a religião judaica. Seus filhos, reconhecendo isso, enterraram-no no Cemitério Israelita de Rio Grande.
A história dos Judeus do Vaticano, como se percebe, não está concluída.
Notas
1. Comitê Internacional estabelecido pela Conferência de Evian de julho de 1938 para solucionar o problema dos refugiados políticos da Alemanha, diga-se, judeus.
2. Estas informações me foram prestadas pelo historiador carioca Fábio Koifman, que conhece a fundo os arquivos do Itamaraty, do Ministério de Justiça e Negócios In teriores e outros. Deixo aqui meu agradecimento.
3. Notas da Secretaria de Estado do Vaticano, 10.1.1942. Actes et Documents du Saint Siège. (Ed. par Pierre Blet, Robert A. Graham, Angelo Martini, Burkhart Schnei der) Libreria Editrice Vaticana, vol. VIII, 1974, pp. 409-410. Mais informações sobre o final do projeto no meu livro Judeus do Vaticano. Rio de Janeiro, Ed. Ima go, 1994, pp. 147-151.
4. Fritz Pinkuss, Estudar, ensinar, ajudar – seis décadas de um rabino em dois continen tes. São Paulo, Livraria Cultura Editora, 1989, p. 65.
5. Pedagoga, psicodramaticista, professora na graduação e na pós-graduação da Fa culdade de Comunicação Social Cásper Líbero, co-autora dos livros Diálogos sobre educação... e se Platão voltasse? e O professor universitário: herói ou vilão?, autora do livro Mafalda vai à escola
6. Liana Gottlieb, “A Lista de Pio XII”, inédito.
7. Marianne Zelmanowicz, A lista do Papa Pio XII. Porto Alegre 2011.
8. O pai de Salomé, Avraham, e o irmão dela, Markus Gottlieb, estiveram presos no campo de concentração italiano de Ferramonti de Tarsia.
9. Rolf exerceu a Medicina durante 17 anos, como Gastroenterologista e Professor Assistente da Faculdade de Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Faculdade Católica de Medicina. Em 1964, fundou, juntamente com ou tros profissionais, uma entidade de Previdência Privada (seguradora), a Aplub, da qual foi dirigente durante 20 anos. Atualmente, trabalha no site ABC da Saúde.
Avraham Milgram é historiador no Instituto Internacional para a Pesquisa do Holocausto no Yad Vashem e ex-sheliach da Chazit Hanoar do Rio de Janeiro.
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e scravos judaizantes?
c ristãos-novos, negros, índios e mestiços no b rasil colônia
bruno Feitler
Não foi incomum no Rio de Janeiro e no seu recôncavo nos anos 1710-1730, mas também em outras regiões do Brasil, encontrarmos pessoas julgadas por judaísmo que tivessem origem cristã-velha, indígena e/ou negra. A endogamia racial do grupo era assaz relativa.
Desde 1497 a prática de qualquer outra religião além do catolicismo foi proibida em Portugal. Os poucos muçulmanos que lá ainda havia foram expulsos e a importante comunidade judaica local convertida à força, praticamente na sua totalidade, à religião dominante. Pouco menos de quarenta anos mais tarde, o rei D. João III obteve do papa a permis são para criar um tribunal da Inquisição no seu reino, nos moldes da que já existia na Espanha.
O Santo Ofício da Inquisição tinha como principal objetivo perseguir os judeus convertidos ao catolicismo e seus descendentes (os chamados cristãos -novos) que continuassem a praticar a religião ancestral. Pouco a pouco sua atuação se estendeu ao império português, e se o Brasil nunca teve um tribu nal permanente, muitas foram as pessoas presas na colônia e levadas para o Reino para ser julgadas em Lisboa.
Assim, partiram deste lado do Atlântico pouco mais de mil prisioneiros en tre 1546 e 1822, cerca da metade deles para serem processados por judaísmo. Poucos foram os que acabaram na fogueira, como o dramaturgo Antônio José da Silva, “o Judeu”, mas a ação inquisitorial incutiu o medo e dilacerou muitas famílias, desfazendo vínculos sociais e econômicos, deixando assim por muito tempo sua marca nas diferentes sociedades do mundo português.
A história dessas pessoas, e também da instituição que as perseguiu, pode ser reconstituída graças à conservação da documentação (processos, correspon dências, ofícios, listagens) inquisitorial, mantida no arquivo nacional portu
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guês, a Torre do Tombo. Documentação que, para a felicidade do historiador e do curioso, está parcialmente disponível on -line no site http://digitarq.dgarq.gov.pt/.
Os arquivos são sempre instigantes e a abundância da documentação inquisito rial portuguesa muitas vezes surpreenden te. Mesmo se, na maioria das vezes, no dia a dia da pesquisa depara-se com o deser to, não é incomum encontrarmos a res posta a uma velha interrogação, a certeza de uma teoria e algumas vezes casos inusi tados que nos colocam outras perguntas.
Origem cristã-velha, indígena e/ou negra
Dentre as mais de duzentas pessoas presas pela Inquisição no Rio de Janeiro por judaísmo durante a primeira meta de do século XVIII, encontramos dois casos bastante ori ginais, que nos colocam várias interrogações. Sebastião da Silva e Maria Pequena, ou Mariana, não eram o que imagi namos típicos cristãos-novos, ou seja, os descendentes dos judeus convertidos à força em Portugal em 1497, e princi pal alvo da Inquisição portuguesa. Sebastião da Silva, pre so no Rio de Janeiro em 1715, é dado como ¼ de cristão-novo e “alfaiate, escravo”.1
Uma boa parte dos cristãos-novos do Rio estava ligada à produção agrícola, como senhores de engenho, plantadores de cana, ou de mandioca e, como membros daquela sociedade típica descrita por Gilberto Freyre, não deixaram de se amancebar e de fazer filhos com negras e mulatas, escravas ou libertas.
Na Paraíba, região igualmente de ocupação antiga e majoritariamente agrária, das 44 pessoas presas por judaísmo no sé culo XVIII para quem temos informa ções, apenas 20 eram cristãs-novas intei ras, todas as outras tendo alguma porção cristã-velha. Dos presos, há apenas uma mestiça, filha de uma negra forra, mas ha via, no grupo, muitos outros filhos de re lações ilegítimas com escravas.3
Pelo que toca a taxa de exogamia, ou seja, de casamentos fora do grupo, da po pulação masculina do Rio de Janeiro, ela devia ser bem maior. Uma boa parte dos cristãos-novos do Rio estava ligada à produção agrícola, como senhores de enge nho, plantadores de cana, ou de mandio ca e, como membros daquela sociedade típica descrita por Gilberto Freyre, não deixaram de se amancebar e de fazer filhos com negras e mulatas, escravas ou libertas.
Evidentemente não é nada raro encontrarmos cristãos -novos julgados por judaísmo. Devido à perpetuação do preconceito, que de religioso tornou-se racial depois da conversão forçada, mesmo duzentos anos depois do batis mo em massa, todo cristão-novo era suspeito de ser um pés simo católico. Esse preconceito se mantinha mesmo quan do não se tratava de um “cristão-novo inteiro”: um “meio cristão-novo”, alguém com “¼ de cristão-novo”, e até gen te com uma vaga “parte de cristão-novo” era suspeita, não importando a origem dos outros um, dois ou três avos.
Assim, não foi incomum, no Rio de Janeiro e no seu recôncavo nos anos 1710, 1720 e 1730, mas também em outras regiões do Brasil, encontrarmos pessoas julgadas por judaísmo que tivessem origem cristã-velha, indígena e/ou negra. A endogamia racial do grupo era assaz relativa. Das 94 mulheres cristãs-novas casadas ou viúvas presas no Rio nos séculos XVII e XVIII (a grande maioria no século XVIII) por judaísmo, 34 casaram-se com cristãos-velhos.2
Das cerca de 325 pessoas presas por judaísmo no Rio de Janeiro (séculos XVII-XVIII), 48 são dadas como mes tiças e três como negras4. Como lembra Alberto Dines, muitos dos membros do clã dos Paredes eram descritos nas listas de autos-da-fé como “pessoas pardas” ou como “mulatos da nação de cristãos-novos”5. O patriarca Rodri go Mendes de Paredes, para além dos quatro filhos tidos com a esposa legítima, teve pelo menos dez outros com duas negras libertas. Seus filhos e netos também tiveram filhos com índias e negras, às vezes mantendo relações es táveis com elas.
Os filhos dessas relações consensuais fatalmente ti nham uma condição social inferior à do pai, mas alguns chegaram a ser padres, a se casar com pessoas abastadas, e outros eram filhos de relações legítimas. Segundo Lina Gorenstein, dos cerca de 48 mestiços presos no Rio por judaísmo (entre homens e mulheres, sem contar os que não foram diretamente inquietados pela Inquisição), algo como 25 eram filhos ilegítimos.6
Sebastião da Silva era uma exceção?
Ou seja, não havia nada de incomum – era até habitual na região fluminense – cristãos-novos de origem africana
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ou indígena. É, contudo, difícil de saber, no caso de terem recebido uma iniciação judaica, se isto aconteceu enquan to eles ainda estavam na condição de cativos, no caso de não terem já nascido livres. Em todo caso, parece que a to talidade dos mulatos presos como judaizantes pela Inquisi ção eram livres. Seria Sebastião uma exceção?
Nas três denúncias feitas contra ele – a de seu pai e a de duas parentas, que o denunciaram depois que soube ram de sua prisão – ele é apenas identificado como “parte de cristão-novo”, solteiro, filho de João Rodrigues de An drade e de Micaela parda e residente no Rio7
Sebastião deu entrada nas prisões inquisitoriais no dia 29 de outubro de 1715. Uma semana depois ele faz o in ventário dos seus bens, identificando-se como tendo “parte de cristão-novo, sem ofício, solteiro, filho bastardo de João Rodrigues de Andrade, mineiro, e de Micaela Pedrosa”, e que tinha dezoito anos de idade. Ele começa por dizer não ter culpas que confessar, e ser o proprietário de dois escra vos-de-ganho, ou seja, de escravos que eram “alugados” a outras pessoas, em sociedade com seu irmão, além de pos suir dívidas da compra de dois cavalos. No final do depoi
mento, ele assina (fls. 3 e 13-14). Essas posses e o fato de assinar não condizem, evidentemente, com a condição es crava, que não aparece no depoimento.
Uma semana mais tarde, no dia 13 de novembro, durante a sessão de genealogia, Sebastião muda seu discurso. Ele se diz alfaiate, se ter em conta de cristão-velho, não sa ber ao certo quem era seu pai, já que sua mãe era “mulher dama”, mas que era tido por filho de um padre cristão-ve lho já defunto. Para finalizar, se disse escravo de dona Isa bel Pedrosa, mulher solteira; sem dúvida a antiga senhora de sua mãe (fls. 15-17).
Nos dois interrogatórios seguintes, as sessões in genere e in specie, quando são evocadas as denúncias, sem men ção de nomes, datas ou lugares, ele manteve sua inocên cia (fls. 19-23v), mas no dia 18 de janeiro de 1716 Sebastião, cedendo certamente à angústia e à pressão psicológi ca que representava estar preso nos cárceres inquisitoriais, pediu audiência para confessar ter crido e praticado ritos judaicos. Ele volta atrás e diz ser filho do cristão-novo João Rodrigues, que lhe teria introduzido na “crença da lei de Moisés”, dizendo-lhe que devia fazer um jejum, “mas não
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lhe lembra a forma”, e mais outras coisas “de que também não é lembrado”. Ele denuncia depois vários outros paren tes, sem tocar na questão do seu estatuto legal de livre ou escravo (fls. 24-27). Claramente, o fato de dizer não saber quem era seu pai, reforçando a questão numa suposta condição de escravo, filho de padre, era uma tática de de fesa, mas Sebastião, apesar de não ter sido torturado, não aguentou a pressão. Muitos foram os mulatos e mestiços que como ele alegaram não saber quem eram seus pais para tentar assim escapar da pecha de cristão-novo, como o ca rioca padre Francisco de Paredes ou a paraibana Joana do Rego, mas nunca evocando uma condição escrava.8 Tam bém parece claro que ele sabia exatamente o que dizer aos inquisidores, e que possivelmente nunca tenha aprendido ou praticado ritos judaicos. Para os inquisidores, pelo jeito, tanto fazia, pois tampouco tocaram no assunto do seu estatuto em nenhuma parte do processo, já que para eles o que interessava era a confissão e as denúncias.
Na sentença lida durante o auto-da-fé do dia 16 de fe vereiro de 1716, ele é tido como escravo de dona Isabel (fls. 35-36v). Em todo caso, o fato da condição de escra vo ser para ele mais cômoda do que a de cristão-novo, isto sim é inusitado!
Maria Pequena, negra liberta e acusada de judaizante
Outro caso inusitado é o de Maria Pequena, ou Ma riana, presa também por judaísmo no Rio de Janeiro poucos anos antes que Sebastião. Assim que chegou aos cár ceres da Inquisição, em novembro de 1712, ela confessou ter judaizado com várias pessoas, sendo que aprendera tais práticas e crenças havia vinte anos com um certo Antonio da Costa, mercador já então falecido com quem “andava em trato ilícito”.9
Mariana foi reconciliada no auto público da fé de 9 de julho do ano seguinte. O detalhe instigante é que Maria na era uma negra liberta, nascida em Angola por volta de 1670, batizada em Luanda, e que teria, segundo os teste munhos recolhidos contra ela, caído em heresia ainda na condição de escrava, por influência de seus senhores, Dio go Bernal e Maria de Andrade (fls. 7-25). Ela foi alforria da em algum momento entre 1704 e 1711, e continuou, depois de liberta, tendo contatos com vários cristãos-no vos judaizantes.
Nenhuma origem cristã-nova! Escrava! No processo, escrito na linguagem asséptica e objetiva da Inquisição portuguesa, ninguém se espanta com a situação, nem os
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denunciantes nem os inquisidores. Ou seja, a defesa bolada por Sebastião alguns anos depois não teria surtido efeito mesmo que ele tivesse continuado afirmando ser escravo filho de cristão-velho. Como explicar esta “nor malidade”, quando se conhece a atenção que os inquisi dores prestavam à origem étnica das pessoas denuncia das por judaísmo?
Apesar do preconceito existente contra os cristãos-no vos, houve muitos “casamentos mistos” em Portugal, o que aumentou pouco a pouco a porcentagem de pessoas com apenas alguma parte de cristão-novo presas por judaísmo. No Brasil, o comportamento sexual dos cristãos-novos não diferia daquele do resto da população branca, e o “viver em colônias” fez com que eles tivessem muitos filhos mestiços e convivessem naturalmente com escravos e libertos. Por outro lado, os descendentes dos judeus convertidos à for ça que ainda praticavam secretamente a religião ancestral nunca parecem ter respeitado uma regra específica quanto ao modo de transmissão do judaísmo, como o fazem cla ramente os judeus hoje em dia (é judeu quem é filho de mulher judia). É claro que se manteve sempre a ideia de um exclusivismo, sustentado também (mas não só) pelo preconceito vigente. Mas pode-se dizer que, quando havia transmissão do criptojudaísmo, isto se dava mais por uma questão de afinidade, facilitada pela origem étnica com partilhada e pelo convívio familiar. Isso também surge no caso de Mariana de Andrade, filha de Catarina, preta for ra, que fora escrava de Simão Rodrigues de Andrade, de pai incerto, confessou seu judaísmo, aos 56 anos de idade, em novembro de 171210.
Nas denúncias contra ela, ora aparece somente como mulher parda, ora como mulata, parte de cristã-nova, mas sem identificação dos pais.11 Na sua sessão de genealogia Mariana diz ser possivelmente filha do cristão-novo Simão Rodrigues de Andrade, que comprou a sua mãe quando es tava grávida dela. Mas este nunca a reconheceu, e chegou a vendê-la a Domingos Rodrigues Ramires, de quem Mariana teve dois filhos. Ela não menciona ter sido alforria da por este, e a questão tampouco é abordada pelos inqui sidores. Não há nenhuma menção à sua condição na sentença, onde aparece como “mulher parda... de cuja quali dade de sangue não consta” (fl. 39).
Como já em sua primeira audiência Mariana come çou a confessar, e fez confissões satisfatórias aos olhos dos inquisidores, não lhes importava ter certezas sobre a sua
qualidade de sangue. Mariana, que pela vida promíscua da mãe, não tinha como saber com certeza se tinha sangue ju deu ou não, convivia entre cristãos-novos e meio-cristãos -novos, parentes de Simão Rodrigues de Andrade, senhor de sua mãe (segundo ela, quem primeiro lhe falou das prá ticas e das crenças criptojudaicas foi um filho dele), e pa rentes do seu próprio dono, Domingos Rodrigues Rami res, com quem aparentemente teve uma relação durável o suficiente para dele ter dois filhos, e valer-lhe, quem sabe, a alforria. Outras escravas e forras ligadas a famílias cristãs -novas chegaram a ser denunciadas à Inquisição como ju daizantes, mas essas denúncias não foram suficientes para que elas fossem presas e julgadas.12
É então esse tipo de convivência que talvez possa ex plicar como descendentes de africanos e índios, com apenas um avô cristão-novo, pudesse ser suspeito de judai zar, mas também que um cônjuge cristão-velho (como o paraibano Francisco Pereira de Moura13) ou uma escra va africana, fossem iniciados na crença e nas práticas tão especiais e por vezes vagas, observadas pelos judaizantes do Brasil colônia.
Notas
1. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa (IL), pro cesso. 7974.
2. Lina Gorenstein Ferreira da Silva, A Inquisição contra as mulheres. Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII, São Paulo: Humanitas, 2005, p. 263.
3. Bruno Feitler, Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil. Le Nordeste XVIIe -XVIIIe siècles. Leuven University Press, 2003, tabela III.
4. Lina Gorenstein Ferreira da Silva, A Inquisição contra as mulheres, op. cit., p. 269.
5. Alberto Dines, Vínculos de Fogo. Antônio José da Silva, O Judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil, São Paulo: Cia. das Letras, 1992, pp. 141, 782 (n. 53) e 783.
6. Lina Gorenstein Ferreira da Silva, A Inquisição contra as mulheres, op. cit., pp. 268271.
7. ANTT, IL, processo 7974, fls. 7-11.
8. Alberto Dines, Vínculos de fogo, op. cit., p. 377 e Bruno Feitler, Inquisition, op. cit, pp. 252-253.
9. ANTT, IL, processo 11786, fl. 29-30.
10. ANTT, IL, processo 11784, fl. 7.
11. Cf. ANTT, IL, processo 1191 (João Rodrigues do Vale), confissão de 15 de abril de 1711 e processo 661 (Isabel de Mesquita), fl. 52v, confissão de 26 de mar ço de 1711.
12. Antônia, preta forra de Esperança de Azevedo, Sebastiana, escrava de Inácio Car doso, Francisca e Antônia, escravas de Guiomar de Paredes. Alberto Dines, Vín culos de Fogo, op.cit., p. 372, n. 20.
13. ANTT, IL, processo 436. Cf. Bruno Feitler, Inquisition, op. cit., p. 268.
Bruno Feitler é professor de História Moderna da Universidade Fe deral de São Paulo (Unifesp), pesquisador do CNPq e autor, entre outros textos, do livro Nas malhas da consciência. Igreja e Inquisi ção no Brasil. São Paulo: Alameda/Phoebus, 2007.
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t e F ilat Haderec H , uma reza com muito camin H o
guershon Kwasniewski
Quando tiramos do nosso bolso uma pequena reza antes de empreender uma viagem e pronuncia mos a Tefilat Haderech – a “reza do caminho” –, estamos também fazendo uma viagem no tempo. Essas poucas linhas que pronunciamos estão carregadas de história, de um significado profundo e de um pedido sincero de proteção a Deus para garantir que consigamos atingir o nosso destino final.
A proposta deste artigo é estudar a origem desta reza, o seu conteúdo e as suas derivações, conforme diferentes fontes literárias judaicas.
Antes de entrar na abordagem da temática, apresen to para o leitor o texto que constitui esta reza, na sua lín gua original, o hebraico, com tradução para o português (Figura 1).
A origem desta reza é encontrada no Talmud da Babi lônia, na ordem de Zeraim, tratado de Brachot/Benções29-B.
É válido lembrar que o Talmud foi compilado pelo sé culo V da era comum na Babilônia, e os rabinos que apa recem no parágrafo a seguir viveram entre os séculos III e IV (Figura 2).
É impressionante como este texto talmúdico é tão con temporâneo em seu conteúdo. Vivemos num mundo com altos índices de violência, sabemos que quando traspassamos o limite das nossas moradias estamos expostos a bandidos; hoje ouvimos as campanhas do governo “se be ber não dirija”. Imaginemos então, um cavaleiro, tentando chegar de uma cidade a outra, sem estradas e ainda com o efeito da bebida. Não considero casualidade que a temá tica da bebida esteja relacionada com o tema viagem. Os nossos sábios se anteciparam aos tempos. Estado emocio nal alterado mais bebida não garantirão uma boa viagem e portanto acabaremos pecando – acidentes, lesões, morte.
No livro Kitzur Shulchan Aruch, capítulo 68, encon tramos os detalhes a serem considerados para pronunciar esta reza:
Quando alguém sai da cidade e ultrapassa 35 metros dos limites da última casa deve pronunciar a brachá. Se esta distância for menor, a reza não deve ser pronunciada, a não ser que exista verdadeiro perigo, mas então não se pronuncia o Baruch Atá Adonai do final.
Esta benção está escrita no plural, mesmo que a obri gação seja que cada indivíduo a pronuncie.
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significado e história das rezas
significado e história das rezas
1. Que seja da Tua vontade, Eterno, nosso Deus e Deus de nos sos ancestrais, conduzir-nos em paz, dirigir nossos passos em paz, guiar-nos em paz, fazer-nos chegar ao nosso destino em vida, com alegria e em paz. Livra-nos das mãos de todo tipo de inimigo pelo caminho e de todas as formas de calamidades que venham assolar o mundo. Envia uma bênção sobre as obras de nossas mãos, e faze com que achemos graça, misericórdia e piedade aos Teus olhos e aos olhos de todos os que nos veem. Ouve a voz de nossas súplicas, pois Tu és Deus, que ouves a ora ção e a súplica. Louvado sejas Tu, Eterno, que ouves a oração.
Deve ser dita em pé e de preferência quando se está fixo num local antes de partir. Mas se partiu e a pessoa está em movimento pode ser dita no início da viagem.
Existe uma divergência de opiniões sobre quantas vezes deve ser dita, uma vez que a pessoa está de viagem. Alguns rabinos argumentaram que a brachá deve ser dita uma vez antes de toda a viagem, e outros rabinos sustentam que deve ser dita a cada manhã quando se está de viagem.
Antes de sair de viagem é costume dar Tzedaká – geral mente um donativo em dinheiro –, conforme está escrito no livro de Salmos 85:14: “A Justiça irá adiante dele, quan do encaminha os seus passos para o caminho”.
É costume também se despedir de pessoas importan tes da cidade para que estas lhe abençoem com uma boa viagem.
Quando se acompanha um amigo para lhe cumpri mentar antes da viagem, deve a pessoa ficar em pé até que quem viaja suma da nossa visão.
Quem abençoa a quem viaja deve dizer Lech LeShalom e não Lech beShalom (vá para a paz e não vá em paz). Isto se deduz dos seguintes versículos: “David falou a seu filho Avshalom: Vá em paz; e este acabou enforcado” (Sh muel II 15:9). Yitró falou a seu genro Moshé: “Vá para a paz e ele teve sucesso” (Shemot14:18).
Durante a viagem devemos ocupar o nosso tempo com o estudo da Torá, mas não em forma minuciosa para não confundir o caminho, conforme rezamos no Shemá: “Tu as ensinarás aos teus filhos, falando delas... quando estiveres caminhando” (Devarim 6:7).
Mesmo se o destino da viagem for próximo deve-se le var pão e um tzitzit extra, caso estrague para que ninguém se veja impedido de cumprir a mitzvá.
Quando alguém chegar pela tarde num destino onde passará a noite deve desmontar antes do por do sol, aguar dar o próximo dia até enxergar o sol no horizonte e só de pois partir. Isto vai lhe beneficiar e lhe fará bem. A justi ficativa para esta ação está em: “E viu Deus que a luz era boa” (Bereshit 1:4).
Não se deve comer muito durante a viagem.
Quando se para numa pousada deve-se verificar a ido neidade dos donos. Quem faz uma refeição deve pesquisar quem é o shochet (matador ritual) e o rabino que supervisiona os alimentos, assim também como o vinho.
Quando se rezam as tefilot de shacharit – da manhã –se a pessoa não puder estar num local fixo e deve continuar a viagem, deve tentar ficar em pé durante a Amidá –Grande Oração – e se estiver numa carruagem e não pu der ficar em pé deverá mesmo sentado inclinar o corpo fa zendo as reverências como se estivessem em pé.
Está proibido na sexta-feira viajar mais de 11,5 km, seja para voltar à própria casa ou para outro destino de vido aos preparativos necessários com as comidas do Sha bat. Numerosas profanações do shabat acontecem por che gar tarde.
Se o viajante tiver que passar o shabat fora da sua cida de e estiver hospedado num hotel não poderá sair com o seu dinheiro a não ser costurado na sua roupa. Não poderá levar o mesmo no bolso porque será considerado muktze – carregar um objeto de um domínio a outro é uma proibição sabática.
Cabe lembrar que estas cláusulas do Kitzur Shulchan Aruch, livro escrito pelo rabino Shlomo Ganzfried em 1863, são completamente contemporâneas, e têm inten ção de proteger, advertir, preparar e orientar o judeu an tes da sua viagem.
Em tempos modernos, costumamos revisar o carro, carregamos o GPS com os mapas das cidades que visita remos, reservamos os nossos hotéis on-line, procuramos uma sinagoga próxima à nossa hospedagem, restaurantes
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significado e história das rezas
2. Ensinaram os rabinos: quem transita por um local cheio de ani mais e bandos de ladrões, reza uma breve oração. – Que breve oração? – falou rabi Eliezer: Faz tua vontade acima no céu e con cede serenidade aqui em baixo àqueles que te temem e fazem o que é bom aos teus olhos. Abençoado sejas Senhor, que escu tas os pedidos. – Disse Rabi Iehoshua: Atende os pedidos de teu povo Israel e satisfaz rapidamente os seus desejos. Abenço ado sejas Senhor, que escutas as orações. – Disse o rabi Elea zar filho do rabi Tzadoc: Escuta o clamor de teu povo Israel e sa tisfaz logo o seu pedido. Bendito sejas Senhor, que escutas as orações. Segundo outros: As necessidades de teu povo Israel são muitas e seu saber é pequeno. Seja a tua vontade, Senhor nosso Deus, dar a cada um sustento suficiente e a cada corpo o que lhe falta. Bendito seja, Senhor, que escutas as orações.
– Disse Rabi Huna: A jurisprudência concorda com os outros. Disse Elias ao Rabi Iehudá, irmão do Rabi Sala o piedoso: Não enfureças e não pecarás; não bebas e não pecarás; e quando sair de viagem, consulta o teu Fazedor e olha. – O que significa “consulta o teu Fazedor e olha?” – Disse Rabi Jacob em nome do rabi Chisda: Quem sai de viagem deve dizer a oração do via jante. – Qual é a reza do caminho? – Seja tua vontade, Senhor meu Deus, conduzir-me em paz, guiar os meus passos em paz, manter-me em paz, livrar-me dos inimigos e dos perigos do ca minho, abençoar a obra das minhas mãos, e fazer-me encontrar graça, bondade e compaixão em teus olhos e nos olhos de todos o que me vejam. Bendito sejas, Senhor, que escutas os pedidos.
kasher, levamos alguma comida e bebida para a viagem, procuramos fazer paradas em locais seguros e limpos, pro gramamos no celular os telefones mais importantes para contatar. Preocupações que não são bem distantes nem di ferentes da época do Talmud.
Mesmo quem viaja de avião, navio ou trem, assim tam bém com o carro mais moderno com o maior número de airbags, não está isento de ter algum contratempo ou pro blema na viagem, por isso a tefilat haderech é tão atual e vigente.
Em nossos dias, as sinagogas e os movimentos religio sos costumam distribuir esta tefilá entre os seus congre gantes para que seja carregada e pronunciada quando sur ja a oportunidade.
Deixo como registro o dado curioso e único que esta
tefilá na sua íntegra pode ser encontrada no Espaço Inter -Religioso do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, por iniciativa da sinagoga Sibra.
Em contrapartida, uma vez que se chega a um desti no, depois de ter atravessado um oceano, um deserto, após uma viagem aérea ou ter se salvo de um acidente ou situa ção de perigo, costuma-se dizer Birkat Hagomél.
Uma benção pela qual agradecemos a Deus por ter nos recompensado mais do que merecíamos.
Boa viagem, lechule Shalom!
O professor Guershon Kwasniewski é líder religioso da SIBRA –Sociedade Israelita de Cultura e Beneficência de Porto Alegre –, membro de Grupo de Diálogo Inter-religioso e aluno de rabinato do Seminário Rabínico Latinoamericano de Buenos Aires, Argentina.
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seção l ivros
O povo do livro: uma análise do Complexo de Portnoy, de Philip Roth
Há
muito que nos envaidecemos (e com toda razão!) de sermos re putados como o “povo do livro”. Creio que a explicação para tão honorífico tí tulo não deve se reportar tão somen te ao fato de que foram outorgados ao povo judeu, dentre outros tantos po vos, os mandamentos ou as tábuas da lei, durante o período de peregrinação pelo deserto, após ter conquistado, a ferro-e-fogo, sua liberdade. Essa expli cação sempre me pareceu assaz sim plória para tão nobre distinção.
Em determinada ocasião, tempos atrás, o escritor argentino Ernesto Sa bato, ao discorrer sobre a importância da literatura – especificamente a litera tura ficcional –, disse que seu grande préstimo à Humanidade não era servir à evasão ou ao passatempo aos ho mens. Para o autor, a literatura “repre sentava a forma mais efetiva de se exa minar a condição humana”. Confesso
que tive certa dificuldade em compre ender o exato sentido dessa frase, tal vez em razão do grande mal do qual padecem os mais jovens, que é a in genuidade em compreender, nas suas exatas proporções, as complexidades que envolvem todos os fatos da vida humana. Foi apenas tempos depois, ao ler O Complexo de Portnoy, que compreendi o que o autor argentino queria dizer.
Todos os homens – e essa é uma re gra que não comporta qualquer tipo de exceções –, dos mais loucos e desvai rados aos mais corretos e previsíveis, vivem em um estado permanente de re lativo aprisionamento, de relativa clau sura. Explico: esse estado é uma con sequência natural da vida em socieda de, a qual inibe ou impede que todos os indivíduos deem vazão a todos seus apetites, desejos, sonhos, aspirações, medos, sentimentos e impulsos, muitas vezes impossíveis de serem concretiza dos ou manifestados. Penso que à arte, de uma maneira geral, cabe suprir esse estado de impotência da Humanidade.
breno casiuch
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livros
E acredito também que, dentre todos os tipos de artes, sem querer desme recer a dança, o teatro, o cinema ou a pintura, a literatura é a que melhor vem preenchendo e cumprindo esse papel de confortar esse ininterrupto vazio. Através da literatura, os homens conse guem manifestar plenamente, por meio de palavras, toda sua rebeldia, dizendo tudo aquilo que gostariam de viver com absoluta e total autenticidade. Através das histórias desenvolvidas e dos per sonagens criados pelos romancistas, torna-se possível criar indivíduos ple nos, uma extensão melhorada e mais profunda de nós mesmos, uma vez que, só assim, se torna possível liberar sen timentos que, infelizmente (ou felizmen te!), não se pode liberar.
Graças à literatura, a Humanida de desenvolveu o poder de manifes tar-se plenamente. Não acredito ser coincidência o fato de que em socie dades onde a ficcção é censurada ou controlada, esses sentimentos huma nos, que existem, mas não podem ser manifestados, acabem sendo revela dos através de meios mais perigosos, como o fanatismo, religioso, político ou ideológico. Todavia, você deve es tar se perguntando: qual o propósito desta digressão sobre a natureza da ficção em uma resenha sobre O Com plexo de Portnoy?
Novamente tentarei me explicar: o livro O Complexo de Portnoy, escrito nos idos da década de1960 pelo ro mancista americano Philip Roth, con ta a história de um advogado ameri cano e judeu, que passa algumas ho ras da sua atribulada vida dentro de um consultório de psicanálise, tratan do das suas questões, muitas delas re
lacionadas a relacionamento familiar e religião. Devo confessar que de todos os livros que li, O Complexo de Por tnoy talvez seja o que, para mim, me lhor retrata a essência do povo judeu no mundo contemporâneo. O livro se propõe a retratar o judeu comum, em toda sua amplitude, com todas as suas questões, neuroses, imperfeições, de feitos e preocupações. Para mim, Por tnoy (o advogado) representa o judeu que, em alguma medida, todos somos, mas que, em outra medida, evitamos transparecer, escondendo-o em algum canto ou embaixo de algum tapete da nossa alma. O livro é o retrato perfeito das imperfeições judaicas e das ques tões que nos cercam.
Mais do que a história, a essên cia de um povo é descoberta através dos romances que produz. Ao contrá rio da história, que deve sempre ba sear-se em documentos para des vendar as verdades sobre um povo e que ocorreram em determinado tem po, é somente através da ficção que é possível contar (e, por consequên cia, descobrir) as mentiras e as reais questões de determinado povo, como se pudesse escutar e desvendar, por detrás do batente da porta, as mentes dos indivíduos.
Dito isso, voltemos à questão à qual me referia no primeiro parágrafo sobre o povo judeu ser considerado o “povo do livro”. Prefiro acreditar que esse tí tulo se deve ao fato de que, ao lon go de sua conturbada existência, ele foi o mais bem sucedido na tarefa de desenvolver a nobre e difícil capacida de de escrever sobre si mesmo (bem como a tolerância de ler e analisar es ses escritos), traduzindo em palavras
sentimentos que nem sempre são cla ros e diáfanos, situações familiares por vezes complexas, mas sempre únicas, cheias de yachnes e mischug nes (como diria minha avó), estados de espírito turvos, bem como objetos, emoções, caráteres, personalidades, filosofias e ideologias absolutamen te complicadas de serem descritas. A habilidade do povo judeu de escrever sobre si próprio com tamanha profun didade, humor, sensibilidade, afeto e doses homeopáticas de loucura, mas, ao mesmo tempo, com tanta autocríti ca, é uma característica que raramen te vi ou verei acontecer. Com esta ha bilidade, o povo judeu tornou-se e tor na-se cada vez mais capacitado a me lhor se autocompreender e, ao fazê-lo, desenvolve automaticamente a quali dade de compreender os outros (ju deus ou não!), pois, ao ler os tipos de romances que Roth produz, aprende mos mais sobre a nossa vida e de to dos os outros, ao preencher, de certa forma, o vazio que todo indivíduo car rega consigo.
Assim, se você ainda não (re)leu O Complexo de Portnoy, (re)leia. Enten do que o livro não é novo, ainda que não consiga pensar em retrato mais moderno! Também entendo que, em determinados momentos, o livro pode parecer perturbador (afinal, raras são às vezes em que os seres humanos permanecem tranquilos e sossegados ao confrontarem-se com seus próprios fantasmas). Ainda assim, estou certo que, depois de o terem lido, a menta lidade e algumas das mais interessan tes características do povo judeu serão compreendidas ou, pelo menos, des cobertas.
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Auschwitz nos perseguirá para sempre? Uma análise de Diário da queda, de Michel Laub
Nãose deixe enganar pelo título. Di ário da Queda (Companhia das Letras, 2011) não é um livro histórico. Não trata nem da derrocada de um im pério nem do caminho para o esqueci mento de algum poderoso. Este peque no e muito bem escrito (dá a impressão de que cada palavra foi cuidadosamen te escolhida) é o relato ficcional íntimo da pedra fundamental a partir da qual se desenvolve uma família gaúcha.
O autor, Michel Laub, um jornalista nascido em 1973, narra as reflexões de um personagem fictício que tem a vida perturbada pelo vício do álcool e atribui o seu vício e as suas dificuldades de re lacionamento à experiência de um avô que foi interno de Auschwitz. O livro re flete sobre o que ele chama de “a invia bilidade da experiência humana”, uma expressão que sugere ser inviável ao ser humano se tornar humano.
A bebida se instala na vida do per sonagem a partir de uma experiência in feliz que ele teve aos 13 anos, quando, em cumplicidade com a turma de sua escola judaica, perpetra um ato desu mano contra um colega de escola não judeu e de família humilde. O seu re morso com esta experiência o leva ao álcool e ele assim constrói uma linha di reta de acontecimentos que começam na experiência do avô em Auschwitz e
desembocam nas suas desventuras, passando pelas do pai. Segundo o per sonagem, Auschwitz afetou profunda mente o avô, o pai e ele mesmo – cada um à sua maneira, mas a todos com uma intensidade avassaladora, de uma forma tal que Auschwitz se tornou o fa tor preponderante nas opções de vida de cada um.
Vale a pena ler o livro, não apenas para saborear a fina reflexão de Laub, mas também para internalizar os peri gos da educação judaica centrada na Shoá e no antissemitismo que é ofe recida a crianças e adultos em grande parte de nossas instituições e famílias.
O personagem é categórico. Tudo o que recebeu de judaico na escola em que estudou foi o antissemitismo: “... uma escola judaica é mais ou me
nos como qualquer outra. A diferen ça é que você passa a infância ouvin do falar de antissemitismo: há profes sores que se dedicam exclusivamente a isso, uma explicação para as atroci dades cometidas pelos nazistas, que remetiam às atrocidades cometidas pelos poloneses, que eram ecos das atrocidades cometidas pelos russos, e nessa conta você poderia colocar os árabes e os muçulmanos e os cristãos e quem mais precisasse, numa espi ral de ódio fundada na inveja da inte ligência, da força de vontade, da cul tura e da riqueza que os judeus cria ram apesar de todos estes obstáculos”. (pp. 11-12).
Contudo, cabe refletir que o juda ísmo é muito maior do que as perse guições que sofremos ao longo dos séculos, inclusive a do último século. Sobrevivemos como povo porque de senvolvemos continuadamente des de a antiguidade uma forma inovado ra de enxergar o mundo e de interagir com ele e com nós mesmos. Uma for ma que afirma que não só é possível, como também está ao nosso alcance e é nosso dever tornar humana a hu manidade.
Se não soubermos incluir o judaís mo na educação judaica acabaremos reduzidos a um tipo de “rebeldes sem causa”, pessoas que defendem algo que não sabem definir e que, portanto, são capazes dos atos mais bárbaros e insensatos, como o relatado no livro de Laub. (Raul Cesar Gottlieb)
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livros
cH ac H amim ou aiatolás?
Só li alguns trechos esparsos do Corão, por isso não posso afirmar com certeza se a interpretação correta dessa obra-guia do islamismo é a dos aiatolás do Irã e das várias Jihads, Hizbolá e Hamas (fundamen talista, radical, intolerante para com a coe xistência de outras crenças, inimiga do Es tado dos judeus e do povo judeu a ponto de pregar sua destruição e se armar para isso, erigida em poder político para realizar tudo isso), ou, por exemplo, a de Ali Kamel em seu livro Sobre o Islã (humanista, gene rosa, aberta à convivência). Mas sei como é ameaçador que a primeira interpretação te nha instrumentos de poder, pratique o ter rorismo e tenha armas de destruição em massa em seu poder, no caminho para as nucleares, e a segunda seja, por enquan to, apenas um exercício sincero mas inócuo de opinião, com poucos ecos até mesmo no mundo islâmico não radical, se é que ele existe (e esperamos que sim).
Mutatis mutandi (não me venham acusar de estar comparando, como se fossem aná logos), não me aprofundei o bastante nas escrituras judaicas (o Tanach, o Talmud, o Shulchan Aruch e todos os comentários fi losófico-religiosos que os interpretam e ex plicam) para ter a certeza de que é impos sível um judaísmo sem o cumprimento lite ral de todas as mitzvot tais como interpre tadas por chachameinu zal até o século 6. Mas, ao contrário dos aiatolás e dos líderes ativos do islamismo radical que conseguem se basear no Corão como fundamento de seu extremismo, sei de nossas escrituras o suficiente para ter a certeza (esta certeza dá para ter) que nossas escrituras e o com portamento que elas prescrevem e susci tam não podem ser interpretados como ex pressão de uma verdade absoluta que deve prevalecer no mundo, e que para isso todas as outras crenças e pretensões de verda des devem ser subjugadas ou extintas. O judaísmo se baseia na convivência.
O embasamento ético, moral, compor tamental expresso no texto básico de nos sa herança histórica e religiosa, a Torá, foi interpretado por nossos chachamim em re gras práticas de acordo com realidades temporais, mas sua essência é atemporal e
universal. É um valor que o judaísmo com partilhou com o mundo, como parte dele que é, e no qual se baseiam outras cren ças, outras culturas. A verdade interna do judaísmo não aspira a ser, na forma, a úni ca verdade, a ser imposta a todas as cren ças. Ao contrário, para ser um ‘reino de sa cerdotes’, um servidor da humanidade na qual se insere, o povo judeu precisa convi ver com esse mundo, conviver com outras crenças, outras culturas. É o que tem feito em toda a sua história, é o que seu judaís mo lhe ensina.
Por isso, é doloroso ver como, em Israel, alguns setores do povo judeu se arvoram a serem os únicos intérpretes válidos de uma única ‘verdade’ possível, a ser imposta pela exclusão dos ‘outros’ e da convivência com eles. Mais doloroso ainda é ver essa atitu de ter como alvo prioritário seus correligio nários, não só nos discursos e nas prédi cas (algumas delas verdadeiras incitações à violência), mas em atitudes proativas de intolerância e repúdio. E é trágico ver como representantes desse grupo vão até o Irã prestar homenagem e se identificar (e se fotografar) com quem promete que vai apa gar o Estado dos judeus do mapa, por que eles preferem nenhum judaísmo a um juda ísmo que não seja exatamente o da inter pretação deles.
Eles se parecem muito com os aiato lás que foram cumprimentar, e a mentalida de dos aiatolás parece estar cada vez mais presente no tratamento radical, por esses grupos, da antiga questão israelense dos limites entre seu caráter judaico num Esta do democrático, moderno e liberal e uma in terpretação radical e fundamentalista do ju
daísmo. Essa questão diz respeito não só à necessidade legal e moral de que convi vam dentro de Israel todas as crenças que ele abriga – e isso inclui, dentro da maioria judaica, diferentes interpretações de como deve ser o judaísmo no Estado judaico no século 21, como menciona a Declaração de Independência –, mas ao próprio caráter do Estado judaico.
Sintomaticamente, e não por acaso, a in tolerância (e a aversão à convivência) dos radicais religiosos vai impregnando também a ideologia e a política. Atacar fisicamente opositores, tentar deslegitimar a Corte Su prema quando faz prevalecer a lei, chamar de traidor quem não concorda com suas ideias em relação a uma possível paz com palestinos, tentando criar uma divisão en tre ‘patriotas’ (os que aprovam suas ideias) e ‘traidores’ (os que discordam delas), até mesmo algumas iniciativas visando silenciar vozes e controlar a imprensa, nos moldes de Chavez e Correa, são eventos que co meçam a trazer a intolerância para o plano nacional e político. Ainda são sintomas, mas já exigem atenção e causam preocupação.
Independentemente de qual é ou será o governo, de como a nação e o Estado e a sociedade israelenses vão decidir seu futu ro na segurança, na economia, nas priorida des sociais e culturais, seu caráter demo crático e liberal precisa ser o fundamento de sua visão conceitual e prática. Isso pres supõe a prevalência, no conceito e na práti ca, da coexistência das diferenças, da liber dade de expressão, da liberdade de cren ça e de culto, e no respeito mútuo como catalisador dessa realidade. Foi essa a vi são que inspirou os judeus em 2.000 anos de dispersão, tornada realidade pelo proje to sionista. Ela é o denominador comum en tre o Estado judeu e o povo judeu. Sem ela, a própria essência do judaísmo e do ideal sionista estará ameaçada.
Felizmente não temos a certeza dos aia tolás, felizmente nosso chachamim nos en sinaram que o judaísmo se constrói ques tionando e debatendo como preservar nos so legado e ao mesmo tempo nos inserir no mundo. Vamos ser como os chachamim ou como os aiatolás?
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p aulo g eiger cócegas no raciocínio Zu_09 / iStockphoto.com
Há mais de um caminho para ser judeu
Associacão Religiosa do
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Israelita
Rio de Janeiro Aqui, todo judeu encontra seu judaismo www.arirj.com.br +55 21 2156-0400 WORLD UNIONFOR PROGRESSIVE JUDAISM Próximo está o Eterno de todos que O buscam, de todos que O buscam com sinceridade. Salmo 145:18