4 minute read

Ulisses e o canto das sereias

ULISSES, O CANTO DAS SEREIAS E AS AMARRAS DA ABSTINÊNCIA

” – Posso vencer a cocaína sozinho, não preciso de um acompanhante terapêutico vinte e quatro horas por dia para isso.” “– Tomar medicação que faz passar mal se recair para eu parar beber? Estar aqui já não é o bastante para você entender que isso é o que eu mais quero nesse momento?” “– Me recuso a ser testado no xixi, não tenho que provar nada para ninguém!”.

Advertisement

O genial, poderoso e invencível general Ulisses de Ítaca, pensava diferente: após sair vitorioso na Guerra de Tróia, voltava para o seu reino, onde o aguardavam a rainha Penélope e o seu filho, Telêmaco, quando o bravo Odisseu – como também era conhecido – quis ouvir o canto das sereias. Ele sabia que era impossível resistir à melodia voluptuosa daquelas musas marítimas ardilosas, que buscavam atrair os marinheiros, valendo-se da natureza frágil, pretensiosa e meritória do estado de suas consciências autoindulgentes, ainda mais depois de longos períodos em alto-mar –, momento em que eram subjugados, destruídos e devorados sem piedade.

Ulisses, ciente de sua limitação cognitiva, ordenou que os ouvidos de toda a tripulação fossem vedados com cera e que ele, o poderoso general, fosse amarrado ao mastro do seu próprio navio. Quando as sereias surgiram, rapidamente convenceram-no de que estava tudo bem e que ele poderia se aproximar. Crédulo e cada vez mais desesperado por sua soltura, começou a ordenar à tripulação que o desamarrasse, para que pudesse se juntar às musas – jamais em condições habituais um general poderia tolerar ser contrariado por sua tripulação, a não ser que essa estivesse impedida de ouvi-lo. O navio foi ganhando distância, as vozes sedutoras, amainando. O general recobrou sua consciência plena e percebeu o quanto a atitude de se amarrar fora realmente a mais acertada e salvadora.

A história de Ulisses é bastante elucidativa para o tratamento da dependência química: a vontade de parar de usar álcool, tabaco ou qualquer outro tipo de substância psicoativa não é o bastante. O general sabia que a razão tinha autonomia limitada perante alguns impulsos do desejo e por isso, resolveu coibi-los preventivamente. Assim, quando ela foi “tomada de assalto” e colocada a serviço de um desejo imediatista e destrutivo ele estava, literalmente, de “mãos atadas”. Só lhe restou, então, deixar o tempo passar até o canto silenciar e sua consciência voltar à segurança. Naquele momento, escolher abrir mão do poder decisório foi a atitude mais acertada – de outra forma, teria jogado o seu barco e toda sua tripulação contra as rochas.

Esse é um dilema inicial à espreita dos dependentes que decidem deixar o consumo: nos primeiros tempos, o seu córtex pré-frontal, morada da razão, perdeu capacidade inibitória e funciona basicamente para executar os automatismos disparados pelo sistema de recompensa cerebral. Simples assim. Pode prometer o que quiser – “vou parar”, “juro que essa foi a última vez”, “droga se fosse boa, não se chamava droga”. Sabemos que o usuário acredita no que diz e tem propósitos nobres. Só que lá fundo, seu cérebro sabe que a história final vai ser outra, que as sereias vão cantar e é na direção oposta que ele vai acabar indo, num momento de estresse, depois de uma discussão ou simplesmente, porque ‘do nada’ um gatilho disparou e ele não resistiu.

Nesse sentido, é importante entender e partir do pressuposto de que o usuário de substâncias psicoativas se transformou em um refém das oportunidades de uso e será praticamente impossível ele dizer não a tais apelos – ainda mais seguidamente – sem sucumbir. Desse modo, no começo, é preciso blindar a pessoa, evitar exposição às situações de risco e, principalmente, criar com ela e com a ajuda da família uma estratégia de monitoramento, não com o intuito de vigiá-la, mas, assim como fez Ulisses, para salvaguardar o seu desejo de permanecer fiel ao propósito da abstinência. Por isso, segundo os estudos, especialmente os primeiros cem dias, – os quais devem se estender com menor intensidade de cuidados pelos próximos dois anos –, são dias de travessia por mares revoltos e cantos de sereia sedutores, nos quais é preciso construir uma estratégia para lidar contra as armadilhas da razão, desenvolvendo-se para isso um plano de evitação de estímulos. Eis os motivos pelos quais faz diferença, muitas vezes, tomar medicamentos aversivos: frente à perspectiva de beber e passar mal, as oportunidades de beber perdem sentido e a vontade, consequentemente diminui consideravelmente. Da mesma forma, estar sob monitoramento vinte e quatro horas ou sob testagem semanal deixam a pessoa mais tranquila, pois ela tem agora argumentos concretos que a “prendem” objetivamente ao seu desejo inicial que ela mesma tem de parar, não ficando mais “bombardeada” pelo desejo de usar.

Desse modo – graças aos métodos de monitoramento – conforme as semanas vão passando, aquela energia melódica e sedutora, antes investida no planejamento, aquisição e consumo das substâncias, vai perdendo força, permitindo agora que a mesma seja reinvestida em outros campos da vida do indivíduo, especialmente na retomada de atividades pessoais, profissionais e relacionais. Quanto mais o indivíduo tem estrutura para levar isso adiante, ou seja, quanto maior as suas possibilidades de recuperação, mais rápida essa travessia, que no início é muito mais uma atitude do que um ato de vontade. Atitude essa que, ao final, manterá a pessoa no comando da embarcação.

Marcelo Ribeiro,

Médico psiquiatra, doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (CRATOD) da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, vice-presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (CONED).

This article is from: