Insularidade Monumental na Praça Osório

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

CHRISTIANA SANTOS GONÇALVES VIEIRA

INSULARIDADE MONUMENTAL NA PRAÇA OSÓRIO

CURITIBA 2020

CHRISTIANA SANTOS GONÇALVES VIEIRA

INSULARIDADE MONUMENTAL NA PRAÇA OSÓRIO

Monografia apresentada ao Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná como um dos requisitos para aprovação na disciplina Trabalho Final de Graduação.

Oba

Curitiba 2020

Orientadora: Profa. Dra. Marina Milllani

FOLHA DE APROVAÇÃO Orientador (a): ______________________________________________________________ Examinador (a): ______________________________________________________________ Examinador (a): ______________________________________________________________ Monografia defendida e aprovada em: Curitiba, _______ de _________________ de 2020.

Agradecimentos “E quando a tempestade terminar, você mal vai se lembrar de como a superou, de como fez para sobreviver. Você nem terá certeza de que a chuva realmente acabou. Mas uma coisa é certa. Quando você sair da tempestade, você não será mais a mesma que entrou.” (MURAKAMI, 2006, p. 74) Obrigada a meus pais, que sempre acreditaram em mim, e a todos em minha vida que fazem meus dias felizes.

Vocês sabem quem são.

A verdadeira viagem do descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, mas em ver com novos olhos.

Marcel Proust

RESUMO O conjunto urbano edificado é experimentado pelos habitantes da cidade através de sua interface com o espaço público. Na cidade contemporânea, a relação entre o edifício e a rua é uma questão que requer constante revisão pela produção arquitetônica. Enquanto os usos dos edifícios são variáveis e, portanto, incontroláveis pelo arquiteto, as interfaces têm caráter mais permanente. Dessa forma, a investigação da relação entre a forma edificada e o tecido urbano se faz urgente. O presente trabalho apresenta as bases teóricas que orientarão a leitura e a atuação sobre um recorte urbano densamente construído: a Praça General Osório e seu entorno construído. A análise do território interpreta o recorte proposto como um Arquipélago de Monumentos, com edifícios de diferentes escalas e posturas em relação ao espaço público. Portanto, o presente trabalho tem como objetivo dar início à investigação acerca das relações espaciais entre a Praça Osório e seu entorno edificado, para posterior desenvolvimento de projeto arquitetônico apoiado em sua atual situação.

Palavras-chave: Arquipélago. Interface. Monumento. Projeto arquitetônico.

Praça Osório. Curitiba.

ABSTRACT Urban architecture is experienced by the city inhabitants through its surface with the public space. In the contemporary city, the relation between buildings and streets is the biggest constant in an architecture project. They are permanent in character.

Meanwhile, buildings uses, and functions vary, and therefore are uncontrollable by the architects. Thus, the investigation of the relation between the built form and the urban fabric is urgent. The present research aims to obtain the theorical knowledge necessary to guide the spatial analysis that will result on the posterior action in a dense urban territory – the Praça General Osório and its built surroundings. From that, the territory analysis reads the proposed urban fragment as an Archipelago of Monuments, which counts on a variety of building scales and different postures towards the public space. Therefore, the research’s goal is to start the investigation of the spatial relations between Praça Osório and its built surroundings, to the development of an architecture project in the future.

Key-words: Archipelago. Interface. Monument. Architecture project. Praça Osório.

Curitiba.

LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 - MAPA DE BERLIM E AS ILHAS URBANAS ......................................... 14 FIGURA 2 - PLINTO DO SEAGRAM BUILDING ...................................................... 16 FIGURA 3 - SEAGRAM BUILDING .......................................................................... 17 FIGURA 4 - FRAGMENTO DE NUOVA PIANTA DI ROMA (1748) .......................... 19 FIGURA 5 - THE CITY OF THE CAPTIVE GLOBE (1972) ....................................... 22 FIGURA 6 - I AM A MONUMENT ............................................................................. 33 Figura 7 - PLATEAU BEAUBOURG ......................................................................... 36 Figura 8 - SITUAÇÃO DO CENTRO POMPIDOU .................................................... 37 Figura 9 - PLANTA NEUTRA DO CENTRO POMPIDOU ......................................... 38 Figura 10 - FACHADA REFERENTE À PRAÇA ....................................................... 39 Figura 11 – PRAÇA EM FRENTE AO CENTRO POMPIDOU .................................. 39 Figura 12 - CORTE DO PROJETO ENVIADO AO CONCURSO .............................. 40 Figura 13 – TESTADA COM ACESSO À PRAÇA DAS ARTES ............................... 43 Figura 14 - PRAÇA DAS ARTES NO ALINHAMENTO PREDIAL ............................ 45 Figura 15 - CROQUI DA PRAÇA DAS ARTES ........................................................ 45 Figura 16 – CROQUI COM CHEIOS E VAZIOS DA PRAÇA DAS ARTES............... 46 Figura 17 - PERMEABILIDADE VISUAL COM A CIDADE ....................................... 47 Figura 18 - SHIBAURA HOUSE EM SEU CONTEXTO ............................................ 49 Figura 19 - ANTES E DEPOIS DA KOHKOKU SEIHAN INC ................................... 50 Figura 20 - DIVERSOS USOS DA SHIBAURA HOUSE ........................................... 51 Figura 21 - PAVIMENTO TÉRREO SHIBAURA HOUSE ......................................... 51 Figura 22 - FACHADA SHIBAURA HOUSE ............................................................. 52 Figura 23 - CROQUI E MAQUETE DA SHIBAURA HOUSE .................................... 53 Figura 24 – DIAGRAMA DE SÍMBOLOS DE ESCALA E DE VELOCIDADE ............ 56 Figura 25 - MAPAS NOLLI DE LAS VEGAS ............................................................ 57 Figura 26 - TABELA DE HOTEIS CASSINOS .......................................................... 58 Figura 27 - REPRESENTAÇÃO DE TÓQUIO .......................................................... 60 Figura 28 - UM DOS ARTEFATOS ARQUITETÔNICOS ANALISADOS .................. 61 Figura 29 - EXEMPLO DE PÁGINA DO LIVRO MADE IN TOKYO .......................... 62 Figura 30 - ARQUIPÉLAGO PRAÇA OSÓRIO......................................................... 65 Figura 31 – COLAGEM DA PRAÇA OSÓRIO .......................................................... 66 Figura 32 – PRAÇA OSÓRIO EM 2020 ................................................................... 67 Figura 33 – PRAÇA OSÓRIO EM CURITIBA ........................................................... 68

Figura 34 - O RECORTE PROPOSTO..................................................................... 69 Figura 35 - FOTO AÉREA COM RECORTE ............................................................ 70 Figura 36 - MAPA NÚMERO DE PAVIMENTOS ...................................................... 71 Figura 37 - MAPA DE USOS .................................................................................... 72 Figura 38 - MAPA NUMERAÇÃO DE LOTES DO RECORTE.................................. 73 Figura 39 - QUADRO DE FOTOS DOS LOTES DO RECORTE .............................. 74 Figura 40 - ELEVAÇÕES DO RECORTE PROPOSTO............................................ 75 Figura 42 - PLANTA BAIXA TÉRREA DO RECORTE.............................................. 77 Figura 43 - ARQUIPÉLAGO DE MONUMENTOS DA PRAÇA OSÓRIO .................. 78 Figura 44 - O ASTRONAUTA E O AUTOMONUMENTO ......................................... 79

SUMÁRIO 1.

INTRODUÇÃO ................................................................................................ 11

2.

BASES CONCEITUAIS ................................................................................... 13 2.1. A NOÇÃO DE ARQUIPÉLAGO ................................................................. 13 2.1.1.

O arquipélago de Ungers .................................................................... 13

2.1.2.

O arquipélago de Koolhaas ................................................................. 20

2.1.3.

A arquitetura para o arquipélago ......................................................... 23

2.2. A NOÇÃO DE MONUMENTO ................................................................... 24 2.2.1. O monumento de Boullée.................................................................. 25 2.2.2. O arranha-céu como monumento...................................................... 26 2.2.3. Automonumento ................................................................................ 29 2.2.4. Insularidade monumental....................................................................33 3.

ANÁLISE DIRIGIDA ........................................................................................ 35 3.1.

ANTIMONUMENTALISMO

DE

PIANO

E

ROGERS:

CENTRO

POMPIDOU...................................................................................................36 3.2. UMA CIDADE DENTRO DE SÃO PAULO: A PRAÇA DAS ARTES......42 3.3. UMA PRAÇA PARA TÓQUIO: SHIBAURA HOUSE...............................49 4.

METODOLOGIA: CURADORIA URBANA...................................................... 55 4.1. LEARNING FROM LAS VEGAS.............................................................55 4.2. MADE IN TOKYO....................................................................................59 4.3. O MÉTODO DE SELEÇÃO COMO CURADORIA URBANA...................62

5.

CURADORIA URBANA .................................................................................. 64 5.1. DELIMITAÇÃO DO RECORTE...............................................................64 5.2. LEVANTAMENTO...................................................................................70

6.

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 79

7.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................ 81

1.

INTRODUÇÃO “Não viajo todas as Curitibas, a de Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de Alberto de Oliveira do céu azulíssimo; a de Romário Martins em que o índio caraíba puro bate a matraca, barquilhas duas por um tostão; essa Curitiba não é a que viajo. Eu sou da outra, do relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto; dos sinos da igreja dos Polacos, lá vem o crepúsculo nas asas de um morcego; do bebedouro na pracinha da Ordem, onde os cavalos de sonho dos piás vão beber água.” (TREVISAN, 1979, p. 84).

Tal qual o vampiro Curitibano, a autora também se identifica com esse trecho da cidade. A praça Osório, fragmento municipal repleto de árvores, respalda sob ela sua diversidade diariamente. Edifícios de todos os portes e datas circundam essa porção urbana, configurando quase que um cenário para tal ambiente. Assim, esse amplo espaço aberto no centro da cidade forma um negativo do gabarito de lotes preenchidos pelos prédios.

As torres, devidamente inseridas em seus terrenos, definem grande parte da percepção do usuário do espaço aberto. Os térreos dos edifícios podem se apresentar como continuações simpáticas das ruas, ou como oásis inacessíveis de privacidade.

Seus contornos, às vezes grade, às vezes parede, desenham os limites entre o público e o privado, delimitando a cidade. Torres vedadas, inacessíveis na ausência de um crachá, inseridas entre galerias abertas ao público e comércio de rua. Essa diversidade espacial faz do recorte urbano em torno da praça Osório um local que abrange diversos casos arquitetônicos, sendo assim – além de familiar para a autora – válido para análise de espaço construído.

Cada edifício se apresenta como um ponto redentor de densidade – de usuários, de usos, de variedade de serviços. Pequenas cidades dispostas em pavimentos empilhados. Mesmo que a dinâmica urbana seja internalizada, os limites dos artefatos arquitetônicos ainda podem representar barreira ou convite. No entorno imediato da Praça Osório são perceptíveis construções que potencializam o espaço aberto, propondo certa continuidade espacial, mas também formas construídas que repelem os passantes, ignorando o potencial da região.

Tendo essas percepções em vista, o trabalho em questão busca investigar a relação de tais edifícios com o contexto em que se inserem. Em busca da potencialização de uma região da cidade já tida como positiva, procura-se averiguar as consequências da arquitetura no espaço público e vice-versa. Através do conceito

de Arquipélago, na primeira parte do trabalho – Bases Conceituais – buscou-se estabelecer as possíveis relações entre os edifícios e a cidade, e entre as construções urbanas entre si. A partir desses artefatos de grande escala, também se buscou compreender a influência da monumentalidade arquitetônica no ambiente urbano.

Com suporte na análise dos conceitos de monumento e de automonumento, propôsse a pesquisa acerca da relação desses edifícios com o contexto urbano.

A Análise Dirigida apresenta projetos que fundamentam suas estratégias pelas potencialidades do entorno e o trabalho hábil dos limites arquitetônicos. O capítulo traz perspectivas de leitura do território urbano que balizam a inserção de edifícios. Os casos escolhidos também utilizaram ferramentas e estratégias de projeto para melhor abordar a escala construtiva monumental, sem deixar a escala humana em segundo plano.

A Metodologia primeiramente traz algumas referências de como abordar a análise de um território urbano. Esses exemplos auxiliaram na formação dos critérios da curadoria urbana do trabalho em questão.

A Curadoria Urbana tem como objetivo iniciar o processo de análise do recorte urbano, e traz os dois primeiros passos da metodologia de análise definida no capítulo anterior, a delimitação do recorte e o levantamento da área.

Em síntese, o presente trabalho tem como intenção iniciar a investigação das relações entre a Praça General Osório e seu entorno edificado, para posterior desenvolvimento de projeto arquitetônico apoiado em sua atual situação.

2. BASES CONCEITUAIS O presente trabalho monográfico apresenta reflexões a respeito das interfaces entre edifícios de grande escala e contextos urbanos e seus impactos na cidade.

Nesse âmbito, busca-se compreender as relações de fronteira entre os edifícios e os espaços livres públicos (de coexistência), tomando como objeto de análise os elementos delimitadores de espaço. Este capítulo introduz as noções teóricas que fundamentam a pesquisa e compõem a base conceitual necessária para o desenvolvimento dos capítulos posteriores. Dessa forma, são apresentadas as noções de arquipélago, de “formal”, e de monumento.

2.1.

A NOÇÃO DE ARQUIPÉLAGO O conceito de arquipélago no estudo da arquitetura é utilizado pela primeira

vez pelo arquiteto e teórico alemão Oswald Mathias Ungers, em 1978, na realização do projeto teórico Berlin as a Green Archipelago. A partir de então, trabalhos como de Rem Koolhaas e de Pier Vittorio Aureli também passaram a utilizar o conceito, adaptando-o para suas realidades e seu tempo. A evolução do termo, bem como suas possíveis aproximações, serão investigadas a seguir.

2.1.1. O arquipélago de Ungers O conceito de arquipélago aparece pela primeira vez no projeto Berlin as a Green Archipelago, publicado pela Universidade Cornell em 1978, de autoria de Oswald Mathias Ungers, com contribuição de alguns universitários convidados (entre eles Rem Koolhaas). Para os autores, o maior problema de Berlim dos anos 70 era o decréscimo populacional devido à Guerra-Fria, que acarretou o esvaziamento de grandes áreas urbanas, transformando a cidade em um conjunto desconectado de enclaves. Assim, o grupo propôs a percepção da cidade como conjunto de ilhas afastadas entre si, cidades dentro da cidade 1, e então, Ungers desenvolveu a teoria

1

No projeto Berlin as a Green Archipelago, publicado em 1978, Ungers trata do conceito “cities within

the city”, aqui traduzido como cidades dentro da cidade. (UNGERS, O. M. The city in the city. Berlin: as a Green Archipelago. Berlim: Studioverlag für Architektur, 1978).

da cidade como arquipélago, que consiste em sintetizar o ambiente urbano em pontos de densidade urbana. Dessa forma, o arquiteto aceita a condição existente, não como resignação, mas justamente para reforçar a forma urbana, articulando os limites de cada ilha no arquipélago de artefatos de grande escala. Cada ínsula urbana conservaria sua identidade, mantendo a conexão com sua história, estrutura social e contexto ambiental. O núcleo do projeto, portanto, seria preservar a separação já existente entre os artefatos e fortalecê-los individualmente, para que assim se relacionem melhor com o meio e entre si. O conjunto urbano formaria uma federação das várias cidades miniatura com diferentes estruturas, desenvolvidas de maneira deliberadamente distinta.

FIGURA 1 - MAPA DE BERLIM E AS ILHAS URBANAS

FONTE: UNGERS 2 (1978)

. Essa postura em relação ao ambiente urbano é atribuída à estrutura contemporânea da sociedade, que, de acordo com o grupo, é desenvolvida como conjunto de individualidades, em demandas particulares, desejos e concepções. A superposição de ideias, conceitos, decisões e realidades atravessam os anos de

2

Disponível em < https://monoskop.org/File:Ungers_et_al_1978_Cities_within_the_City.pdf > Acesso

em: 10 mar. 2020.

existência da urbanização. Assim, um mapa urbano atual é um palimpsesto de eventos no qual os traços da história permanecem evidentes, não se tratando de uma imagem estática, mas de uma colagem dinâmica de fragmentos. Essa abordagem de Ungers do projeto urbano como pluralidade de cidades foi a primeira teoria que entendia o ambiente urbano como núcleos urbanizados articulados no espaço aberto, em vez de compreender a cidade como uma estrutura única.

Pier Vittorio Aureli, arquiteto e teórico italiano, trata em seu livro The Possibility of an Absolute Architecture (2011) da cidade como arquipélago, analisando projetos e trabalhos de arquitetos que considera essenciais acerca do tema. A publicação traz o conceito de “formal” 3, que segundo o autor ultrapassa as barreiras da dicotomia forma/conteúdo, sendo a aplicação de critérios à forma. A tensão inerente ao conceito de forma existe devido à subjetividade da unidade, que é reforçada pela sua finitude individual. Assim, uma forma existe a partir do momento em que representa a tensão entre a parte interior e a exterior. Dessa maneira, “formal” é definido como a experiência do limite, a interface interior versus exterior. A parte interior remete à posição ocupada pelo sujeito das ações, enquanto a exterior se relaciona com a situação existente, o contexto. Ação versus situação, esses são os polos que materializam o “formal”. Assim, “formal” é a materialização da decisão sobre o modo que o interior se relaciona com o exterior, essencialmente representando um gesto de determinação ou delimitação espacial. Como a ideia de “formal” é definida a partir de limites em vez de autossuficiência, ela é fundamentalmente relacional. Sua finitude e singularidade dependem, necessariamente, da existência do outro. Portanto, o “formal” é uma verdadeira expressão política, tendo em vista que evidencia o combativo espaço da confrontação. Tendo isso em vista, Aureli (2011) também define o conceito de arquipélago, como grupo de ilhas localizado em uma porção de mar que simultaneamente as une e as divide. Entretanto, sua união não se dá somente por proximidade – a formação arquipélago pressupõe que suas partes, mesmo absolutamente separadas, são orientadas por um centro comum. Esse centro demarca o confronto entre as ilhas e garante que se mantenham separadas, prevenindo que se unam em uma única grande massa. No ambiente urbano, o

3

No livro The Possibility of an Absolute Architecture, publicado em 2011, Aureli traz o conceito de

“formal”, que foi mantido como o termo original. (AURELI, Pier Vittorio. The possibility of an absolute architecture. Cambridge: MIT press, 2011, p. 30).

arquipélago evidencia os limites das ilhas, os “formais”, enquanto provoca a experiência confrontante da cidade.

De acordo com Aureli (2011), um arquiteto que sempre articulou habilidosamente os “formais” em seus projetos foi Mies van der Rohe. Diferentemente de outros contemporâneos como Le Corbusier e Frank Lloyd Wright, Mies nunca propôs planos urbanísticos – sempre se manteve nos limites dos artefatos arquitetônicos. A sua produção arquitetônica não conota esperança nem celebração como sugeria o espírito da época, mas permanece simples e ortogonal no tecido urbano. Ele acreditava que a arquitetura possuía o objetivo de emoldurar o espaço, e assim materializou essa percepção em vários projetos urbanos através da utilização do plinto (base quadrangular; sóculo; pedestal) – sendo que praticamente todas as obras “miesianas” o apresentam. O elemento caracteriza-se pela auto delimitação, colocando em evidência o terreno e o transformando no limite da arquitetura que ele contém. Diferentemente de muros, “formais” como o plinto, além de emoldurar os limites, recuperam, de maneira sutil, as possibilidades simbólicas de confronto presentes na cidade moderna. Assim, a natureza industrial isotrópica do envelope do edifício contrasta com a sutileza da base em que ele pousa, como pode ser evidenciado abaixo no Seagram Building (1954 – 1958), em Nova Iorque.

FIGURA 2 - PLINTO DO SEAGRAM BUILDING

FONTE: PARE 4 (2020)

4

Disponível em: <https://archeyes.com/seagram-building-new-york-mies-van-der-rohe/> Acesso em:

05 mai. 2020.

FIGURA 3 - SEAGRAM BUILDING

FONTE: STOLLER 5 (2020)

Ademais, a maneira que o plinto reorganiza a conexão entre o edifício e o terreno afeta não somente a percepção do usuário sobre o que está acima da base elevada, mas oferece outra experiência da cidade além dos limites desse elemento.

Ao observar a paisagem de cima do plinto, por um momento o passante não se identifica com os fluxos da cidade, os observando de fora. A intervenção abre uma fenda no tecido urbano – mesmo quando este está completamente dominado pelos vetores da urbanização. Como sugere Ungers 6, as forças urbanas mais disruptivas são usadas como ponto de partida projetual. Assim, pode-se afirmar que Mies, através dos limites arquitetônicos, reinventa o espaço urbano como um arquipélago de artefatos finitos. Essa ênfase nas separações transforma edifícios como o Seagram Building em manifestações intensas desses “formais” urbanos. Portanto, essa insistência de moldar o tecido urbano conforma uma arquitetura que evidencia as potencialidades do contexto.

5

Disponível em: <https://archeyes.com/seagram-building-new-york-mies-van-der-rohe/> Acesso em:

05 mai. 2020.

6

Pier Vittorio Aureli afirma no livro The Possibility of na Absolute Architecture (p. 196) que tal

aproximação à cidade usa as condições urbanas mais críticas como bases projetuais.

Aureli (2011) analisa em seu livro o projeto Berlin as a Green Archipelago (1978) de Ungers, e, para o autor, essa abordagem urbana de uma cidade como um composto de pequenas cidades foi utilizada como a maior diretriz de projeto na carreira do alemão. Um tema emergente no trabalho de Ungers e, posteriormente, nos primeiros projetos de Rem Koolhaas, é o princípio de transformar os esforços que fragmentam a cidade em forma arquitetônica, que faz interface com a dimensão pública do ambiente urbano. No projeto em questão, Ungers articulou os limites e a finitude da forma arquitetônica – trabalhando assim com o “formal” – com objetivo de gerar núcleos de urbanidade no tecido urbano, recuperando os traços definidores da cidade como sua dimensão coletiva e natureza dialética. O limite do arquipélago, a linha que separa as ilhas da água é crucial. Para o arquipélago, o contorno garante que quanto mais claramente definidas certas partes da cidade forem, mais as outras partes são poupadas de definição, e vice-versa. Para Ungers, enquanto as ilhas devem ser consolidadas e apresentar alta densidade, as áreas entre elas devem permanecer informais, para que a população produza suas próprias relações com o espaço. O arquiteto descreveu essa dualidade arquitetura e cidade como “coincidentia oppositorium” 7, termo inventado pelo teólogo alemão Nicholas of Cusa, que significa “coincidência de partes opostas que formam uma unidade crítica”.

Um exemplo que ilustra essa dualidade entre espaços consolidados e porções urbanas em mutação é o mapa de Roma Nuova Pianta di Roma produzido por Giovanni Battista Nolli, em 1748. Como explica Aureli (2011), o cartógrafo se dedicava à cartografia cadastral, e foi responsável pelo primeiro esforço afim de conectar a forma da região com suas estatísticas territoriais. A Nuova Pianta di Roma foi a primeira pesquisa rigorosa acerca do território da cidade, e consistia em doze grandes folhas na escala 1:3000. O documento é caracterizado por apresentar, através da técnica de figura-fundo, as áreas de uso ou acesso comum diferenciadas do resto do espaço construído. “O mapa feito por Nolli na metade do século XVIII revela as conexões sensíveis e complexas entre os espaços públicos e privados de Roma” (VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR, 2003, p. 42). As igrejas, palácios e espaços abertos ao público são representados como espaço cavado no terreno, em branco, enquanto o resto da massa construída, formada principalmente pelo tecido residencial 7

Ver HOPKINS, Jasper. A concise introduction to the philosophy of Nicholas of Cusa. Minnesota:

Minnesota Press, 1978.

da cidade, é representada por uma superfície hachurada em preto. Assim, branco representa as partes mais consolidadas da cidade, distribuídas como ilhas na malha urbana, enquanto o preto caracteriza as porções mais passíveis de mudanças.

Portanto, o conjunto de mapas de Nolli consiste em uma das primeiras tentativas de diferenciar as formas arquitetônicas que emolduram a cidade das massas urbanas em constante mudança.

FIGURA 4 - FRAGMENTO DE NUOVA PIANTA DI ROMA (1748)

FONTE: NOLLI8

Assim, para Aureli (2011), analogamente ao mapa de Nolli, a proposta de Ungers deliberadamente aceita e torna visível efeitos urbanos como a fragmentação da cidade, o anonimato da arquitetura e a instabilidade programática. A aceitação dessa separação não provoca a “desurbanização”, mas reforça a forma urbana, articulando os limites de cada ilha nesse arquipélago de artefatos de larga escala.

Assim, através da metodologia projetual que considera a cidade como arquipélago, forma não se trata mais da imposição de uma figura em particular no tecido urbano. A partir de Ungers, é entendida como possível associação entre cenários existentes e paradigmas urbanos. Dessa maneira, o ambiente urbano não constitui uma imagem particular da cidade, mas a possibilidade de formar momentos urbanos com base em exemplos arquitetônicos. Por fim, a cidade dentro da cidade não é somente a literal encenação da forma urbana perdida entre os limites de artefatos arquitetônicos, mas é, principalmente, a possibilidade de considerar forma arquitetônica como porta de entrada para o projeto da cidade.

8

Disponível em: <https://www.alamy.com/stock-photo-giovanni-battista-nolli>. Acesso em: 18 de mai.

2020.

2.1.2. O arquipélago de Koolhaas Ungers e Koolhaas concordam que o potencial da cidade é gerado pelas forças urbanas mais críticas. Para Aureli (2011), o conceito de Ungers de arquipélago como cidade feita de partes radicalmente justapostas no mesmo espaço foi a influência primária para o trabalho de Rem Koolhaas. Em Delirious New York (1994), Koolhaas define três axiomas para seu arquipélago urbano: o grid, a lobotomia (“lobotomy”) e a cisão (“schism”).

O grid é o agente neutralizador que estrutura a cidade, equalizando as diferenças urbanas em uma teia isotrópica. Ele representa o mar na metáfora do arquipélago, e organiza os ritmos individuais das ilhas. Na prática o grid consiste na infraestrutura urbana, que mantém os elementos arquitetônicos unidos, porém individualizados: “A essência da metrópole é que ela se dividiu em lotes iguais, e cada lote é uma provocação. (...) Seu milagre e sua maravilha infinita é que, por meio da subdivisão, ela se torna um catálogo de diferentes paranoias, no sentido de sistemas fechados. (...) Se alguém se acomoda no lote, ele se torna um sistema – um tipo de sanidade coletiva feita de insanidades individuais”” (KOOLHAAS, 2013, p. 170).

A lobotomia refere-se à eliminação da relação interior/exterior entre arquitetura e urbanização. Partindo do preceito da arquitetura ocidental de que uma “fachada honesta” dialoga com as atividades que abriga, após certa massa construtiva o ato torna-se matematicamente impossível: os volumes contidos aumentam elevados ao cubo, a área de fachada é elevada ao quadrado. Assim, paulatinamente menos superfície representa mais atividades no interior, e o arquiteto liberta-se da determinação formal pelo programa. Dessa forma, o arquiteto sublinha que é a deliberada discrepância entre interior e exterior que caracteriza a metrópole: “O exterior e o interior de tais estruturas – os arranhas céus – pertencem a dois mundos arquitetônicos diferentes. O primeiro, o exterior, está preocupado exclusivamente com a aparência do edifício como objeto escultórico mais ou menos sereno. Quanto ao segundo, o interior, está em permanente estado fluido, ocupando, com seus constantes programas e iconografias, a atenção dos voláteis cidadãos metropolitanos” (KOOLHAAS, 1977, p. 324).

Por fim, a cisão, que reduz cada ilha a um elemento autossuficiente e que pode adotar qualquer programa sem alterar a dinâmica da urbanização, reforçando a

distinção entre o interior e exterior do edifício. Essa cisão também se reflete nas cidades dentro da cidade, nos edifícios. Os pavimentos verticais de um edifício, por exemplo, negam sua interdependência, sendo conectados apenas verticalmente pelo elevador. Assim, a cisão é estratégia essencial para o desenvolvimento cultural do arranha-céu, pois ela aceita a instabilidade programática, enquanto a neutraliza, separando por andares de máxima especificidade.

De acordo com Koolhaas (1994), a quadra representa a ilha e constitui a unidade máxima possível para a arquitetura, de sorte que o tamanho de uma massa arquitetônica única não pode ultrapassar essa medida. A ilhas são diferentes entre si e se desdobram em variações infinitas dentro de seus limites, para que assim não afetem a harmonia uníssona do grid. Cada quadra oferece uma realidade alternativa, com o ímpeto de usurpar a verdadeira vida exterior ao edifício. Assim, esses grandes edifícios correm o risco de se tornar enclaves isolados em si mesmos. Esse risco, para o autor, deve ser tratado como potencial: a cidade não constitui mais uma unidade homogênea, mas um mosaico de fragmentos urbanos complementares. Portanto, cada quadra torna-se uma ilha, fundamentalmente finita, e a cidade transforma-se em um arquipélago de quadras dispostas no mar, representado pelo grid.

No último capítulo do livro Delirious New York (1994), Rem Koolhaas traz o projeto teórico The City of the Captive Globe 9 (1972), que ilustra suas ideias acerca do conceito de arquipélago. Segundo o autor, “A Cidade do Globo Cativo” é composta por “Manias” – que são ilhas urbanas (quadras) – que alimentam o globo mantido no centro do grid, que por sua vez representa o centro do arquipélago – a urbanização.

Ele sublinha que o grid representa o arquipélago de cidades dentro de cidades, e que quanto mais independentes são as quadras, mais o sistema do arquipélago é reforçado: “a força da estrutura urbanística se revela ao admitir com boa índole a diversidade” (MONEO, 2008, p. 294). Seus edifícios são encorajados a crescer infinitamente na direção vertical, acentuando os sintomas de lobotomia. Desse modo, o exemplo de Koolhaas sugere que as “Manias”, mesmo que independentes através do princípio da cisão, se desenvolvem organizadas pelo grid neutralizador, que possui como centro o globo. A retroalimentação entre o globo e as quadras do grid é o que caracteriza o motor da cidade. Portanto, o projeto The City of the Captive Globe 9

Ver KOOLHAAS, Rem. Delirious New York: a retroactive manifesto for Manhattan. EUA: The

Monacelli Press, 1994.

caracteriza-se como um arquipélago de monolitos unidos pelo globo que celebra a instabilidade metropolitana.

FIGURA 5 - THE CITY OF THE CAPTIVE GLOBE (1972)

FONTE: KOOLHAAS (1994)

Aureli (2011) afirma que o arquipélago de Koolhaas reforça a heterogeneidade urbana através da completa cisão entre a imagem da arquitetura – que pode variar infinitamente – e o funcionamento da ilha, a qual tem seu ritmo ditado pelo grid e pelo elevador. Quanto mais diferentes forem os valores celebrados por cada quadra, mais unido o grid permanece – e mais interessante o ambiente urbano fica. Assim, Manhattan apresenta-se como um arquipélago que possui sua maior característica – a densidade – neutralizada pelo grid, enquanto dialeticamente reforça o seu oposto – a congestão urbana. Para o autor, os edifícios registrados na análise de Manhattan de Koolhaas não se separam da infraestrutura exterior, apenas se segregam. Eles possuem acesso restrito, entretanto têm funcionamento dependente do grid, em questões de abastecimento, por exemplo. Consequentemente, os enclaves podem ser entendidos como consequência direta da cultura da acumulação, pois o edifício enclave conecta-se ao território que quer explorar através da infraestrutura, entretanto o segrega no momento de dividir as benfeitorias. Sendo assim, a cidade arquipélago na leitura de Koolhaas celebra e exagera o pluralismo e a diversidade dentro do espaço restrito do enclave urbano contemporâneo.

2.1.3. Arquitetura para o arquipélago

Acerca da arquitetura que encarna a noção de arquipélago, Aureli (2011) sublinha que a interface com o contexto só pode acontecer quando se projeta com as condições preexistentes, não simplesmente idealizando algo novo. Assim, através da “claridade excepcional do gesto compositivo”, cada cidade reconhece e representa seus aspectos típicos. Portanto, a arquitetura do arquipélago deve ser absoluta (no sentido de separada, delimitada, finita), definida e que clarifique os limites que estabelecidos na e pela cidade. A arquitetura absoluta reconhece se esses limites são produto (e camuflagem) de exploração econômica, ou de um ímpeto ideológico de se separar do resto do espaço comum da cidade. Como forma finita, ela é mais que uma “tautológica representação literal”: a arquitetura absoluta é um exemplar de uma cidade não mais ditada pelo impulso da expansão imobiliária, mas pelas ideias positivas acerca de limites e confrontos. Nela, o “formal” se torna a essência política da cidade. A arquitetura se transforma na condição preexistente para a urbanização, um projeto que reconstrói o formal e o senso político da cidade. Em vez da arquitetura ser um ícone de diversidade em si mesma, uma arquitetura absoluta deve recusar esse ímpeto e aceitar a possibilidade de ser um instrumento de delimitação, de confronto, e, portanto, de ação política. Como afirmou Denise Scott Brown, “a arquitetura deveria ser socialmente menos coercitiva e esteticamente mais vital do que os edifícios bombásticos e empenhados de nosso passado recente” (SCOTT BROWN, 2003, p. 20).

A vida urbana poderia ser resumida em um único gesto: ultrapassar barreiras, um contínuo movimento em espaços definidos por planos, afirma Aureli (2011). Nesse sentido, ele sugere que, em vez de imaginar a cidade como reflexo de uma sociedade integrada e unida, se reconheça os “formais” na arquitetura, para que assim sejam explorados e manifestem as possibilidades urbanas. Arquitetos não detêm o controle da urbanização, de como as atividades mudam ou de como os fluxos variam. Assim, o único programa de necessidades constante do meio urbano são as fachadas, que em sua inércia devem ser confiadas à arquitetura. Elas são a manifestação clara de um espaço privado, que delimita o espaço urbano comum. Desse modo, arquitetura é um instrumento prático e teórico que, ao definir limites individuais, delimita também as áreas de coexistência da cidade. Portanto, a arquitetura deve possuir como único

objetivo a investigação severa dos limites de sua finitude – através dos quais define o ambiente urbano, articulando os limites dos artefatos arquitetônicos, que formam o arquipélago, com o contexto, que é o mar. Assim, a possibilidade de esculpir a cidade pode ser vista até as forças mais disruptivas, quando agem através de “formais” bem articulados.

Os artefatos arquitetônicos de grande escala se inserem no tecido urbano, e através de seus “formais” possuem diferentes abordagens relacionadas à escala – caracterizando exemplos de arquitetura para o arquipélago ou não. O conceito de monumento será tratado a seguir a fim de esclarecer no que constituem essas formas arquitetônicas de grande escala inseridas no meio urbano.

2.2.

A NOÇÃO DE MONUMENTO

Monumento é uma palavra que possui significado flutuante e muitas vezes ultrapassa a arquitetura, podendo descrever estruturas que não são edifícios, como esculturas e portais. No dicionário, aparecem três definições relacionadas ao termo: 1 Obra artística, de importância arquitetônica e escultural, erigida para homenagear alguém ilustre ou algum fato histórico ou acontecimento notável; 2 Mausoléu em homenagem póstuma a vítimas de guerras, atentados, catástrofes ou qualquer acontecimento que resultou em muitas mortes; 3 Qualquer edifício ou construção grandiosa, digna de admiração por sua importância histórica, por sua majestade ou tamanho (MICHAELIS 10, 2020).

Apesar da abrangência etimológica do termo, no âmbito arquitetônico a palavra “monumento” apresenta definição específica. O subcapítulo busca esclarecê-la, ao passo que a relaciona a diferentes contextos e épocas.

10

Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br>. Acesso em 27 jul. 2020.

2.2.1. O monumento de Boullée O tratado Architecture, Essai sur l’Art 11 (1794) de autoria de Étienne-Louis Boullée foi o primeiro estudo teórico arquitetônico a tratar exclusivamente de edifícios públicos – em contraponto à maioria dos tratados da época que dissertavam sobre a arquitetura residencial. Os monumentos projetados por ele possuíam linguagem arquitetônica baseada na composição de formas geométricas simples, tentando assim não traduzir a forma do edifício como comemorativa, mas a vida que haverá dentro dele. “Ele (Boullée) via a arquitetura como símbolo no espaço, antes de ser forma no espaço” (VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR, 2003, p. 200). Mesmo quando o projeto era de fato dedicado a alguém, como o Cenotáfio de Newton, fica evidente pela perfeição formal que a abordagem do arquiteto priorizava o cientista, ou da ideia de ciência, e não o indivíduo.

Os monumentos de Boullée materializam a sua teoria arquitetônica e simultaneamente respondem a contextos específicos e condições técnicas. Tendo em vista sua abordagem projetual, é possível de se afirmar que o arquiteto francês compartilha com Giovanni Battista Nolli a percepção de que a cidade é formada por espaços arquitetônicos finitos delimitadores do tecido urbano. Assim como na Nuova Pianta di Roma (1748), os projetos de Boullée articulam-se entre espaços comuns e espaços em alteração incessante. Dessa forma, a produção monumental do arquiteto pode ser interpretada como um manifesto radical de arquitetura autônoma, não pelo fato de as formas serem abstratas, mas pela transformação da arquitetura em formas finitas, específicas e excepcionais.

11

Disponível em < http://designspeculum.com/Historyweb/boulleetreatise.pdf > Acesso em 18 de mai.

2020.

FIGURA 6 - CENOTÁFIO DE NEWTON

FONTE: Archdaily12 (2020)

Pier Vittorio Aureli descreve em seu livro The Possibility of na Absolute Architecture (2011) que a definição de monumento, até o século XVIII, denotava edifício comemorativo, e que remetia principalmente a feitos históricos. Foi apenas com a publicação do tratado Architecture, Essai sur l’Art em 1794, que esse conceito começou a se modificar. A partir do tratado, monumento passa a definir qualquer edifício de acesso aberto ao público que receba algum serviço coletivo como teatro, biblioteca ou museu. Assim, a nova definição de Boullée distingue espaços comuns de privados, comemorando não mais eventos históricos, mas o uso desses edifícios por indivíduos autônomos e livres. Essa definição é coerente com o momento pós revolução francesa que a França vivia, no qual celebrava, acima de tudo, a liberdade individual. Por consequência, uma biblioteca é um monumento à ciência e um museu um templo à cultura – e assim, pode-se afirmar que o arranha-céu é um monumento que celebra a urbanização.

2.2.2. O arranha-céu como monumento Em consequência à definição de monumento proposta por Boullée, é possível interpretar que na cidade contemporânea os arranha-céus são monumentos em

12

Disponível em <https://www.archdaily.com.br/br/01-158245/arquitetura-ensaio-sobre-a-arte-slash-

etienne-louis-boullee?ad_medium=gallery> Acesso em 18 de mai. 2020.

celebração à urbanização. Rem Koolhaas no livro Delirious New York (1994) analisa, através da cidade de Nova Iorque, o ambiente urbano e seus artefatos arquitetônicos.

O capítulo The Double Life of Utopia: The Skyscraper 13 é dedicado a compreender o surgimento e a evolução dos arranha-céus (skyscrapers). Segundo o capítulo, o elevador revolucionou a escala do edifício, já que o transporte vertical reproduziu o lote em dezenas de vezes, cada nível sendo tratado como um terreno virgem, independente dos outros pavimentos.

Rem Koolhaas (1994) sublinha que, quando um edifício ultrapassa certa massa crítica, ele é – ou cria a expectativa de ser – um monumento, já que um artefato de tal dimensão não passa desapercebido no ambiente urbano. Dessa forma, a definição de monumento se desvincula da ideia de homenagem, e passa a estar relacionada principalmente à escala.

O elevador surge como “profecia autorrealizável” 14: quanto mais ele ascende, mais longe o usuário fica das circunstâncias indesejáveis que ele deixou na cidade.

Portanto, arranha-céu torna-se uma estante de privacidades individuais, com o sucesso medido pelo grau de ignorância sobre a coexistência das partes. Aqui inserese o conceito de cisão apresentado no capítulo anterior, que afirma a importância da independência entre os invólucros de densidade urbana. O arranha-céu mimetiza o meio urbano enquanto recebe individualidades múltiplas, sendo uma cidade dentro da cidade. Na perspectiva dos centros urbanos, essa aglomeração de programas significa que um lote não é mais caracterizado pelo seu uso. Ele passa a acomodar uma combinação imprevisível de atividades, e assim os edifícios altos são respostas para a cidade mutável e abrangente, pois garantem instabilidade programática perpétua: “O arranha céu é um dos vários tipos de edifício do século XX verdadeiramente revolucionário, que oferece toda uma série de transformações fundamentais, técnicas e psicológicas. Eles permitiram a vida metropolitana e diferenciaram este século de todos os que precederam. A indeterminação do arranha-céu sugere que na metrópole funções específicas não correspondam a lugares precisos” (KOOLHAAS, 1977, p. 320).

13

Ver KOOLHAAS, Rem. Delirious New York: a retroactive manifesto for Manhattan. EUA: The

Monacelli Press, 1994, pp.81-160.

14

“O elevador é a profecia autorrealizável derradeira: quanto mais ele sobe, mais ele deixa

circunstâncias indesejáveis para trás” (KOOLHAAS, 1994, p. 82).

Se instabilidade programática caracteriza as cidades atuais, então o edifício híbrido – múltiplo em funções – é a materialização espacial dessa característica. Para Koolhaas (1994), o edifício que abriga diversas atividades é a demonstração mais madura da existência de diversos programas em um único terreno, apenas conectados pelas circulações verticais, pelos pilares e pela envoltória. Para ele, “o programa é uma categoria que propicia a construção de edifícios imprecisos e abertos” (MONEO, 2008, p. 288). Sendo assim, seus pavimentos refletem a pluralidade do ambiente urbano. Como visto anteriormente, Oswald Mathias Ungers foi o responsável por apresentar o conceito de cidade vertical para Rem Koolhaas.

Segundo Aureli (2011), Ungers afirma em seu artigo Planning Criteria publicado em 1976, que um dos aspectos fundamentais para edifícios aspirantes em caracterizarse como cidades dentro de cidades (cities within cities) é possuir forma favorável em relação ao desenvolvimento e à mudança. Tendo em vista a atitude de Ungers de visualizar a cidade como arquipélago de pequenos núcleos urbanos, o edifício se caracteriza como uma das ilhas, e deve possuir “formal” favorável para criar interfaces urbanas positivas. Dessa forma, um tecido urbano adensado por edifícios altos pode também ser entendido como um arquipélago. Assim sendo, o conceito de cidade vertical consiste na ideia de ilhas de intensidade coexistindo na infinitude da metrópole. Para Koolhaas (1994), essas composições deveriam replicar, em escala de miniatura, a forma urbana em que o edifício está inserido.

O hotel Sphinx (1975-1976) de autoria do OMA - Office for Metropolitan Architecture é um projeto teórico que, segundo Koolhaas (1994), é um grande representante da arquitetura de cidades dentro de cidades. O Sphinx abriga um hotel de luxo, habitações em massa, estação de metrô, restaurante, teatros, auditórios, clube, parquinho, salões de festa e salas de conferência. Ele ainda comporta no andar térreo e no mezanino continuações da Times Square – local em que o hotel está localizado. No topo há uma piscina, e embaixo dela a sala de mecanismos do edifício, na qual localiza-se o painel de controle para girar a ponta do prédio e assim mirar nos diferentes eventos que estão acontecendo em Nova Iorque. Ele consiste na manifestação arquitetônica de instabilidade programática per se. O Sphinx aceita a possibilidade de esculpir a cidade e o faz de maneira que fornece continuidade ao contexto em que está inserido. Enquanto monumento que busca se inserir no ambiente urbano da forma mais vantajosa para o contexto e para o edifício em si, ele se enquadra na definição de arquitetura para o arquipélago proposta por Aureli (2011).

FIGURA 7 - HOTEL SPHINX (1975 - 1976)

FONTE: KOOLHAAS (1994)

O arranha-céu acumulou significados ao longo de sua trajetória, sendo considerado desde símbolo do progresso tecnológico até “um universo em si mesmo” (KOOLHAAS, 1994, p. 82). Na virada do século, o artefato passa a indicar quebras repentinas no padrão homogêneo da vida rotineira, demarcando espacialmente avanços de uma nova cultura. Segundo Aureli (2013), esse novo ritmo das metrópoles ocorreu principalmente nos anos 1990 e 2000, durante quais grande parte da produção arquitetônica seguiu o ritmo da exuberância irracional do mercado imobiliário.

2.2.3. Automonumento Como visto anteriormente, Koolhaas desvincula o conceito de monumento da ideia de celebração, ao passo que o associa à escala. Para o autor, após de superar certa escala é impossível para um edifício não influenciar fortemente a cidade. Então,

muitas vezes, essa massa construída se caracteriza por monumental unicamente por sua grandeza, independentemente de simbolizar ou acomodar atividades que mereçam tal expressão. Grande parte dos edifícios são construídos sem a devida investigação arquitetônica, concebidos como unidades isoladas. Essa categoria de prédios, geralmente impulsionada pelo mercado imobiliário, não significa a busca por uma melhoria na interface urbana: apenas reafirma sua própria existência. Assim, o autor conclui que esses grandes edifícios isentos de interface urbana carregam o vazio e representam lacunas simbólicas, que propagam o fato de sua existência desproporcional e o descaramento de seu processo criativo. Assim surge o termo “automonumento” 15, que designa edifícios completamente desassociados do meio urbano, que celebram sua própria monumentalidade.

Tendo em vista os axiomas do arquipélago de Koolhaas (1997) citados anteriormente (grid, lobotomia e cisão), o automonumento só sobrevive se sustentado por eles. Ele necessita do grid para manter-se conectado à infraestrutura da cidade, mesmo que segregado. A lobotomia é essencial para que o edifício em questão mantenha simultaneamente duas demandas opostas: a de ser um monumento – o que demanda solidez e constância – e a de acomodar com o máximo de eficiência a mutabilidade da vida urbana – que é, por definição, de pequena escala. Por fim, a cisão garante a sua autossuficiência, que oferece aos usuários uma realidade paralela ao contexto. A avaliação do arquiteto é que a sociedade, em grande parte, busca a segregação. Assim, o automonumento isola o interior e o exterior, “poupando o mundo exterior das agonias das contínuas mudanças que ocorrem dentro dele. Ele esconde o dia a dia” (KOOLHAAS, 1997, p. 101). Dessa forma, o entendimento do ambiente urbano como pontos de densidade limitados por “formais” se torna fundamental à compreensão da cidade contemporânea.

No filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), dirigido por Stanley Kubrick, seres humanoides pré-históricos vivem normalmente até que são confrontados por um monolito: uma estrutura prismática escura, completamente fechada e lisa, que aparece sobre o território da tribo do dia para noite. O artefato causa estranhamento, pois não há nada na natureza com que os seres o possam relacionar. O objeto fica

15

“O monumento do século XX é o Automonumento, e a sua manifestação mais pura é o arranha-céu”

(KOOLHAAS, 1994, p. 100).

completamente descontextualizado no ambiente.

FIGURA 8 – FRAME DE 2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO (1968)

FONTE: KUBRICK (1968)

Assim, tal qual o Monolito de Kubrick, um automonumento implantado na cidade causa situações não favoráveis aos usuários, uma vez que, na tentativa de ser uma unidade autossuficiente, acaba se fechando para o meio urbano e negando possibilidades e potenciais relações urbanas. “A ideia de projeto ultrapassa o gesto construtivo e adquire significado próprio: um ato de decisão e julgamento da realidade que o objeto será inserido” (AURELI, 2011, p. 12). Ao ignorar a preexistência, essa categoria de edifícios cria pontos de isolamento no tecido da cidade, reservando, apenas para si, parte do tecido urbano.

Quando confrontado pelo questionamento de como seria uma arquitetura que encarna o arquipélago, Aureli (2011) afirma que o edifício automonumental não pode ser considerado uma parte válida da cidade. Isso acontece, pois, em grande parte, o que impulsiona a produção desses edifícios é somente o interesse de incorporadoras em vender no mercado imobiliário, e assim o que agrega valor ao prédio é o arquiteto famoso que o produziu, ou os valores de status que ele passa. Dessa maneira, esses empreendimentos normalmente não se consideram parte da cidade, mas estruturas fechadas e desprovidas de interface com o ambiente urbano, formando assim enclaves, ou seja, pontos de ruptura no tecido urbano. A Torre Agbar, construída em 2001 e localizada em Barcelona na Espanha, consiste em um desses exemplos.

Apesar do edifício ter sido projetado pelo famoso e premiado arquiteto Jean Nouvel,

na tentativa de constituir um símbolo de modernidade na capital catalã, a torre é, inclusive no andar térreo, completamente inacessível aos passantes, conformando assim um enclave no tecido da cidade.

Para Aureli (2011), a urbanização possui dois efeitos colaterais, sendo eles o enclave e o ponto de referência (landmark). Enclave é definido como espaço restrito que deixa o território urbano desigual. Ponto de referência corresponde à overdose de ideologia e iconografia. O automonumento pode configurar ambos, de sorte que não são excludentes – a Torre Agbar, por exemplo, se configura como ambos. Em decorrência de seu isolamento, o automonumento segrega, ao passo que impõe o seu conjunto de valores ao território.

FIGURA 9 - TORRE AGBAR (2001)

FONTE: ATELIERS JEAN NOUVEL 16

Por fim, automonumento pode ser entendido como o edifício de grande escala que, desprovido de comunicação benéfica com a cidade, configura nada além de sua autoafirmação no ambiente urbano. Segundo Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour em Aprendendo com Las Vegas (2003), os projetos que apenas evidenciam a forma a fim de criar um ícone na paisagem, rejeitam a cidade no processo:

16

Disponível em <http://www.jeannouvel.com/en/projects/tour-agbar/> Acesso em 18 mai. 2020.

“O projeto total é o oposto da cidade incremental que cresce por decisão de muitos: o projeto total concebe um papel messiânico para o arquiteto, que deverá corrigir a confusão do espalhamento urbano; ele promove uma cidade dominada pela arquitetura pura e mantida por meio de ‘exame de projetos’ e sustenta a arquitetura atual da renovação urbana e das comissões de belas artes” (VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR, 2003, p. 186).

Portanto, esses edifícios que se autoproclamam monumentos não geram possibilidades favoráveis ao tecido urbano nem às vidas que ali vivem, e assim acabam interrompendo a espacialização quando acumulados na cidade.

FIGURA 6 - I AM A MONUMENT

FONTE: VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR (2003)

2.2.4. Insularidade monumental

Tendo em vista as noções de arquipélago e automonumento apresentadas anteriormente, pode-se afirmar que ambas são incompatíveis. Em resumo, enquanto a ideia de arquipélago se apresenta como a cidade sintetizada em pontos finitos de densidade urbana bem articulados entre si através de interfaces favoráveis, o automonumento designa um grande edifício autossuficiente desprovido de conexão com o tecido urbano (a não ser pela infraestrutura). Dessa forma, o ambiente urbano adensado pode ser considerado um arquipélago de artefatos de grande escala, de sorte que é provido de insularidade monumental – ou seja, grandes formas arquitetônicas limitadas.

Ao analisar Curitiba é possível identificar dentre os artefatos arquitetônicos soluções insatisfatórias – automonumentos que configuram enclaves ou pontos de referências simplistas – e soluções satisfatórias, que encarnam o arquipélago, reforçando as linhas do tecido urbano. Assim, a paisagem urbana resulta em um arquipélago justaposto de insularidades, testemunhando o individualismo simbólico dessas “representações heroicas de criações únicas” (SCOTT BROWN, 2003, p. 186).

Isto é, nota-se um tecido urbano que possui trechos conformados por possibilidades espaciais exploradas arquitetonicamente, e porções claustrofóbicas confinadas em si mesmas. Portanto, propõe-se no capítulo a seguir a investigação de bons exemplos, manifestados em atitudes e ferramentas arquitetônicas, que aproximem edifícios autônomos de posturas insulares.

3. ANÁLISE DIRIGIDA Neste capítulo serão analisados exemplos práticos para fundamentação de estratégias projetuais que trabalhem habilidosamente com os “formais”, enquanto perspectivas de leitura do território para a inserção urbana de um edifício. Os projetos apresentam também ferramentas e estratégias de projeto de como abordar a escala construtiva monumental, sem deixar a escala humana em segundo plano. Os casos a serem estudados configuram-se como o que Aureli (2011) define como “arquitetura para o arquipélago”, de sorte que reconhecem as preexistências da cidade e reforçam os traços positivos do tecido urbano – ao passo que trabalham os “formais”. Essa arquitetura absoluta 17 aceita a possibilidade de ser um instrumento de delimitação, um agente de ação política. Artefatos arquitetônicos que potencializam os limites urbanos e os reconhecem como fortalecedores de interfaces positivas com a cidade.

O Centro Pompidou em Paris – projetado por Renzo Piano e Richard Rogers – enquanto implantação urbana, é um exemplo de generosidade para com a cidade, pois cede grande parte do terreno para inserção de uma praça, em frente ao centro cultural. A praça é tão importante para o tecido urbano quanto o centro cultural em si, sendo que se configura como ponto de encontro parisiense. Já a Praça das Artes, obra do escritório Brasil Arquitetura, não trata os espaços abertos ao público e os edifícios como iguais. Tem como ponto de partida do projeto a dinâmica urbana da praça, priorizando assim os espaços abertos e utilizando a arquitetura para emoldurálos. Por fim, a investigação de um edifício misto em Tóquio – projetado pelo escritório SANAA – busca esclarecer as estratégias projetuais que resultaram em uma implantação urbana delicada e natural.

17

Aureli define a arquitetura que encarna o arquipélago como “arquitetura absoluta”: “Uma arquitetura

absoluta é aquela definida pelos limites que definem a cidade e os reforça.” (AURELI, 2011, p. 45).

3.1.

ANTIMONUMENTALISMO DE PIANO E ROGERS: CENTRO POMPIDOU

Segundo publicação 18 do centro cultural, em 1969 o presidente da França Georges Pompidou decidiu que o terreno vago, chamado Plateau Beaubourg – localizado no quarto arrondissement em Paris – deveria ser ocupado pela construção de um edifício multidisciplinar de cunho cultural. A escolha do terreno aconteceu devido à sua localização privilegiada, a menos de um quilômetro da igreja Notre Dame e do Museu do Louvre. Assim, com o intuito de revitalizar o centro histórico de Paris, foi lançado o primeiro concurso arquitetônico aberto para profissionais do mundo todo na França, pelo qual em 1971 Renzo Piano e Richard Rogers foram premiados. A análise desse projeto é relevante pois a proposta prioriza a implantação do novo complexo cultural na cidade. Para tanto, optou-se por delimitar o terreno por uma extensa praça, a fim de integrar o novo prédio ao contexto preexistente. A praça e o edifício em si são igualmente essenciais à proposta.

O terreno localiza-se na área conhecida como Le Marais, ocupada desde a Idade Média, durante a qual era pantanosa e utilizada para plantações 19. Pelo fato de o local ter sido ocupado há muito tempo, seu tecido urbano é extremamente denso, com ruas estreitas e edifícios de baixa estatura. Dessa forma, o Plateau Beaubourg consistia na última porção de terra vaga no contexto. Ele possui herança histórica forte para os habitantes de Paris, pois foi palco dos protestos de estudantes em 1968.

Figura 7 - PLATEAU BEAUBOURG

FONTE: CENTRE POMPIDOU (1969)

18 19

Disponível em <https://www.centrepompidou.fr/> Acesso 20 mar. 2020.

Ver breve histórico da região Le Marais no portal Paris Atlas, disponível em: <paris-atlas-

historique.fr/36.html > Acesso em: 20 mar. 2020.

Diante de características preexistentes difíceis de abordar ao projetar um edifício de grande escala – tecido urbano consolidado, herança histórica, entorno de prédios de pequena escala – os arquitetos optaram por tratar o projeto como um “evento” 20, intrínseco à cidade. “A intenção não era de ele ser um monumento, mas um evento. Não é um edifício, mas uma cidade, na qual você encontra tudo – almoço, obras de arte incríveis, ótima música” (PIANO, 2017). A dupla concorda que o terreno possuía muitas complexidades, mas hoje afirma que “colocar essa nave espacial no meio de Paris foi um pouco de loucura, mas um gesto honesto” (PIANO, 2017).

Figura 8 - SITUAÇÃO DO CENTRO POMPIDOU

FONTE: ROGERS 21 (2017)

O Centro conta com 90.000 m2 de área, e reúne no andar térreo áreas para grandes públicos, como salas de cinema, salas para eventos, foyers, lojas, bilheterias, vestiários, bibliotecas, biblioteca multimídia e café – para dar continuidade aos serviços já existentes na rua. Nos pisos superiores, que possuem planta neutra, encontram-se várias salas de exposição, espaço para recreação infantil, café, banheiros, salas técnicas e administrativas. Por fim, no último pavimento encontram-

20

Em entrevista ao jornal “The Guardian”, em 08 de janeiro da 2017, Rogers e Piano esclareceram

algumas

intenções

projetuais

e

dificuldades

no

processo.

Disponível

em

<

https://www.theguardian.com/artanddesign/2017/jan/08/pompidou-centre-40-years-old-review-richardrogers-renzo-piano> Acesso em: 20 mar. 2020.

21

Disponível

em

<https://www.dezeen.com/2017/01/31/renzo-piano-richard-rogers-photography-

centre-pompidou-paris-40th-anniversary/> Acesso em 23 mar. 2020.

se terraços e atividades destinadas a trazer vitalidade para o edifício no período noturno – restaurante e salas de cinema experimental.

Figura 9 - PLANTA NEUTRA DO CENTRO POMPIDOU

FONTE: GREAT BUILDINGS 22 (2012)

Um dos principais preceitos utilizados na concepção do centro cultural foi a “antimonumentalidade” 23, e dessa forma, procurou-se condensar a área proposta em metade da área do lote – liberando o resto para a implantação de uma grande praça.

A parte do Plateau deixada livre foi idealizada como praça cívica, que poderia ser apropriada para usos comunitários tais quais feiras, exposições, performances e manifestações artísticas em geral. A praça se integraria naturalmente ao entorno, já que grande parte das ruas do Marais são exclusivas para trânsito de pedestres, a fim de permitir o livre trânsito de pessoas nos estabelecimentos comerciais e gastronômicos. Assim, a praça funciona como área de descompressão na região, recebendo e organizando fluxos diversos. A fim de evitar a criação de um monumento que se autoproclame, Rogers 24 (2013) afirma que elementos como ordem, substância e escala devem ser derivados do processo projetual, para que assim cada elemento arquitetônico individualmente expresse-se em coesão com o todo. Como resultado, o artefato arquitetônico transforma-se na verdadeira expressão de seu propósito.

22

Disponível em <http://www.greatbuildings.com> Acesso em 23 mar. 2020.

23

O termo “anti-monumentalism” é utilizado por Richard Rogers ao descrever as iniciativas projetuais.

Disponível em <https://www.rsh-p.com/projects/centre-pompidou/> Acesso em 20 mar. 2020 24

Disponível em <https://www.dezeen.com/2013/07/26/richard-rogers-centre-pompidou-revolution-

1968/> Acesso em: 23 mar. 2020

Figura 10 - FACHADA REFERENTE À PRAÇA

FONTE: ROGERS 25 (2012) Figura 11 – PRAÇA EM FRENTE AO CENTRO POMPIDOU

FONTE: ROGERS 26 (2017)

Outro conceito essencial ao projeto foi a noção de flexibilidade. As plantas dos pavimentos são neutras – a fim de abrigar diversas exposições de mídias distintas.

Para tanto, Piano e Rogers deixam toda a infraestrutura e circulações verticais para fora do edifício, criando assim uma armadura funcional. “O design expressa a crença de que edifícios devem ser aptos a mudar para permitir às pessoas ajustar o ambiente

25 26

Disponível em <https://www.rsh-p.com/projects/centre-pompidou/> Acesso em 23 mar. 2020.

Disponível

em

<https://www.dezeen.com/2017/01/31/renzo-piano-richard-rogers-photography-

centre-pompidou-paris-40th-anniversary/> Acesso em 23 mar. 2020.

conforme suas necessidades” (ROGERS 27, 2013). Essa noção é estendida a todo o projeto, sendo que o edifício é concebido como uma série de espaços uniformes apoiados externamente por uma moldura estrutural metálica, sendo flexível em planta, corte ou elevação. A equipe entendia que, por se tratar de um edifício híbrido, seu programa de necessidades é bastante instável. Assim como Koolhaas não consideravam possível prever todos os possíveis usos de um artefato de grande escala, e assim priorizaram flexibilizar ao máximo o projeto, para que assim se adequasse às necessidades do futuro: “A única coisa que sabíamos sobre aquele período era que tudo iria mudar, se havia uma constante, era mudança. Então propusemos fazer grandes pisos, que correspondem ao tamanho de dois campos de futebol sem interrupções verticais, com a estrutura na parte de fora, a infraestrutura mecânica na parte de fora, e o movimento vertical de pessoas também na parte externa e, assim, teoricamente você pode fazer o que quiser com os pisos” (ROGERS 28, 2013).

Figura 12 - CORTE DO PROJETO ENVIADO AO CONCURSO

. FONTE: ROGERS29 (2013)

27

Disponível em <https://www.dezeen.com/2013/07/26/richard-rogers-centre-pompidou-revolution-

1968/> Acesso em: 23 mar. 2020.

28

Em entrevista ao portal “Dezeen”, em 26 de julho da 2013, Richard Rogers sublinha algumas

intenções projetuais. Disponível em <https://www.dezeen.com/2013/07/26/richard-rogers-centrepompidou-revolution-1968/> Acesso em: 23 mar. 2020.

29

Disponível em <https://www.dezeen.com> Acesso em 23 mar. 2020.

Na investigação do processo projetual do Centro Pompidou destacam-se duas características: a priorização da implantação do edifício e o receio de criar um elemento arquitetônico que não passasse de um novo ícone forçado na paisagem.

Tendo em vista o conceito de arquipélago analisado anteriormente, pode-se afirmar que o projeto do Centro Pompidou entende que a arquitetura é responsável por traçar contornos ou reforçar os limites urbanos preexistentes, como sugeria a abordagem de Ungers. Percebe-se, através da primeira característica marcante, o destaque dado a esse confrontamento de limites, a fim de criar possibilidades positivas para a parte histórica de Paris. A equipe, portanto, priorizou a articulação dos “formais” com o contexto, potencializando assim uma situação que já era positiva – ruas acessíveis somente para pedestres, edifícios com vitalidade noturna. Tal qual sugere Ungers, os arquitetos investiram na forte definição de uma forma arquitetônica para assim deixar o entorno fluido e receptivo a apropriações dos usuários.

Já a segunda característica refere-se à noção de automonumento apresentada antes, pois é possível se evidenciar, através das falas dos arquitetos, uma preocupação com a “monumentalidade”. Isto é, o intuito projetual não era apenas criar um ponto de referência, mas oferecer uma situação compatível com a dinâmica preexistente na cidade: um ponto de encontro, um espaço de descompressão. Ao analisar os conceitos norteadores e as declarações de Piano e Rogers, pode-se afirmar que a preocupação era, na realidade, com o que Koolhaas definiu como “automonumentalidade” – já que o maior receio da equipe era criar um edifício vazio, ausente de significado, que não contribuísse para a revitalização da região do Marais.

Por fim, no sentido colocado por Aureli, o Centro Pompidou caracteriza-se como “arquitetura para o arquipélago”, já que, ao articular os limites de sua finitude, reconhece as potencialidades preexistentes do tecido urbano e funciona como instrumento político de integralização da área histórica – ao passo que propõe a polivalência programática.

3.2.

UMA CIDADE DENTRO DE SÃO PAULO: A PRAÇA DAS ARTES

Em 2005, a Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo buscava uma solução para abrigar espaços anexos ao Teatro Municipal e espaços de ensino artístico. Desde o início a região da República já era cotada como local, tendo em vista sua herança histórica para São Paulo e sua centralidade. Segundo narra Melendez 30, o terreno da Praça das Artes abrigava, até 1970, um edifício usado pelo exército.

Desde sua demolição no início da década de 70 até 2006 – ano do início do projeto – a área configurava uma falha de 27 metros no alinhamento predial utilizada como depósito de lixo. São Paulo é o maior centro urbano do Brasil, e possui em seu tecido urbano muitos edifícios de grande porte implantados próximos uns dos outros. Esse grande adensamento causa, principalmente nas regiões centrais, escassez de áreas abertas ao público. Interpretando o lugar como a resultante de fatores sociopolíticos, o escritório Brasil Arquitetura junto ao arquiteto Marcos Cartum criaram um refúgio cultural no meio da capital paulistana, a Praça das Artes: “Não é por decisão voluntária ou por opção entre esse ou aquele approach, por essa ou aquela direção a tomar o que nos leva a uma escolha e decisão conceitual. É, precisamente, a natureza do lugar. É sua compreensão enquanto espaço resultante de fatores sociopolíticos ao longo de muitos anos – ou séculos – de formação da cidade. Compreender o lugar não somente como objeto físico, como diz Siza, mas como espaço de tensão, de conflitos de interesses, de subutilização ou mesmo abandono, tudo importa. Se, por um lado, o projeto da praça das artes deve responder à demanda de um programa de diversos novos usos, ligados às artes musicais e do corpo, deve, também, responder de maneira clara e transformadora a uma situação física e espacial preexistente, com vida intensa e com uma vizinhança fortemente presente. Mais ainda, deve criar novos espaços de convivência a partir da geografia urbana, da história local e dos valores contemporâneos da vida pública.” (FANUCCI, FERRAZ 31, 2020).

30

Adilson Melendez explica em texto “Uma praça abrigada no coração paulistano”, publicado no site

da revista Projeto, alguns dos trâmites para a construção da Praça das Artes. Disponível em: < https://www.arcoweb.com.br/projetodesign/arquitetura/brasil-arquitetura-marcos-cartum-complexoinstitucional-sao-paulo-10-04-2013 > Acesso em: 09 abr. 2020.

31

Em texto que acompanha o projeto Praça das Artes no site do próprio escritório Brasil Arquitetura,

os arquitetos Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz sublinham algumas intenções projetuais. Disponível em <http://brasilarquitetura.com/> Acesso em: 08 abr. 2020.

Figura 13 – TESTADA COM ACESSO À PRAÇA DAS ARTES

FONTE: BRASIL ARQUITETURA 32 (2020)

O espaço físico destinado à Praça é composto por vários lotes de meio de quadra, e possui três frentes para ruas importantes da região. Para Fanucci e Ferraz 33, o lugar em questão possui marcas e memórias de várias épocas, que se materializam na arquitetura do conservatório e nos edifícios do entorno.

Apesar de ter sido concebida como anexo do Teatro Municipal, a Praça foi projetada para ser autônoma. Diante da dificuldade de implantar um complexo de edifícios em área consolidada repleta de diversidade construtiva, a equipe buscou visualizar o projeto como espaço público qualificador e irradiador. A Praça das Artes está localizada entre a avenida São João, a rua Conselheiro Crispiniano e o Vale do Anhangabaú, “como se fosse um polvo pronto a estender seus tentáculos e ocupar espaços”, afirma Fanucci 34. O projeto não consiste somente nos edifícios, mas no espaço criado a partir do contorno dos artefatos arquitetônicos:

32

Disponível em <http://brasilarquitetura.com/> Acesso em: 08 abr. 2020.

33

Em texto que acompanha o projeto Praça das Artes no site do próprio escritório Brasil Arquitetura,

os arquitetos Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz sublinham algumas intenções projetuais. Disponível em <http://brasilarquitetura.com/> Acesso em: 08 abr. 2020.

34

Em entrevista ao portal “Galeria da Arquitetura”, em 13 de fevereiro da 2014, Fanucci e Ferraz

esclareceram

algumas

intenções

projetuais.

Disponível

https://www.youtube.com/watch?v=fn2lS9aZZpQ > Acesso em: 14 abr. 2020.

em:

<

“O complexo se expressa não apenas por volumes, mas, igualmente por vazios e passagens. Assim, o atendimento a programas e funções serviu para uma intervenção mais ambiciosa, que pode significar o reencontro do paulistano com o núcleo original de sua cidade.” (MENDELEZ, 2020).

Fanucci e Ferraz consideraram como a fase projetual mais importante a em que propuseram a inserção urbanística, a fim de recuperar a área e provocar a reintegração do terreno com o contexto. Para Fanucci 35, o cerne do projeto consistiu em construir cheios e deixar vazios entre os edifícios, a fim de constituir um espaço aberto ao público que ofereça conexões dentro do tecido da cidade. É um projeto que se “amolda no terreno, não surge de uma ideia” (FERRAZ, 2014). Como sugere Ungers, ao criar de maneira favorável espaços livres entre os artefatos arquitetônicos, abre-se espaço para a apropriação acontecer. Assim, os usuários utilizam esse vazio como continuação do prédio e usufruem das diversas possibilidades programáticas criadas – além de criarem suas próprias. Para Fanucci, a apropriação do vazio criado no projeto pelos usuários locais é “a surpresa mais agradável”.

Tendo em vista o caótico conjunto volumétrico edificado ao redor do terreno, procuraram, através do partido arquitetônico, potencializar a “situação privilegiada de humanidade” presente no contexto – retratada pela vitalidade, diversidade social, abrangência de usos e tensões características de centros urbanos. Diante do desafio de criar um complexo de edifícios em uma área extremamente consolidada de terrenos irregulares no miolo de quadra, os arquitetos buscaram intensificar esses adjetivos preexistentes para criar um espaço de “convivência e de busca de tolerância”. Ao fortalecer a preexistência, ocuparam os lotes de maneira respeitosa com os novos usos e proporcionaram para a população novas vivências urbanas coerentes com o contexto. O núcleo do projeto, portanto, seria aceitar a separação já existente entre os artefatos e fortalecê-los, para que assim se relacionem melhor com o meio.

35

Em entrevista ao portal “Galeria da Arquitetura”, em 13 de fevereiro da 2014, Fanucci e Ferraz

esclareceram

algumas

intenções

projetuais.

Disponível

https://www.youtube.com/watch?v=fn2lS9aZZpQ> Acesso em: 14 abr. 2020.

em:

<

Figura 14 - PRAÇA DAS ARTES NO ALINHAMENTO PREDIAL

FONTE: BRASIL ARQUITETURA 36 (2020) Figura 15 - CROQUI DA PRAÇA DAS ARTES

FONTE: BRASIL ARQUITETURA 37 (2020)

36

Disponível em <http://brasilarquitetura.com/> Acesso em: 08 abr. 2020.

37

Disponível em <http://brasilarquitetura.com/> Acesso em: 08 abr. 2020.

Segundo os arquitetos 38, o programa de necessidades foi criado sob orientação de estudos acerca do ensino e da prática de música e de dança. Outra prioridade da equipe foi intensificar o caráter público de convivência, característica que acreditavam já ser o destaque da região. Para tanto, criaram um pavimento térreo completamente aberto, o qual garante a livre circulação, à medida que dá continuidade às ruas. O complexo é definido por três elementos principais – o módulo destinado aos corpos artísticos, o estacionamento em conjunto com a praça e galeria, e o módulo das escolas de dança e música e centro de documentação: “As atividades musicais são representadas pelas orquestras sinfônica municipal e experimental de repertório, pelos corais lírico e paulistano, pelo quarteto municipal de cordas, pela escola municipal de música e pela sala de concertos do antigo conservatório dramático e musical. as atividades de dança são representadas pelo balé da cidade e pela escola de bailado. além destes organismos, o conjunto abriga um centro de documentação, a discoteca oneyda alvarenga, galeria de exposições, áreas administrativas, de convivência, restaurantes, cafés e estacionamento em dois níveis de subsolo.” (FANUCCI, FERRAZ 39, 2020).

Figura 16 – CROQUI COM CHEIOS E VAZIOS DA PRAÇA DAS ARTES

FONTE: BRASIL ARQUITETURA 40 (2020)

38

Os autores Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz sublinham algumas intenções projetuais. Disponível

em <http://brasilarquitetura.com/> Acesso em: 14 abr. 2020.

39

Os autores Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz sublinham algumas intenções projetuais. Disponível

em <http://brasilarquitetura.com/> Acesso em: 08 abr. 2020.

40

Disponível em <http://brasilarquitetura.com/> Acesso em: 08 abr. 2020.

Outra parte importante do processo projetual foi a escolha do material edificante. Como o conjunto foi inserido no tecido urbano de maneira discreta, buscouse uma materialidade uniforme para garantir a unidade do complexo. Para tanto o concreto aparente foi escolhido, devido a sua baixa manutenção e ao contraste estético que provoca com as edificações vizinhas. Com o intuito de contrabalancear a solidez desse material, propuseram várias aberturas não uniformes nas paredes, que promovem a integração dos usuários do prédio com o entorno, através da permeabilidade visual entre a cidade e a Praça das Artes.

Figura 17 - PERMEABILIDADE VISUAL COM A CIDADE

FONTE: BRASIL ARQUITETURA 41 (2020)

Por meio da investigação do processo projetual de Cartum, Fanucci e Ferraz percebe-se a relevância de duas diretrizes principais: a de articular os limites arquitetônicos – a fim de criar vazios favoráveis à cidade – e a de reforçar através do projeto a característica tida como motor da região, que é a convivência e interação entre os habitantes.

Ao analisar o projeto da Praça das Artes sob as lentes das bases conceituais apresentadas anteriormente, pode-se afirmar que a primeira característica se refere ao que Aureli define como articulação dos “formais” dos artefatos arquitetônicos. A equipe aceitou a condição do contexto e associou os limites de cada volume com a preexistência, para que assim se relacionem com o meio. Tendo em vista que “formal” é definido pelo autor como a experiência do limite, os arquitetos criaram um espaço de expressão política que materializa a confrontação da cidade, proporcionando a 41

Disponível em <http://brasilarquitetura.com/> Acesso em: 08 abr. 2020.

interação entre os usuários – à medida que fornece à população espaço livre. Assim, tal qual sugere Ungers através do seu conceito de arquipélago, quanto mais claramente definidas certas partes do projeto forem, mais as outras partes seriam poupadas de definição, e vice-versa – sendo que as áreas vazias devem permanecer informais, para que a população produza suas próprias relações com o espaço. Assim, pode-se afirmar que o projeto reproduziu essa afirmação de Ungers acerca do arquipélago com maestria.

A segunda principal característica do projeto da Praça das Artes, que é reforçar a característica mais marcante da área, também é concordante com os conceitos de Ungers. Ao sintetizar o projeto em volumes articulados entre si, a equipe cria pontos de densidade que dialogam espacialmente com o contexto através de seus limites.

Dessa forma, como sugere Ungers, o projeto aceita a preexistência e reforça o traçado urbano, de sorte que replica a dinâmica urbana, sendo uma fração de uma “cidade dentro da cidade”. Assim, a Praça das Artes conserva sua identidade enquanto mantém-se conectada com o entorno, ao passo que articula seus próprios artefatos arquitetônicos no grid já estabelecido por outros artefatos. Além disso, a pluralidade programática do edifício materializa a instabilidade de usos dos imóveis do meio urbano contemporâneo e reflete a diversidade urbana. Assim, análoga ao skyscraper de Koolhaas, a Praça é uma manifestação madura da coexistência programática em um único terreno. Portanto, no sentido colocado por Aureli, a Praça das Artes é um exemplar de “arquitetura para o arquipélago”, pois ao associar seus limites físicos à cidade, reforça as potencialidades predominantes do local e assim representa um pequeno núcleo de diversidade programática dentro da dinâmica urbana.

3.3.

UMA PRAÇA PARA TÓQUIO: SHIBAURA HOUSE

A área denominada de Shibaura localiza-se em Tóquio e, analogamente à grande parte do resto da metrópole, caracteriza-se por sua alta densidade de edifícios – o que acarreta a falta de espaços livres acessíveis ao público. A região consiste em uma expansão da área da Baía de Tóquio através de ilhas artificiais no século XX, e após passar por grande valorização imobiliária, hoje consiste em uma das partes mais valorizadas da metrópole 42.

Figura 18 - SHIBAURA HOUSE EM SEU CONTEXTO

FONTE: SHIBAURA HOUSE 43 (2020)

O projeto, do escritório japonês SANAA, originou-se da necessidade de reformulação em 2011 da empresa Kohkoku Seihan Inc, sediada no lote. Kohkoku Seihan Inc inicialmente era o elo entre as gráficas e as agências de publicidade, e produzia as telas que imprimiam os anúncios e cartazes. Com o advento da tecnologia, o ofício tornou-se obsoleto, o que requereu a remodelagem do negócio.

Atualmente a empresa configura-se como produtora criativa, gráfica e agência publicitária. Junto à remodelagem da empresa veio o novo edifício, que segundo o proprietário não devia consistir apenas em um prédio novo, mas em um futuro de

42

Ver < https://www.japan.travel/pt/spot/2104/ > Acesso em 20 de mai. 2020.

43

Disponível em < http://www.shibaurahouse.jp/en/about/concept_story/ > Acesso em: 22 mai. 2020.

possibilidades para a companhia que proporcionasse um crescimento para a região como comunidade local e para a sociedade 44.

Figura 19 - ANTES E DEPOIS DA KOHKOKU SEIHAN INC

FONTE: SHIBAURA HOUSE 45 (2020) e ARCHDAILY 46 (2020)

O primeiro ponto chave do projeto era gerar potencial criativo através do edifício, por meio de um espaço aberto onde o designer colabora com o cliente – pois segundo o proprietário, reformular somente o modelo de negócio não seria garantia de sucesso. Além disso, um espaço interessante aberto ao público atrairia atenção de novos usuários da vizinhança, que criariam ali atividades e novos negócios. A partir dessa vantagem surge o segundo ponto chave do projeto: a criação de um ponto de encontro para a comunidade local – já que em uma área tão densa e repleta de edifícios a população raramente interage e cria laços. Assim, a vizinhança passa a apropriar-se do espaço da companhia, o usando como escritório e espaço comunitário, a deixando cada vez mais intrínseca à região. Segundo a arquiteta autora do projeto Kazuyo Seijima, o incrível é quando os próprios usuários encontram maneiras únicas de apropriação do espaço. “Durante o processo projetual tentamos

44

O relato do proprietário juntamente a informações sobre o projeto estão publicados no portal do

edifício: <http://www.shibaurahouse.jp/en/about/concept_story/> Acesso em 20 de mai. 2020.

45 46

Disponível em: <http://www.shibaurahouse.jp/en> Acesso em 20 de mai. 2020.

Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/934581/guia-de-arquitetura-de-toquio-25-obras-

iconicas-para-quem-vai-visitar-o-japao?ad_medium=gallery> Acesso em 20 de mai. 2020.

demarcar as funções por pavimento, mas ficamos hesitantes. Acabamos optando por espaços abertos de escritórios, para assim deixá-los neutros, abertos a novos usos.

Uma pessoa chega e vê o espaço, enquanto gradualmente forma ideias de como usálo, o que altera o seu programa de necessidades. É bem interessante”, afirma 47.

Figura 20 - DIVERSOS USOS DA SHIBAURA HOUSE

FONTE: SHIBAURA HOUSE 48 (2020)

A partir dessas diretrizes, a Shibaura House surge como espaço comunitário, área de coworking aberta ao público e centro de atividades voltadas à comunidade local e internacional. O edifício caracteriza-se como uma grande caixa transparente que contém em seu interior um centro cultural, com ateliês e oficinas, cafeteria, salas de reunião, áreas destinadas à prática da arte e um terraço de aproximadamente 1000 m2. O pavimento térreo mantém-se sempre aberto ao público, funcionando como parque, área de relaxamento e ponto de encontro.

Figura 21 - PAVIMENTO TÉRREO SHIBAURA HOUSE

FONTE: SHIBAURA HOUSE 49 (2020)

47

Conversa entre o proprietário da empresa e o escritório SANAA disponível em: <

http://www.shibaurahouse.jp/en/about/architecture/2 > Acesso em: 20 de mai. 2020.

48

Disponível em: <http://www.shibaurahouse.jp/en> Acesso em 20 de mai. 2020.

49

Disponível em: <http://www.shibaurahouse.jp/en> Acesso em 20 de mai. 2020.

O programa de necessidades espalha-se entre os pavimentos, mas mantémse conectado através das aberturas nos pisos, que geram áreas de pé direito duplo ou triplo. Para Seijima, essa continuidade é o grande diferencial desse projeto: “Para mim é importante conceber espaços com senso de continuidade quando o usuário entra no edifício, não importando se trata-se de um espaço público ou privado. Esse efeito é difícil de atingir em um edifício de escritórios, pois ele é dividido em pavimentos, verticalmente. Entretanto, a Shibaura House tem um senso de unidade que podemos sentir em diversos locais, mas ainda se trata de um edifício de escritórios. Normalmente temos uma ideia do que um edifício corporativo devia ser, mas acho que, com a Shibaura House podemos pensar sobre o que um edifício corporativo do futuro poderia ser.”

(SEIJIMA 50, 2020).

Essa continuidade citada pela arquiteta relaciona-se de maneira bastante próxima com a ideia de “formal” segundo Aureli, já que para o autor ele define-se como a experiência do limite, a tensão inerente às barreiras. Ao tentar desvincular o projeto desses limites, a fim de trazer fluidez e naturalidade ao edifício, a arquiteta busca a atenuação do caráter privado do prédio, enquanto procura conceber um espaço aberto ao público. Busca-se aproximar os polos interior e exterior, camuflando o espaço privado no espaço público, para que assim o usuário adentre o edifício com naturalidade. A mesma lógica repete-se na tentativa de não compartimentar os pavimentos: a interação entre todas as atividades simultâneas garante a pluralidade do edifício.

Figura 22 - FACHADA SHIBAURA HOUSE

FONTE: SHIBAURA HOUSE 51 (2020)

50

Conversa

entre

o

proprietário

da

empresa

e

o

escritório

SANAA disponível em:<

http://www.shibaurahouse.jp/en/about/architecture/6> Acesso em: 20 mai. 2020.

51

Disponível em: <http://www.shibaurahouse.jp/en> Acesso em 20 de mai. 2020.

Figura 23 - CROQUI E MAQUETE DA SHIBAURA HOUSE

FONTE: METALOCUS 52 (2020)

Ao analisar as prioridades do escritório SANAA para o projeto da Shibaura House salienta-se a relevância de três prioridades: a de gerar potencial criativo para o edifício – a fim de criar condições favoráveis para a empresa e para a comunidade, a de fabricar laços comunitários – que depende diretamente da existência de um ponto de encontro, e a de, a partir de espaços neutros, criar possibilidades de usos diversos.

A primeira foi executada através do princípio da continuidade arquitetônica, enfatizada pelas falas da arquiteta Sejima. Ao apresentar o edifício como continuação da rua, ele reforça as qualidades da região e proporciona uma permanência bastante natural – ao mesmo tempo que a continuidade entre os pavimentos incita maior relacionamento interpessoal, gerando maior troca de experiências. Ao adentrar o pavimento térreo do centro cultural, o usuário tem a impressão de estar em um espaço

52

Disponível em: <https://www.metalocus.es/en/news/ii-shibaura-house-tokyo-kazuyo-sejima > Acesso

em 20 de mai. 2020.

livre coerente com a atmosfera da região. Apesar de o espaço ser composto por estruturas metálicas brancas e vidro, está em harmonia com o resto do bairro. Essa mesma frequência faz com que o pavimento térreo, preconizado como praça, apresente-se como tal de forma bastante natural ao usuário. Talvez em outro contexto uma praça concebida em materiais frios fosse impensável e artificial, mas em Shibaura ela se apresenta despretensiosamente. Tal qual sugere Aureli, a maneira pela qual os limites da arquitetura são projetados são essenciais para a inserção e adaptação do projeto ao contexto. Dessa forma, o edifício agrega ao bairro um espaço aberto de qualidade para a população, enquanto a comunidade agrega criatividade e vida à empresa.

A segunda prioridade do projeto, que foi criar um ponto de encontro regional, relaciona-se diretamente com a crença do proprietário da empresa de que sem a comunidade local, a companhia não teria sucesso. O fato de o edifício estar mesclado ao espaço público de Shibaura faz com que a empresa esteja também, sugerindo que ela faz parte da cultura do bairro – o que, em sua visão, é bastante vantajoso. Assim, ao criarem laços entre si, simultaneamente os habitantes criam vínculos com o espaço – e consequentemente com a companhia.

A terceira prioridade relaciona-se diretamente com a fala de Ungers de que o contorno bem articulado garante que quanto mais claramente definidas certas partes da cidade forem, mais as outras partes seriam poupadas de definição, e assim as parcelas neutras geram infinitas possibilidades de usos propostos pelos próprios usuários. Para a arquiteta essa relação da população com o espaço de diversas maneiras era essencial para o sucesso do projeto, tendo em vista a grandiosidade do número de usos possíveis para o centro cultural. Tendo em vista essas três características principais, pode-se afirmar que a Shibaura House se configura como “arquitetura para o arquipélago” no sentido citado por Aureli, pois em seu projeto as condições preexistentes foram priorizadas; o edifício aceita seus limites e os utiliza para potencializar as relações entre o espaço privado e o público; e a investigação dos limites, dos “formais” arquitetônicos foi essencial no processo projetual, a fim de constituírem continuidade com a cidade.

4. METODOLOGIA: CURADORIA URBANA A fim de realizar a investigação da relação dos edifícios da região selecionada entre si e com o espaço público, se faz necessário selecionar um recorte com diversidade espacial suficiente para realizar a análise, para em seguida escolher edifícios representativos, que simbolizem categorias de edifícios mais amplas – tendo em mente que o que será de fato analisado é a relação do edifício em questão com o panorama em que está inserido. Dessa forma, propõe-se a análise do método utilizado pelos arquitetos Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour em Aprendendo com Las Vegas (2003), pois a intenção dos autores era investigar a essência espacial da cidade, enquanto símbolo da arquitetura pop e vernacular. Em seguida, é proposta a análise da metodologia do Atelier Bow Wow para analisar a cidade de Tóquio, na publicação Made in Tokyo (2001), por se perceber que o foco da equipe durante a pesquisa foi a relação da arquitetura com o espaço em que está inserida.

4.1.

LEARNING FROM LAS VEGAS A publicação Aprendendo com Las Vegas, de autoria de Robert Venturi, Denise

Scott Brown e Steven Izenour nasce a partir de uma viagem acadêmica promovida pelos arquitetos em 1968 com estudantes da Universidade de Yale. Foi uma das primeiras tentativas de se produzir um estudo analítico de um recorte territorial sem emitir juízo de valor: “Os arquitetos perderam o hábito de olhar para o ambiente sem emitir julgamentos porque a arquitetura moderna ortodoxa é progressista, se não revolucionária, utópica e purista; ela está insatisfeita com as condições existentes. A arquitetura moderna tem sido de tudo, menos tolerante: os arquitetos preferiram mudar o entorno existente em vez de realçar o que já existe.” (VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR, 2003, p. 25).

Segundo os autores, a publicação é um estudo de método que rejeita a atribuição de valores morais ao território em questão. Através da análise da Las Vegas strip 53, eles buscaram entender o simbolismo na forma arquitetônica. Assim, por meio

53

A strip de Las Vegas corresponde ao trecho da Las Vegas Boulevard no qual se concentram a maior

parte dos hotéis e cassinos da região, sendo assim caracterizada por uma quantidade massiva de comunicação visual.

de construções consideradas representativas, analisaram os principais tipos de edifícios presentes na área. A partir disso, produziram diagramas que justapuseram essas construções – até então desconsideradas em qualquer análise arquitetônica devido ao seu caráter pop e vernacular – à ícones da arquitetura mundial, traçando semelhanças metodológicas entre objetos bastante distintos. Dessa maneira, perceberam que edifícios até então tidos como extremamente distintos podem possuir funções espaciais parecidas.

Figura 24 – DIAGRAMA DE SÍMBOLOS DE ESCALA E DE VELOCIDADE

FONTE: VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR (2003)

Outro item crucial na análise foram os mapas tipo Nolli (que contrastam espaços públicos com privados) produzidos pelos autores, os quais esclarecem a proporção entre os contrastes de Las Vegas. Os itens representados são terrenos não construídos, o asfalto, os carros, as edificações e o espaço cerimonial – elementos essenciais para a cidade, pois moldam o espaço público.

Figura 25 - MAPAS NOLLI DE LAS VEGAS

FONTE: VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR (2003)

Por meio da análise, os arquitetos perceberam que há grande duplicidade entre os espaços abertos da cidade. Mesmo que a strip em si consista em um elemento cívico, ela está repleta de elementos privados, como letreiros e luminosos.

Estacionamentos, por exemplo, são espaços abertos ao público – porém são estruturas privadas. Dessa maneira, a strip abrange “clareza e ambiguidade; cooperação e competição; comunidade e individualismo” (VENTURI, SCOTT

BROWN, IZENOUR, 2003, p. 47). Portanto, ela pode ser vista como um elemento que sintetiza muitos aspectos de Las Vegas, principalmente essas dualidades – o que justifica a escolha da via como alvo do estudo.

Após o reconhecimento dos elementos mais representativos da strip, os autores os classificaram em categorias e montaram uma tabela síntese desses elementos. A tabela consiste no nome do cassino, seguido por uma planta de cobertura tipo Nolli, um corte que destaca a escala da forma arquitetônica em relação ao entorno, e por fim algumas partes dos edifícios a serem retratadas por fotos – panorama, frente, lateral, partes, entrada e estacionamento.

Figura 26 - TABELA DE HOTEIS CASSINOS

FONTE: VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR (2003)

A partir dessa análise, os arquitetos redigiram uma série de orientações ao Comitê de Embelezamento de Las Vegas sobre o que seriam medidas positivas de embelezamento. Segundo os autores, a strip não deve tentar se parecer com a Avenida Champs Elysées, por exemplo, pois não é a sua identidade. A sua essência está justamente no eco da cultura pop, que transborda através de comunicação visual e decoração cliché. Dessa forma, sugeriram ao Comitê sempre manter as medidas de intervenção próximas do que realmente é Las Vegas, que segundo os autores é uma

terra de recreação e de ambiguidades, onde um hotel milionário fica implantado de um posto de gasolina sem causar espanto algum.

4.2.

MADE IN TOKYO

A publicação Made in Tokyo do Atelier Bow Wow é apresentada em formato guia de viagens, e traz desenhos e fotos de edifícios considerados representativos da cidade de Tóquio. A investigação teve início nas reflexões dos integrantes do escritório acerca da peculiaridade do ambiente urbano da capital do Japão: “O que faz com que Tóquio seja Tóquio?”. Segundo os autores, o livro Aprendendo com Las Vegas foi essencial para a publicação, pois auxiliou a perceber que todo tecido urbano possui a sua própria identidade, e que uma análise espacial pode ser isenta de juízo de valor.

A partir da descoberta de um edifício híbrido que abriga um restaurante e um centro de treinamento de baseball, a equipe percebeu que são justamente essas combinações pouco prováveis que fornecem à metrópole o seu caráter único. A partir disso, surge a hipótese inicial da pesquisa, que é o espaço urbano de uma cidade refletir, diretamente, o seu contexto e os valores daquele local em questão. Tendo essa suposição em vista, buscaram focar a investigação nos usos dos edifícios, ao passo que observaram a cidade sem fornecer juízo de valor ou conectar as construções às classes sociais. Através dessa “planicidade” analítica, os autores buscaram abordar os artefatos arquitetônicos igualmente, independentemente de serem advindos de projetos arquitetônicos ou não. O interesse da publicação é, justamente, na diversidade de métodos de produzir e utilizar ambientes coerentes com o contexto urbano, inseridos nas diversas ecologias urbanas. Em seguida, os autores refletiram acerca da linguagem visual utilizada para representar os resultados da análise. “Se o método de representação não é coerente com o que foi observado, o resultado pode,

frequentemente,

TSUKAMOTO, 2001, p. 11).

ser

incompreendido”

(KURODA,

KAIJIMA,

Figura 27 - REPRESENTAÇÃO DE TÓQUIO

FONTE: MADE IN TOKYO (2001)

Segundo os membros do Atelier Bow Wow, a metodologia de seleção das edificações surgiu a partir de uma lista inicial de prédios que se destacam na paisagem em seus percursos rotineiros – no transporte público, de bicicleta ou caminhando. A partir dessa lista, os autores se reuniram e debateram acerca de “o que faz com que esses edifícios sejam tipicamente de Tóquio?” 54. O próximo passo foi designar alguns critérios, a fim de ordenar e classificar essa curadoria urbana em grupos de prédios com características semelhantes. Foram propostas algumas categorias, sendo que muitos edifícios se apresentam como híbridos entre duas ou mais. Em seguida, foi proposta a observação de cada um desses edifícios individualmente. Essa análise, entretanto, não era proposta ao edifício como objeto individual, mas enquanto artefato urbano inserido na paisagem. Esse “zoom out” fez parte do processo para que a investigação fosse focada na relação do edifício e seu contexto, sendo que observar os fluxos de pessoas e a infraestrutura presente nessas construções foi essencial à análise. Em resumo, o Made in Tokyo analisa fragmentos da cidade, “para encontrar

54

Tradução proposta pela autora da frase “What is made in Tokyo?” (KURODA, KAIJIMA,

TSUKAMOTO, 2001, p. 18).

categorias cruzadas de edifícios e ecologias urbanas” (KURODA, KAIJIMA, TSUKAMOTO, 2001, p. 19).

Figura 28 - UM DOS ARTEFATOS ARQUITETÔNICOS ANALISADOS

FONTE: MADE IN TOKYO (2001)

A publicação apresenta para cada projeto: uma planta de situação; uma fotografia tirada pelos autores durante os percursos de levantamento; uma perspectiva isométrica do artefato com seu entorno direto; informações consideradas essenciais para a compreensão do edifício; e um apelido para cada prédio analisado. A planta de situação tem o intuito de enfatizar o contraste do edifício com seu entorno, em forma e escala – além de situar a construção em Tóquio. As fotos foram colocadas no material para mostrar a primeira impressão dos autores sobre o projeto, evidenciando suas primeiras impressões e descobertas. Os desenhos de perspectivas isométricas foram produzidos a fim de captar a realidade e a forma real do objeto, sendo que o cuidado na produção das ilustrações promoveu o carinho dos arquitetos pelos

edifícios. Os textos são destinados a explicar a dinâmica interna do edifício, além de informar o leitor sobre a infraestrutura presente no local. Por fim, o apelido relacionase com o interesse imediato no edifício, além de designar demonstração de carinho pelo objeto. É também uma espécie de marcação, dando a esses edifícios – em sua maioria anônimos – status de artefato arquitetônico pelo curador urbano.

Figura 29 - EXEMPLO DE PÁGINA DO LIVRO MADE IN TOKYO

FONTE: NGHIEM 55 (2017)

4.3.

O MÉTODO DE SELEÇÃO COMO CURADORIA URBANA

A investigação presente em Aprendendo com Las Vegas busca compreender a metodologia por trás dos edifícios da cidade, por meio de uma aproximação isenta de crítica arquitetônica. Já o processo analítico presente no livro Made in Tokyo prioriza a inserção urbana do objeto, a relação do edifício com o entorno e a identidade

55

Disponível em: <https://medium.com/@nghinghiem04/draw-notation-atelier-bow-wow-3145720-

b43760e3ac1 > Acesso em 19 de jun. 2020.

local das construções. Dessa maneira, ultrapassa os julgamentos de valor e concentra a atenção na maneira com que os “formais” dos edifícios tipicamente de Tóquio dialogam com a cidade.

O presente estudo propõe a aproximação do recorte proposto através de uma “planicidade analítica” análoga à adotada nos casos metodológicos anteriores. O intuito dessa pesquisa é a observação e a compreensão das interfaces urbanas propostas pelas construções selecionadas, a fim de entender como potencializar as condicionantes

do

entorno.

Também

se

busca

compreender

como

a

monumentalidade arquitetônica é tratada pelos edifícios no recorte.

A partir disso, o entendimento e sistematização desses edifícios se dão a partir dos passos: 1) Delimitação do recorte; 2) Levantamento da área, a fim de reconhecer as características mais importantes dos lotes; 3) Definição de categorias para análise, com base no levantamento realizado; 4) Seleção e investigação formal desses artefatos arquitetônicos no sítio e análise da interface de seus limites.

Com base nesse passo a passo, espera-se obter uma análise representativa do recorte selecionado enquanto essência espacial. Esse estudo, além de identificar pontos relevantes da região da Praça Osório, pretende apurar as abordagens projetuais utilizadas nesses edifícios para lidar com os “formais” e com a monumentalidade na escala urbana.

5. CURADORIA URBANA

Esse capítulo busca identificar características da produção arquitetônica do entorno da Praça Osório acerca da relação entre os “formais” das edificações com o espaço aberto. É importante ressaltar que a análise do recorte não será finalizada no presente capítulo, sendo que continuará durante o trabalho final a ser desenvolvido no próximo semestre.

5.1.

DELIMITAÇÃO DO RECORTE

A decisão de utilizar como objeto de estudo a região da Praça General Osório parte da associação entre uma afinidade pessoal com o território, e a abrangência arquitetônica presente no local. Há algumas particularidades nesse recorte que tornam a sua abordagem vantajosa, e que simultaneamente permitem a aproximação entre as análises de diferentes escalas.

Retomando o conceito de arquipélago definido por Aureli (2011), a Praça Osório se apresenta como centro comum às construções presentes ao seu redor, possibilitando assim analisar o recorte como um arquipélago. No tecido urbano, essa formação insular evidencia os limites desses edifícios, que se caracterizam como ilhas de densidade pousadas sobre o mar de espaço público. Dessa forma, é possível interpretar a Praça Osório como um arquipélago de monumentos.

Alguns desses edifícios, além de configurarem ilhas por serem formas arquitetônicas independentes, aproximam-se do conceito insular apresentado por Koolhaas. Em sua conceituação, o autor coloca a autossuficiência como característica marcante de cada elemento, ao passo que se mantém conectado à cidade pelo grid organizador – no caso da Osório, a retícula das quadras e a infraestrutura urbana.

Dessa maneira, tomando esse conjunto insular como recorte a ser estudado, pode-se analisar os “formais” desses artefatos arquitetônicos em compensação à praça, que configura o espaço aberto coeso entre todas as formas arquitetônicas presentes no recorte.

Figura 30 - ARQUIPÉLAGO PRAÇA OSÓRIO

FONTE: AUTORA (2020)

A Praça General Osório localiza-se no Centro de Curitiba, na regional matriz. Até a metade do século XIX, a região constituía uma área alagadiça, formada pelo rio Ivo. Com a onda higienista, a praça foi criada, e a partir dela foi desenhada a rua que ligaria o centro de Curitiba ao resto da cidade, a atual Rua Comendador Araújo. A praça foi criada no ano de 1878 e chamava-se Largo Oceano Pacífico, mas foi rebatizada um ano depois em homenagem ao comandante brasileiro General Osório, figura importante na guerra do Paraguai 56. Ela conta com uma área de aproximadamente 12.000m2, sendo que o recorte a ser trabalhado abrange a praça e as quadras ao redor – mais especificamente os edifícios que circundam a praça.

56

Informações

retiradas

da

matéria

feita

pela

Gazeta

do

Povo,

disponível

em:

<https://www.gazetadopovo.com.br/haus/estilo-cultura/praca-osorio-um-oasis-na-curitiba-concreta> Acesso em 08 jul. 2020.

Figura 31 – COLAGEM DA PRAÇA OSÓRIO

FONTE: AUTORA (2020)

Durante os séculos XIX e XX, a Praça Osório foi palco de atividades de lazer, eventos políticos, distribuição de água à população e alvo de grandes reformas. Em 1903 o prefeito Luis Xavier realizou a maior obra no território até o momento, realizando calçamento e terraplanagem. No início do século XIX, a praça ganhou estética francesa – influência do art nuveau – e recebeu canteiros paisagísticos e um chafariz com algumas estátuas 57. Durante a ditadura, a praça era usada como local de tribuna livre e nos anos 80, a Praça foi palco do movimento Diretas Já – o que aumentou a sua importância política. Nos anos 90 a Praça Osório passou por uma série de intervenções que a caracterizou como está hoje, com o espaço para os engraxates na Boca do Brilho, um novo playground e um novo espaço de recreação esportiva 58.

Figura 32 – PRAÇA OSÓRIO EM 2020

FONTE: MOSCATTO (2020)

57

BOLETIM CASA ROMÁRIO MARTINS. Praças de Curitiba: espaços verdes na paisagem urbana.

Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, v. 30, n. 131, set. 2006.

58

VIEIRA, Flavia Gonzaga Lopes. "Espaços públicos de lazer no centro de Curitiba: a transformação

da cidade urbana para cidade humana." (2010).

Figura 33 – PRAÇA OSÓRIO EM CURITIBA

FONTE: AUTORA (2020)

A fim de investigar a relação do entorno construído com a Praça Osório, optou-se por definir como objeto de estudo a “cinta” edificada em torno da praça. A decisão de definir o recorte dessa maneira parte da proposta do trabalho ser, justamente, o estudo dos “formais” – limites arquitetônicos – que delimitam os espaços público e privado no tecido urbano. Essas construções variam drasticamente em escala e implantação espacial, o que incita observações relativas a como essas formas arquitetônicas lidam com a monumentalidade.

Figura 34 - O RECORTE PROPOSTO

FONTE: AUTORA (2020)

Figura 35 - FOTO AÉREA COM RECORTE

FONTE: GOOGLE MAPS COM ALTERAÇÕES DA AUTORA (2020)

5.2.

LEVANTAMENTO

A “cinta” edificada da Praça Osório configura uma área densamente construída, que conta com tipologias variadas de edifícios – o que foi, inclusive, um dos fatores determinantes para a escolha desse recorte. As quadras existentes no recorte proposto caracterizam-se por possuírem edifícios de distintas escalas, podendo variar bastante o número de pavimentos, sendo que as menores normalmente são mais antigas. Entretanto, o tipo de uso que os edifícios abrigam varia pouco. A grande maioria dos pavimentos térreos, com poucas exceções, apresenta o uso destinado a serviços e comércio. Quando a construção é verticalizada, isso normalmente se dá com a presença de uso residencial ou comercial nos pavimentos superiores, mas também pode apresentar uso institucional ou hoteleiro.

Figura 36 - MAPA NÚMERO DE PAVIMENTOS

FONTE: AUTORA (2020)

Figura 37 - MAPA DE USOS

FONTE: AUTORA (2020)

Figura 38 - MAPA NUMERAÇÃO DE LOTES DO RECORTE

FONTE: AUTORA (2020)

Figura 39 - QUADRO DE FOTOS DOS LOTES DO RECORTE

FONTE: AUTORA (2020)

Figura 40 - ELEVAÇÕES DO RECORTE PROPOSTO

FONTE: AUTORA (2020)

Os edifícios de grande escala presentes no recorte representam a ilha de densidade urbana per se, pois, abrigam diversos usos em seus interiores, o que gera maior permanência do usuário em uma única ínsula. Essa permanência aumentada é consequência da autossuficiência oferecida por esses edifícios híbridos, sugerindo ao usuário que ele não necessita sair da forma arquitetônica para ter acesso à urbanidade. Para Koolhaas (1994), edifícios de grande escala são monumentos à urbanização, enquanto empilham privacidades individuais que mimetizam a pluralidade do espaço urbano. Essas cidades verticais dentro da cidade, quando retêm um programa de necessidades com múltiplos usos, são redentoras de instabilidade programática – o que para o autor é a principal característica das metrópoles. Dessa forma, seguindo o conceito de ilha e de monumento, definidos por Koolhaas, no recorte proposto existem grandes ilhas urbanas. Monumentos que possuem condições favoráveis para aproveitar as potencialidades do tecido urbano.

Como colocado anteriormente, no recorte existem edifícios que se encaixam no conceito de monumento – um artefato arquitetônico que atinge uma escala grande o suficiente para não passar desapercebido no ambiente urbano. Entretanto, dentre eles existem formas arquitetônicas que podem se caracterizar como automonumentos – edifícios concebidos como unidades isoladas em si, que ignoram as potencialidades da interface urbana do entorno. Dessa forma, a investigação dos “formais” ou os limites dessas construções é crucial para compreender a interface entre o espaço público e o privado. Essa relação determinará a interação do artefato arquitetônico com a cidade, o que em consequência definirá a natureza do edifício de grande escala – monumento ou automonumento.

Portanto, após essa análise inicial do entorno construído da Praça Osório, é possível identificar no recorte monumentos e automonumentos que serão investigados profundamente na etapa posterior.

Figura 41 - PLANTA BAIXA TÉRREA DO RECORTE

FONTE: AUTORA (2020)

Figura 42 - ARQUIPÉLAGO DE MONUMENTOS DA PRAÇA OSÓRIO

FONTE: AUTORA (2020)

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em 2001: Uma Odisseia no Espaço, o astronauta se choca com a presença de um elemento grande e descontextualizado – o monolito – em seu habitat. A vedação unânime do bloco traz a sensação de inacessibilidade. Tal qual o astronauta de Kubrick, o usuário do ambiente urbano se depara com diversos monolitos na cidade. Alguns completamente vedados, outro menos. Os mais convidativos – como os apresentados na Análise Dirigida – potencializam as vantagens do contexto em que estão inseridos. O ambiente urbano pode ter suas potencialidades exploradas através da investigação dos limites arquitetônicos em projetos de arquitetura.

Figura 43 - O ASTRONAUTA E O AUTOMONUMENTO

FONTE: AUTORA (2020)

Aureli (2011) caracteriza a arquitetura pautada sob as condicionantes do arquipélago como arquitetura absoluta. Um ambiente urbano não mais ditado pelo impulso da expansão imobiliária, mas pelas ideias positivas acerca de limites e confrontos. Nesse modelo, o “formal” – limite arquitetônico – se torna a essência política da cidade, enquanto a arquitetura se transforma na condição preexistente para a urbanização. Configura, literalmente, a maneira como um projeto se apresenta para a cidade, evidenciando as relações que ele prioriza. Assim, a arquitetura deixa de ser um ícone de diversidade em si mesma – um automonumento – ao passo que recusa esse ímpeto e aceita a possibilidade de ser um instrumento de delimitação, de confronto, e, portanto, de ação política. Por fim, a forma arquitetônica é um

instrumento prático e teórico que, ao definir limites individuais, delimita também as áreas de coexistência da cidade. O presente trabalho inicia uma reflexão sobre as relações formais entre a Praça General Osório, enquanto representante de espaço público livre curitibano, e seu entorno edificado, para posterior desenvolvimento de projeto arquitetônico baseado em sua atual configuração.

Dessa forma, o presente estudo é finalizado dando o início para essa curadoria urbana, que busca apurar as abordagens projetuais usadas nos edifícios do recorte para lidar com os “formais” arquitetônicos e com a monumentalidade no tecido urbano.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AURELI, Pier Vittorio. The possibility of an absolute architecture. EUA, MIT Press, 2011.

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