Revista Velhas nº18 - Novembro de 2023 - CBH Rio das Velhas

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Uma publicação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas

NOV 2023

ANO

18

IX


Imagem de capa: Há 20 anos, a mobilização em torno da defesa da nossa bacia hidrográfica ganhava uma dimensão até então inédita. Era a Expedição ‘Manuelzão desce o Rio das Velhas’. Em destaque, na foto de Cuia Guimarães, expedicionários no 22º dia de jornada, em trecho próximo a Santo Hipólito, cerca de 500km então percorridos. Ao fundo a Serra do Cabral.


Editorial

Navegar é preciso Um dos principais marcos do ambientalismo mineiro, responsável por jogar luz de maneira até então inédita sobre o Rio das Velhas e a necessidade de preservá-lo e recuperá-lo, a Expedição ‘Manuelzão desce o Rio das Velhas’ completou em 2023 duas décadas. Considerada por muitos como uma experiência determinante para o avanço das políticas públicas ambientais em Minas Gerais, a Expedição percorreu os 806 km do Velhas, da nascente em Ouro Preto à foz em Barra do Guaicuí, em 29 dias. O resultado da ação foi a constatação de que a degradação encontrada ao longo do Rio das Velhas era preocupante. Era preciso agir, somando esforços e recursos para viabilizar um plano estruturador com foco na revitalização. A partir daí várias portas se abriram. Vieram as Metas 2010 e 2014 (que buscavam navegar, pescar e nadar no Rio das Velhas, em seu trecho metropolitano), posteriormente encampadas pelo poder público, o fortalecimento deste Comitê de Bacia Hidrográfica, a implantação dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos na bacia, a criação de uma cultura de mobilização social e engajamento voltada à recuperação do Velhas, e por aí vai. 20 anos depois, muita água passou embaixo dessa ponte – e, infelizmente, não com a qualidade e abundância que esperávamos. Mas a luta segue. E pela bússola que foi e ainda é, a Expedição de 2003 recebe aqui a nossa homenagem. E se o assunto é luta em favor das águas, a gente sabe que toda essa rede é feita fundamentalmente por pessoas. Pessoas interessadas em um território ambientalmente mais saudável e socialmente mais justo. Em uma matéria especial, contaremos a história dos 25 anos do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, através do olhar particular de quatro pessoas que ajudaram a fazer deste um colegiado referência em todo o país. O entrevistado da Revista Velhas nº 18 é outro personagem que, forjado nesta bacia hidrográfica, contribui há duas décadas na defesa dos recursos hídricos: Rodrigo Lemos, geógrafo, mestre e doutor em Geografia e Análise Ambiental, e professor universitário. Do alto de sua experiência, que inclui passagens por quase todas as esferas ligadas ao CBH Rio das Velhas, Rodrigo comenta a retomada do Conama, onde tomou posse como conselheiro em maio deste ano, a política ambiental e seus desafios, a participação social, a questão hídrica e os 25 anos do CBH Rio das Velhas, o qual vê “como o mais avançado na dinâmica da gestão de bacias”.

Toda essa rede de proteção existe porque os problemas na bacia existem e persistem – e isso o rio infelizmente não nos cansa de mostrar. Um novo problema de escala global que ameaça nossas águas, fauna, seres humanos e o meio ambiente em geral entrou de vez no radar de cientistas e organismos internacionais: os microplásticos, com potencial de se tornarem o mais importante contaminante ambiental do planeta. Outro já antigo problema que nos ronda é o esgotamento sanitário. Mas, e se o esgoto tratado não tivesse como destino os rios? E se o lodo derivado desse processo não precisasse ser encaminhado aos aterros? É o que propõe o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) em ETEs Sustentáveis. Rico em nutrientes e em água, o esgoto tratado pode ser usado especialmente na fertirrigação – a crise dos fertilizantes resultante da guerra entre Rússia e Ucrânia dá mais peso a essa discussão. Contaremos essa história por aqui também. É chover no molhado dizer da importância do produtor rural na proteção ambiental. Em uma matéria especial, mostraremos em detalhes como algumas iniciativas do CBH Rio das Velhas buscam melhorar as condições ambientais de propriedades rurais na bacia, para que, no fim, tenhamos todos águas em abundância e em boa qualidade. E o melhor: reconhecendo e remunerando os proprietários rurais pelos serviços ecossistêmicos que prestam à sociedade. A região em destaque na Revista Velhas nº 18 é o território dos Ribeirões Caeté-Sabará e seu vasto patrimônio histórico, cultural e ambiental. Já na sessão cultural Olhares, nossa homenagem é ao paleontólogo dinamarquês Peter Lund. Em 2023, a história do naturalista – que fez extraordinárias escavações em grutas calcárias no vale do Rio das Velhas – chegou aos cinemas. Tem também a história de coletivos, universidades, arquitetos, educadores, artistas, prefeitura e moradores da bacia do Córrego Capão, em Belo Horizonte, que, juntos, discutem e desenvolvem propostas de drenagem para a região. Pernas, para que te quero? A edição de nº 18 da Revista Velhas revelará que as trilhas de longo curso fazem parte de uma diretriz federal que visa fomentar a estruturação de corredores ecológicos e atividades de turismo de natureza gerando renda para comunidades localizadas em áreas biologicamente sensíveis. Nesse contexto, apresentaremos a Transespinhaço, trilha que atravessará a única cordilheira brasileira, testemunha da história evolutiva do planeta e guardiã da biodiversidade brasileira. Caminhemos juntos!


Sumário

Expediente Revista Velhas Publicação Semestral do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas Nº 18 - Novembro / 2023 CBH Rio das Velhas

Com a palavra p. 6

Diretoria Presidenta: Poliana Valgas (Prefeitura Municipal de Jequitibá) Vice-presidente: Ronald de Carvalho Guerra (Associação Quadrilátero das Águas- AQUA)

08

Secretário: Renato Júnio Constâncio (Cemig) Secretária-adjunta: Heloísa França (SAAE Itabirito) Agência Peixe Vivo Diretora-Geral: Elba Alves Silva Gerente de Integração: Rúbia Mansur Gerente de Projetos: Thiago Campos Gerente de Administração e Finanças: Berenice Coutinho Esta revista é um produto do Programa de Comunicação do CBH Rio das Velhas. Produzida pela Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social Direção: Paulo Vilela, Pedro Vilela e Rodrigo de Angelis Coordenação de Jornalismo: Luiz Ribeiro

25 anos do CBH Rio das Velhas sob quatro olhares

20 anos da Expedição ‘Manuelzão desce o Rio das Velhas’

Edição: Luiz Ribeiro e Rodrigo de Angelis Redação e Reportagem: Luiza Baggio, Leonardo Ramos, Paulo Barcala, Tobias Ferraz e Arthur de Viveiros.

p. 14

Revisão: Isis Pinto Fotografia: Bianca Aun, Cuia Guimarães, Fernando Piancastelli, Gisele Melo, Gustavo Abah, Helvécio Martins, João Alves, Léo Boi, Leonardo Barcelos, Lívia Pacheco, Marcelo Andrê, Michelle Parron, Ohana Padilha, Priscila Martins, Rede Minas, Sabrina Nogueira, Shutterstock, Tom Alves; Acervo Pessoal de Ana Paula Fernandes, Carlos Chernicharo, Lívia Pacheco, Marcelo Pompêo, Robert Skalisz, Rodrigo Lemos, Valter Santos, Vilmar da Silva. Ilustrações: Clermont Cintra Projeto Gráfico: Márcio Barbalho Design Gráfico e Diagramação: Rafael Bergo Impressão: ARW Gráfica e Editora Tiragem: 3.000 unidades. Direitos reservados. Permitido o uso das informações desde que citada a fonte.

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Microplásticos: a “doença moderna”


Entrevista: Rodrigo Lemos, forjado pelo Velhas p. 38

42

A importância do produtor rural na proteção ambiental

Trilha de longo curso no Espinhaço

p. 24

E se o esgoto tratado não tivesse como destino os rios? p. 28 União e coletividade contra inundações em Venda Nova, BH Olhares: O Homem de Lagoa Santa nas telonas

34

p. 48

Caeté-Sabará: terra do ouro e da fé p. 52


Com a palavra

Seguindo em frente João Alves

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O CBH Rio das Velhas é um conselho de política pública, composto por entidades e pessoas que têm a missão de construir uma proposta sustentável para o território, por meio da gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos. Em 2023, este Comitê chegou aos 25 anos. E 2023 foi importante não somente por termos chegado a essa marca histórica e expressiva, que evidencia a maturidade deste colegiado. 2023 foi, acima de tudo, um ano de muitas conquistas. A começar pela renovação do Plenário e eleição de uma nova Diretoria para o CBH Rio das Velhas. Concluído em setembro, o democrático processo eleitoral contou com ampla participação das entidades que se farão representadas pelos próximos quatro anos. No que diz respeito à Diretoria, que atuará no próximo biênio, o objetivo maior é somar esforços em prol de mais e melhores águas na bacia hidrográfica. A proposta é termos um olhar voltado à produção de água, com foco principal no Alto Rio das Velhas, pensando na segurança hídrica da Região Metropolitana de Belo Horizonte, mas sem esquecermos da garantia dos usos múltiplos em todo o território.


O saneamento – um grande desafio na bacia do Rio das Velhas, que compromete grande parte da qualidade das nossas águas – também terá um olhar especial por parte do CBH. Buscaremos dar condições para os municípios elaborarem projetos de sistemas de esgotamento sanitário, particularmente saneamento rural, especialmente na região do Médio e Baixo Velhas. Assim, esperamos um rio melhor e mais resiliente com o desenvolvimento dessas ações, combinando realmente água em maior oferta e de maior qualidade ao longo da bacia. Para os territórios predominantemente urbanos, nossa proposta é incrementar ações voltadas à revitalização de áreas verdes e fundos de vale e recuperação de nascentes urbanas. Pretendemos, também, fortalecer os Subcomitês, esse espaço de discussão que propicia a participação de todos os segmentos e onde são apontadas as demandas de cada região. O objetivo é empoderar continuamente os Subcomitês, para que a gente tenha uma gestão cada vez mais descentralizada e participativa ao longo de toda a bacia. Se em 2023 aprovamos uma nova metodologia de cobrança pelo uso da água – o que deve dobrar a arrecadação do CBH Rio das Velhas até 2025, sem onerar o usuário pagador, aumentando as possibilidades de se alavancar mais investimentos previstos no Plano Diretor de Recursos Hídricos – em 2024 será hora

de atualizarmos outro importante instrumento de gestão dos recursos hídricos na bacia: o enquadramento dos corpos d’água em classes, segundo seus usos preponderantes. Se em 2023 o Programa de Pagamento por Serviços Ambientais virou realidade em Itabirito – já remunerando proprietários rurais no Alto Rio das Velhas pelos benefícios ecossistêmicos que prestam à sociedade – em 2024 e nos anos seguintes o objetivo é expandir essa prática de sucesso para mais municípios da bacia hidrográfica. Se em 2023 iniciamos formalmente as ações do Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água nas quatro microbacias consideradas prioritárias, no ano que vem e nos seguintes daremos sequência às demais etapas de implantação das intervenções, monitoramento e assistência técnica. 2024 será ano, também, de lançarmos o nosso Plano de Educação Ambiental, Programa de Saneamento Rural e muito mais. Sigamos! Poliana Valgas Presidenta do CBH Rio das Velhas

Parte do renovado Plenário do CBH Rio das Velhas, durante solenidade de posse, em setembro de 2023.

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Poliana Valgas Presidenta do CBH Rio das Velhas

Conheça as propostas da nova diretoria do CBH Rio das Velhas para o biênio 2023-2025. Assista ao vídeo em bit.ly/propostas-diretoria-2023-2025.


Institucional

Águas, pessoas e olhares 25 anos do CBH Rio das Velhas sob a ótica de quem ajudou a formar este colegiado Texto: Arthur de Viveiros Ilustração: Clermont Cintra

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Um quarto de século do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, colegiado sólido, exemplo para o país inteiro de uma gestão hídrica descentralizada e atenta às demandas e especificidades de cada território que compõe sua bacia. Bacia esta que abarca uma capital como Belo Horizonte e sua região metropolitana, mas também municípios interioranos, rurais, cujas atividades econômicas diferem em gênero, número e grau. Um território diverso, espelhado no CBH Rio das Velhas. Um Comitê se faz com pessoas, atuantes, atentas e dispostas a defender pautas relevantes para sua localidade e para a bacia. No CBH Rio das Velhas não é e nem nunca foi diferente. Ao longo destes 25 anos, pessoas dos quatro cantos da bacia, representantes de poderes público, privado e da sociedade civil, ajudaram a erguer este Comitê, com dificuldades, alegrias, debates e momentos históricos.

1997

Enquadramento dos cursos d’água da bacia em classes

1998

Criação formal do CBH Rio das Velhas

Aqui, passaremos, como um rio, por momentos importantes da história do Comitê, mas sob uma ótica diferente. Quatro destas pessoas nos contam aqui sobre esses anos do CBH Rio das Velhas, partindo da perspectiva particular até a coletiva, com destaque para suas trajetórias dentro do colegiado. Assim, a história é contada de dentro, por aquelas e aqueles que presenciaram momentos singulares do CBH. Entre conversas, histórias, trabalho e representatividade, a palavra de ordem foi “orgulho”.

2003 1ª Expedição pelo Rio das Velhas


Origens, legado e agradecimento ‘Gratidão’. Esse foi o termo que Ademir Martins Bento utilizou para descrever sua relação e trajetória de, como ele mesmo diz, “vinte e poucos anos dentro do Comitê”. Membro histórico, Sr. Ademir se prepara para se aposentar das atividades no Comitê, justamente quando o colegiado completa 25 anos. Conselheiro titular nesse período, ora pelo poder público de Caeté, ora pela sociedade civil, Sr. Ademir chegou ao Comitê por meio do Projeto Manuelzão, a convite do professor e ex-presidente do CBH, Apolo Heringer. “Pouco tempo depois passei a integrar também o CBH Rio das Velhas, que era presidido na época pelo Paulo Maciel. Esse fato valeu como o início de um longo aprendizado que tive no Comitê, muito mais que um curso profissionalizante”, ressaltou.

r.Ademir

Nesse período, Sr. Ademir presenciou e protagonizou alguns momentos marcantes na história do colegiado. Isso porque, participou ativamente da criação de três dos atuais 19 Subcomitês que compõem a estrutura do CBH Rio das Velhas: Ribeirões Caeté-Sabará, Rio Taquaraçu e Águas do Gandarela.

2004

Lançamento da Meta 2010: navegar, pescar e nadar no Rio das Velhas

Sr. Ademir destaca a criação dos Subcomitês como um dos momentos mais marcantes em sua trajetória. “Foram diversos momentos, mas vou enumerar três mais importantes. O primeiro, a criação dos Subcomitês, como ferramentas descentralizadoras das ações do Comitê. Depois, a defesa da Serra do Gandarela como Unidade de Conservação Nacional. E, finalmente, o envolvimento, em corrente de oração, por parte de toda esta família maravilhosa, no período de recuperação do nosso amigo Marcus Vinícius Polignano ex-presidente do CBH Rio das Velhas, que enfrentou a Covid e se recuperou, durante o período mais agudo da pandemia]”, acrescentou. Completando sua trajetória no CBH Rio das Velhas neste ano, Sr. Ademir falou, emocionado, dos sentimentos desta despedida. “Agora que estou me desligando do Comitê, os sentimentos são de satisfação e, ao mesmo tempo, de orgulho por ter contribuído para o fortalecimento dessas ações em defesa das águas de nosso estado. CBH Rio das Velhas em uma palavra? ‘Gratidão’! Por compartilhar de todos os sonhos, de todas as lutas e, principalmente, pelo legado que deixo para todos que seguem nesta missão”.

2004

Elaboração do Plano Diretor de Recursos Hídricos da bacia do Rio das Velhas

2006

Criação dos primeiros Subcomitês do CBH Rio das Velhas

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Participação ativa desde a criação até os dias atuais Engenheiro civil e sanitarista de longa carreira dentro da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), Valter Vilela Cunha participa do CBH Rio das Velhas desde sua instituição, por meio do Decreto Estadual 39.692, de 29 de junho de 1998. Até setembro coordenava o Grupo de Acompanhamento do Contrato de Gestão (GACG). “Desde a sua criação participei, como representante da Copasa, de todos os mandatos. Após minha aposentadoria da Companhia em 2016, continuei no CBH Rio das Velhas como representante da Abes [Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental]. Entre 2000 e 2015, participei de todos os mandatos, como secretário ou vice-presidente”, confirma.

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ValterVilela

Segundo Valter, sua história está diretamente ligada à criação do próprio CBH Rio das Velhas, uma vez que coordenou, pela Copasa, o Programa de Saneamento Ambiental da RMBH (Prosam). Financiado pelo Banco Mundial, o programa deu origem às Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) dos Ribeirões Arrudas e Onça. “Em uma reunião de avaliação no final do Prosam, foi solicitado, pelo Banco Mundial, que o Governo do Estado fizesse uma avaliação qualitativa das águas do R io das Velhas, visando avaliar os impactos do programa. Para tanto foi avaliada e proposta a criação de um ‘Comitê da Bacia’, o que foi feito por meio do decreto”. Nessa longa trajetória, Valter presenciou momentos importantes de evolução deste Comitê, exemplo de pioneirismo no que tange os Comitês de Bacia no Brasil. Dentre eles, Valter cita, assim como Sr. Ademir, a criação dos Subcomitês, em agosto de 2004, como um dos pontos altos. “Além deste, destaco também a elaboração do Plano Diretor em 2004, a Criação da Agência de Bacias Peixe Vivo, entidade que funciona como secretaria executiva do Comitê, em setembro de 2006, e também a estruturação da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, em março de 2009”, completa. Participação, comprometimento e orgulho. Essas foram as palavras de ordem de Valter ao falar sobre o CBH Rio das Velhas. O coordenador do GACC aproveitou para citar nominalmente os presidentes com os quais trabalhou. “Tenho orgulho de participar do Comitê e de ter convivido com inúmeras pessoas que dedicaram parte de sua vida para sua consolidação. Destaco ter colaborado com todos os presidentes do Comitê: Paulo Maciel Junior, Apolo Heringer Lisboa, Rogério Sepúlveda, Marcus Vinicius Polignano e Poliana Valgas”. “Essa participação, para mim, foi muito importante. Aprendi muito e fiz uma rede de contatos preciosa. Tenho orgulho de ter dedicado uma parcela do meu tempo à criação e consolidação do CBH Rio das Velhas. Vi nascer este Comitê, acompanhei seu crescimento e vi sua consolidação, o que nos dá orgulho e satisfação de vê-lo, hoje, como o mais representativo e melhor Comitê de Bacias do Brasil”, finaliza.

2007

Equiparação da Agência Peixe Vivo como Agência de Bacia do CBH

2009 2ª Expedição pelo Rio das Velhas


Luta, aprendizado e participação Cecília Rute de Andrade Silva: um nome muito presente na história do CBH Rio das Velhas. Atualmente como suplente, Cecília já integrou as Câmaras Técnicas Institucional e Legal (CTIL) e a de Outorga e Cobrança (CTOC), além do GACG. Empresária e ambientalista, Cecília foi conselheira titular por “muitos anos” no CBH Rio das Velhas e é também conselheira no Subcomitê Ribeirão Arrudas. Inicialmente ligada ao Projeto Manuelzão, Cecília Rute entrou no CBH Rio das Velhas em 2002, com atuação intensa no enfrentamento à canalização de córregos urbanos. “Nessa época tínhamos muitos córregos sendo canalizados em Contagem e Belo Horizonte, e esses córregos já estavam poluídos. Então, encapei também a luta pela qualidade dessas águas”, completa.

CecíliaRute

Um dos momentos mais marcantes citados por Cecília foi a conquista da sede do Comitê e da consolidação da equipe de mobilização social do colegiado. “Lutamos muito para conseguir uma sede. As reuniões aconteciam cada dia em um local diferente e, com muita luta, conseguimos a sede e a manutenção da equipe de mobilização. Como faríamos o Comitê, como ele é hoje, sem uma sede e sem uma equipe de mobilização? Então, foi um momento de muito orgulho para mim”, afirmou.

2010

Implantação da Cobrança pelo Uso da Água

Ainda sobre a satisfação de fazer parte, Cecília destaca a união, que sempre presenciou, entre os integrantes do colegiado. “Olha, o CBH Rio das Velhas é exemplar, principalmente porque nós, conselheiros e conselheiras, somos unidos. É uma grande família. Este Comitê, hoje, é um exemplo de administração em nível nacional e, até mesmo, internacional, por que não? Ele é um modelo para outros Comitês de Bacia no Brasil inteiro”. Cecília define o CBH Rio das Velhas em uma palavra: aprendizado. “Eu fiz uma faculdade nestes 23 anos. Nenhuma escola ou faculdade vai conseguir me proporcionar a sabedoria que este Comitê me proporcionou. As pessoas, os ensinamentos, aprendi muito sobre a natureza, então tenho sobre o Comitê muito orgulho. Sou muito feliz e amo de paixão o CBH Rio das Velhas”, finalizou.

2010 Lançamento da Meta 2014

2011

Desenvolvimento dos primeiros projetos de recuperação hidroambiental

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Assistam ao vídeo das atividades comemorativas dos 25 anos do Comitê, durante a Semana Rio das Velhas 2023: bit.ly/semana-riodasvelhas-25anos

2017 3ª Expedição pelo Rio das Velhas

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2012 Elaboração dos primeiros Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSBs)

2015

Atualização do Plano Diretor de Recursos Hídricos da bacia do Rio das Velhas

2017 Lançamento do Programa ‘Revitaliza Rio das Velhas’


Preservação e respeito “Trabalhar pela preservação”. Nessa frase está a importância do CBH Rio das Velhas para Heloísa Cristina França Cavallieri, conselheira titular do Comitê, atual secretária-adjunta e e membro dos dos Subcomitês Rio Itabirito, Nascentes e Águas da Moeda. Heloísa, representante do Serviço Autônomo de Saneamento Básico (SAAE) de Itabirito, entrou em contato com o CBH Rio das Velhas pela primeira vez no início dos anos 2010. “Eu fui conhecer o Comitê em abril de 2011, quando iniciei minhas atividades aqui no SAAE e o órgão já fazia parte do CBH Rio das Velhas e do Subcomitê Itabirito”, acrescenta.

HeloísaFrança

Heloísa conta que não conhecia o Comitê anteriormente, mas que a identificação foi instantânea. “Me identifiquei. Desde a faculdade, me desdobrava sobre a questão do saneamento e dos recursos hídricos, então criei logo esse laço com o Comitê”.

2021

Lançamento do Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água

“Eu costumo falar que todo momento acaba sendo marcante, seja um processo na CTOC, no qual eu conheço outras sub-bacias, por exemplo, mas toda Plenária é muito marcante. É um momento ímpar, a forma com que os conselheiros colocam suas defesas, seus comentários, são formas diferentes de enxergar a bacia, o território, mas isso acontece de forma muito respeitosa e nunca pessoal, mesmo em discussões bem acirradas”, destacou. Sobre a composição do CBH Rio das Velhas, Heloísa reconhece a importância de todos os agentes que compõem o colegiado e que trabalham pela constante melhoria do Rio das Velhas e de sua bacia, mas destacou, em especial, a participação da sociedade civil neste processo. “Essa força de vontade é muito bonita, essa relação é por amor. Elas representam uma associação, mas as pessoas estão ali por gostarem do rio, do que elas fazem e pela vontade de trabalhar pelo rio”. “O CBH Rio das Velhas em uma palavra? Para a minha representação, usuária do saneamento, seria ‘respeito’. Isso porque, precisamos respeitar o território, respeitar as águas, e no meu setor de saneamento não se vive sem água. A água é meu produto, se não existe nada em matéria de preservação, de volume de água disponível, o SAAE não tem nem de onde tirar a matéria prima para nosso trabalho”. Ela completa. “Tenho muito orgulho da minha relação com o Comitê, da credibilidade, da aceitação com que os colegas me tratam, como o plenário tem esse respeito por mim, que represento uma entidade usuária, de saneamento municipal”, finaliza.

2023

Atualização da metodologia da Cobrança pelo Uso da Água

2023

Lançamento do primeiro programa de Pagamento por Serviços Ambientais na bacia

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Expedição

20 anos da Expedição ‘Manuelzão desce o Rio das Velhas’ Por Paulo Roberto Varejão e Apolo Heringer Lisboa Fotografias: Cuia Guimarães

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Expedição percorreu os 806 km do Rio das Velhas, da nascente à foz, em 29 dias. Assista ao vídeo em bit.ly/expedicao-2003


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No dia 12 de setembro de 2003 tinha início a Expedição Manuelzão Desce o Rio das Velhas, marco cronológico da maior significação para a História do Ambientalismo em Minas Gerais, com ampla repercussão nacional. Durante 30 dias, uma pequena flotilha fluvial percorreria todo o curso daquele rio – cerca de oitocentos quilômetros – desde a sua nascente na Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, até a sua foz no Rio São Francisco, nas proximidades de Barra do Guaicuí, distrito de Várzea da Palma, logo a jusante de Pirapora. À testa daquela armada brancaleônica composta por uma plêiade de caiaques e canoas canadenses, guarnecida por uma lancha da Polícia Militar Ambiental, estavam os três caiaqueiros oficiais do Projeto Manuelzão: Paulo Roberto Furtado de Azevedo Varejão, professor de História da Educação da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Rafael Guimarães Bernardes, transportador autônomo e ambientalista, e o produtor rural e ambientalista militante Ronald de Carvalho Guerra.

O Projeto Manuelzão nasceu em 1997 na Faculdade de Medicina da UFMG, tendo sido idealizado por Apolo Heringer Lisboa, professor daquela instituição e veterano militante em prol das liberdades democráticas em nosso país, desde a resistência à Ditadura Militar até sua posterior adesão ao movimento ecológico. Apolo emprestou ao Projeto Manuelzão todo aquele sentido de compromisso que a Universidade deve ter com a transformação da sociedade, o que infelizmente tem sido esquecido nos últimos tempos. Tendo a Expedição como objetivo imediato, a mobilização pela revitalização de toda a bacia do Rio das Velhas, manifesta sinteticamente na fórmula da volta do peixe às suas águas, o Projeto Manuelzão ousou propor, no início de 2003, uma expedição que percorresse toda a calha do rio da nascente até a foz. Nesse sentido, começaram a trabalhar, junto com o professor Apolo, os demais coordenadores do Projeto, a saber: os professores Marcus Vinicius Polignano, Thomaz da Matta Machado, Tarcísio Pinheiro e o Antônio Leite, que já nos deixou, vítima de um lamentável episódio de violência urbana. Menção especial deve também ser feita ao professor Eugênio Marcos Andrade Goulart, editor do primoroso livro que imortalizou a Expedição e reuniu em seus capítulos importantes contribuições de estudiosos da bacia do Velhas.


Em cada parada, o grupo da expedição era recebido pelas comunidades locais, escolas e população em geral.

Mais sobre a Expedição

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A projetada Expedição tinha por alvo promover uma ampla mobilização social em todos os rincões da bacia do Velhas, com 51 municípios, bem como diagnosticar o alcance das condições de degradação naquele momento de suas águas, reflexo das condições de toda a área deste território hidrográfico, estabelecendo como parâmetro de comparação a situação de higidez ecológica do rio em 1867, quando por ele navegou o explorador inglês Richard Burton (1821 – 1889). Se o vaqueiro Manuel Nardi emprestou, com justiça, o seu nome ao Projeto, este encontrou em Burton, retrospectivamente, um intérprete apaixonado. Alguém que teve a sensibilidade de antever, ainda no século XIX, a transcendental importância para o Brasil da bacia do Velhas, 130 anos antes de dela se dar conta, o Projeto nascido na Medicina da UFMG quando as grandes mortandades de peixes assolaram o Rio das Velhas tendo como epicentro causal a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Burton foi um inglês sob inúmeros aspectos bastante singular. A ele se atribuía uma ascendência irlandesa, o que o tornava suspeito aos mais ortodoxos anglo-saxões. Tinha um tom de pele bastante moreno, nada usual para um inglês, além de olhos e cabelos escuros, o que lhe permitiu de certa feita passar por árabe e ingressar na cidade santa de Meca. Foi capitão das tropas coloniais inglesas na Índia, e seus colegas oficiais o chamavam de “Negro Branco”. Preferiu, então, exercer funções de espionagem dentro das comunidades nativas do subcontinente, para as quais muito ajudou a sua habilidade de aprender línguas. Tornou-se um mestiço cultural. Destacado para servir na colônia portuguesa de Goa, lá aprendeu o idioma de Camões, de quem mais tarde traduziria para o inglês “Os Lusíadas”. Vendo muitas vantagens no projeto colonial português em relação ao inglês nas Índias, projetou estudar de perto o Brasil, que ele via como sendo uma Goa Portuguesa em ponto grande. Tendo obtido o lugar de cônsul da Inglaterra em Santos, de lá organizou a expedição na qual, pilotando uma canoa, desceria os Rios das Velhas e São Francisco desde Sabará até o Oceano Atlântico.

A Expedição Manuelzão Desce o Rio das Velhas percorreria cada etapa de sua viagem de olhos postos nas anotações de Burton. A sensibilidade mestiça do inglês conseguiu captar como poucos a alma profunda de um povo mestiço como o brasileiro. Comparou o convento de Macaúbas com outro muito semelhante na Índia Portuguesa. Surpreendeu alunos de uma escola em Barra do Guaicuí aprendendo a ler pelo método de repetir sabatinas cantadas, bem à moda árabe. O Brasil aos seus olhos se orientalizava. O mesmo sucedia com os navegadores da Expedição Manuelzão Desce o Rio das Velhas. Meio que sem o saberem, mobilizavam no seio das populações ribeirinhas que acessavam memórias antigas, ocultas no inconsciente coletivo dos povos da bacia, que reconhecia na epopeia dos caiaqueiros do Manuelzão aquela mesma gesta de seus antepassados, os quais povoaram as Gerais a partir, exatamente, de armadas canoeiras que singraram o Velhas e o Velho Chico. Gente no mais das vezes mameluca, cujos olhos amendoados lembravam os de uma Ásia ainda presente no sangue indígena, de permeio com negros muitos deles adeptos da fé de Maomé. Foi a esse Brasil Profundo que a Expedição de 2003 contribuiu para resgatar a sua autoestima. A espontaneidade das manifestações de regozijo com que os caiaqueiros eram recepcionados nas localidades situadas no leito do Velhas eram um testemunho eloquente da força de um povo desejoso de tomar de novo os seus destinos nas mãos. Que o digam os responsáveis pela Equipe de Mobilização, Comunicação e Eventos da Expedição, como o professor da Comunicação Elton Antunes e o engenheiro Rogério Sepúlveda, sabarense de lei. Sabarense também o era o performático canoeiro Emerson “Caverna”, que há pouco tempo também nos deixou. Aliás, vale fazer referência a algumas das figuraças que se juntaram voluntariamente à equipe original dos três caiaqueiros do Manuelzão. Como esquecer do ” Galo Velho”, canoeiro de Sete Lagoas? Do Fabrício e do “Vera Verão”, de Rio Acima?


Mencionar essa gente é questão de justiça, pois a Expedição foi uma ampla experiência coletiva. No âmbito da UFMG, foi de fundamental importância a ação dos motoristas Gilson, Zé Resende (Moranga), Robertinho e Cláudio, o fogueteiro, já falecido. Das meninas da Educação Física que nos acompanharam (obrigado, professor LOR!). Da Equipe de Comunicação, como o Louraidan e a Marina. Também tivemos a colaboração do IEF (Alberto) e do IMA, com os dois Alex. A competência da fotógrafa Cuia, dos cinegrafistas Rodrigo Pipi e Gustavo Abah. Fundamental também a parceria já citada com a Polícia Militar, lembro do Cabo Nascimento, entre tantos outros por citar, da polícia ou não, aos quais peço desculpas pela omissão, mas são tantos… Por fim, agradável surpresa, a nós se juntou o Nelson Araújo, do Globo Rural, que produziu um completo documentário de nossa Expedição, que foi ao ar em duas edições do seu programa na transição de 2003 para 2004. A Expedição cumpriu os objetivos a que se propunha? Tornou-se realidade a Meta 2010, que pressupunha que naquele ano se poderia nadar, pescar e navegar no Rio das Velhas, dentro da Região Metropolitana de Belo Horizonte? Infelizmente, não. Nem a Meta 2010, nem a tentativa de completa-la na íntegra com a Meta 2014. O componente estatal não cumpriu com a sua parte! Todavia, uma semente ficou. A memória da Expedição permanece, ainda que difusamente, na medida em que ela não se constituiu em mera atividade pontual de mobilização, mas sim que soube tocar o nervo exposto da ancestralidade dos povos da bacia, gente meio branca, meio índia, meio negra da qual os ribeirinhos descendem, gente que tão bem Guimarães Rosa interpretou. Aquela gente já teve um primeiro lampejo de consciência de que, enquanto sertaneja, é a “rocha viva da Nacionalidade”, como já o disse Euclides da Cunha. O batismo com Manuelzão marcou esse momento da história de Minas Gerais, como lampejo inaugurando de forma participativa e científica a questão ambiental como política de Estado.

Iniciativa teve alcance significativo no envolvimento das comunidades, prefeituras e associações, exposição na mídia e reverberação na agenda pública-política.

Aquele despertar da consciência ao qual acabamos de fazer menção é, outrossim, um indicador seguro de que foi alcançado, na ocasião, o objetivo maior do Projeto Manuelzão, cuja razão de ser está no compromisso de promover uma Transformação Ecossistêmica da Mentalidade Social e do modo de se reproduzir a vida na Terra, compatibilizando a História Cultural com a base herdada da História Natural. Nesse sentido, a proposição da volta do peixe a todos os espaços das calhas da bacia do Velhas se constitui, precisamente, em um indicador biossocial da almejada mudança de mentalidade. Esse não é e nem pode ser um projeto acadêmico restrito aos ambientes de gabinete e salas de aula apenas, mas antes aposta na viabilidade de um empreendimento científico que envolva múltiplos parceiros, da seara universitária e de fora dela, de modo a assumir a feição de um autêntico Doutoramento Coletivo a céu aberto. No caso da Expedição de 2003, a descida do rio teria correspondido simbolicamente à defesa de uma Tese, delineada na prática tanto pelos expedicionários quanto pelos ribeirinhos que, naquele ano, deram um salto quântico em termos de abertura da mente, de compreensão holística das relações entre a Humanidade e o Meio Ambiente, culminando numa percepção ampliada de seu papel enquanto agentes da Cidadania. Um povo consciente e desperto irá, mais cedo do que tarde, tomar o seu destino das mãos. Um destino que se confunde com o do Rio das Velhas, com o de seus peixes e com a sua vocação de se tornar o eixo de um Brasil Livre, Soberano e Socialmente Justo. Esse é o principal legado da Expedição Manuelzão Desce o Rio das Velhas: como ação política, como método científico e como estratégia. O Projeto Manuelzão deu uma arrefecida, mas tendo se tornado uma referência renasce das cinzas como Fênix emergindo renovado da poda que restaura o verde. Somos como peixe de piracema subindo rio acima contra a corrente e a favor da vida.

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Degradação

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Microplásticos podem se tornar o mais importante contaminante ambiental do planeta


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Brasil tem pesquisa incipiente e nenhuma legislação específica Texto: Paulo Barcala

Apesar de ser objeto de pesquisas desde os anos 1970, só mais recentemente, há coisa de uma década, a poluição dos recursos hídricos causada por micro (MP) e nanoplásticos (NP), bem como seus efeitos sobre as águas, a fauna, os seres humanos e o meio ambiente, entrou de vez no radar de cientistas e organismos internacionais. As pesquisas, embora incipientes, já apontam uma gama de problemas que podem resultar dessa “doença moderna”. Os microplásticos, partículas com diâmetro entre 0,1 e 5 mm, estão amplamente distribuídos em oceanos, rios, lagos, reservatórios, estuários, regiões polares, estações de tratamento de esgoto e água potável. De acordo com dados da Plastics Europe, associação comercial que representa fabricantes de plásticos daquele continente, a produção global do setor atingiu 368 milhões de toneladas em 2020. Estima-se que, desse total, 94% sejam destinados a aterros sanitários ou liberados no meio ambiente natural. O artigo “Peixe e plástico em ecossistemas de água doce: contribuição da ciência brasileira e pesquisas futuras”, de diversos autores, revela que o Brasil ocupa o 4º lugar no ranking dos maiores produtores de resíduo plástico no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia. Anualmente, o país gera cerca de 11,4 milhões de toneladas de resíduos.

Partículas com diâmetro entre 0,1 e 5 mm, os microplásticos estão amplamente distribuídos em oceanos, rios, lagos, reservatórios, estuários, regiões polares, estações de tratamento de esgoto e água potável.

O trabalho integra a publicação “Microplásticos nos ecossistemas: impactos e soluções”, editada pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, em 2022, e organizada pelos pesquisadores Marcelo Pompêo, Bárbara Rani-Borges e Teresa Cristina Brazil de Paiva. No prefácio, vem o alerta: “Os estudos recentes sugerem que, a seguir com o uso generalizado que fazemos, e com o pouco cuidado que temos no adequado reuso ou descarte daqueles plásticos que consideramos desnecessários, o plástico tem o potencial de ser o mais importante contaminante ambiental do planeta”.

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20 Clermont Cintra


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Viagem pela cadeia alimentar Um dos múltiplos impactos dessa modalidade de poluição é sobre a vida aquática. Pesquisa de 2020 da bióloga Bruna Urbanski analisou os índices de plásticos encontrados no curimbatá, espécie amplamente consumida no Brasil, e localizou essas partículas no trato digestivo de cerca de 72% dos peixes estudados. A pesquisa, que alçou Urbanski, no meio do percurso, do mestrado ao doutorado em Ecologia de Ecossistemas pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, concentrouse no Rio Tietê e em seu afluente Rio do Peixe, em São Paulo. Foi o “primeiro relato de ingestão de MPs por essa espécie no Brasil”. Antes “só havia estudos em sistemas estuarinos e em dois outros rios”. Urbanski, nas atividades em campo, viu “um Tietê de água e outro de plástico”, com “oxigênio zero desde a superfície”. Caminho aberto, os rios conduzem ao mar tudo o que recebem. O efeito é que as espécies marinhas, de plânctons e moluscos a aves, tartarugas e mamíferos, enfrentam riscos de envenenamento, distúrbios comportamentais, fome e asfixia. Corais, mangues e ervas marinhas também são sufocados por detritos que os impedem de receber oxigênio e luz. O corpo humano é igualmente vulnerável à contaminação por MPs, pela água “potável” ou ingeridos através de peixes, frutos do mar e até mesmo sal comum. Além disso, os MPs e NPs podem penetrar na pele ou serem inalados do ar.

Marcelo Pompêo, doutor em Ciências da Engenharia Ambiental e professor da USP na capital paulista, afirma: “O NP poderá ser transferido de uma célula para outra. Já foi detectado na placenta, no sangue, mas não se sabe o que poderá causar”. Urbanki acrescenta: houve detecção também “no leite materno, na placenta e em fezes de bebês”.

Água doce Das mesma publicação da USP, o artigo “Microplásticos em sedimentos de rios: estudo de caso do Rio Sorocaba”, de Renan Bernardo, Marta Severino Stefani e Welber Smith, admite que “os trabalhos que incluem microplásticos em sedimentos de ecossistemas de água doce ainda podem ser considerados incipientes, especialmente no Brasil”, mas veem que “um agravante envolvendo essas micropartículas” é “sua capacidade de sorver diversos poluentes na matriz polimérica” fazendo com que o MP “se comporte como vetor químico de compostos altamente tóxicos”. Pompêo confirma: “O MP pode causar mal pela própria estrutura e pelo que pode carrear em compostos químicos que ficam adsorvidos. Quanto menor, mais problemático pode ser. Mais compostos na mesma massa”.

Brasil ocupa o 4º lugar no ranking dos maiores produtores de resíduo plástico no mundo.

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Professor da USP, Marcelo Pompêo lembra que microplásticos já foram detectados na placenta e sangue humanos.

Acervo Pessoal

Os estudos apontam para riscos de alterações hormonais, distúrbios de desenvolvimento ou metabólicos, neurotoxicidade, aumento do risco de câncer e anormalidades reprodutivas, essas últimas “já verificadas em peixes”, aponta Bruna Urbanski.


ONU e clima

Lei

Em outubro de 2021, trabalho divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) recomendou “redução drástica do plástico desnecessário, evitável e problemático, crucial para enfrentar a crise global de poluição”.

Ainda não existe legislação brasileira que determine monitorar a presença de MPs nos ecossistemas para avaliar seus impactos na qualidade destes, na vida da biota e dos seres humanos.

Os autores Caio Rodrigues Nobre, Leticia Fernanda da Silva [ambos do Instituto de Biociências da Unesp] e Beatriz Barbosa Moreno, do Departamento de Ciências do Mar da Universidade Federal de São Paulo, confirmam e chamam atenção para a influência que o MP tem no sequestro de carbono realizado pelo oceano.

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Esse ambiente é “o maior sumidouro natural de CO2 e tem papel essencial na mitigação do aumento do nível de dióxido de carbono atmosférico e do aquecimento global. A presença dessas partículas na superfície da água pode afetar a incidência de luz e atrapalhar a fotossíntese e o crescimento do fitoplâncton, que utiliza o CO2 presente na água para realizar seus processos fisiológicos e é responsável pela produção de 80% de todo o oxigênio da Terra”. O PNUMA pediu no ano em curso “a redução da poluição plástica em 80% em todo o mundo até 2040”. O novo documento reforça a necessidade da “mudança para abordagens circulares, incluindo práticas de consumo e produção sustentáveis, o desenvolvimento e adoção rápida de alternativas pelas empresas, e uma maior conscientização do consumidor”.

Abastecimento O artigo “Microplásticos em sistema de água doce: eficiência das estações de tratamento e presença em águas de abastecimento público”, de diversos autores do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) constata que “a presença de MPs e NPs na água potável está diretamente relacionada com a eficiência de remoção das estações de tratamento de água”. No Brasil, pesquisa realizada no Lago Guaíba, principal manancial de abastecimento de Porto Alegre, identificou concentrações elevadas de microplásticos, na faixa de 11,9 a 61,2 itens/m3. Para efeito de comparação, no Rio Elbe, na Alemanha, a média foi de 5,7 itens/m3, e de 1,9 a 17,9 itens/m3 no Rio Chicago, nos Estados Unidos. Na outra ponta, o Rio Braamfontein Spruit, na África do Sul, em Joanesburgo, apresentou concentração entre 160 e 208 itens/m3.

Contaminação do ser humano pode levar a alterações hormonais, distúrbios de desenvolvimento ou metabólicos, neurotoxicidade, aumento do risco de câncer e anormalidades reprodutivas.

Pompêo lembra que “ETAs e ETEs foram construídas com finalidades específicas a uma época. Se não fizer modificações, não vão reter MP e outros compostos. As operadoras seguem a legislação, e microplásticos não fazem parte da legislação que obrigue as companhias a saber quanto passou ou ficou retido nos tratamentos”. A Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), maior concessionária da bacia do Rio das Velhas, informou que “a discussão sobre a poluição causada por microplásticos e nanoplásticos é muito recente e está concentrada em ambiente acadêmico”, e que “ainda há um amplo campo de pesquisa a ser explorado, principalmente no que tange à necessidade de conhecimento do impacto destes contaminantes nos sistemas de água”. A companhia que atende mais de 600 municípios mineiros diz estar “atenta ao tema” e garante que “iniciou, neste ano, estudos relacionados à temática dos microplásticos com a elaboração de um projeto de pesquisa” vinculado ao seu Programa de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação, além da “colaboração na coorientação de um trabalho de conclusão de curso em parceria com a UFMG”, em andamento.

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A análise enfatizava que o plástico também é um problema climático. Usando uma análise de ciclo de vida, estimou-se que, em 2015, os plásticos estavam ligados à produção de 1,7 gigatoneladas (Gt) de CO2 equivalente, número que pode chegar, em 2050, para 6,5 Gt, ou dramáticos 15% do orçamento global de carbono – que é a quantidade de CO2 que ainda pode ser emitida para que o planeta tenha ao menos 50% de chance de manter a elevação da temperatura abaixo de 1,5ºC até 2100.


Acervo Pessoal

Soluções para o problema vão ganhar prêmio A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) lançaram o concurso “Desafio Saneamento do Futuro: rios sem plástico” e vão premiar soluções inovadoras que incorporem tecnologia digital para reduzir a quantidade de plásticos nos corpos hídricos brasileiros. O processo ocorrerá em duas etapas, cada qual com edital próprio e premiação de R$ 990 mil. A primeira, conduzida pela ANA, contemplará os nove melhores projetos, em estágio de protótipo, distribuídos em três categorias: Social, Gestão Pública e Indústria. Na fase seguinte, a ABDI distinguirá três ideias entre as selecionadas pela ANA, com o objetivo de aumentar a escala e estimular seu lançamento no mercado.

Futuro Valter Azevedo-Santos, doutor em zoologia pela Unesp de Botucatu e docente no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Tocantins, aponta: “O número de pesquisas sobre poluição por plásticos em ecossistemas brasileiros tem aumentado, mas precisamos de mais investimento em estudos científicos. A poluição por plástico ainda precisa ser estudada em diferentes ecossistemas do país, com o intuito de facilitar políticas locais e com foco específico”.

Fernando Piancastelli

Doutor em zoologia, Valter Azevedo-Santos diz que estudos na área podem facilitar políticas locais e com foco específico.

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Ele vê “com otimismo todo início de governo” e está “confiante” na possibilidade de adoção de “novas políticas para conter a poluição por plástico” face aos sinais emitidos por Brasília sobre “questões ambientais diversas”. As peças começam a se mover mais depressa. Nos últimos dias 15 e 16 de junho, São Paulo sediou o 1º encontro científico sobre MPs no Brasil. Segundo Pompêo, o objetivo é “criar a Associação de Estudos sobre MP” e dar partida para o 1º Congresso Brasileiro de Meio Ambiente e Microplásticos. Valter Vilela, conselheiro do CBH Rio das Velhas representando a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES), destaca que a “preservação dos recursos hídricos é fundamental para o bem-estar da vida humana” e vê nos microplásticos “uma grande ameaça para os recursos hídricos, já que eles se acumulam em rios, lagos e oceanos”. Para ele, o “maior problema é que essas partículas são muito pequenas e os processos de tratamento de água convencionais não conseguem retirá-las”. O CBH Rio das Velhas, defende, “tem um papel importante em divulgar e conscientizar seus membros e a sociedade em geral para o problema do descarte dos plásticos no meio ambiente”. O Comitê, diz, “poderá lançar campanha para divulgar a proposta do PNUMA de Reutilizar, Reciclar e Reorientar, e também deverá acompanhar e divulgar o Acordo Internacional de Paris”.

Maior concessionária da bacia do Rio das Velhas, Copasa informa ter iniciado estudo sobre o tema em parceria com UFMG.


Produção, preservação e serviços ambientais 24

Produtores rurais semeiam os conceitos de sustentabilidade e toda a sociedade colhe os benefícios Texto: Tobias Ferraz

Sabrina Nogueira

Preservação


A produção agropecuária é cheia de riscos. Uma propriedade rural é uma fábrica a céu aberto, portanto, sujeita aos humores do clima, como a seca, e do desequilíbrio da natureza, como ataque de pragas e doenças nas plantações. Mais recentemente, em razão da crise climática e ambiental, muitos segmentos já sentem também as pressões comerciais pela preservação do meio ambiente. A fim de estimular a produção sustentável, a preservação do território e o reconhecimento do produtor rural pelos bens ecossistêmicos prestados à sociedade, o CBH Rio das Velhas fomentou, no município de Itabirito, o primeiro Programa de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) de toda a bacia. O instrumento tem remunerado proprietários rurais da microbacia do Ribeirão Carioca pela proteção, restauração de ecossistemas naturais e conservação do solo em áreas estratégicas para produção de água. Eles são considerados “produtores de água”. O pecuarista Ailton Faria é um deles. Ele compreendeu a necessidade de recuperação e preservação das três nascentes em sua propriedade e aderiu ao Programa. Os três olhos d’água foram cercados e protegidos, e cerca de 1,7 mil mudas de espécies nativas foram plantadas para reforçar o trabalho de restauração. Além de ver todos esses benefícios em sua propriedade, ele ainda recebe R$ 240 por hectare/ano pelos serviços ambientais que presta. O sítio em Itabirito tem 65 hectares e a área preservada ocupa 20 hectares, cerca de 30% da propriedade – mas isso não é preocupação para Ailton. “Eu não perdi área, eu vou ganhar mais ainda no futuro pelo fato de não secar as nascentes.” A preocupação do Ailton é com a falta de informação. “Eu e outros produtores rurais temos a preocupação com a conscientização que o povo tem que ter, principalmente os sitiantes, os donos de fazendas, de preservar as nascentes e contribuir fazendo a nossa parte. Esse trabalho que vem sendo feito pelas organizações é muito importante porque a água está acabando. Se cada um fizer a sua parte com conscientização, vai ajudar muito no futuro, vai valorizar a sua terra.”

25 30% da propriedade do pecuarista Ailton Faria, hoje, é preservada. “Eu não perdi área, eu vou ganhar mais ainda no futuro pelo fato de não secar as nascentes”, garante.

Liderado pelo CBH Rio das Velhas, o PSA em Itabirito tem a parceria da Agência Peixe Vivo, do Subcomitê Rio Itabirito, da Prefeitura de Itabirito, da ONG internacional The Nature Conservancy (TNC) e da Coca Cola do Brasil.

Seminário em Itabirito, em junho, reconheceu os produtores rurais e apresentou a iniciativa a toda a sociedade. Ao todo, dez proprietários rurais da microbacia do Ribeirão Carioca, em Itabirito, tiveram melhorias ambientais em suas terras e ainda estão sendo remunerados por isso.

Quer saber mais sobre a experiência do PSA em Itabirito? Assista ao Seminário na íntegra: bit.ly/seminario-psa-itabirito-integra


Sabrina Nogueira

Produzir onde falta

Essa realidade levou o produtor de hortaliças Marcelo Nunes a sair em busca de alternativas para a redução do consumo de água na propriedade. Ele adotou o plantio direto na palha para os canteiros, aprimorou o sistema de canalização para evitar vazamentos, ajustou os horários para a irrigação, com apoio técnico do Comitê, construiu curvas de nível e melhorou as barraginhas que coletam as águas das chuvas que chegam por gravidade nos canteiros. O resultado foi surpreendente.“Depois desse conflito conseguimos reduzir o nosso consumo em, no mínimo, 50%. Eu irrigava a alface todos os dias, com o plantio direto eu posso irrigar dia sim, dia não, e reduzir o tempo da rega.” Ações sustentáveis promovidas pelo produtor rural Marcelo Nunes (2º da esq. para a dir.) reduziram o consumo de água na propriedade em 50% e renderam prêmio.

Léo Boi

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Em outra região, no município de Caeté, na microbacia do Ribeirão Ribeiro Bonito, a falta de água já acendeu a luz de alerta. É o único trecho da bacia do Rio das Velhas onde foi decretado conflito pelo uso da água, quando o consumo é maior do que a oferta. Por causa disso os usuários de recursos hídricos daquele território precisam de uma outorga coletiva para o uso, um processo acompanhado pelo Comitê de Bacia Hidrográfica.

João Alves

Assista ao vídeo e saiba mais sobre o Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água do CBH Rio das Velhas: bit.ly/programa-psa-riodasvelhas

Microbacia do Ribeirão Ribeiro Bonito, em Caeté, é o único trecho da bacia do Velhas onde há conflito pelo uso da água declarado - quando o consumo é maior do que a oferta.

Para mudar cenário no Ribeirão Ribeiro Bonito, CBH Rio das Velhas desenvolve Programa de Conservação Ambiental e Produção de Água. Em destaque: lançamento da iniciativa em Caeté, em junho de 2023.

Esse conjunto de ações rendeu ao Marcelo o Prêmio Sicoob de Produtor Rural Sustentável 2023, uma forma de reconhecimento para os produtores que adotam práticas de produção em harmonia com o tripé econômico, social e ambiental. Também a fim de mudar o cenário de escassez na microbacia do Ribeirão Ribeiro Bonito, o CBH Rio das Velhas desenvolve o seu Programa de Conservação e Produção de Água, conjunto de ações com o objetivo de maximizar o potencial de produção de água nas sub-bacias hidrográficas. Técnicas como bacias de captação de água das chuvas, terraços, cercamento de nascentes, restauração florestal, preservação e recuperação de áreas degradadas vão permitir captar a água que escoaria pelo território e fazer com que ela infiltre e recarregue o lençol freático. “Nós pretendemos, de forma integrada, aumentar a produção de água nas microbacias, bem como aumentar a recarga, possibilitando que essa água vá para o solo, que é onde a gente precisa, para manter o sistema vivo”, aponta Poliana Valgas, presidenta do CBH Rio das Velhas. O Programa de Conservação e Produção de Água é integralmente financiado com recursos oriundos da cobrança pelo uso da água na bacia.


Segundo a bióloga Janaína Mendonça, analista ambiental do Instituto Estadual de Florestas (IEF), que também é presidente do CBH do Rio Mucuri, as áreas de preservação permanente e o trabalho de restauração florestal vão, aos poucos, se consolidando como peças de ligação entre as manchas de vegetação nativa e isso vai permitir a diversidade genética entre as espécies, evitando o acasalamento entre parentes. “Um exemplo disso, que aconteceu em Minas, foi a criação do Corredor Ecológico Sossego-Caratinga, onde a gente tem o muriqui-do-norte, o maior primata das Américas, e entre as Reservas Particulares do Patrimônio Natural de Caratinga e Simonésia, a gente tem de fazer essa conexão. A gente vai formar de forma ‘voluntária’ esse grande corredor nesse movimento de criação de uma matriz favorável para a natureza, com boas práticas agrícolas e com a recuperação dessas áreas protegidas por lei. São essas conectividades que vão garantir a biodiversidade a longo prazo.” A analista ambiental do IEF também cita uma pesquisa que aponta maior produtividade nos cafezais próximos às áreas com floresta, por causa da maior população de insetos e aves polinizadores e pelo fato de que, muitos deles, também fazem o controle biológico de insetos não desejáveis para o ambiente produtivo, ou seja, alimentam-se dos insetos-praga. A pesquisa é uma parceria entre o Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), Universidade de Brasília (UnB) e Universidad Nacional de Rio Negro (Argentina) para investigar o papel das florestas na produção cafeeira. A equipe de pesquisadores usou dados de 610 municípios dos estados da Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Paraná para analisar as relações entre a produção anual média de café, cobertura florestal em torno das lavouras e área de floresta total em cada município. A pesquisa constatou, entre outros fatores, que os municípios mais produtivos são aqueles onde a área ao redor das lavouras tem 20% ou mais de floresta.

“Eu costumo falar que são três PSAs. Toda bacia hidrográfica e toda propriedade rural precisa ter um Plano de Segurança Ambiental – este é o primeiro PSA. Nós precisamos cessar o processo de degradação que nós causamos. O Plano de Segurança vai nortear para diminuir as externalidades negativas da nossa presença naquele espaço, cuidando da segurança da água, dos fragmentos florestais, do solo etc. Tem o segundo PSA que é a Prestação de Serviços Ambientais. Você vai contratar um agricultor prestador de serviço. Esse serviço é remunerado e aí que vem o terceiro PSA que é o Pagamento por Serviços Ambientais. Por isso o pagamento não pode ser um “ajutório” para o agricultor. Ele tem de ser um financiador da evolução, tem de financiar a agricultura de serviços, em que o agricultor passa a querer produzir um serviço de qualidade. Nessa linha de evolução vai ficar entendido o que é produzido. Um agricultor produz ambientes produtivos, não é soja, não é milho, não é boi. Ele produz nesses ambientes produtos econômicos e serviços. São os serviços da agricultura coletiva, os serviços da bacia hidrográfica que vão alimentar o tecido urbano”, conclui. Janaína Mendonça (IEF) tem costurado integração do PRA Produzir Sustentável no Alto Velhas com o CBH e Subcomitês.

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Sabrina Nogueira

Outro instrumento adotado para auxiliar os produtores rurais é o Programa de Regularização Ambiental (PRA), para quem aderiu ao Cadastro Ambiental Rural (CAR). Em Minas Gerais, o programa se chama PRA Produzir Sustentável e também prevê uma série de ações de preservação, conservação, produção de água e amparo à biodiversidade.

Para o engenheiro agrônomo Afonso Peche Filho, pesquisador do Instituto Agronômico (IAC), cada vez mais a gestão dos recursos naturais deve ser conduzida de forma compartilhada entre o poder público, entidades, organizações e membros da sociedade. Por isso ele denomina os moradores da área rural e da área urbana como “povos das bacias” pelo importante papel que a bacia hidrográfica tem como unidade geradora de produtos e serviços.

João Alves

Maior produtividade onde há floresta


Saneamento

Esgoto útil 28

Subprodutos do tratamento de esgoto lançados no rio matam – mas, se bem manejados, podem ser fonte de vida Texto: Leonardo Ramos

Nutrientes em excesso na água podem causar a eutrofização, que faz proliferar as plantas aquáticas e algas.


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Cortada pelo Rio das Velhas, a cidade centenária de Jequitibá, antigo distrito de Sete Lagoas, deve sua fundação ao rio. Localizada no Médio Rio das Velhas, o município que recebeu seu nome da maior árvore da Mata Atlântica sofre, anualmente, os efeitos da escassez hídrica bem de perto. Nos meses de estiagem, suas águas mudam de cor e, na superfície, aguapés podem ser vistos. Embora os próprios aguapés não ofereçam riscos à saúde humana, eles são indicadores de que algo mudou no rio.

Rede Minas

Geraldo Ladim, mais conhecido por Seu Ladim, um dos pescadores mais tradicionais da região de Jequitibá, sabe ler essas mudanças do rio, como a cor esverdeada e a falta de peixes. “De 50 anos pra cá, o Rio das Velhas vai só morrendo. Olha a cor da água. Você vem aqui pescar e não leva nada pra casa… que alegria que vai ter? Alegria nenhuma”, lamenta.

Pescador em Jequitibá, Geraldo Ladim vê de perto as alterações no rio, causadas especialmente pela RMBH

Os principais responsáveis por essa baixa oxigenação do rio, que diminui a disponibilidade de peixes, é a presença, em grande quantidade, de dois elementos químicos na água: nitrogênio e fósforo, que funcionam como nutrientes para algas microscópicas e cianobactérias. A presença exagerada desses seres vivos no rio, que leva também à proliferação de aguapés, diminui a penetração dos raios solares, dificultando a fotossíntese e, dessa forma, deixando o rio turvo e com baixas taxas de oxigênio dissolvido na água. Esse processo é conhecido como eutrofização. Esses elementos percorrem nosso corpo através da alimentação e são descartados nas fezes, chegando ao rio principalmente pelo esgoto não tratado ou por aquele que foi tratado, mas não passou por nenhum processo de retirada de fósforo e nitrogênio. Os efeitos da eutrofização são mais visíveis no Médio e Baixo Rio das Velhas, após o rio já ter recebido descargas consideráveis de esgotos e efluentes da Grande BH e de cidades como Sete Lagoas. Mas, e se o esgoto tratado não tivesse como destino os rios?

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O ciclo dos elementos

Esses elementos, que seriam nocivos para a vida no rio, são ingredientes importantes para a fertilidade do solo. O nitrogênio compõe as células das plantas e o fósforo é responsável pelo gerenciamento de energia delas. O ciclo do fósforo se inicia nas rochas, que, através do intemperismo, são depositados no solo e absorvidos pelas plantas. Já o nitrogênio, presente na atmosfera, nutre os vegetais através da chuva que cai sobre a terra. O ciclo natural se completa, então, quando devolvemos cada um deles à terra ou ao ar. Se jogamos esses nutrientes na água, o ciclo não se fecha.

Acervo Pessoal

“O tratamento de esgoto, na maioria das vezes, passa pelos níveis primário e secundário. Isso é muito eficiente na remoção de matéria orgânica, mas existem compostos, como nitrogênio, fósforo e organismos patogênicos, que normalmente não são removidos no tratamento secundário”, explica Carlos Chernicharo, professor titular aposentado do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Escola de Engenharia da UFMG, ex-coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em ETEs Sustentáveis. Para retirar esses elementos do esgoto tratado, então, seria necessário tratá-lo mais uma vez – chegando na etapa do tratamento terciário. “No entanto, a remoção de nitrogênio, principalmente, é muito cara. Por isso é importante pensar em novas formas de disposição do esgoto tratado que não sejam o rio. O que é um esgoto tratado? Ele tem água, que é um recurso hídrico; ele tem nitrogênio e fósforo, que são fertilizantes”.

Professor aposentado na UFMG e ex-coordenador do INCT em ETEs Sustentáveis, Carlos Chernicharo propõe a economia circular no tratamento do esgoto.

“O Brasil importa esses fertilizantes. Alguns deles, como o fósforo, são finitos no planeta. Com a guerra entre Rússia e Ucrânia, a possibilidade de importar esses fertilizantes diminui. A produção do nitrogênio para as nossas culturas agrícolas tem também um custo exorbitante, além de emissões de gases de efeito estufa. Então, por que não aproveitar a água, o nitrogênio, o fósforo que estão no esgoto tratado, para praticar a fertirrigação? Dessa forma, estaríamos retornando para o solo, para as plantas, os nutrientes que vieram de lá a partir dos alimentos que consumimos, fechando, então, um ciclo, e praticando a economia circular no tratamento do esgoto”, conclui Carlos.

Bianca Aun

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Tratamento secundário promovido pelas ETEs convencionais não remove nutrientes, como nitrogênio e fósforo.

Ainda que em níveis que atendam à legislação, efluentes lançados nos rios causam impactos.


Clermont Cintra

Como resultado do processo de tratamento das ETEs, tem-se lodo e efluentes ricos em nutrientes (N e P)

CENÁRIO ATUAL

N P

Lodo

P

N

N

P

P Lodo

CENÁRIO ALTERNATIVO

N Lodo e efluentes aproveitados na agricultura

Lodo vai para aterro sanitário

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Efluentes lançados nos rios

Fertirrigação Efluentes aproveitados: reúso industrial e urbano.

Eutrofização

Mortandade de peixes


Na bacia do Velhas Lucas Chamhum, também engenheiro ambiental e sanitarista, evidencia alguns dados que podem apontar para um reaproveitamento dos subprodutos do tratamento do esgoto. “Dos subprodutos, temos a fração de nitrogênio e fósforo presentes na fase líquida do esgoto tratado – que, na bacia do Rio das Velhas, é despejada integralmente nos corpos d’água – e o lodo, que precisa ser desidratado dentro da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), mas hoje está sendo direcionado para aterros sanitários ou tendo outros destinos. Ou seja, não está sendo aproveitado”, alerta. Em sua pesquisa de Mestrado, Lucas avaliou áreas potenciais de uso agrícola do lodo de Estações de Tratamento de Esgoto Doméstico nas bacias dos Rios das Velhas, Jequitaí e Pacuí. Ele chama atenção para o fato de que as ETEs podem destinar o lodo proveniente do esgoto para outros lugares que não o aterro sanitário. O tratamento terciário, segundo ele, pode levar a um investimento financeiro desnecessário.

“É um pouco contraditório você tratar o esgoto removendo nitrogênio, fósforo, gerar lodo e, depois de tudo isso, dispô-lo no aterro sanitário. Nesse processo, o ciclo desses elementos não se fecha, e a infraestrutura de tratamento, que já é precária, fica sobrecarregada. Ao passo que a utilização na agricultura possibilita essa regeneração, explica. “O lodo que sai da ETE está com teor de sólidos de até 5%. Transportar essa massa com 95% de água para longas distâncias é inviável. Esse efluente também não pode ser despejado no aterro sanitário para não causar instabilidade do maciço de resíduo. É preciso desidratá-lo até a proporção de em torno de 25% de sólido. Hoje, na bacia, acaba por aí o tratamento. No entanto, esse lodo gerado pode ser utilizado na fertirrigação após sua higienização”, conta Lucas. Mas a fertirrigação não é a única alternativa de reuso. “Falamos muito em fertirrigação, que é o reuso para fins agrícolas, mas existem outras possibilidades. Você pode ter o reuso, por exemplo, para batimento de poeira. Você pode ter o reuso industrial, urbano não potável… Enfim, são várias possibilidades”, finaliza.

Eutrofização pode diminuir a concentração de oxigênio nos rios, causando a mortandade de peixes.

Juvenal Caldeira

Marcelo Andrê

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Proliferação de aguapés tornou-se comum no Médio Rio das Velhas, em tempos de estiagem. Em destaque, o rio em Santo Hipólito.


Acervo Pessoal

Lavoura de café em Jandaia do Sul, no Paraná, foi biofertilizada com lodo de esgoto tratado.

Acervo Pessoal

Na bacia do Iguaçu No Paraná, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) tem, hoje, 41 Unidades de Gerenciamento de Lodo de Esgoto (UGLs) em todo o estado. Lá, estudos iniciados na década de 1980 já apontavam para uma destinação sustentável do lodo de esgoto. O reuso do esgoto começou no fim da década de 1990 e a primeira UGL foi implantada em 2006. Desde então, aproximadamente 423 mil toneladas de lodo foram geradas, sendo que, em 2022, quase 23 mil foram destinadas para a fertirrigação. Hoje, a Sanepar atende 157 agricultores em aproximadamente 58 municípios paranaenses.

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Rebert Skalisz, engenheiro agrônomo da Sanepar, conta que o lodo de esgoto produzido atualmente é insuficiente para atender todos os produtores rurais que se interessam pelo produto. “Hoje em dia há mais demanda de produtores do que de material para ofertar. Os agricultores estão cada dia mais interessados nesse produto. No início houve diversas questões, principalmente com relação ao manuseio, uma vez que é um material muito mais úmido que os fertilizantes convencionais. Porém, hoje, com novas tecnologias, oferecemos um biossólido bem mais seco”, celebra.

“O lodo é um indicador de qualidade: quanto mais lodo é gerado, mais o esgoto foi bem tratado. Lançar o lodo em aterros sanitários causa um grande impacto, uma vez que são construídos para receber rejeitos que, em geral, não podem ser reaproveitados. O lodo, por ser matéria orgânica, não deveria ser destinado aos aterros, uma vez que pode ser reaproveitado em atividades como, por exemplo, a fertirrigação”, finaliza.

Agricultores de 58 municípios no Paraná recebem lodo para fertirrigação em suas propriedades.

Acervo Pessoal

Há diversos processos para a higienização do lodo, mas, segundo Rebert, o mais barato para a realidade de Curitiba é a “estabilização alcalina prolongada, que consiste em adicionar cal virgem numa proporção entre 30% e 50% em relação ao teor de sólidos totais do lodo, que elimina os patogênicos. Mas isso depende da região”, pontua. Além disso, a Sanepar cobre os custos do transporte do biossólido e, no caso da capital paranaense, até mesmo os de aplicação.

Rebert Skalisz, da Sanepar, diz que lugar de lodo não é no aterro.


Olhares

O Homem de Lagoa Santa Longa-metragem sobre a trajetória do paleontólogo dinamarquês Peter Lund é lançado após 21 anos 34

Texto: Ângela Azevedo Fotomontagem: Clermont Cintra Mais de duas décadas depois do seu início, foi lançado enfim este ano o longa-metragem O Homem de Lagoa Santa. O “docudrama”, roteirizado e dirigido pelo diretor Renato Menezes, reproduz a trajetória do naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund, que fez extraordinárias escavações em grutas calcárias no vale do Rio das Velhas e cujas pesquisas abriram caminho para Charles Darwin dar prosseguimento à teoria da Origem das Espécies. Misto de obra ficcional e documentário, o filme gira em torno de uma expedição botânica que Peter Lund realizou ao interior do Brasil, em 1833, e seu encontro repentino com o também dinamarquês Peter Claussen e o norueguês Brandt, portando uma amostra de ossos fósseis encontrados em rochas calcárias da região de Lagoa Santa. Lund acreditava que esses fósseis poderiam ter sido contemporâneos dos animais da Megafauna que há muito tempo pesquisadores acreditavam estarem extintos durante o dilúvio da Arca de Noé.


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Peter Wilhelm Lund foi um dos naturalistas dinamarqueses mais notáveis do século XIX, e é considerado o pai da paleontologia e arqueologia no Brasil


Lund percebe suas convicções científicas, amalgamadas em anos de estudos ao lado de George Cuvier, fundador da paleontologia, caírem por terra com a descoberta, em 1840, do “Homem de Lagoa Santa”, o hominídeo mais antigo da América do Sul. O achado inaugurou o debate e as contradições entre ciência e religião, que colocava em xeque a teoria cristã de que o dilúvio havia dizimado todos os seres vivos na Terra. A teoria de Lund, porém, só chegou a ser confirmada muito tempo depois, em 2002, com base em análises das ossadas.

Bianca Aun

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O diretor do longa, o belo-horizontino Renato Menezes, foi um apaixonado pela história de Lagoa Santa e admirador confesso de Peter Lund, interpretado nas cenas ficcionais do filme pelo ator Chico Aníbal. Depois de muitos anos de trabalho e persistência, Menezes concluiu em 2013 a produção do filme, mas faleceu em 2014, de maneira inesperada e repentina. Antes disso, felizmente, ele chegou a realizar o sonho de exibir o filme em Lagoa Santa para uma plateia de 300 pessoas que lotaram o auditório da Escola Municipal Dr. Lund.


Leonardo Barcelos e Helvecio Martins

Longa-metragem foi roteirizado e dirigido pelo belo-horizontino Renato Menezes, falecido em 2014.

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João Alves

Entrevista

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Geógrafo Rodrigo Lemos coleciona passagens por quase todas as esferas ligadas ao CBH Rio das Velhas.


A plataforma da água De estagiário do Projeto Manuelzão a Conselheiro do Conama: duas décadas em defesa dos recursos hídricos Por Paulo Barcala

Rodrigo Silva Lemos nasceu em Belo Horizonte há 40 anos. Geógrafo graduado pelo Instituto de Geociências da UFMG, é mestre e doutor em Geografia e Análise Ambiental e leciona na pós-graduação da PUC Minas. Com participação ativa na Câmara Técnica de Outorga e Cobrança (CTOC) do CBH Rio das Velhas nos últimos anos, Rodrigo começou sua militância ambiental como estagiário do Projeto Manuelzão, concebido na Faculdade de Medicina da mesma universidade onde estudou. Foi também da primeira equipe de Mobilização do Comitê, um dos primeiros funcionários da Agência Peixe Vivo, conselheiro e coordenador do Subcomitê Ribeirão Arrudas. Essa experiência juvenil “permitiu uma leitura política da realidade, acionando uma dinâmica de prática política e militância ambiental combinadas com a lógica técnica da pesquisa”, recorda. Se “o Manuelzão trouxe a perspectiva do processo e do movimento ambiental”, o CBH Rio das Velhas, que vê “como o mais avançado na dinâmica da gestão de bacias”, “acrescentou outra dimensão: a lógica da participação popular nas estruturas de governança, num conceito tripartite, que reúne sociedade, usuário de água e poder público na mesma mesa de negociação”. Nesta entrevista à Revista Velhas, Lemos fala do retorno do Instituto Guaicuy ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), instituição que representa no órgão máximo da área e, ainda, da questão hídrica, da política ambiental e seus desafios, de participação social, dos 25 anos do CBH Rio das Velhas e das perspectivas da Câmara Técnica da qual é membro.

O que significa o fato de o Instituto Guaicuy voltar a ocupar uma cadeira no Conama depois de ter sido cassado pelo governo anterior, em 2019, no processo de desmonte do colegiado? O Conama foi criado junto com a Política Nacional de Meio Ambiente, em 1981, numa perspectiva muito clara de que o desenvolvimento sustentável – e os limites necessários para um tipo de crescimento cada vez mais danoso – não conseguiria ser implementado só pelo Estado. Retomar o Conama é retomar a pauta ambiental e afirmar que ela é decisão da sociedade, não de uns poucos detentores de poder nem de um poder totalitário e centralizador, como vivemos há pouco. É muito importante essa retomada, principalmente porque o Conama pauta o debate ambiental e a forma como ele vai se dar em nível nacional, tanto nas lógicas de estados quanto na de municípios. Eu acho que a responsabilidade é conseguir representar a diversidade em que estamos inseridos. Para a sociedade civil, essa representação é uma forma de diálogo. As demais instituições estão em contato cotidiano com a gente, pensando nas melhores formas de orientação e de construção. O Guaicuy não se representa, representa uma pauta de um conjunto de perspectivas que vêm dos movimentos ambientais, que a gente tenta construir de forma bem espraiada.

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Como a sua já longa experiência na defesa dos recursos hídricos vai orientar sua atuação no órgão colegiado?

Quais são os principais desafios da agenda de políticas públicas para a questão ambiental, hídrica e climática?

Foram criados dois modelos, o Conama e o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, dois sistemas paralelos de gestão. A pauta ambiental não anda junto com a questão do licenciamento, não anda junto com a proteção dos recursos hídricos. O licenciamento é instrumento da política ambiental, a outorga é um instrumento da política de recursos hídricos, mas os dois dialogarem é muito difícil. Porém, é claro que a interface entre recursos hídricos e meio ambiente é muito grande. Rio não é água, peixe e pessoas. São todas essas coisas misturadas e isso é a definição de meio ambiente.

O Brasil está decidindo para onde vai, qual a sua agenda dos próximos 30 anos. Os olhos do mundo estão voltados para nós porque somos um dos poucos países no fiel da balança de todo o equilíbrio da dinâmica global, principalmente com as mudanças climáticas. Todo mundo olhou com muita apreensão o aumento do desmatamento no Brasil e vai continuar olhando. Isso pode ser uma oportunidade, em nível de negócios também. Mas, principalmente, a gente tem que rever a nossa elite produtiva, porque ela só consegue pensar em atividades de baixo poder de transformação e com baixo valor agregado. Querem exportar ferro, mas não aço. O agropop encontrou o seu limite, não consegue mais se desenvolver, alguma coisa tem que ser feita.

Uma das experiências que a gente tenta trazer é a de pensar os recursos hídricos nessa escala continental que é o Brasil, seus custos como um recurso ameaçado, finito. Ainda que sob diferentes perspectivas e contextos, o que vemos são formas de desenvolvimento muito pouco sensíveis à dinâmica hídrica, e essa não é uma realidade apenas do Sudeste. O povo lá do Sul informa que os arroios estão secando. No Norte, onde tem lugar que chove 2.500 mm por ano, está acontecendo também. Essa dimensão a gente catalisa, provoca, e ela é percebida pelas outras instituições também. Como você vê a retomada da política ambiental no Brasil e em que terreno essa retomada se dá?

Acho que o que temos que entender é que a pauta ambiental não foi sucateada pelo interesse de um governo, mas por interesses de setores econômicos e por uma baixa adesão em termos de prioridade social mesmo. Não passou o inverno e chegou a primavera, com as coisas todas bonitas. Não. O desafio é tão grande ou pior do que foi no período do Bolsonaro, porque todos esses setores se entendem empoderados e validados. A gente retrocedeu nos níveis político e ético. É um modelo que se afirmou muito forte, de um crescimento econômico a todo custo. Esses setores nunca dormiram. Não é a ação do governo Bolsonaro que explica, por exemplo, o aumento recorde do desmatamento na Mata Atlântica em Minas Gerais. O que eu acho que é muito importante refletir é sobre o que queremos construir enquanto política de Estado, como ressignificar tudo isso.

Acervo Pessoal

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O governo Bolsonaro, na verdade, promoveu a retomada de um padrão recorrente, um modelo de desenvolvimento de grande exportador, muito dependente tecnologicamente do exterior e muito perverso com as pessoas. Tivemos foi um suspiro, aí do início de 2000 até 2015, mais ou menos, de falar que as coisas poderiam ser diferentes, mas o que a gente teve no governo Bolsonaro foi a replicação, perversa e violenta, de um modelo de desenvolvimento que vem desde 1500 e que se viu de alguma forma ameaçado nos anos anteriores.

A maior centralidade, hoje, ao discutir meio ambiente, é discutir modelo de desenvolvimento e qualidade de vida, como as pessoas são sujeitas a padrões ambientais e impactos diferenciados. Então você traz a discussão sobre racismo ambiental. Por que a população que está nas áreas mais vulneráveis e com maior nível de risco é normalmente de baixa renda e preta? Dona Ivana Eva, lá do Barreiro [bairro de Belo Horizonte], uma das grandes referências ambientais minhas e do Projeto Manuelzão, tinha uma frase que eu nunca esqueci: “Não existe desenvolvimento sustentável enquanto tiver uma criança com fome”. É exatamente esse o grande desafio: construir uma forma de desenvolvimento que compartilhe os benefícios e garanta maior equidade ambiental entre as pessoas, um modelo sustentável. Discutir desenvolvimento é discutir as nossas formas produtivas e para quem esse recurso é distribuído e de que forma, tanto nos benefícios do crescimento como nos seus impactos. Qual é a importância da participação social na promoção de mais efetividade nas políticas ambientais? As decisões têm que ser tomadas cada vez mais perto do indivíduo, pelo princípio de subsidiariedade [pelo qual as questões sociais ou políticas devem ser resolvidas no plano local mais imediato capaz de resolvê-las], está na Constituição Federal. A minha realidade, a sua, são individuais. A participação social surge não como compartilhamento cego de poder, mas como necessidade para a efetividade da política pública. Nessa trajetória, a primeira luta foi pela institucionalização da participação. Aí vieram o Conama, os Comitês de Bacia, o Copam [Conselho Estadual de Política Ambiental], todas essas instâncias. Depois, a luta foi para construir a voz dentro dos espaços. E a voz muitas vezes encontra uma barreira técnica. Parece que você tem que ser técnico, mas a participação popular tem que responder também a outros conhecimentos e leituras que não são técnicas. Principalmente depois de 2010, muito do que havia de construção participativa foi enfraquecido. Um exemplo é a grande centralização de decisões em Minas, com a concentração nas Câmaras Técnicas Especializadas, na reformulação do Copam. Outro problema é que a grande maioria dos jovens está em outras dimensões da sociedade civil porque não vê nesses um espaço de mudança. E Conselho de Política Pública tem que ser espaço de mudança, senão não faz sentido. Rodrigo foi também dos primeiros a compor a equipe de mobilização social e educação ambiental do CBH Rio das Velhas.


Como você resumiria o papel desempenhado pelo CBH Rio das Velhas nesses 25 anos de existência?

Como membro da CTOC, integrou várias visitas técnicas a empreendimentos que solicitaram outorga perante o CBH.

João Alves

Não adianta o CBH falar “tal curso d’água é enquadrado como Classe 1”, porque o município vai lá e coloca um distrito industrial em cima do curso d’água. O Comitê tem uma responsabilidade muito grande e uma responsabilização baixa. São competências muito expressivas e recursos insuficientes. Se não tem o recurso, tem que construir articulação. Se tem que construir articulação, tem que ter autoridade. Um dos grandes desafios é integrar essas dimensões, usos, formas municipais, políticas de Estado, tudo isso dentro de algo menos danoso, mais sensível para a dinâmica hídrica. Como lidar com isso ao longo do tempo é uma questão que o Comitê do Velhas e todos os Comitês de Bacia vão ter que se debruçar bastante. E isso passa pelo reconhecimento de uma autoridade institucional que vejo enfraquecida.

Michelle Parron

O CBH Velhas é considerado um dos Comitês estaduais com maior nível de envolvimento da sociedade civil, é referência nacional. Nesses 25 anos, o Comitê construiu maturidade e respeito institucional, mas penso que hoje a maior complexidade é garantir que suas diretrizes sejam atendidas. Nosso Plano Diretor conseguiu atingir poucas metas. Temos uma realidade arcaica na bacia, de lançamento de esgotos domésticos e de poluição difusa da Região Metropolitana, coisas que já têm solução, mas que andam a passos muito lentos.

Rodrigo Lemos com a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, que o nomeou membro do Conama.

Acervo Pessoal

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Você recentemente foi coordenador e secretário da CTOC do CBH Rio das Velhas. Qual o seu balanço sobre esses anos de atuação da câmara técnica? Minas Gerais é o único estado, pelo menos até 2015 e que eu saiba, que submetia seus processos de outorga de grande porte aos Comitês de Bacia. O que isso significa? A outorga, no Comitê do Velhas, é a possibilidade de discussão política das ações, do que está sendo feito na bacia. Penso que deveríamos discutir mais a regulação de processos, um desafio muito forte que só é possível se houver diálogo e articulação institucional com os outros entes associados na gestão territorial. Seria um empoderamento inédito. Pelo PDRH, o Comitê pode estabelecer instrumentos de regulação de uso da terra. Mas se fala “não pode isso aqui”, o município diz: “eu vou fazer”. E qual é a responsabilidade do município? Nenhuma. Percebo, no cotidiano, uma tentativa cada vez maior de diminuir o processo de outorga para torná-lo uma forma quase que afirmativa, quase equiparada a uma licença. Creio que essa é uma reflexão que a CTOC vai ter que fazer. A Câmara tem que ser fortalecida ao ponto de dizer não. Dizer não, consequentemente, a uma atividade econômica, com o prejuízo econômico que isso gera. Dizer não percebendo que aquele prejuízo não se equipara a um prejuízo maior que é coletivo e que é ambiental.


Turismo

Mil quilômetros no dorso da Cordilheira Trilha Transespinhaço abrange 53 áreas protegidas em 41 municípios e dialoga com história, cultura, renda para as comunidades locais e preservação do meio ambiente Texto: Paulo Barcala

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Palco da nova trilha de longo curso, Espinhaço é a única cadeia de montanhas no Brasil que recebe a designação de cordilheira.


Michelle Parron

O Espinhaço é a única cadeia de montanhas em solo brasileiro a merecer a designação de cordilheira. Com mais de cerca de 1.500 km de extensão e entre 50 e 100 km de largura, rasga o interior do país desde a região central mineira até quase a divisa da Bahia com Pernambuco. Pontilhado de picos agudos como o do Sol, na Serra do Caraça (2.072 metros acima do nível do mar), o do Itambé (2.052 metros), próximo ao município do Serro, ou o do Itacolomi (1.772 metros), marco da antiga Vila Rica de Ouro Preto, ostenta paisagens grandiosas.

Em poucas palavras, para além da intensa beleza, a Cordilheira é guardiã da biodiversidade nacional.

Gustavo Abah

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Livia Pacheco

No entrecorte de vales profundos, grutas e cavernas guardam vestígios de tempos imemoriais. Ponto de encontro de Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga, carrega em suas alturas uma flora endêmica, com espécies que só ali se desenvolvem e o distinguem do resto do mundo, nos vastos Campos Rupestres, ecossistema extremamente frágil, singular e complexo. Os estudos florísticos atuais estimam que existam entre 2 mil e 3 mil espécies, das quais cerca de 350 ameaçadas de extinção.

Espinhaço e nova trilha atravessam pontos icônicos da bacia do Rio das Velhas, como Ouro Preto, a Serra do Cipó e a Serra do Cabral.

Bianca Aun

Perde-se a conta das dezenas de cachoeiras e rios exuberantes, espetáculo particular da profusão de águas que faz do maciço o manancial das principais bacias hidrográficas que correm para o Atlântico.


“Endemismo sem tamanho, a necessidade muito grande de conservação, as riquezas, a flora endêmica, a espeleologia, altitudes, água, cachoeiras, culturas, história, comunidades tradicionais, arqueologia”: esse conjunto de atributos despertou a ideia de criação da Trilha Transespinhaço (TESP), inicialmente contida no território mineiro, abrangendo 53 áreas protegidas e 42 municípios. Quem explica os objetivos é Giselle Melo, coordenadora geral da Comissão Provisória da Trilha: “resgate histórico-cultural, geração de renda e conservação ambiental, que depende da interação com a natureza e os valores locais”. O professor Hebert Salgado, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), doutor em Geografia e parceiro do projeto, confirma o valor imenso, que vai além – e vem de antes – da Minas colonial, da corrida do ouro e dos tropeiros: “Temos lá muitos testemunhos arqueológicos, sítios com painéis de pintura rupestre. O Laboratório de Arqueologia e Estudo da Paisagem da UFVJM (LAEP) está estudando esse patrimônio”. A TESP foi oficialmente criada em 2018, no “1º Seminário da Trilha de Longo Curso Mineira Transespinhaço”, realizado no Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (IGC/UFMG).

Gustavo Abah

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A academia se junta ao projeto. “Falamos de um universo multidisciplinar e multidimensional” diz Salgado, também vice-presidente da Rede Brasileira de Observatórios de Turismo. As “universidades [UFVJM, UFMG e PUC Minas] colaboram para olhar os conflitos e as complexidades, mas também para revelar o potencial, valorizar a imagem, auxiliar a planejar e produzir dados”.

Acervo Passoal

Conexão pela trilha

Com passagens pelo Subcomitê Rio Cipó, Priscila Martins (esq.) e Lívia Pacheco (dir.) desenham propostas de governança para a TESP.

É uma “relação institucional com trabalho de pesquisa vinculado”, continua. A Trilha é “ferramenta de conservação; opção de lazer e saúde e, pelo potencial turístico e esportivo, instrumento de geração de emprego, renda e desenvolvimento”. As trilhas de longo curso cumprem papel de grande importância nas três vertentes”, assegura. Giselle Melo, que é engenheira de produção com mestrado em Meio Ambiente, dá o estado da arte: “Estamos em pleno desenvolvimento da Trilha, uma iniciativa da sociedade civil com órgãos de governo, universidades e comunidades, e temos projeto aprovado no âmbito do Plano de Ação Territorial - PAT Espinhaço (parte do Programa Pró-Espécies, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima – MMA)”. Os Subcomitês do CBH Rio das Velhas também têm sido espaços de discussão sobre a iniciativa O amor pela natureza e pelas caminhadas começou cedo para Melo: “Na primeira viagem de ônibus sozinha, de Belo Horizonte a Juiz de Fora, com sete, oito anos, fiquei olhando as montanhas e me perguntando: o que tem lá atrás? Depois vieram o camping, as cachoeiras e o mosquito do montanhismo me picou”. As trilhas de longo curso fazem parte de uma diretriz federal [Portaria 407, editada em conjunto pelos Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e do Turismo e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio], que visa fomentar a estruturação de corredores ecológicos e atividades de turismo de natureza, gerando renda para comunidades situadas em áreas biologicamente sensíveis.

Em agosto, membros dos Subcomitês Rio Paraúna e Rio Cipó realizaram travessia para buscar consolidar trecho entre o distrito de Fechados, em Santana do Pirapama, e a localidade de Cemitério do Peixe, em Conceição do Mato Dentro.

No Brasil, o conceito ganhou força nos últimos anos, tendo como marco a inauguração da Transcarioca, em fevereiro de 2017. Outras diversas iniciativas em andamento contribuíram para a instituição da Rede Nacional de Trilhas de Longo Curso e Conectividade.


Trilha Transespinhaço

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MUNICÍPIOS Municípios da Transespinhaço pertencentes à bacia do Rio das Velhas 01 - Espinosa 02 - Monte Azul 03 - Santo Antônio do Retiro 04 - Mato Verde 05 - Rio Pardo de Minas 06 - Porteirinha 07 - Serranópolis de Minas 08 - Riacho dos Machados 09 - Grão Mogol 10 - Cristalina 11 - Botumirim 12 - Itacambira 13 - Guaraciana 14 - Bocaiúva 15 - Olhos D’Água 16 - Buenópolis 17 - Diamantina 18 - São Gonçalo do Rio Preto 19 - Couto de Magalhães de Minas 20 - Felício dos Santos 21 - Monjolos 22 - Gouveia 23 - Datas 24 - Serro 25 - Santo Antônio do Itambé 26 - Serra Azul de Minas 27 - Santana de Pirapama 28 - Congonhas do Norte 29 - Conceição do Mato Dentro 30 - Santana do Riacho 31 - Morro do Pilar 32 - Jaboticatubas 33 - Itambé do Mato Dentro 34 - Nova União 35 - Itabira 36 - Belo Horizonte 37 - Sabará 38 - Caeté 39 - Barão de Cocais 40 - Santa Bárbara 41 - Nova Lima 42 - Ouro Preto 43 - Ouro Branco

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Clemont Cintra

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TRILHA TRANSESPINHAÇO

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O projeto

Reserva da Biosfera

“Uma trilha não se faz sozinha” é o lema que anima os montanhistas e demais amantes das descobertas e da vida na natureza. Por isso “é necessário um esforço conjunto entre caminhantes, moradores e representantes de unidades de conservação, prefeituras e instituições de pesquisa, para finalizar o traçado, engajar as comunidades, monitorar as espécies, implantar e manter a sinalização”, diz Lívia Pacheco, turismóloga e moradora de Santana do Riacho, na Serra do Cipó, ex-conselheira do Subcomitê Rio Cipó.

Em 2005, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) conferiu o estatuto de Reserva Mundial da Biosfera à Serra do Espinhaço, com área de 10 milhões de hectares, por ser uma das regiões mais ricas do planeta, graças a sua grande diversidade biológica, além do “valioso significado cultural e histórico”. Para o professor Hebert, a “chancela da Unesco traz outras perspectivas”, como possibilidades de financiamento externo.

Quatro Grupos de Trabalho se debruçam sobre as mil tarefas, distribuídos pelos grandes trechos: o primeiro vai da região de Ouro Preto até a Serra da Piedade; o segundo, da Serra dos Alves e Serra do Cipó à cidade de Gouveia; o terceiro cuida do percurso até Diamantina e, o quarto, do Parque Nacional das SempreVivas até os arredores de Grão Mogol, no norte do estado. Priscila compara: “O modelo dos Comitês de Bacia, dos Subcomitês e das Unidades Territoriais Estratégicas (UTEs) do CBH Rio das Velhas inspira a metodologia de trabalho”. Em 2005, a Unesco conferiu o estatuto de Reserva Mundial da Biosfera à Serra do Espinhaço.

Gisele Melo

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Muito caminho foi andado desde 2018, com a gestão informal por um grupo de voluntários do Centro Excursionista Mineiro (CEM) e da Federação de Montanhismo e Escalada do Estado de Minas Gerais (FEMEMG). O esforço conjunto já logrou sinalizar diversos trechos da Trilha.

Vilmar da Silva é condutor ambiental e promove a “Travessia com Causo e Cantoria” entre Lapinha da Serra e Tabuleiro.

Gustavo Abah

Priscila Martins, também da Macaúba e atual conselheira do Subcomitê Rio Cipó do CBH Rio das Velhas, resume: “Estamos na fase de espalhar a palavra, fizemos contato com mais de 300 pessoas, com o poder público, Unidades de Conservação (UCs) e sociedade civil. As pessoas precisam se sentir integradas desde o início”.

A denominação “Espinhaço” remonta ao Barão Wilhelm Ludwig von Eschwege, que a cunhou em 1822, em referência a uma espinha dorsal.

Acervo Passoal

Sócia da Macaúba Desenvolvimento Local, empresa vencedora do edital que licitou propostas de governança da TESP, destaca: “precisamos de uma governança muito bem estruturada, quem representa na comunidade, no território, na prefeitura, como conversam entre si”. Buscamos “uma cola que una interesses diversos. O trabalho é estruturar a rede de pessoas, é ela que vai construir o produto turístico”, define.


Os atores Pela metodologia participativa, foram realizadas mais de dez reuniões com a participação de cerca de 100 atores locais. Vilmar Aparecido da Silva é um deles. Nascido em Lapinha da Serra, localidade de Santana do Riacho, na Serra do Cipó, bacia do Rio das Velhas, é condutor ambiental na caminhada de 40 km e dois dias até Tabuleiro, em Conceição do Mato Dentro.

Atualmente, quatro grupos de trabalho se debruçam na consolidação dos quatro principais grandes trechos da TESP.

A “Travessia com Causo e Cantoria”, já que Vilmar também é músico profissional, faz sucesso entre os turistas, que recebem orientações de preservação e conscientização ambiental.

Acervo Pessoal

“Participei das reuniões e outros condutores daqui também participaram. A TESP vai cortar todo o mosaico de UCs”. Na opinião do Vilmar da Lapinha, como é conhecido, as comunidades vão aderir. “Vai envolver sim. A trilha vai passar em UCs, RPPNs, Parque Nacional e estaduais. É necessário abranger as comunidades”. Segundo Giselle, a proposta de governança será entregue agora e, em seguida, o Plano de Trabalho”. O desejo “é ter a governança a partir de 2025, após dois anos de transição”.

A alma da ideia

Tom Alves

Lívia e Priscila observam: “A construção e preservação da Trilha proporcionam corredores ecológicos e a possibilidade de deslocamento de espécies em território maior. Junto vem a sensibilização dos turistas, percebendo que a água que eles bebem na cidade vem dali. Tem ainda o foco na própria comunidade do entorno, demonstrando que preservar gera mais renda do que botar fogo para fazer pasto”. No alicerce do projeto está a concepção de Turismo de Base Comunitária (TBC), que inclui a agricultura familiar, a pesca tradicional e a comercialização de produtos nativos da biodiversidade, do artesanato, a gastronomia local e os arranjos produtivos de base sustentável. Tais atividades favorecem a dinamização socioeconômica do Espinhaço, resultando em novas alternativas de geração de renda para essas populações. Priscila Martins

Estudos indicam que no Espinhaço existem entre 2 mil e 3 mil espécies de flores, das quais cerca de 350 ameaçadas de extinção.

Vilmar concorda: “O que tem que ser trabalhado é o TBC, capacitar os moradores, conhecer quem mora no trajeto, um turismo de qualidade, de experiência, que vai agregar valor”. Ele, que já pensa em “estender ao Espinhaço a travessia com a cantoria, levar a questão cultural, falar dos tropeiros, da história”, lembra que “famílias de moradores que estão aqui há mais de 70 anos oferecem alimentação a grupos de 15 a 18 pessoas, que podem acampar ou encontrar pouso nas moradias”. Hebert Salgado fala em ida e volta: “É um processo pedagógico para que habitantes da região compreendam a potência da proposta e, na outra mão, que emprestem seu conhecimento, seus saberes e fazeres, sua relação com a natureza, muito mais próxima do modelo sustentável”. “Se está preservado”, aponta, “é porque alguém preservou até hoje”. Como diz Giselle Melo, é preciso “conhecer para conservar”.

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Miguel Aun

Águas urbanas

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Quando as “circunstâncias” trabalham a favor da comunidade Na bacia do Córrego do Capão, a união de moradores e pesquisadores pensa soluções para inundações em Venda Nova com o poder público Texto: Leonardo Ramos


naquele território. Desse encontro, juntamente com demais moradores da bacia, nasceu o site “Águas do Capão”, que propõe um olhar diferenciado para as águas da bacia. A correspondência completa entre as duas pode ser lida no site da Mostra.

Núria Manresa é arquiteta e membro do grupo de pesquisa Morar de Outras Maneiras (MOM), da Escola de Arquitetura da UFMG.

“Olá, Roseli,

​ stou feliz por iniciar uma conversa com você! Meu nome é E Núria, sou arquiteta, mãe e jardineira. Tenho me especializado nos últimos 4 anos, que é a idade de minha filha Rita, em cuidar. Cuidar segundo o dicionário vem do latim da palavra cogitare, cogitar, e está relacionado com o imaginar. Nestes últimos anos, em que o ambiente doméstico tem sido o cenário de minhas mais intensas experiências e reflexões, do aprender e desaprender, o imaginar tem sido uma importante ferramenta (...). Por agora, depois de ver seu lindo trabalho no narrar e resistir, fiquei com vontade de te escrever algumas imagens da minha história de ribeirinha urbana.” “Boa tarde Núria; grande satisfação em poder trocar essas impressões e memórias sobres as águas e seus territórios da/na cidade em que habitamos...​ Me senti grandemente sensibilizada por sua escrita sobre suas memórias (...). Minha trajetória com as águas começa a partir das memórias de minha mãe, que viveu sua infância e juventude às margens do Rio Piracicaba, na cidade de mesmo nome, em Minas Gerais…” Roseli Correia e Núria Manresa se conheceram na 1a Mostra Córregos Vivos, de realização do Terra Comum, grupo de pesquisa em arte e arquitetura. A primeira é professora do Ensino Fundamental na Escola Municipal Adauto Lúcio Cardoso e moradora da bacia do Córrego do Capão, em Belo Horizonte; a segunda é arquiteta, membro do grupo de pesquisa Morar de Outras Maneiras (MOM) da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e moradora da bacia do Córrego Santa Inês. Elas trocaram experiências por correspondências por um tempo através dessa iniciativa até que Roseli, que já atuava pelo Projeto Manuelzão e como conselheira do Subcomitê Ribeirão Onça, levou Núria a se engajar também

​ mbora Belo Horizonte seja uma cidade de riqueza hídrica, E muitos moradores da cidade só percebem a existência dos rios em épocas de chuvas fortes, com alagamentos em avenidas e principais vias da cidade. Mesmo parecendo que esses eventos estejam fora do controle humano, uma das principais causas dessas inundações é o fato de que muitos rios da capital mineira correm embaixo dessas vias, chamadas de “avenidas sanitárias”. Quando as águas das chuvas atingem seus afluentes, a vazão aumenta repentinamente e, pelo fato de esses rios estarem canalizados, a água não tem para onde fugir senão pelos bueiros e bocas de lobo. Quando isso acontece, grandes soluções de engenharia, como bacias de contenção, tendem a ser as mais utilizadas para auxiliar na drenagem e contenção das águas pluviais. Uma das avenidas mais atingidas por essas inundações é a Vilarinho, na região Norte de Belo Horizonte. Sob ela vive o córrego de mesmo nome, do qual o Capão é um dos afluentes – e que acaba culpado pelos alagamentos da principal avenida de Venda Nova. No entanto, os rios não são culpados de nada. Transbordar faz parte da sua vida e do ambiente no seu entorno. As causas de alagamentos que geram destruição e prejuízos sociais são impermeabilização do solo, ocupação irregular do solo, alterações nos ciclos de chuvas por conta das mudanças climáticas, enfim… alguém diria que se trata das “circunstâncias” da cidade. Na verdade, a responsabilidade é da coletividade urbana, e, para resolver essa questão, é necessário encontrarmos soluções também de forma coletiva. O que mulheres como Roseli e Núria procuram é fomentar imaginários – e um novo conceito de circunstância.

Roseli Correia é professora e moradora da bacia do Córrego do Capão.

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A Instrução Técnica para Elaboração de Estudos e Projetos de Drenagem, elaborada pela Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (SMOBI) da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), publicada em abril de 2022, aponta que “o avanço da urbanização e a consequente impermeabilização do solo provocaram a redução do armazenamento natural dos deflúvios, os quais se transferiram para outros locais no interior da cidade, gerando novas ocorrências de inundações, repetidas a cada estação chuvosa e sempre de forma cada vez mais intensa.” A Instrução também pontua que a cheia e a inundação são fenômenos naturais, mas que as vazões transferidas de uma microbacia para outra, causadas pela canalização dos cursos d’água da capital, agravam as inundações.

Ana Paula Fernandes, da PBH, diz que na região estão sendo priorizadas intervenções de implantação de parques lineares e recuperação das calhas dos cursos d’água.

Bacia do Córrego Capão está situada dentro da sub-bacia do Ribeirão Onça. Capão integra a regional Venda Nova, a 12 quilômetros do centro de Belo Horizonte.

Bianca Aun

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Engenheira da Diretoria de Gestão de Águas Urbanas (DGAU) da SMOBI, Ana Paula Fernandes é coordenadora dos estudos de gestão das águas do Isidoro, Vilarinho e Lagoa do Nado. Ela enfatiza que as ações planejadas pela PBH para drenagem visam a não aumentar as contribuições das águas das chuvas de uma bacia para outra. “Uma diretriz importante nesses estudos, e que reforça as premissas do Plano Diretor de Belo Horizonte, é a não transferência de vazões a jusante. A sub-bacia do Córrego Capão é a cabeceira do Córrego Vilarinho e possui grande importância na gestão dessa bacia hidrográfica. Apesar de ser uma área bastante impermeabilizada, faz-se necessário estudar propostas que não aumentem as contribuições pluviais ao Córrego Vilarinho”, explica.

Nesse sentido, Ana Paula conta que, no Capão, “estão sendo priorizadas intervenções de implantação de parques lineares, recuperação das calhas dos cursos d’água com manutenção de sua permeabilidade e meandros. Além disso, diante dessa diretriz, estamos propondo estruturas de detenção, dispositivos de infiltração no sistema de microdrenagem, recuperação e proteção de nascente, considerando os conceitos de infraestrutura verde-azul”. Mas ela destaca que tudo isso é feito em diálogo com a população da bacia do Capão. “As discussões com a população também é premissa dos trabalhos. Por isso, foram buscadas as principais lideranças e grupos que atuam na temática ambiental e de gestão de recursos hídricos, na expectativa de que esse grupo possa contribuir na construção das alternativas que irão resultar na proposta a ser implementada pela PBH na bacia do Córrego Capão”, conclui.

Acervo Pessoal

O contexto da bacia do Capão e a Prefeitura de Belo Horizonte

Conheça o site idealizado pelo grupo de pesquisa Morar de Outras Maneiras (MOM) da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): bit.ly/aguas-no-capao


Trabalho de Conclusão de Curso de moradora da região projetou o Capão idealizado pela população local.

Entre essas lideranças está Roseli. Ela opera como uma autêntica mobilizadora, atuando na escola em que trabalha e nas demais da região, bem como com os moradores no processo de conscientização, incentivando, como ela gosta de dizer, novos imaginários. “Eu lembro do Polignano [Marcus Vinícius Polignano, ex-presidente do CBH Rio das Velhas]. Ele falava assim: as pessoas precisam ter novos imaginários. Então, começamos a construí-los. Falamos sobre parques lineares, fragmentos ecológicos, sobre seres não humanos, sobre a qualidade da água para lazer… criamos um GT de drenagem, que é uma grande contribuição do MOM e da Núria. As discussões abrem muito a nossa cabeça, porque tira essa responsabilidade só da prefeitura. Pensar em pequenas ações que não se restringem ao fundo de vale. Tipo o telhado verde, microrreservatórios… enfim, ainda estou me apropriando dessas palavras. Precisamos falar delas, para ver se as pessoas também se apropriam”, reflete. Núria, embora não more na bacia do Capão, procura contribuir com seu conhecimento técnico de arquiteta e, no site “Águas do Capão”, constrói, com os moradores, um mapeamento e divisão do território que não é rígido nem baseado em fatores externos – pelo contrário, é fluido, se adapta às realidades sócio-político-econômicas da bacia e que, como elas, podem mudar. São as chamadas “circunstâncias”. De acordo com o site, “as circunstâncias podem ser entendidas, em termos físicos, como microbacias dentro de uma bacia. Em termos políticos, a circunstância tem uma escala interessante para a organização socioespacial considerando a reconciliação entre os humanos com os não humanos e mais que humanos desta delimitação. Nas palavras de Renata Oliveira, pesquisadora do grupo Águas na Cidade, “a circunstância pode ser compreendida como uma unidade espacial de investigação científica e experiência concreta”. Esse entendimento de circunstância veio de uma experiência de trabalho no Aglomerado da Serra, do professor Roberto Eustáquio, da Escola de Arquitetura da UFMG e um dos

idealizadores do MOM, aliada a uma reflexão do filósofo José Ortega y Gasset (1833-1955). O professor conta: “Estávamos fazendo uma espécie de biografia de uma casa no aglomerado quando notamos uma rachadura na parede”. A moradora contou a eles que a rachadura apareceu quando a Avenida do Cardoso foi aberta abaixo de sua casa. “Pensamos: o levantamento não pode ser só da casa; tem de incluir também a circunstância em que a casa está. Ortega Y Gasset, no livro ‘Meditações do Quixote’, diz: “Eu sou eu e minha circunstância”. Foi aí que cunhamos esse termo. Mas a circunstância não passa de uma nanobacia calibrável”, finaliza. É a partir das circunstâncias que Núria, Roseli e demais moradores que compõem o território, e podem ser vistos no site, levantam as possibilidades para a drenagem de águas pluviais na bacia. E Núria enxerga inúmeras possibilidades. “Em alguns pontos do córrego do Capão ainda há peixes. Por ali tem coruja buraqueira. Ainda há uma fauna ali que indica outros cenários. O que temos feito nessa lógica das circunstâncias é que cada unidade dessa poderia ser independente em suas soluções. Por exemplo: numa circunstância em que há nascentes, podemos criar regiões permeáveis em que a água de chuva infiltre, e vamos fazendo isso com todas as outras circunstâncias, de forma a equilibrar esse sistema da bacia”. O diálogo entre PBH e moradores da bacia do Capão ainda não acabou. Mas as circunstâncias são favoráveis. Miguel Aun

“Eu sou eu e minha circunstância”

União entre atores busca pensar alternativas para além das grandes soluções de drenagem, como as bacias de contenção.

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Unidades Territoriais

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Pintor alemão Johann Moritz Rugendas registrou Caeté nos idos do século XIX. Ao fundo a Serra da Piedade.

Terra do ouro e da fé Conheça a UTE Ribeirões Caeté-Sabará e seu vasto patrimônio histórico, cultural e ambiental Texto: Luiza Baggio A Serra da Piedade é testemunha de uma história que mistura guerra pela posse do ouro e domínio da região das minas, igrejas barrocas com peças atribuídas a Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, distritos com farta tradição cultural, vasto potencial turístico-religioso e importantes áreas de preservação ambiental. Caeté e Sabará são os municípios que formam uma porção especial da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas: a Unidade Territorial Estratégica (UTE) Ribeirões Caeté-Sabará. Localizada no Alto Rio das Velhas, a região é de destaque na formação histórica do estado de Minas Gerais e guarda importantes áreas de conservação para a bacia. Uma das cidades mais antigas de Minas Gerais, Sabará guarda riquezas do Ciclo do Ouro que podem ser visitadas por turistas que chegam à Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) à procura de atrativos históricos. Entre eles, estão a Capela da Nossa Senhora do Ó, representante do Barroco no estado com arquitetura de influência chinesa; a Casa da Ópera, mais conhecida por Teatrinho, segundo teatro mais antigo no Brasil em funcionamento, e o Museu do Ouro, antiga Casa de Intendência e Fundição, que cunhava e taxava o metal, principal moeda de troca do período setecentista. O reconhecimento como município só veio em 1838. Hoje, abriga uma população de 129 mil pessoas e tem Índice de Desenvolvimento Humano de 0,731, considerado alto.

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Bianca Aun

Sabará A palavra Sabarabuçu vem do termo tupi itá’berab’uçú, “pedra grande brilhante”, que designava a Serra das Esmeraldas, o Eldorado: um local repleto de prata e pedras preciosas procurado por colonizadores que vieram para o interior do Brasil. A bandeira organizada por Fernão Dias partiu de São Paulo em 1674 e tinha como finalidade alcançar Sabarabuçu. O bandeirante morreu em 1681, nas proximidades de Caeté, cidade vizinha, mas seu genro, Borba Gato, continuou seu trabalho e se tornou uma das figuras mais importantes da história de Sabará e da descoberta do ouro em Minas Gerais.

ShutterStock

Pontilhão da Ferrovia Central atravessa o Rio das Velhas, marcando a paisagem de Sabará.

A gastronomia também merece destaque: Sabará é conhecida por realizar o Festival da Jabuticaba, no mês de novembro, com licores, geleias e vinhos, e, em maio, o Festival do Ora-pronobis, verdura típica da culinária local. Outro segmento que tem atraído visitantes é o ecoturismo, praticado no Arraial Velho e no bairro Pompéu, que são pequenos vilarejos às margens da Estrada Real. Uma das cidades mais antigas de Minas Gerais, Sabará guarda riquezas do Ciclo do Ouro. Acima, estátua relembra passagem pela região do bandeirante Borba Gato, genro de Fernão Dias.

João Alves

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A região de Sabará havia sido identificada pelo bandeirante Matias de Albuquerque, que sondou o terreno e identificou que ele era favorável para implantar roças, além de ter água, e um ponto de travessia do Rio das Velhas para o sertão, que poderia ser feito a pé. Já em 1702, o arraial era um movimentado centro de comércio de gado, cavalos, escravos e mantimentos, além de ser o mais populoso de Minas Gerais. A prosperidade fez com que o povoado fosse elevado a Villa Real, absorvendo muitos arraiais vizinhos. A Comarca do Rio das Velhas foi instalada em 1714, com sede no local. A posição estratégica fez da Villa Real do Sabará o mais importante empório comercial de Minas Gerais no século XVIII e em mais da metade do século XIX. Além disso, era o maior centro de ourivesaria do Brasil. Até hoje, a cidade explora economicamente o ouro, além do ferro, que também foi central no desenvolvimento do município, com a chegada da Ferrovia Central.

Parte da história de Sabará está preservada. O Centro reúne chafarizes, igrejas do século XVIII e casarões do século XIX. A Rua Dom Pedro II, antiga Rua Direita, constitui conjunto arquitetônico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O local abriga o Solar do Padre Correia, um rico e influente padre que foi dono do edifício colonial que, atualmente, é a sede da prefeitura. A Matriz de Nossa Senhora da Conceição, inaugurada em 1710, é uma das mais ricas do século XVIII, com características de três períodos da arte barroca. Outro monumento marcante da cidade é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, uma construção inacabada feita por escravos, que decidiram erguer seu próprio templo religioso. Tocada pela Irmandade dos Homens Pretos da Barra do Sabará, a obra foi abandonada com a abolição da escravatura. As ruínas, em paredes de pedra sem reboco, atualmente guardam o Museu de Arte Sacra, com imagens e crucifixos dos séculos XVIII e XIX.


Caeté

O significado do nome Caeté não é consenso, originário do tupi-guarani significa “mato virgem” ou “matos” ou “silva primitiva” – o naturalista e viajante Saint-Hilaire aponta que a tradução seria “montanha coberta por grossas árvores”. Sempre em busca de ouro, prata e metais preciosos, os bandeirantes e escravos peregrinavam pelas Minas Gerais do século XVII. É nesse cenário que surge a cidade de Caeté. Em 26 de Janeiro de 1714, o governador Dom Braz Balthazar da Silveira decretou a criação da Vila Nova de Caeté, nome que anos mais tarde se resumiria a apenas Caeté. No contexto histórico, um dos períodos mais marcantes do município é o da Guerra dos Emboabas. Por volta de 1708, Caeté se tornou o berço do conflito. A origem do movimento, de caráter basicamente econômico, partiu de um incidente entre bandeirantes e moradores locais. Em 1840, a cidade foi emancipada e se desmembrou do município de Sabará. O núcleo se desenvolveu próximo do vale do córrego Caeté, em traçado longitudinal e orgânico. Preservando ainda características urbanas e arquitetônicas da ocupação setecentista, resguarda também exemplares que retratam o declínio da mineração no século XIX e o crescimento industrial com grande expansão da cidade no século XX, acarretando a busca pela modernização do município.

Seja para reforçar a fé, para fazer um pedido, agradecer ou apenas para observar uma incrível vista da região, a subida até o Santuário de Nossa Senhora da Piedade vale a pena. As construções do santuário estão a 1.783 m de altitude e lá de cima é possível avistar cinco cidades: Belo Horizonte, Caeté, Lagoa Santa, Raposos e Sabará, além de poder conhecer atrativos como a Igreja Nova das Romarias, o Cruzeiro, o Observatório Astronômico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Ermida da Padroeira. A Ermida da Padroeira abriga uma imagem de Nossa Senhora da Piedade, atribuída a Aleijadinho – importante escultor, entalhador e arquiteto da era do Brasil colonial. A santa é a padroeira do estado. A Ermida é o cartão-postal do santuário, construída em 1797 e desde essa data leva inúmeros peregrinos até lá. Além da nave central que abriga essa imagem, há duas capelas laterais, uma de cada lado, uma dedicada ao Sagrado Coração de Jesus e a outra é a capela do Santíssimo Sacramento. O Cruzeiro fica de frente para a igreja, no outro lado do grande pátio, e é uma escultura em ferro que representa Maria, São João e Cristo crucificado. O Observatório Astronômico Frei Rosário, mantido pela UFMG, oferece aos visitantes equipamentos especiais para conhecer mais de perto a astronomia. Inaugurado em 1972, tem localização privilegiada para observação de corpos celestes no topo da Serra da Piedade.

Bianca Aun

A cidade de Caeté também tem sua história de ocupação ligada a descoberta de jazidas de ouro em seus cursos d’água. A exploração minerária começou ao longo do Córrego Caeté, que teve suas margens escavadas para abertura de canais e desvios. A descoberta das primeiras minas na região aonde viria a se chamar Caeté é datada de 1701.

Caeté também é reconhecida pelo turismo religioso. No pequeno centro histórico fica a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Bela, imponente e super bem conservada é considerada a primeira de Minas construída em alvenaria. Há ainda relatos do século XVIII que contam que a planta da matriz teria sido feita e doada por Manuel Francisco Lisboa, pai de Aleijadinho.

Fernando Piancastelli

Caeté é reconhecida pelo turismo religioso. Em destaque: o Santuário de Nossa Senhora da Piedade. Na foto acima a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso.

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MAPA DE LOCALIZAÇÃO UTE CAETÉ/SABARÁ

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Exemplo de luta O município de Caeté, de fundamental destaque na história e na formação do estado de Minas Gerais, é morada de Ademir Bento. Formado em contabilidade, Sr. Ademir é natural de Caeté e reconhecido há anos pelos trabalhos voluntários na área social, cultural e ambiental, especialmente na associação do Bairro São Geraldo, Seresta da Lua Cheia, Carnacatu, Conselhos Municipais, ONGs e em movimentos socioambientais. Apaixonado pelo meio ambiente e por sua preservação, foi ao longo de mais de duas décadas conselheiro do CBH Rio das Velhas e dos Subcomitês Caeté-Sabará, Rio Taquaraçu e Águas do Gandarela, como representante do Movimento Artístico Cultural e Ambiental de Caeté (Macaca). Exerceu, nesse período, papel fundamental na luta pela preservação da bacia hidrográfica e, em especial, pela Serra do Gandarela. “Minha paixão pela Serra do Gandarela começou há muitos anos. Meu mestre em assuntos ambientais foi o meu pai, um homem de pouquíssimo estudo, mas de um coração enorme. Foi ele quem me ensinou desde pequeno a importância da natureza e que devemos sempre preservá-la. Tenho seguido esse caminho e tentado mobilizar cada vez mais pessoas nessa luta”, afirma Sr. Ademir. A Serra do Gandarela é um grande reservatório natural de águas, que serve às bacias dos Rios das Velhas, São Francisco, Piracicaba e Doce. É o mais importante manancial a abastecer o Rio das Velhas acima da captação de água da Copasa em

Bela Fama, região que fornece mais de 60% da água consumida por Belo Horizonte e 50% da água que abastece a Região Metropolitana. As águas dessa Serra servem também aos municípios de Caeté, Barão de Cocais, Santa Bárbara e outros mais populosos, como João Monlevade e Ipatinga. Para Ademir Bento, a intensa exploração dos recursos naturais gera diversas consequências, que, se não forem revertidas o mais breve possível, se tornarão permanentes para toda a população. “O consumo deve ser realizado de forma consciente, levando em conta a regeneração de cada um deles. Se não mudarmos agora a nossa postura, as gerações futuras é que sofrerão. Acredito que somente mudando de forma drástica a cabeça de nossos governantes e com muita educação ambiental é que conseguiremos mudar de forma positiva o mundo em que vivemos”, declarou.

Subcomitê Ribeirões Caeté-Sabará foi formado em 2006 como forma de promover a gestão compartilhada e participativa dos recursos hídricos. Ohana Padilha

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Ocupação desordenada e a qualidade das águas

Uma vez que nos deparamos com um crescimento populacional acelerado, com o que cresce também a ocupação do solo, é possível prever a problemática da qualidade de água, no que condiz ao desmatamento florestal, pois além dos impactos gerados pelo próprio ecossistema, essa ação adiciona também os impactos antrópicos. “Por outro lado, a ocupação desregulada das terras através de usos múltiplos indica a falta da aplicação da educação ambiental na região, como também a complexidade e dificuldade na elaboração de propostas para a gestão dos corpos hídricos, tanto em nível local como regional, conforme o CBH Rio das Velhas vem trabalhando”, afirma o coordenador do Subcomitê Ribeirão Caeté-Sabará, Jéferson Paes dos Santos.

Coordenador do Subcomitê Ribeirões Caeté-Sabará, Jéferson Santos aponta o saneamento, a educação ambiental e um melhor uso e ocupação do solo como soluções para a UTE.

Descarte de resíduos nas margens dos rios, especialmente da construção civil, é grave problema em Caeté.

Conjunto paisagístico Pedra Rachada, em Sabará: articulação busca proteção à área.

Criação da Unidade de Conservação Pedra Rachada O conjunto paisagístico Pedra Rachada, em Sabará, pode virar unidade de conservação. A proposta foi feita pelo CBH Rio das Velhas, Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e prefeitura municipal. Em novembro de 2022, foi discutido entre as instituições qual seria o papel de cada uma com a unidade de conservação. Uma unidade de conservação pode ser entendida como espaço com natureza e paisagem de grande importância para a sociedade, definido formalmente pelo governo como área de proteção. A Pedra Rachada permite atividades como caminhadas, ciclismo e jipe. Além disso, é considerada pelos esportistas um dos melhores locais da América Latina para a prática do Boulder, um tipo de escalada sem equipamentos de segurança. No ano de 2021, o CBH Rio das Velhas contratou um estudo para a criação da UC na região da Pedra Rachada com proposições de ações para a conservação da área, incluindo a definição de um território para constituir uma UC e sua categoria de manejo.

Gustavo Abah

Bianca Aun

Para ele, uma possível solução para os problemas ambientais da UTE está no investimento em saneamento básico, na educação ambiental e no melhor aproveitamento das áreas já urbanizadas que apresentam diversos imóveis e terrenos desocupados.

Gustavo Abah

Caeté e Sabará se encontram na RMBH e apresentam um crescimento desordenado. Com isso, diversos problemas surgem em consequência dos vários anos de falta de planejamento, e o meio ambiente e a população periférica são os mais afetados. A qualidade das águas da UTE Ribeirões Caeté-Sabará encontra-se prejudicada pelo lançamento de esgotos e efluentes industriais na região. A mineração é uma das atividades econômicas que mais pressiona a sub-bacia, bem como o controle de focos erosivos.

A secretária de Meio Ambiente de Sabará, Andrea Saraiva, esclarece que a criação da UC dará um novo significado ao potencial que a região da Pedra Rachada já possui. “Será fomentado o turismo ecológico que vem sendo cada vez mais praticado na cidade. O projeto trará inúmeras melhorias e benefícios para o nosso município, como a proteção de área verdes, maior conscientização da população sobre a necessidade de preservação e conservação do local, bem como auxiliar a coibir e combater a especulação imobiliária e ocupação irregular no entorno da Pedra Rachada e adjacências”, explicou. O MPMG dará apoio financeiro, jurídico e institucional para que o local se torne uma unidade de conservação. “O Ministério Público dispõe de recursos a serem investidos na região de Sabará proveniente do Termo de Compromisso assinado com a mineradora AngloGold Ashanti, em razão do carreamento de materiais, ocorrido no dia 12 de março de 2022”, de acordo com Rodrigo Marciano, da 2ª Promotoria de Justiça de Sabará.

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Recuperação Florestal

João Alves

Um projeto de recuperação florestal será executado nas microbacias dos Ribeirões Caeté e Sabará. A ação foi viabilizada pela assinatura de um Termo de Compromisso firmado entre o CBH Rio das Velhas, o MPMG, o Probiomas Produtos e Serviços Ambientais e a Prefeitura de Sabará. O documento foi assinado em março deste ano e prevê o investimento de mais de R$ 3 milhões de recursos de compensação ambiental.

Articulação prevê mais de R$ 3 milhões de recursos de compensação ambiental para recomposição florestal dos Ribeirões Caeté e Sabará.

Gustavo Abah

O projeto de recuperação florestal dos Ribeirões Caeté e Sabará vai realizar a recomposição florestal em várias subbacias contribuintes da UTE, através de plantios de mudas nativas, manutenção e combate a incêndios florestais nas áreas abordadas, monitoramento da qualidade das águas e construção de terraços, barraginhas e curvas de nível. Para isso, serão realizados estudos, pesquisas, reuniões, mobilizações, planejamento e levantamento de dados e de campo para execução das atividades de diagnóstico socioambiental e de qualidade das águas dos principais afluentes e dos Ribeirões Caeté e Sabará. Também será ampliada a capacidade de produzir mudas de espécies florestais nativas e frutíferas do viveiro Probiomas e realizada a mobilização e capacitação dos produtores rurais e colaboradores para realizar a recomposição florestal da região. Fernando Antônio Madeira, idealizador do Probiomas, explica que Caeté e Sabará convivem com a redução da disponibilidade de água e da cobertura florestal, próximo às nascentes e cursos d ́água, devido ao crescimento dos empreendimentos rurais (sítios, chácaras e condomínios) e minerais (ampliação das áreas exploradas e das áreas de despejo de resíduos minerais). Além dos incêndios florestais, contaminação do solo, da água e outros agravantes.

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João Alves

Viveiro do Probiomas produz mudas nativas para série de projetos de reflorestamento e produção de frutas.

“As microbacias dos Ribeirões Caeté e Sabará são responsáveis pelo abastecimento de água de mais de 150 mil pessoas nos dois municípios, além de contribuir com seu excedente para a bacia do Rio das Velhas. Atualmente, as bacias dos Ribeirões Caeté e Sabará apresentam redução da disponibilidade de água e da cobertura florestal. O projeto é de grande importância ambiental, pois além de fazer a recomposição florestal de nascentes e áreas ciliares no entorno dos cursos d´água tem o objetivo de melhorar a quantidade e qualidade das águas da sub-bacia dos Ribeirões”, afirmou. Importante destacar que todas essas iniciativas e articulações foram gestadas no âmbito do Subcomitê Ribeirões CaetéSabará. “A UTE Ribeirões Caeté-Sabará possui um Subcomitê instituído e bem articulado que há anos luta por melhorias em prol do meio ambiente e pela revitalização dos cursos d´água da região. Apesar de ser um grupo pequeno, já avançamos em muitos projetos e conquistas para os municípios de Caeté e Sabará”, concluiu Jéferson Paes dos Santos, coordenador do colegiado.


Gustavo Abah

Encontro do Rio Sabará com o Rio das Velhas. Setembro/2023.

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A Revista Velhas semestralmente homenageia um artista em suas contracapas. Nesta edição: o olhar do pintor alemão Johann Moritz Rugendas sobre o Rio das Velhas em Sabará, em 1835. O quadro “Rio das Velhas em Sabará”, de Rugendas, foi um registro marcante de sua jornada pelo interior de Minas Gerais. Naquela época, o rio fluía majestosamente, representando a riqueza natural da região, com águas límpidas e uma paisagem exuberante que incluía vegetação luxuriante e montanhas ao fundo. Hoje, no entanto, o cenário do Rio das Velhas em Sabará e em toda a sua extensão é sombrio em comparação. As águas cristalinas deram lugar à poluição, e o ambiente circundante foi afetado negativamente pelo crescimento desordenado das áreas urbanas. Margens erodidas, biodiversidade ameaçada e água contaminada são marcas da degradação que o rio enfrenta. O contraste entre o passado e o presente serve como um lembrete vívido da necessidade urgente de preservação e restauração da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas.


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