Reconhecimento de Humaitá | de Eduardo de Martino

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RECONHECIMENTO DE HUMAITÁ DE EDUARDO DE MARTINO

Foto: Anselmo Cunha / PMPA

UMA PINTURA HISTÓRICA NO ACERVO DA PREFEITURA DE PORTO ALEGRE FLÁVIO KRAWCZYK


“Reconhecimento de Humaitá” de Eduardo de Martino Uma pintura histórica no acervo da Prefeitura de Porto Alegre

O objetivo aqui é compilar as informações disponíveis nos arquivos da Pinacoteca Aldo Locatelli acerca do quadro “Reconhecimento de Humaitá”, óleo sobre tela datado de 1869, de autoria de Eduardo de Martino, tombado sob o código AL 069 na coleção pertencente à Prefeitura de Porto Alegre. Inicialmente convém salientar que até o momento não foram localizados registros documentais mais detalhados sobre a sua aquisição. Os apontamentos constantes no livro “Artes Plásticas no Rio Grande do Sul” de Athos Damasceno (Porto Alegre, Editora Globo, 1971, pág. 105-112), baseados em rigorosa consulta do autor à imprensa da época, levam a supor duas possibilidades: compra pela Praça do Comércio local ou pelo Governo Provincial, quiçá um consórcio das referidas instituições. Nas atas de vereança (Catálogo das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, 1866-1875; v. XI. Porto Alegre, UE/Secretaria Municipal da Cultura, 2001, pag. 121-132), redigidas no período em que o artista esteve em Porto Alegre entre dezembro de 1869 e abril de 1870, existe apenas uma menção ao quadro. Foi na sessão de 26 de abril de 1870 quando é registrado o recebimento de “portaria da Presidência [da Província] enviando o quadro intitulado ‘do Reconhecimento’ pintado por De Martins [sic], a fim de ser colocado no novo edifício da Câmara, na Praça D. Pedro II.” Este “novo edifício” ficaria pronto quatro anos depois. Trata-se da “Casa de Câmara”, cuja construção iniciara em 1864 ao lado – separada apenas pela rua General Câmara - e no mesmo estilo arquitetônico que o Theatro São Pedro. Infelizmente a bela edificação que sediou a Câmara de Vereadores até 1893 e posteriormente o judiciário regional foi destruída por um incêndio em 1949. Dito isto, é evidente que se trata de campo aberto para uma investigação mais acurada em outras fontes documentais. É provável que o quadro tenha permanecido na Câmara de Vereadores de Porto Alegre até fins do século XIX. Lembrando que a vereança da capital rio-grandense até 1874 não dispunha de 1


sede própria, o que demandava a locação de imóveis privados para sediá-la. Tal contingência implicava em transferências sucessivas do mobiliário, dos arquivos e das obras de arte a cada mudança. Ao longo do tempo, diversos retratos mencionados nas atas de vereança desapareceram, desconhecendo-se até hoje seu paradeiro. Felizmente a pintura de Eduardo de Martino não seguiu este destino, de tal modo que é possível identificá-la no Salão Nobre da Intendência Municipal numa fotografia da década de 1910, tomada pelo Studio Calegari. E aqui um adendo: com o advento da República e a subsequente criação da Intendência como organismo responsável pela gestão dos serviços municipais, é iniciada a construção da sede própria sobre área de aterro - a antiga Doca do Carvão, ao lado do Mercado Público Central. A majestosa edificação, concluída em inícios de 1901, logo é ocupada pelo Intendente e por diversos órgãos da administração. Assim como o mobiliário, o incipiente acervo de arte oriundo da Câmara de Vereadores é instalado na novíssima Intendência, cujo projeto, inspirado em palacetes venezianos, vinha assinado pelo engenheiro João Carrara Colfosco.

Salão Nobre da Intendência Municipal, foto Studio Calegari, década 1910. Acervo Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo (código 322 F)

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Ao longo dos anos, são adquiridas mais obras de arte pela municipalidade. Para além dos tradicionais retratos e bustos, paisagens e naturezas mortas passam também a ocupar a sede da Intendência. Desenhos de Martha de Wagner-Shindrowitz da década de 1940 registram paredes lotadas de quadros – como na área de circulação no pavimento superior - e é possível comprovar que o “Reconhecimento de Humaitá” permanecia no Salão Nobre neste período em que já se menciona a existência de uma “Galeria da Prefeitura Municipal”.

Salão Nobre da Prefeitura - Martha de Wagner-Shindrowitz, carvão. Fonte: Pôrto Alegre Biografia duma Cidade. Tipografia do Centro S.A.: 1940, páginas 320-321.

Galeria da Prefeitura Municipal - Martha de Wagner-Shindrowitz, bico de pena. Fonte: Pôrto Alegre Biografia duma Cidade. Tipografia do Centro S.A.: 1940, páginas 336-337.

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A partir de 1971 é designado o auditor Leandro Telles para “organizar os quadros” da Prefeitura. Notabilizado por atuar na preservação do patrimônio arquitetônico, Telles reunirá no pavimento térreo do Paço Municipal o acervo de obras de arte que estava disperso não apenas no prédio, como em outras edificações da Prefeitura. Com esta iniciativa torna-se o Paço um lócus expositivo aberto ao público, com especial estímulo para a visita de escolas. Em 1974 a antiga Pinacoteca recebe a denominação “Aldo Locatelli”, em homenagem ao italiano que deixara um importante legado de arte mural no Rio Grande do Sul, além de seminal atuação docente no Instituto de Artes. Ainda em 1974 são instalados, no Salão Nobre, três grandes painéis do modernista gaúcho Carlos Scliar. Encomendados com o intuito de plasmar no ambiente oficial da municipalidade uma iconografia acerca da história da capital gaúcha, acabaram ditos painéis implicando na remoção do quadro de Eduardo de Martino. A partir de então a velha pintura sobre a Guerra do Paraguai, permaneceu guardada, longe do olhar dos visitantes. Em 1979 uma nova reviravolta na história da Pinacoteca implicou na perda dos locais expositivos, transformados em salas administrativas. As obras de arte foram depositadas em condições precárias no porão e em 1982 com um convênio estabelecido com o Governo do Estado, todo acervo é transferido para o Museu de Arte do Rio Grande do Sul – MARGS. O acordo previa a exposição permanente do acervo em uma sala específica, todavia, ocorre que tal sala por apresentar dimensões reduzidas implicou numa apresentação limitada ao longo dos anos de apenas parte da coleção. E a pintura de Eduardo de Martino jamais voltou a ser apreciada, permanecendo na reserva técnica. Em meados da década de 1990 o quadro, estava com a moldura desmontada, apresentava um enorme rasgo na tela e estava encostado em uma parede. Não era possível enxergar a pintura, pois estava preventivamente (com certeza para evitar mais danos) voltada para a parede da reserva técnica do MARGS. Era penoso e arriscado manipular o quadro para apreciar a pintura, pois todo acervo da Pinacoteca Aldo Locatelli - e também o da Pinacoteca Ruben Berta, estava acondicionado, ou melhor, acumulado, numa pequena sala (em torno de 50 m2) na reserva técnica do museu. Iniciava ali um longo caminho.

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Desde o final dos anos 1980 havia sido desencadeado um minucioso processo de restaurações, higienizações e emoldurações do acervo artístico da Prefeitura. Centenas de peças nos mais diversos suportes e técnicas passaram por esta fundamental etapa. O acervo permaneceu no MARGS até o esperado retorno em 2008 ao Paço dos Açorianos (observação: em 1979, por decreto, a antiga Intendência Municipal havia sido renomeada “Paço dos Açorianos”), encerrando neste momento um ciclo em que estas obras permaneceram sob a guarda do MARGS. Agora o acervo retornava para a sede da Prefeitura de Porto Alegre em um estado de conservação, em termos gerais, muito bom. Especificamente a pintura de Eduardo de Martino recebeu a primeira intervenção em 2007. Naquele momento os objetivos principais eram a limpeza química e mecânica, remoção do verniz e repinturas, fixação da camada pictórica, planificação e fixação dos craquelês, remoção dos enxertos, reentelamento, emassamento das perdas, reintegração pictórica, desinfestação de fungos e cupins. Todavia, no desenvolvimento do trabalho a restauradora Fernanda de Tartler Matschinske identificou uma grande repintura realizada sobre o céu (metade superior do quadro), realizada há várias décadas provavelmente com uma tinta de parede de péssima qualidade e que se mostrava de difícil remoção, apesar de sucessivas tentativas com diferentes produtos recomendados pela boa técnica. Após ser vencida esta etapa, um novo contrato foi firmado em 2016, especificamente para tratar da moldura, prevendo a limpeza química, nivelamento das perdas do suporte, preenchimento dos furos de cupim, confecção dos ornamentos e das ferragens faltantes e o douramento. Enfim foi realizado o restauro completo da moldura, seguido do transporte, montagem (moldura, bastidor e tela) e instalação definitiva do quadro no Paço dos Açorianos. Enquanto a Equipe do Acervo estava envolvida com as tratativas para a instalação da obra no Paço, recebeu um e-mail de Aldeir Faxina Barros. O pesquisador paranaense soubera da existência da pintura no acervo da Prefeitura de Porto Alegre, porém não havia visto nenhuma reprodução e solicitava uma imagem da mesma. Conhecedor da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, ao receber a fotografia imediatamente percebeu que vínhamos utilizando o nome incorreto para o episódio representado no quadro: “Passo da Pátria”. Esta denominação equivocada constava na ficha cadastral elaborada na década de 5


1970, no Livro Tombo da Pinacoteca Aldo Locatelli aberto em 1991 e havia prosseguido nos sucessivos registros cadastrais do quadro, provando-se como um erro pode ser repetido indefinidamente até a justa correção. E foi esta a contribuição de Aldeir Faxina ao elaborar, em setembro de 2020, um parecer decisivo para a correção do nome do quadro. A partir deste documento foram realizadas as devidas retificações cadastrais e o quadro passou a ser exposto no Paço dos Açorianos - sede da Pinacoteca Aldo Locatelli, em 25 de novembro de 2020. Finalmente com o título correto: “Reconhecimento de Humaitá”.

Flávio Krawczyk Fevereiro de 2021

Reconhecimento de Humaitá, Eduardo de Martino, óleo sobre tela, 1869. Acervo Pinacoteca Aldo Locatelli / foto F.Zago-StudioZ.

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